CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE HISTÓRIA A MITOLOGIA GREGA NO MANGÁ SAINT SEIYA – CAVALEIROS DO ZODÍACO Daniel de Souza Dutra Lajeado, dezembro de 2014 2 CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE HISTÓRIA A MITOLOGIA GREGA NO MANGÁ SAINT SEIYA – CAVALEIROS DO ZODÍACO Daniel de Souza Dutra Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura em História da Univates, como exigência parcial para a obtenção do título de Licenciado em História. Orientador: Prof. Dr. Mateus Dalmáz Lajeado, dezembro de 2014 3 RESUMO O mangá é uma das formas de manifestação da arte sequencial, criada no Japão e com algumas características que o diferencia das histórias em quadrinhos produzidas no Ocidente. Cavaleiros do Zodíaco é um mangá criado em 1986 pelo japonês Masami Kurumada, que utilizou a mitologia grega como alicerce para o desenvolvimento de uma história de batalhas entre deuses, que utilizam os seres humanos como ferramentas para alcançar seus objetivos. Ao longo deste mangá, Atena, Hades e Poseidon protagonizam eventos pela hegemonia sobre a Terra, e utilizam seus poderes para fortalecer os humanos que os defendem. Neste trabalho, analisaremos os elementos da cultura grega que estão presentes no mangá, enfatizando as características dos deuses e suas relações com os seres humanos. O objeto de pesquisa será analisado comparativamente com outras fontes acerca da mitologia grega, e também sobre os quadrinhos e a arte sequencial, visando a verificação das ligações entre o mangá e a mitologia, assim como sua relevância como fonte de conhecimento histórico. PALAVRAS-CHAVE: Mitologia grega. Cavaleiros do Zodíaco. Arte sequencial. 4 LISTA DE FIGURAS Figuras 1, 2 e 3 - Chôjû jinbutsu giga..................................................................... 16 Figura 4 – Kanagawa oki namiura.......................................................................... 20 Figura 5 - Edehon Hokusai manga......................................................................... 21 Figura 6 – The Japan Punch................................................................................... 23 Figura 7 – Westerners finding it hard to adapt to Japanese life.………….…..…. 25 Figura 8 – Jogo de tabuleiro ilustrado por Kitazawa Rakuten.................................26 Figura 9 – Astro Boy............................................................................................... 29 Figura 10 – Kamui Den........................................................................................... 30 Figura 11 – Dragon Ball......................................................................................... 31 Figura 12 – Saint Seiya........................................................................................... 33 Figura 13 – Exemplo de ação, balões de fala e onomatopeias................................ 36 Figura 14 – Mudança de local nos quadrinhos....................................................... 37 Figura 15 – O contexto mitológico de Cavaleiros do Zodíaco............................... 45 Figura 16 – Budismo.............................................................................................. 48 Figura 17 – Tribunal de Osíris................................................................................. 49 Figuras 18 e 19 – Estátua de Atena......................................................................... 50 Figura 20 – Atena vestindo sua armadura............................................................... 51 Figura 21 – Pégaso e Poseidon................................................................................ 54 Figura 22 – Poseidon.............................................................................................. 56 Figura 23 – Geografia do inferno............................................................................ 58 Figura 24 – Hades e Pégaso..................................................................................... 59 Figura 25 – Andrômeda........................................................................................... 61 Figura 26 – Perseu................................................................................................... 61 Figura 27 – Cabo Sunião......................................................................................... 64 5 Figura 28 – Mito de Pandora................................................................................... 66 Figura 29 – Predisposição ao sacrifício................................................................... 67 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................ 7 1. O MANGÁ CAVALEIROS DO ZODÍACO E A ARTE SEQUENCIAL............... 12 1.1 A cultura japonesa retratada através da arte: do emakimono ao kakemono................ 13 1.2 De Hokusai a Rakuten: a transformação do mangá em história em quadrinhos......... 19 1.3 O pós-guerra e o refortalecimento dos mangás........................................................... 27 1.4 Shônen: os mangás para meninos................................................................................ 30 1.5 A arte sequencial.......................................................................................................... 34 1.6 O mito e o universo dos super-heróis.......................................................................... 39 1.7 A relevância da arte sequencial para a historiografia.................................................. 41 2. A MITOLOGIA GREGA NO MANGÁ SAINT SEIYA – CAVALEIROS DO ZODÍACO................................................................................................................... 44 2.1 Características dos deuses em Cavaleiros do Zodíaco................................................ 47 2.1.1 Atena......................................................................................................................... 49 2.1.2 Poseidon.................................................................................................................... 53 2.1.3 Hades........................................................................................................................ 56 2.1.4 As representações dos deuses gregos em Cavaleiros do Zodíaco............................ 60 2.2 Relações entre deuses e mortais em Cavaleiros do Zodíaco....................................... 60 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 69 REFERÊNCIAS............................................................................................................... 72 7 INTRODUÇÃO O interesse em analisar a mitologia grega no mangá Cavaleiros do Zodíaco aumentou de acordo com o contato e familiarização com obras, dissertações, teses e artigos científicos com ênfase em quadrinhos. Essas influências foram fundamentais para superar as dúvidas quanto à seleção do tema deste projeto, encorajando a desenvolver um trabalho que pode ser visto com desprezo por olhares mais conservadores. Encontramos um amplo leque de pesquisas nos campos da Comunicação, da Filosofia, da História e da Psicologia que têm como fontes primárias as histórias em quadrinhos, mas este número reduz drasticamente se nos limitarmos às obras dedicadas exclusivamente aos mangás, o que motivou a encarar o desafio de elaborar uma pesquisa voltada aos aspectos da mitologia grega sobre a obra de Masami Kurumada. Mangá é o nome dado às histórias em quadrinhos japonesas, a maioria feitas apenas com nanquim, e que tem como particularidade o fato de ser lido da direita para a esquerda, ao contrário dos livros ocidentais que são lidos da esquerda para a direita. Já a cultura grega é a base por onde se desenvolveu toda a cultura ocidental, desde os campos da filosofia e política até a arquitetura e arte; no Brasil, todos estudamos suas tradições ainda no início de nossa vida escolar, no ensino fundamental, onde a Grécia Antiga é tema estudado com ênfase. E a mitologia grega é um tema que vemos ser abordado pelas indústrias da cultura de massa com frequência: encontramos representações da mitologia grega no teatro, no cinema, na literatura e na música, e também nas histórias em quadrinhos. Mitos como o de Hércules podem ser encontrados nas mais diversas formas, e jogos eletrônicos como o premiado God of War (2005) mostram que o tema continua sendo muito bem recebido pelo público, visto que o título já se desdobrou em livros, histórias em 8 quadrinhos, brinquedos, álbuns de figurinhas, roupas e mochilas. No mesmo ano de lançamento do primeiro jogo da série God of War, era publicado o livro Percy Jackson e o ladrão de raios, que mostra mais um caso de excelente receptividade de um produto envolvendo a mitologia grega. Esses exemplos atuais lembram de outro fenômeno surgido na década de 1980 no Japão e que continua atraindo o público do mundo todo nas mais diversas formas. Trata-se de Saint Seiya, que no Brasil recebeu o título de Cavaleiros do Zodíaco. Originalmente lançado como um mangá, os cavaleiros também adentraram as portas de diversos ramos mercadológicos e, quase três décadas depois, continuam atraindo as novas gerações com o mesmo impacto e lucratividade de sempre. Uma amostra da resistência do título é que atualmente o mangá original da década de 1980 acabou recentemente de ser relançado no Brasil, repetindo o sucesso das vezes anteriores, mesmo competindo com outros títulos inéditos da marca Saint Seiya e centenas de outros títulos lançados em mangá ou no formato ocidental. No corrente ano de 2014, os cavaleiros também foram protagonistas de mais uma animação em longa metragem, e os primeiros projetos para o ano de 2015 já foram anunciados, comprovando que, enquanto produto da indústria cultural, os Cavaleiros do Zodíaco permanecem correspondendo às expectativas mercadológicas. Daí surgiu um interesse particular de pesquisar sobre a mitologia grega conforme representada nos quadrinhos desse mangá, e os motivos já se mostram óbvios: primeiro, devido às leituras de obras que fortaleceram o entendimento dos quadrinhos enquanto fonte; segundo, por duas décadas de contato do autor com os produtos derivados da marca, e também pela disposição em estudar as culturas grega e japonesa. Destacamos que a relevância do trabalho se justifica também pelo fato de que, embora a mitologia grega tenha sido analisada à exaustão ao longo dos séculos, ainda não temos notícia da análise dessa mitologia a partir de um produto à semelhança das histórias em quadrinhos. Os quadrinhos são uma forma da arte sequencial de baixo custo, disponível em todo o mundo e abordam os mais diversos temas: muitas vezes apresentam fatos históricos e despertam nos leitores um interesse por esses temas que poderia nunca lhes surgir. Como comentado anteriormente, já é vasta a literatura sobre histórias em quadrinhos, e a historiografia já traçou seu caminho de encontro às possibilidades de pesquisa dentro deste campo específico, e com este suporte buscaremos o entendimento de algumas questões norteadoras. 9 Ao longo deste trabalho, manteremos como objetivo geral analisar a mitologia grega nos quadrinhos do mangá Saint Seiya, ou Cavaleiros do Zodíaco. Essa análise requer a abordagem sobre outros temas específicos; portanto, caracterizaremos os mangás e conceituaremos mitologia, assim como examinaremos a metodologia de estudo dos quadrinhos. Essa será a base para identificarmos os temas sobre mitologia no mangá. Com todos os nossos objetivos estabelecidos, focamos na problematização que estabeleceremos ao nosso objeto de estudo; então, nos perguntamos: a) quais os aspectos da mitologia grega são expressos nos quadrinhos do mangá Cavaleiros do Zodíaco? E, b) quais são as características dos deuses gregos apresentadas ao longo do mangá? E ainda, quais são as relações entre mortais e deuses ao longo do mangá? As respostas para essas questões norteadoras serão buscadas através da análise de conteúdo dos quadrinhos nos dois capítulos da monografia, onde constataremos se as características dos deuses apresentadas condizem ao que as bibliografias a respeito da mitologia grega afirmam, e quais são os interesses em jogo para os homens e suas divindades quando os deuses olimpianos voltam a entrar em contato com a humanidade. O embasamento teórico desta pesquisa abrange obras que tratam da história cultural, da mitologia grega e das histórias em quadrinhos, assim como da cultura visual e dos estudos visuais. De extrema importância para o fortalecimento deste projeto foram a tese de mestrado de Carlos Krakhecke (2009) e a obra de Will Eisner (1999), primeiras abordando quadrinhos que tivemos contato e que representaram o ponto de ignição desta ideia. Krakhecke torna-se relevante, pois sua dissertação sobre os quadrinhos de Batman e Watchmen apresenta soluções para a utilização das histórias em quadrinhos como fonte de pesquisa histórica com propriedade: além de detectar na historiografia elementos que possibilitem este uso, o autor situa os quadrinhos na literatura e executa uma leitura da história política baseada nas representações da Guerra Fria nos quadrinhos citados. Em sua pesquisa, ele utiliza autores como Umberto Eco (1970) para imunizar os quadrinhos das críticas comuns à indústria cultural, pois este autor critica a visão de que os produtos da cultura de massa estariam a serviço das classes dominantes, com o objetivo de alienar as massas. Esta observação é de fundamental importância para esta pesquisa, pois desejamos nos distanciar desta visão frankfurtiana: o que tentamos observar é que o objeto de análise 10 (o mangá) é fonte de conhecimento (da mitologia grega). Adotaremos aqui a posição de Carlos Krakhecke, que considera os mass media frutos de um regime democrático, onde a informação está acessível a todos. É dentro deste contexto que situamos o mangá Cavaleiros do Zodíaco: como um produto que malgrado seu baixo valor econômico, é rico em representações culturais que remetem à Grécia Antiga. A base teórica da pesquisa será formada por representantes de diferentes vertentes: para conceituarmos o mangá, faremos uso de autores como Brigitte Koyama-Richard (2007), Ito Kinko (2008) e Sharalyn Orbaugh (2009), que analisaram o mangá relacionando-o aos diferentes momentos históricos por que o Japão passou; no que se refere aos quadrinhos, buscaremos seus principais teóricos: a base teórica surgiu no início da década de 1970 com Will Eisner (1999), que situou os quadrinhos, juntamente com os desenhos animados e o cinema, no campo da arte sequencial. A interpretação de Eisner sobre os quadrinhos justificam sua máxima autoridade sobre o tema, pois apenas na década de 1990 surgiria outra obra que tivesse como objeto de estudo a estrutura das histórias em quadrinhos: Scott McCloud (2005) ofereceu sua visão sobre o surgimento e a evolução dos quadrinhos, e também informações práticas sobre o processo de criação das partes artísticas e literárias. Quanto à mitologia, precisamos lembrar que a oralidade foi a força que a manteve viva, e que a linguagem escrita retirou-lhe o dinamismo. No entanto, as obras de Hesíodo (2010) e Homero (2010) representam o pensamento do homem grego antigo, e nos permitem ter uma ideia do papel que os deuses e os heróis tiveram na Antiguidade. Outros autores como Thomas Bulfinch (2006) e Juanito de Souza Brandão (1993) auxiliarão na compreensão da dinâmica da mitologia, pois um mesmo personagem ou mito pode ser encontrado com diferentes representações. Iuri Andréas Reblin (2008; 2010) também será fundamental, pois ele oferece uma interpretação atual do mito e o relaciona ao papel dos super-heróis no mundo antigo e moderno, estabelecendo paralelos entre os personagens criados com os anseios das sociedades. Também buscaremos suporte na historiografia e nas ciências sociais para atestar a validade do uso das histórias em quadrinhos como fonte de pesquisa: Teixeira Coelho (1996) tratará do papel da indústria cultural, enquanto os já citados Krakhecke e Reblin discutirão as ultrapassadas críticas sobre os mass media; Peter Burke (1992) será de importância para conceituar a história cultural e o valor das diferentes interpretações 11 historiográficas, enquanto Maria Lúcia Bastos Kern (2011) auxiliará na valorização da arte como fonte histórica. Esta oferta de pesquisa estará organizada em duas partes: no primeiro capítulo, trataremos da história do mangá, desde as suas mais antigas formas remanescentes até a atualidade, enfocando o estilo shônen, a que o objeto de estudo pertence; em seguida, trataremos da arte sequencial, apresentando os aspectos gerais das histórias em quadrinhos, e também da importância dos mitos, colocando o universo dos super-heróis como parte da mitologia. No segundo capítulo, enfocaremos nosso objeto de estudo, o mangá Cavaleiros do Zodíaco, a partir de dois aspectos principais: as características dos deuses e as relações dos mortais com os deuses. Daremos ênfase a Atena, Hades e Poseidon, deuses representados ao longo do mangá, e aos cavaleiros, que são os defensores de Atena. 12 1 O MANGÁ CAVALEIROS DO ZODÍACO E A ARTE SEQUENCIAL Como o objeto de estudo é a mitologia grega analisada através de um mangá, consideramos relevante iniciar com a atenção voltada para o mangá: onde e como ele surgiu, quais as modificações que sofreu ao longo do tempo e o que representa na atualidade. Perceberemos que embora o termo mangá tenha surgido apenas no século XIX, enquanto arte ele é milenar. Neste capítulo veremos algumas produções artísticas japonesas datadas do século XI, chamadas de emakimono, e destacaremos algumas características em comum com o mangá; do emakimono ao kakemono, perceberemos algumas modificações na sua estrutura e no seu significado para o povo; com Hokusai, veremos o surgimento do termo mangá, e observaremos Rakuten criar uma arte japonesa dentro dos parâmetros ocidentais. O contato entre ocidentais e orientais ocorreu às vésperas da propagação do imperialismo e da eclosão de conflitos mundias: enquanto alguns artistas se voltaram para a produção de obras que transmitissem ideais humanistas e pacíficos, outros retrataram em seus mangás a violência do mundo atual e o eterno antagonismo entre o bem e o mal. Também trataremos do conceito de arte sequencial, que é a base teórica das obras provenientes do cinema, das animações e das histórias em quadrinhos. Lembraremos como surgiram as histórias em quadrinhos ocidentais e destacaremos algumas características básicas que encontramos nos mangás. Como estaremos tratando de mitologia, também é fundamental apresentar algumas explanações que permitam compreender o papel do mito 13 enquanto elemento cívico das sociedades, e como universo criado pela indústria cultural para satisfazer os consumidores da cultura de massa. Por fim, faremos uma reflexão sobre a relevância da arte sequencial para a historiografia, buscando elementos que atestem o valor do mangá como fonte histórica, e a arte sequencial no geral como fonte de valor não apenas para a História, mas também para diversas outras áreas. Também apresentaremos algumas das críticas que já foram feitas sobre a indústria cultural: justificaremos os mitos daqueles que menosprezam o valor das informações alacarte oferecidas pelos meios de comunicação, e encerraremos ressaltando o valor cultural das histórias em quadrinhos e das produções científicas delas provenientes. 1.1 A cultura japonesa retratada através da arte: do emakimono ao kakemono Buscar uma data específica para o surgimento do mangá resultaria em respostas divergentes: enquanto autores como Brigitte Koyama-Richard (2007) entendem que rolos ilustrados com mais de mil anos de idade são seus ancestrais indiretos, pois apresentam profundas semelhanças pictóricas com o mangá, outros, como Sharalyn Orbaugh (2009), preferem situar sua origem no final do século XIX, no auge da Era Meiji. Para nos inteirarmos dessas divergências e também das qualidades das produções artísticas japonesas, faremos uma breve análise histórica das criações artísticas que antecederam a consolidação do mangá característico da atualidade. Quanto à origem do termo manga, sabe-se ter surgido no século XIX, cunhado por Katsushika Hokusai, durante o Período Edo, para se referir às produções artísticas que vinham sendo criadas por ele para servir como modelo em suas aulas de desenho. Os ideogramas para man e ga poderiam ser traduzidos, no seu contexto de criação, como “desenho feito às pressas”, ou ainda como “quadro bizarro”. Outros desenhistas que seguiam o seu estilo artístico também começariam a ter seus desenhos chamados pelo nome de mangá. Levaria muito tempo até que a palavra começasse a ser utilizada para se referir às histórias em quadrinhos japonesas. Koyama-Richard afirma que o nome mangá é utilizado no Japão quase exclusivamente por pessoas nascidas antes da Segunda Guerra Mundial, e geralmente para se referir às tirinhas políticas de jornais com conteúdo crítico ou satírico. O povo japonês abandonou o uso da palavra manga há mais de cinco décadas, o que deixa em aberto a dúvida sobre o motivo que levou o Ocidente a adotá-la para se referir às atuais produções, 14 que são exportadas e traduzidas em todos os continentes. Fato é que o termo mangá, criado no Japão, renasceu com sua propagação pelo Ocidente. Quanto ao conteúdo, de acordo com Orbaugh (2009, p. 113), as tirinhas de jornal do final do século XIX surgiram no Japão após o contato com exemplos semelhantes vindos do Ocidente: elas eram compostas por um ou dois quadros que tratavam de assuntos políticos, sendo essa a primeira manifestação artística japonesa a ser separada dentro de quadros, uma característica básica da arte sequencial. Logo surgiram outros jornais, interessados nas crianças e nos leitores das classes trabalhadoras, dando início a um ciclo que se fortaleceu com revistas como Boys´Club (Shônen kurabu), lançada em 1914 e Girls´Club (Shojô kurabu), de 1923. A história do mangá se relaciona à história da arte japonesa, que por sua vez nos remete à sua Pré-História: lá o homem também desenvolveu a arte rupestre, pintou cavernas e cerâmicas. Mas foi apenas no Período Nara, no final do século VII, que os japoneses começaram a pintar as paredes e os tetos de seus templos. Entre os anos de 710 a 794, o Japão sofreu uma grande influência cultural chinesa na escrita, na política e nas tradições, adaptando-as ao modo de ser japonês, enquanto fora das cortes o campesinato sofria com pesados impostos, colheitas insuficientes e epidemias de varíola (Henshall, 2004, p. 42-43). O ensaio artístico do Período Nara consolidou-se durante o Período Heian (794- 1185), quando a arte no Japão de fato floresceu. Enquanto os guerreiros das províncias (bushi), ou servidores (samurai), tornavam-se cada vez mais poderosos, o governo enfraquecia e a nobreza alcançava uma prosperidade inédita até então, interessando-se mais pela literatura e por passatempos do que pelas questões políticas. Em Heian, a corte iria atingir o seu zénite em diversos aspectos. No seu refinamento, nas suas realizações artísticas e na sua etiqueta, rivalizava com qualquer corte que tenha havido no mundo até hoje. [...] Os valores não residiam nos assuntos de Estado, mas no protocolo correto, no vestuário adequado, na frase perfeita (Henshall, p. 46). Fraco politicamente, com uma nobreza dócil e uma classe guerreira feroz, o Japão possuía uma sociedade guiada por princípios morais rígidos. Henshall ilustra alguns aspectos do bushido, que significa literalmente “caminho do guerreiro”, destacando que Yamaga foi talvez o primeiro a ver o bushido como uma filosofia geral. Nos seus vários escritos salientou aspectos dele, como a lealdade e a 15 autodisciplina, bem como a importância de aprender e praticar as artes e do desenvolvimento perfeito do homem no seu todo. Saber qual é o seu papel na vida e como comportar-se adequadamente com os outros é por ele particularmente acentuado (p. 88). Os guerreiros eram seguidores desse código, e prezavam pela ação que tivesse como resultado a ordem social, sem fazer distinção dos atos como bons ou ruins, diferentemente do homem ocidental, que age de acordo com esse antagonismo. Os bushi agiam de modo a manter a tradição, em uma sociedade habituada a violências e castigos como a crucificação e o esquartejamento. Ainda dentro dessa tradição, alguns samurais e nobres ganhavam o privilégio de se suicidar, em um ritual chamado de seppuku, ou haraquiri, quando o condenado abria seu próprio estômago utilizando um punhal, seguido da decapitação imediata, realizada por um amigo respeitado (Henshall, p. 83). O infanticídio também foi recorrente; muitas famílias pobres costumavam matar os recém- nascidos para evitar que a qualidade de vida diminuísse. Foi nesse cenário que alguns artistas japoneses adquiriram o hábito de ilustrar pergaminhos, que eram conhecidos como emakimono, ou apenas emaki. Os emaki (pergaminhos ilustrados) são considerados tesouros nacionais e estão carregados de elementos característicos do mangá (Koyama-Richard, p. 10). Eles eram desenrolados gradualmente, revelando uma sucessão de cenas que produzia a sensação de ação e de cronologia dos fatos, muitas vezes somados a ideogramas que auxiliavam no entendimento das representações artísticas. Diferentemente do mangá, os emaki não se separavam por quadros. Eles eram caros e inacessíveis à maior parte da população, e podiam ultrapassar os quinze metros de comprimento. É o caso de Chôjû jinbutsu giga (Brincando com animais e pessoas), atribuído a Toba Sôjô (1043-1140). Este emaki é considerado o mais antigo ancestral do mangá (Koyama-Richard, p. 14; Kinko, p. 26), e é composto por quatro pergaminhos que tem entre nove e doze metros de comprimento. Koyama-Richard nos oferece uma interpretação de algumas das ilustrações: encontramos animais humanizados, como percebemos na Figura 1, onde um sapo está enfrentando um coelho em um torneio de sumô. Em outra cena dos rolos, um macaco está vestido como monge diante daquilo que seria uma estátua budista, substituída por um sapo sobre uma flor-de-lótus; atrás dele, outros animais acompanham a cerimônia, conforme a Figura 2. Na Figura 3, o macaco terminou suas orações e está recebendo oferendas de coelhos e sapos: um deles, inclusive, está trazendo 16 ao macaco um rolo ilustrado. Esses rolos são lidos da direita para a esquerda, e o artista criou efeitos de profundidade através da gradação da tinta cinza, à semelhança dos mangás atuais, e embora não possuam balões de fala, um primeiro modelo já está ali, com ideogramas dispostos de maneira a explicar as imagens. Algumas das cenas retratam eventos cômicos, enquanto outras trazem algumas mensagens e lições, como o fato de que o mais forte nem sempre é quem ganha uma batalha. Koyama-Richard 1 afirma que estes pergaminhos são Originários da China, mas magnificamente adaptados e transformados de acordo com a estética japonesa [...]. Os chineses, e no mesmo caminho os japoneses, optaram por não limitar a imagem dentro de um quadro ou painel, mas apresentar suas múltiplas facetas, permitindo que o olho do expectador passeie e pegue uma sucessão de cenas - fora ou dentro de templos ou palácios - vistas de baixo ou do alto, e a partir de todos os ângulos possíveis, como se víssemos a imagem através da lente de uma câmera cinematográfica (Koyama-Richard, 2007, p. 9). 1 Tradução livre feita pelo autor. Todas as citações extraídas de obras em inglês foram traduzidas pelo autor. Figuras 1, 2 e 3 - Chôjû jinbutsu giga, tesouro nacional japonês atribuído a Toba Sôjô (1043-1140). 17 (Koyama-Richard, 2007, p. 15) A autora também lembra que “desde os primeiros rolos, e depois nas telas dobráveis, a prosa e a poesia escrita muitas vezes misturaram-se às pinturas” (p. 40). Isso dá uma proximidade peculiar da arte à literatura, ainda no século X, assinalando um ponto de encontro que fortalece a sua hipótese de que a origem do mangá remete aos antigos emaki. Os rolos produzidos até o início do século XVII se caracterizavam pela representação de lendas chinesas e japonesas, e por um conteúdo moralista característico do budismo. Um exemplo é o rolo de 35 metros intitulado Shigisan engi emaki (As Lendas do Monte Shigi, do século XII), que registrou a criação de um templo e dos milagres realizados por seu fundador, Myôren, no século X. O mensageiro está vestido em uma roupa repleta de espadas, e está viajando pelo céu empurrando uma roda, que é o símbolo da lei de Buda (Koyama-Richard, p. 16). Do século XIII podemos destacar o tradicional Momotarô (Menino do Pêssego), emaki que ilustra um dos mais populares contos japoneses: uma velha senhora encontra um grande pêssego enquanto lava as roupas em um riacho, e ao reparti-lo com o marido, surpreende-se ao ver que dentro da fruta havia um bebê, que recebe o nome de Momotarô. Dotado de grande força, ele viaja em direção à Ilha dos Demônios, acompanhado de um macaco, um cachorro e um faisão, que o ajudam a acabar com as forças malignas. A história gira em torno do eterno combate entre o bem e o mal e conta com um final otimista, e é até hoje representada nas mais diversas formas no Japão, inclusive em formatos atuais de mangá. Embora a origem da arte japonesa esteja ligada à China, esta influência declinou quando o Período Tang chinês acabou, em 906. A queda dessa dinastia chinesa teve consequências no Japão, onde deu início a um processo de estabelecimento de uma 18 identidade japonesa própria. O declínio dinástico chinês teve como consequência o afastamento diplomático entre os Estados, e refletiu também na arte: [...] surgiram valores estéticos próprios, como o okashi e, em particular a (mono no) aware, uma estética que continua muito presente no Japão contemporâneo. O akashi refere-se a algo invulgar e geralmente divertido, muitas vezes num sentido relativamente trivial, como uma quebra de etiqueta. A mono no aware, que é geralmente expressa através do simbolismo da natureza, representa a ideia de que a vida é bela, mas efémera. É traduzida literalmente como “tristeza das coisas” (Henshall, p. 48). As produções artísticas do estilo emaki continuaram sendo feitas ao longo dos séculos que antecederam o xogunato Tokugawa (1600-1868), quando a cultura japonesa elevou-se a um novo patamar. Proliferaram os teatros de marionetes para as classes menos abastadas, e teatros e poesias próprios para a aristocracia. Tokugawa Ieyasu (1542-1616) recebeu do imperador o título de chefe supremo, sei-i-tai-shôgun, e levou a sede de seu governo para Edo, chamada hoje de Tóquio. No século XVII, Edo chegou a aglomerar mais de um milhão de habitantes, e possuía uma sociedade variada e dividida entre quatro classes (guerreiros, fazendeiros, artesãos e mercadores), em um modelo chamado de shinôkôshô. Nesta época o controle político esteve nas mãos do xogunato, que elaborou estratégias para isolar o Japão das crescentes relações que os Estados ocidentais insistiam em tentar estabelecer. Embora no início do período os japoneses tenham conseguido manter a influência ocidental afastada, este panorama não tardaria em mudar. Durante o sakoku jidai, ou “Período do País Fechado”, a sociedade manteve uma rígida estratificação e o xogunato experimentou seu apogeu e também a extinção, enquanto a figura típica do samurai passava de guerreiro para burocrata e administrador (Henshall, p. 87). Durante este período, as classes intermediárias enriqueceram e floresceram culturalmente: os mercadores e artesãos mais ricos procuravam os mestres da Escola Kanô para adquirir seus emaki, enquanto os menos abastados procuravam livros e quadros mais baratos para decorarem o tokonoma, espaço de suas casas utilizado para decoração, contendo um vaso de flores, um objeto de arte ou um kakemono, que poderia ser um emaki, ou uma produção textual em um pergaminho vertical. 19 Os kakemono tornaram-se muito populares após a invenção de um conjunto de pinturas e xilografuras chamadas de ukiyo-e, que ajudaram a propagar as ilustrações entre os comerciantes do Período Tokugawa: Gostavam de gravuras coloridas em madeira, que eram muitas vezes sexualmente explícitas. Estas eram conhecidas como shunga (“imagens da primavera”) ou, mais geralmente, como ukiyo-e, “imagens do mundo flutuante”. “Mundo flutuante” era originalmente uma expressão usada pelos sacerdotes para se referirem à transitoriedade da vida, mas na Época de Edo passou a significar o mundo das relações humanas e, em particular, o das relações sexuais (Henshall, p. 91). Essas alusões a tempos espaços indeterminados sofriam a influência do budismo; ukiyo-e se refere a um “domínio terrestre regido pela inconstância e pelo prazer fugaz” (Koyama-Richard, p. 38). Inicialmente essas imagens eram pintadas, mas depois começaram a ser talhadas e pintadas em blocos de madeira, para depois serem passadas para o papel. Além de transmitir contos e mitos, trazer notícias e fornecer receitas para curar doenças, os ukiyo-e também eram utilizados no contexto educacional, sendo utilizados para treinar as crianças na escrita e na leitura. 1.2 De Hokusai a Rakuten: a transformação do mangá em história em quadrinhos O nome de Katsushika Hokusai (1760 – 1849) já foi citado como pertencente ao criador do termo mangá, o que faz com que ele seja reconhecido como o primeiro ancestral direto do mangá moderno (Koyama-Richard, p. 64). No início, manga era o termo que Hokusai utilizava para se referir aos desenhos que ele disponibilizava como modelos para os seus pupilos; alguns anos após o seu falecimento, o termo começou a significar “caricatura”, e depois história em quadrinhos. Kanagawa oki namiura (A grande onda de Kanagawa, 1831, FIGURA 4) mostra a noção de perspectiva do artista e seu domínio na utilização de uma grande variedade de cores em um desenho aparentemente simples. 20 (Koyama-Richard, 2007, p. 80) No ano de 1812, Hokusai visitou o seu discípulo, Maki Bokusen (1775 – 1824), em Nagoya. Bokusen e um editor lhe solicitaram algumas produções, e nos meses que se seguiram Hokusai produziu cerca de trezentos desenhos: Estes desenhos foram a origem do primeiro volume de mangá, que surgiu em 1814;[...] Publicado sobre o título de Edehon Hokusai manga (Manual dos mangás de Hokusai), esta coleção era desejada não apenas por seus muitos adeptos, mas também por todos aqueles que queriam aprender a desenhar (qualquer desenho executado com pincel e nanquim) (Koyama- Richard, p. 72). Para esta autora, as trocas artísticas entre o Ocidente e o Oriente foram aceleradas com a propagação do estilo de Hokusai: ele influenciou os artistas ocidentais, a começar pelos impressionistas, até chegar ao estilo moderno, quando serviu de base também para os criadores das primeiras histórias em quadrinhos da França e dos Estados Unidos. Estes, por sua vez, acabaram desenvolvendo obras que serviram de influência para os criadores dos mangás modernos, completando o círculo artístico que deu origem ao mangá atual. Nos últimos volumes do Manga de Hokusai, encontram-se alguns desenhos que criticam a política e a sociedade japonesa, tendo como principais alvos a decadência do estilo de vida dos nobres e dos funcionários do governo japonês. Muitos outros artistas seguiram esta linha e foram reconhecidos por seus trabalhos com conteúdos críticos e Figura 4 – Kanagawa oki namiura, de Katsushika Hokusai. 21 satíricos, como Utagawa Kuniyoshi e Kobayashi Kiyochika. O mangá de Hokusai se caracterizava pela ausência de quadrinhos e de balões de fala, mas mantém o costume japonês de leitura, partindo da direita para a esquerda, como podemos perceber na Figura 5. (Koyama-Richard, 2007, p. 81) Neste período ocorreu também a abertura do Japão, iniciada em 1853, quando o Comodoro Matthew Perry entrou na Baía de Edo e exigiu o início das negociações, em nome do Presidente dos Estados Unidos. Parte do governo Tokugawa era a favor da abertura do país, mas muitos grupos clamavam por resistência, com o slogan sonnô jôi, que significava “reverenciemos o imperador, expulsaremos os estrangeiros”; os momentos que antecederam a abertura do país foram marcados por revoltas de grupos nacionalistas, por assassinatos e condenação ao suicídio, imposto a alguns intelectuais pró-ocidentais (Henshall, p. 96; Koyama-Richard, p. 99). Figura 5 - Volume 10 de Edehon Hokusai manga, de autoria de Katsushika Hokusai. 22 Estes movimentos populares eram liderados por clãs influentes e tiveram como resultado a remoção do xogum Tokugawa Yoshinobu, dando início ao processo de restauração do poder imperial, evento conhecido como Restauração Meiji. A política, a economia e até mesmo a religião passaram por mudanças radicais que não passaram despercebidas pelos artistas japoneses, que retrataram estes eventos em suas obras. Durante o Período Meiji (1868-1912), o Japão tornou-se um Estado capitalista focado na modernização: o uso do coque masculino e o porte de espadas foram proibidos, enquanto as vestimentas ocidentais como sapatos, chapéus e gravatas tornaram-se populares, em um processo que extinguiu a figura clássica do samurai. As ruas das cidades foram iluminadas e os primeiros trilhos de trem foram instalados em 1871, mesmo ano da introdução do yen, a nova moeda. Desobedecendo aos costumes budistas, o governo encorajou a população a consumir carne e leite, e introduziu livros didáticos ocidentais, traduzidos e adaptados para o novo sistema escolar japonês, mais amplo e aberto às influências externas (Henshall, p. 114; Koyama-Richard, p. 100). Diversos japoneses viajavam para o Ocidente em missões oficiais ou semioficiais destinadas à América e à Europa, e enviaram ao Japão relatos de viagens que “eram amplamente lidos por esta nação instruída, uma nação desejosa de aprender com o Ocidente, mas ainda algo confundida por tudo isto” (Henshall, p. 118). Foi neste cenário de mudanças e intercâmbios que dois artistas ocidentais foram para o Japão e marcaram a produção de desenhos no país. O norte-americano Charles Wirgman (1832-1891) era um correspondente de um jornal londrino e foi o precursor do humor ocidental no Japão; a maior parte de seus desenhos tratava sobre as tensões, os conflitos e as diferenças culturais entre o Japão e o Ocidente. O trabalho deste artista (FIGURA 6) é considerado “uma fonte indispensável para compreender a rapidez das mudanças na sociedade japonesa no início do período Meiji”, pois “ilustra a difusão da cultura ocidental no Japão” (Kinko, 2008, p. 29). O uso dos balões de fala, comuns em suas obras, seria adaptado para as produções de muitos artistas japoneses. Já o francês Georges Bigot chegou ao país em 1882 e ficou ali por quase vinte anos, sem nunca alcançar sucesso. No entanto, suas caricaturas dentro de quadrinhos (FIGURA 7) estavam organizadas em uma sequência narrativa que, somadas aos balões de fala introduzidos por Wirgman, guiaram os japoneses aos quadrinhos modernos (Kinko, 2008). 23 (Koyama-Richard, 2007, p. 107) A participação do governo japonês na Feira Mundial de Paris de 1867 ajudou os nipônicos a perceber o interesse dos povos do Ocidente nas pinturas e artes decorativas do Período Edo; neste evento, ocorrido durante o último ano do xogunato Tokugawa, Hokusai Manga e outros livros ilustrados do país foram expostos (Kinko, 2008). Mas os representantes japoneses voltaram para casa conscientes de outra coisa: se eles conseguissem despertar nos ocidentais o interesse pela sua arte moderna, eles poderiam Figura 6 – Capa da edição de abril de 1883 de The Japan Punch, de autoria de Charles Wirgman. 24 oferecer uma grande variedade de produtos para as nações interessadas (Koyama-Richard, 2007). O nascimento das histórias em quadrinhos japonesas modernas se enquadra neste processo e está ligado ao nome de Kitazawa “Rakuten” Yasuji (1876 – 1955), que é considerado o precursor das novelas gráficas japonesas. Suas obras tinham uma nítida influência das produções de artistas como Wirgman e Bigot: suas histórias eram geralmente divididas em seis quadrinhos por página, muitas vezes recorrendo aos balões de fala. Embora fosse um grande crítico do mundo político de sua época, ele também criou histórias em quadrinhos para crianças, como “A infância de Toyotomi Hideyoshi”, de 1914. As viagens que fizera ao redor do mundo o levaram a criar as “Memórias de minhas viagens ao exterior” e “Os trabalhos completos de Rakuten”, onde ele pôde expor os estudos que fez sobre estilos de vida, expressões e costumes das pessoas que ele encontrou nos países por onde passara. Neste sentido, vale a pena destacar “As duas garotas modernas” que descreve o período de transição que o Japão viveu, hesitando entre a modernização de um lado, e as tradições do passado em outro (Koyama-Richard, p. 118). Assim como diversos outros mangakas, Rakuten também desenhou jogos de tabuleiros, que eram muito populares no Japão (FIGURA 8). 25 (Koyama-Richard, 2007, p. 107) A relevância das obras de Rakuten foi destacada na França no ano de 1929, quando ele mostrou seu trabalho em uma “Exibição de trabalhos sobre os costumes e os hábitos dos japoneses: pinturas de M. Kitazawa Rakuten”. Ao final da mostra, Rakuten foi declarado officier d’académie pelo Ministro Francês da educação e pelas Escolas de Arte. No entanto, Rakuten (e diversos outros artistas japoneses que absorveram as técnicas ocidentais) sofreram com fortes críticas, principalmente na Inglaterra, local para onde sua exposição seguiu, em 1930. Foi neste período que os mangakas (desenhistas de mangá) organizaram algumas associações. Nas primeiras décadas do século XX, surgiram grupos como a Tokyo Manga Kai, de 1915, e a Nihon Manga Kai, mas Rakuten fundaria, em 1942, a Associação Japonesa de Mangá (Nihon Manga Hôkôkai), em plena Segunda Guerra Mundial: “sobre Figura 7 – Westerners finding it hard to adapt to Japanese life, do francês Georges Bigot [s. d.]. 26 pressão governamental, os heróis dos mangás começaram a pregar a defesa nacional e logo começaram a ser usados como meio de propaganda” (Koyama-Richard, p. 126). Esta autora afirma que Rakuten discordava das imposições governamentais; por outro lado, Kinko (2008, p. 34) afirma que “muitos artistas contribuíram para fazer o “Mangá Original para a Promoção da Vitória na Guerra Sagrada”, e que Rakuten encabeçou o grupo de artistas que elaboraram materiais para o contexto da guerra. Esta divergência dificulta a compreensão das posições políticas dele durante a Segunda Guerra Mundial. Norakuro (de Suihô Tagawa, 1931), e Bôken Dankichi, (Keizô Shimada, 1933), são exemplos de mangás que abordam o militarismo e o expansionismo como temas. Enquanto o primeiro conta a história de um cão vadio que entra no Exército Imperial como soldado e acaba se tornando um capitão, o segundo conta a história da Dankichi, um garoto japonês que se torna o rei de uma ilha no Pacífico (Kinko, p. 34). (Koyama-Richard, 2007, p. 119) Figura 8 – Jogo de tabuleiro ilustrado por Kitazawa Rakuten, de 1913. Este jogo é uma representação cômica do cotidiano dos professores. 27 O pós-guerra e a derrota perante os Aliados trouxeram consequências nas produções artísticas japonesas: os jornais com tirinhas satíricas retornaram, e uma série de proibições das forças ocupacionais norte-americanas foram impostas. O povo japonês estava então chocado com os efeitos das bombas atômicas, empobrecido e faminto não apenas por comida, mas pelos momentos de entretenimento e lazer da qual foram privados. A nova sociedade civil que emergiu durante os sete anos da ocupação norte-americana serviu como uma fonte abundante de tópicos para satirizar, sendo o imperador e a família real as vítimas preferidas dos mangakas (Kinko, p. 35). Além de serem proibidos de praticarem esportes como judo, kendo e karate, os japoneses sofreram restrições também na publicação de mangás de conteúdo histórico, que remetessem a épocas anteriores ao Período Meiji. Estas imposições ocorriam como uma maneira de conter o espírito de combate dos japoneses e seus valores de obediência e sacrifício, extraídos do bushido. 1.3 O pós-guerra e o refortalecimento dos mangás Após o ano de 1945, o mangá voltou a se fortalecer: com a propagação de obras de ficção científica pelo mundo, os mangakas encontraram um novo tema e também começaram a criar histórias com naves e robôs. Em 1947, Sakai Shichima lançava Jikunsha, “Um Estranho Robô”, que trazia o cientista malvado Zebra, que controlava um moderno robô para tentar sequestrar o Dr. Peeble; no ano seguinte, Sawai Ichisaburô lançava Kaitei-Tanken, “Exploração do Fundo do Mar”, que contava como o cientista Marui explorou o fundo do mar e descobriu diversos seres habitando as profundezas. Muitos mangás desta época já possuíam um discurso sobre a superação de limites e na conquista de objetivos pessoais (Koyama-Richard, p. 138), temas recorrentes nas obras japonesas, mas a influência da literatura europeia começava a ser percebida com força após a tradução integral dos grandes clássicos. Muitos mangakas foram influenciados pelas obras ocidentais, chegando a criar versões em mangá para alguns títulos. Nakano Masaharu adaptou “As Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, enquanto Osamu Tezuka foi o responsável por revisões sobre clássicos como Crime e Castigo, de Dostoievsky, Fausto de Goethe e A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson. Mas foi com Astro Boy (Tetsuwan Atomu) que Tezuka alcançaria a fama, além de causar uma revolução na indústria dos mangás. A importância dele é atestada por Koyama-Richard, que afirma que o “mangá nunca teria se tornado o que é hoje sem o notável trabalho de Tezuka Osamu (1928 – 28 1989). Físico, excelente músico, perito em insetos, este artista genial permanece o mais conhecido mangaka de todo o Japão” (p. 147). Quando estava se preparando para receber seu doutorado em medicina, Tezuka hesitou a decidiu tornar-se exclusivamente um mangaka, estabelecendo as fundações do mangá moderno com Shintakarajima (A Nova Ilha dos Tesouros, de 1947). Sua obra era claramente influenciada pelas animações dos estúdios Disney, e o próprio visual do Astro Boy (FIGURA 9) tinha sido elaborado com base no Mickey Mouse. Tezuka também criaria o primeiro mangá do estilo shôjo (mangá para meninas), intitulado Ribon no kidi (A Princesa e o Cavaleiro, de 1953). O autor daria aos seus desenhos algumas das características mais notáveis nos personagens dos mangás: nos aspectos físicos, olhos grandes e expressivos; nos aspectos psicológicos, pensamentos humanistas e convicções espirituais, como se percebe em Hi no tori (O Pássaro de Fogo, de 1954); em um momento da obra, uma Fênix pensa no significado da vida para os diferentes seres vivos e critica o anseio humano pela imortalidade. A obra de Tezuka era marcada pelo seu estilo de vida; considerado um homem sensível, palestrava em escolas falando sobre a vida e a guerra, e sobre a necessidade de proteger a vida na Terra, a tal ponto que [...] depois da guerra ele se determinou a ensinar a paz, o respeito pela vida e à humanidade através de seus mangás, que se tornaram a sua paixão. Tezuka é conhecido por seus temas humanistas, incluindo a preciosidade da vida, e seus mangás estão cheios de narrativas para ambos os sexos e todas as idades. Ele recebeu muitos prêmios, e seu mangá elevou os quadrinhos a um nível de grande respeitabilidade (Kinko, p. 35). Malgrado o grande sucesso, a obra de Tezuka gerou uma contra-reação entre aqueles que consideravam suas produções muito infantis. No país dos samurais, o mercado não poderia ficar sem os representantes das castas guerreiras: enquanto Tezuka produzia obras para um público específico, outros autores deram início aos gekiga, dando aos mangá shônen uma nova roupagem. 29 (Koyama-Richard, 2007, p. 151) Alguns mangakas começaram a produzir obras mais próximas da realidade japonesa, com conteúdo realista, dramático e violento. Estes eram os gekiga, histórias onde o humor inexistia, pois o enfoque das produções estavam em questões cotidianas e em problemas sociais. Eles eram publicados junto com mangás de outros temas, em revistas semanais como a Shûkan shônen Magazine, que se multiplicavam para suprir a crescente demanda comercial por novas publicações. As publicações shônen estavam voltadas para o público masculino, e geralmente tratavam de questões como a superação e o foco nos objetivos; repleto de aventuras e humor, os shônen traziam algumas vezes cenas violentas ou eróticas. Estas revistas com conteúdo misto estavam se tornando sucessos de vendas, e davam margem para o surgimento de uma variedade cada vez maior de opções. Uma dessas novas revistas era a GARO, lançada em 1964. O mangá Kamui Den (A Lenda de Kamui, de Shirato Sanpei, FIGURA 10), seria uma das produções que figurariam em suas páginas. Kamui Den serviria de influência para uma nova geração de mangakas, que focariam no estilo shônen manga, ou seja, tendo como principal alvo os leitores do sexo masculino, e como tema mais recorrente lutas e batalhas. Figura 9 – Astro Boy, personagem criado em 1952 por Osamu Tezuka. 30 (Koyama-Richard, 2007, p. 157) Kyôjin no Hoshi (Estrela dos Gigantes, de 1966) contava como Hyûma Hoshi, após muitos treinamentos duros com o seu pai, se tornou a estrela do time de baseball Tokyo Giants; já Ashita no Jô (Tomorrow´s Joe – A História de um Boxeador, de 1968) tratava de um menino enviado para uma casa de detenção juvenil. Jô Yabuki é observado por um ex- lutador que lhe ensina técnicas do boxe, fazendo o menino ganhar auto-estima e confiança, transformando-o em um vencedor (Kinko, p. 37). Estes mangás shônen traziam implicitamente os resultados do trabalho duro, da perseverança e da superação como caminhos seguros para a vitória e para o sucesso. 1.4 Shônen: os mangás para meninos Dentro desta vertente, surgiu em 1984 um mangá chamado Dragon Ball, de Akira Toriyama. Dragon Ball (FIGURA 11) se tornaria o mangá mais vendido do mundo, com um número superior a 500 milhões de cópias. Em 2000, a série foi lançada no Brasil da Figura 10 – Shirato Shinpei criou na década de 1960 Kamui Den, obra que continuou sendo lançada por mais de 40 anos. 31 mesma maneira que em seu país de criação: com a ordem da leitura seguindo da direita para a esquerda (Souza, 2006, p. 25). Misturando mitos chineses e japoneses, o autor desenhou e narrou a história de Son Goku, um menino que veio do espaço e foi encontrado por Son Gohan, um velho que o apresentou às artes marciais. Após a morte do ancião, Goku partiu em uma jornada pelo mundo em busca das Esferas do Dragão, artefatos místicos capazes de realizar qualquer desejo. Ao longo de sua jornada, Goku cresceu, fez amigos e inimigos, casou-se, teve filhos e morreu mais de uma vez em suas lutas contra inimigos vindos de todo o universo. (Koyama-Richard, 2007, p. 174) Figura 11 – Capa japonesa de Dragon Ball, lançado a partir de 1984. 32 Pouco tempo depois, em 1986, surgia um novo mangá shônen nas páginas da revista Weekly Shônen Jump: tratava-se de Saint Seiya (FIGURA 12), um mangá criado por Mazami Kurumada, que contava as batalhas dos guerreiros defensores da deusa Atena. Saint Seiya chegou ao Brasil em 1994 como um anime (desenho animado japonês), e foi exibido pela Rede Manchete. A versão original, em mangá, foi lançada no país apenas no ano 2000. Mas na metade da década de 1990, quando chegou ao Brasil, sua alta audiência salvou a emissora de televisão da falência, que vivia um momento de crise no momento em que o anime lhes foi oferecido. Eles ganhariam o direito de exibir o anime gratuitamente, caso anunciassem os brinquedos derivados da série. Ambos se tornaram sucesso imediato, e mesmo decorridos vinte anos desde a chegada da série ao país, ela continua atraindo fãs das mais novas gerações através de novas versões de mangá e animes, pelos jogos de video game e também por filmes, como o remake lançado em 2014 nos cinemas de todo o mundo, inclusive do Brasil. 33 Diversos outros nomes de relevância incontestável poderiam ser citados aqui, mas para os objetivos do trabalho, estaríamos nos repetindo; a partir deste momento o mangá já adquiriu as características que possui até hoje e que desejávamos esclarecer: de seu embrião nos antigos emaki, passando pelas obras de Hokusai e Rakuten, as produções artísticas japonesas mantiveram algumas características, mas diversas outras foram acrescentadas: o mangá deixou de ser um manual para aprendizes e se tornou um livro de histórias em quadrinhos aos moldes ocidentais, e se tornou produto consumido por pessoas de todas as faixas etárias no Japão. Na atualidade, Koyama-Richard lembra que “em todo o Figura 12 – Capa japonesa de Saint Seiya, lançado a partir de 1986. Imagem disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Saint_Seiya_chapters_(se ries). Acesso em 23/11/2014. 34 mundo, o fenômeno mangá está atraindo um público cada vez maior. No Japão, todo mundo lê estas obras gráficas, tanto para diversão como educação, e elas fazem parte integrante da vida cotidiana” (p. 6). Orbaugh compactua dessa opinião, pois segundo ela, o mangá é o produto artístico mais exportado do Japão, possuindo importância econômica e cultural de primeira ordem. Posto isto, relembramos que falar sobre o mangá requer uma observação sobre as tradições artísticas japonesas, que se desenvolveram por séculos de maneira isolada, dando aos desenhos nipônicos características peculiares e exclusivas; inicialmente privilégio das classes mais abastadas, a popularização da arte através dos kakemono levou as obras para dentro de mais casas, até que Katsushika Hokusai criasse um estilo que ele mesmo denominou como mangá. Este estilo influenciou toda uma geração de artistas, cujos expoentes máximos foram Kitazawa Rakuten e Tezuka Osamu. Paralelamente a isso, artistas ocidentais como Charles Wirgman e Georges Bigot chegaram ao Japão e auxiliaram na difusão de técnicas da arte sequencial ocidental, principalmente no que concerne ao uso dos quadros e dos balões de fala, enquanto obras orientais eram apresentadas em feiras e exposições na Europa. Para concluir, podemos afirmar que o processo de criação e difusão do mangá abrange um longo período, que remete ao século X e se desenvolve até o século XX, passando por modificações em sua forma e no seu conteúdo, mas mantendo em sua estrutura as características de mil anos atrás, e também aquelas conhecidas pelos artistas japoneses apenas depois da abertura do país. 1.5 A Arte Sequencial A base teórica das histórias em quadrinhos surgiu no início da década de 1970 quando Will Eisner publicou a obra Quadrinhos e Arte Sequencial (1999), onde ele situa os quadrinhos, juntamente com os desenhos animados e o cinema, no campo da arte sequencial. Este livro continua sendo a referência máxima em se tratando de histórias em quadrinhos, mesmo que hoje possamos encontrar obras de grande relevância, como Desvendando os quadrinhos (Scott McCloud, 2005). McCloud apresenta a história dos quadrinhos e mangás, seus segredos de criação e as possibilidades de leitura e interpretação. Para este autor, os quadrinhos modernos teriam surgido a partir das obras de Rodolphe Töpffer, “[...] cujas histórias com imagens satíricas, iniciadas em meados do século XIX, empregavam caricaturas e requadros – além de apresentar a primeira combinação interdependente de palavras e figuras na Europa” (McCloud, 2005, p. 17). 35 De acordo com Krakhecke (2009), podemos avançar algumas décadas no tempo e afirmar que As histórias em quadrinhos surgem ao fim do século XIX, oriundas principalmente das charges, publicadas em jornais estadunidenses e distribuídas largamente através dos syndicates - corporações detentoras de direitos de imprensa para distribuição de material para jornais de todo mundo. Em geral, os estudiosos das HQs consideram Yellow Kid, de outubro de 1897, como seu marco inicial, outros, porém, consideram algumas xilogravuras francesas do século XIX ou então Max und Moritz do alemão Wilhelm Busch, de 1866, como quadrinhos. De qualquer modo, será a partir das publicações nos jornais estadunidenses que os quadrinhos terão continuidade e se tornarão conhecidos (p. 55). Como vimos, é a partir de artistas ocidentais radicados no Japão que os quadrinhos se estabelecem no Oriente, dando às produções artísticas nipônicas os últimos retoques necessários para que o mangá se estabelecesse como um novo e diferente modelo de arte sequencial. A arte sequencial é entendida como um conjunto de duas imagens ou mais que, quando observadas, transmitem uma sensação de dinamismo ao leitor/expectador, como podemos perceber no exemplo proposto na Figura 13. Os desenhos animados e o cinema são considerados arte sequencial porque a sensação de movimento que percebemos, se origina na rápida projeção de imagens que são, na realidade, estáticas, dando ao expectador a impressão de que os personagens projetados estão realmente se movendo. A diferença dos quadrinhos para estas outras formas de arte sequencial está no fato de que eles são estáticos: para serem compreendidos, eles precisam ter suas lacunas preenchidas pela imaginação do leitor. Ou como refletiu Umberto Eco, para quem a montagem da estória em quadrinhos não tende a resolver uma série de enquadramentos imóveis num fluxo contínuo, como no filme, mas realiza uma espécie de continuidade ideal através de uma fatual descontinuidade. A estória em quadrinhos quebra o continuum em poucos elementos essenciais. O leitor, a seguir, solda esses elementos na imaginação e os vê como continuum – esse é um dado mais que evidente, e nós próprios, ao analisarmos a nossa página, fomos levados a resolver uma série de momentos estáticos numa cadeia dinâmica (Eco, 1970, p. 147). Ou então, na interpretação de McCloud, para quem “é aqui, no limbo da sarjeta, que a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma em uma única ideia. Nada é visto entre os dois quadros, mas a experiência indica que deve ter alguma coisa lá” (McCloud, p. 66-67). E aí entra a intervenção do leitor, que recebe a tarefa de encontrar na sua mente os elementos que faltam para completar o enredo. Desta forma, podemos compreender a singularidade dos quadrinhos enquanto arte sequencial, e da importância da participação do leitor para a compreensão das lacunas. Pois 36 além da imagem, o leitor conta com mais algumas poucas ferramentas para construir o entendimento: os balões de fala e as onomatopeias. Eles são considerados recursos extremos por tentar “captar e tornar visível um elemento etéreo: o som. Enquanto as onomatopeias representam os efeitos sonoros, como o som de algo quebrando, ou do vento soprando, os balões contém as falas dos personagens (Eisner, p. 26). (Kurumada, 2005, ed. 18, p. 14-15) Para a compreensão dos balões de fala, devemos levar em conta “a disposição em relação um ao outro, ou em relação à ação, ou a sua posição em relação ao emissor – [pois] contribui para a medição do tempo” (Eisner, p. 26). A partir da leitura ordenada dos balões é que o leitor consegue chegar ao entendimento da sobreposição das palavras e imagens, que lhe exige habilidades interpretativas visuais e verbais, pois “As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, Figura 13 – Ação, contendo balões de fala e onomatopeias. Mangás devem ser lidos sempre da direita para a esquerda. 37 gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura da revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual” (Eisner, p. 8). A medição do tempo é realizada de diferentes maneiras pelos artistas: enquanto nas comics tradicionais percebemos a preferência por frases como “enquanto isso” ou “no dia seguinte”, a maioria dos mangás possui um outro método: eles apresentam, por exemplo, quadrinhos representando a lua ou um local, para anunciar a mudança de tempo ou espaço (FIGURA 14). (Kurumada, 2004, ed. 03, p. 52-53) Além da arte e da escrita, a sensação de movimento nas histórias também é um elemento fundamental para construir uma história em quadrinhos. Para alcançar este resultado, os artistas capturam os eventos da narrativa em segmentos sequenciados que são Figura 14 – Enquanto luta com Pégaso, Dragão relata o mito por trás de sua armadura. O autor deixa de lado as representações do combate para ilustrar a China, país onde Shiryu recebeu seu treinamento. 38 chamados de quadrinhos (Eisner, p. 38). Detalhes como o contorno e o formato do requadro definem o ponto de vista que o leitor terá da cena retratada, assim como da temporalidade dos acontecimentos. Mas a representação do elemento humano também permite leituras, principalmente quando é retratada com habilidade pelos artistas, pois assim “ela consegue deflagrar uma lembrança que evoca o reconhecimento e os efeitos colaterais sobre a emoção” (Eisner, p. 100), ativando a memória comum da experiência: as imagens que vemos nos lembram de cenas que vivenciamos no cotidiano. Podemos então afirmar que a obra pode ser compreendida de diferentes maneiras: através da linguagem textual; através da representação artística e com a nossa capacidade de criar o continuum com o uso da imaginação. Para conseguir tal efeito, os desenhistas de histórias em quadrinhos tem que possuir um vocabulário gestual e dinamismo artístico para que o corpo aja natural e espontaneamente, de acordo com as falas contidas nos balões. Nas histórias em quadrinhos, a postura do corpo e o gesto têm primazia sobre o texto. A maneira como são empregadas essas imagens modifica e define o significado que se pretende dar às palavras. Por meio da sua relevância para a experiência do leitor, podem invocar uma nuance de emoção e dar inflexão audível à voz do falante (Eisner, p. 103). A postura e os movimentos dos personagens é muito explorada pelos mangakas, que procuram dar aos seus personagens toda a expressividade possível: pois, por não ser rígida como uma fotografia, a “arte gráfica permite o exagero, que pode atingir o seu objetivo e influenciar o leitor com mais rapidez” (Eisner, p. 141). Encontramos desde artes absolutamente caricatas para representar dor ou raiva, a outras ricas em expressividade, demonstrando sentimentos como a tristeza ou prazer. Sobre a arte sequencial oriental, McCloud fez algumas observações relevantes para esta pesquisa: em primeiro lugar, quando afirma que A arte e a literatura do Ocidente não divagam muito. Nós temos uma cultura muito orientada pelo objetivo. Já o Oriente tem uma tradição de obras de arte cíclicas e labirínticas. Os quadrinhos japoneses parecem herdar essa tradição, enfatizando mais o estar lá do que o chegar lá. Com essas e outras técnicas, os japoneses mostram uma visão dos quadrinhos bem diferente da nossa (McCloud, p. 81). As diferenças entre estas duas vertentes da arte sequencial são verificadas por qualquer leitor, e o afastam ou aproximam de um estilo de acordo com as suas 39 preferências. Esta colocação, assim como outras, explica o fato de que as histórias contidas nos mangás precisam de muitas páginas a mais para serem concluídas do que seriam necessárias caso fossem interpretadas por um artista ocidental. Os quadrinhos japoneses são publicados como livros de antologia, onde a pressão sobre qualquer um dos capítulos pra mostrar muita coisa não é tão grande. Quando se juntam as características individuais, vamos ter milhares de páginas. Com isso, é possível dedicar muitos quadros pra mostrar um lento movimento cinematográfico ou estabelecer um clima (McCloud, p. 80). Como vimos anteriormente, os mangás são publicados periodicamente em revistas contendo poucos capítulos. Estas revistas são descartáveis: poucos japoneses tem o hábito de guardá-las. Os títulos que obtêm algum sucesso são rapidamente lançados em livros que contém um conjunto de capítulos. Este formato é conhecido como tankohon, e é uma edição procurada pelos colecionadores. Um mesmo título chega a ter milhares de páginas, e a explicação está no fato de que os quadrinistas japoneses, os mangakas, apresentam os movimentos quadro a quadro, permitindo ao leitor compreender a ação de uma maneira diferente da proposta pelos artistas ocidentais, que são mais objetivos em suas retratações. Com essas considerações sobre o mangá e a arte sequencial, restam poucos fatores para estabelecermos os alicerces de nossa pesquisa: uma reflexão sobre o conceito de mito e sobre os super-heróis, e uma base historiográfica para a pesquisa. 1.6 O Mito e o universo dos super-heróis Embora hoje o mito tenha a conotação de uma história inventada, ficção, uma fábula, as sociedades arcaicas entendiam os mitos como histórias verdadeiras, que tratavam de tempos longínquos quando seres sobrenaturais deram origem ao universo, ao mundo, ao homem e a todas as coisas. O homem utilizava estes mitos para explicar as coisas que sua inteligência não compreendia, propagando oralmente esses conhecimentos. Sua importância nas sociedades antigas permitia aos homens entenderem-se como pertencentes à mesma raça, como percebemos com Juanito de Souza Brandão, que afirma: E se na Grécia Continental, bem como em seus “pedaços” plantados na Ásia, na Europa e na África, jamais existiu unidade política, houve sempre, “em todas as Grécias”, graças à religião, uma consciência de unidade racial. Ou se era grego ou se era bárbaro (Brandão, 1993, p. 123). O mito então, não apenas explicava, mas também unia as pessoas que entendiam o mundo a partir de uma mesma perspectiva mitológica. E as gerações passavam os 40 conhecimentos oralmente, contando, cantando ou recitando as histórias de geração em geração. Hoje, apenas conhecemos a mitologia grega, assim como diversos outros mitos, graças à escrita; e Brandão critica a versão escrita do mito, pois para ele a forma escrita desfigura, por vezes, o mito de algumas de suas características básicas, como, por exemplo, de suas variantes, que se constituem no verdadeiro pulmão da mitologia. Com isso, o mito se enrijece e se fixa numa forma definitiva. De outro lado, a forma escrita o distancia do momento da narrativa, das circunstâncias e da maneira como aquela se converteria numa ação sagrada. Um mito escrito está para um mito “em função”, como uma fotografia para uma pessa viva (Brandão, p. 25). Mesmo assim, é graças a esta estagnação do mito através da escrita que hoje conhecemos muitos aspectos das culturas da Antiguidade: graças às iniciativas de Homero, que escreveu A Ilíada e Odisseia, assim como Hesíodo, que desenvolveu a Teogonia. Embora Homero não tenha sido o criador dos mitos que ele descreve, seu mérito extraordinário “foi saber genialmente reunir esse acervo imenso em dois insuperáveis poemas que, até hoje, se constituem no arquétipo da épica ocidental” (Brandão, p. 119). Hesíodo também não criou os mitos gregos, mas escreveu e catalogou a vasta genealogia dos deuses, além de recontar a origem do universo, do mundo e do homem. Mas nós não estaremos abordando apenas a mitologia grega no próximo capítulo: a nossa fonte primária, que é o mangá Saint Seiya, também apresenta um conceito próximo, que é o de super-herói. E Reblin (2008) lembra que Ao analisar culturas e povos distintos, constata-se a presença de elementos heróicos no imaginário e na vivência cotidiana, tanto na cultura oriental quanto na ocidental. Antes dos super-heróis dos seriados televisivos japoneses (Jaspion, Jiraya, Changeman, Ultraman, National Kid, entre outros) até mesmo dos kamikazes – pilotos suicidas japoneses da Segunda Guerra Mundial, considerados “heróis” pelo seu povo – Godzilla e outros seres mitológicos permeavam o universo dos habitantes do arquipélago do Sol Nascente (Reblin, 2008, p. 21). O autor nos permite afirmar que herói é então uma figura presente em todas as sociedades, pois os fatos realizados por pessoas comuns podem lhe garantir a alcunha. Ele lembra que “os heróis são indivíduos detentores de capacidades e/ou qualidades consideradas excepcionais, como habilidades físicas, mentais ou morais, sendo a coragem o atributo mais típico de um herói” (Reblin, 2008, p. 22). 41 Já os super-heróis são reimaginações dos heróis do mundo real: enquanto os nossos heróis são esportistas e músicos, bombeiros e médicos, os super-heróis são capazes de realizar façanhas que um ser-humano normal não é capaz de fazer. E ele utiliza essa capacidade para proteger os homens. Eles Surgem geralmente como enviados de Deus para a libertação humana; os mais clássicos são os grandes juízes (sendo Sansão o mais famoso), e Jesus Cristo, com seus poderes sobre-humanos como andar sobre águas, transformar água em vinho, o dom de curar e de ressucitar os mortos (Reblin, 2008, p. 22). O que temos é a potencialização das capacidades humanas de forma a dar aos heróis poderes que apenas os deuses mitológicos possuíam. Eles agora extrapolam a figura de indivíduos corajosos, e são elevados à categoria de super-heróis: eles surgem em um mundo onde a luta entre o bem e o mal é evidente, e oferecem a intervenção que pode ser capaz de conter as pretensões de homens ou deuses malignos: os vilões. O vilão pode ser alguém que adquiriu seus poderes de uma maneira semelhante ao super-herói, ou ser um homem comum, mas deuses e seres alienígenas também são utilizados para antagonizarem os super-heróis. Até aqui, apresentamos algumas considerações sobre o mangá e a arte sequencial, e também sobre a mitologia e o universo dos super-heróis; resta-nos agora uma última base, onde finalizaremos esta primeira parte discutindo a relevância da análise historiográfica a partir de uma história em quadrinhos. 1.7 A relevância da arte sequencial para a historiografia Utilizar histórias em quadrinhos como fonte de pesquisa é ainda hoje um desafio, principalmente pela aversão da comunidade científica em aceitar obras com este conteúdo. As críticas que se verificam hoje baseiam-se principalmente nos preceitos dos teóricos da Escola de Frankfurt, para quem os meios de comunicação de massa são ferramentas a serviço das classes dominantes, com o objetivo de alienar. Uma das bases desse pensamento, de acordo com Teixeira Coelho, estaria em Dwight MacDonald, que fala na existência de três formas de manifestação cultural: superior, média e de massa (subentendendo-se por cultura de massa uma cultura “inferior”). A cultura média, do meio, é designada também pela expressão midcult, que remete ao universo dos valores pequeno-burgueses; e a cultura de massa não é por ele chamada de mass culture mas sim, pejorativamente, de masscult – uma vez que, para ele, não se trataria de um cultura, nem de massa (Coelho, 1996, p. 14). 42 Esta observação é de fundamental importância para esta pesquisa, pois desejamos nos distanciar desta visão frankfurtiana; Umberto Eco denominou estes adversários da indústria cultural de apocalípticos, e suas ideias vão na contramão de nossos objetivos: o que tentamos observar é que o objeto de análise (o mangá) é fonte de conhecimento (da mitologia grega). Carlos Krakhecke nos lembra de que os integralistas, assim como são descritos por Eco, defendem que os mass media não são típicos de um regime capitalista, mas fruto de um regime democrático onde todo o cidadão participa e consome por igual; massificando a informação oferecendo um acervo vasto e barato ao alcance de todos (Krakhecke, 2009, p. 36). E é dentro deste contexto que situamos o mangá Saint Seiya: como um produto que malgrado seu baixo valor econômico, é rico em representações artísticas e textuais que remetem à Grécia Antiga. Reblin teceu comentários voltados diretamente às histórias em quadrinhos, lembrando que Embora ainda exista o preconceito de acadêmicos e de intelectuais em relação aos quadrinhos, taxados de serem cultura industrializada inútil, sem relevância científica, os gibis têm conquistado cada vez mais espaço, um público cada vez maior de leitores, a inclusão no rol das grandes artes (são considerados a nona arte) e têm despertado cada vez mais o interesse de pesquisadores, sobretudo, cientistas sociais e políticos (Reblin, 2010, p. 15). Percebemos que o autor destacou o antagonismo entre aqueles que desprezam os produtos da indústria cultural e os acusam de alienantes, e aqueles que defendem o seu valor: dentro deste último grupo inserimos a nossa proposta de trabalho, baseada nas ideias integralistas de que os meios de comunicação de massa democratizam o acesso à informação, que pode ser adquirida através de diferentes maneiras e com mais facilidade, “sendo, portanto, instrumento privilegiado no combate dessa mesma alienação” (Coelho, 1996, p. 28). Quanto ao desenvolvimento da pesquisa, destacamos que será baseado no uso de uma corrente historiográfica contemporânea conhecida por história cultural, que tem como pressuposto a ênfase na interpretação das tradições e da cultura popular, em detrimento dos aspectos políticos e econômicos, que são exaustivamente estudados por outras correntes da historiografia. Peter Burke (1992) afirma que outros tipos de história, além da história política, eram marginalizados e “considerados periféricos aos interesses dos verdadeiros historiadores” (p. 11), mas com a nova história, toda a atividade humana começou a ser 43 objeto de interesse dos pesquisadores, pois “a base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou culturalmente constituída” (p. 11), tornando-se assim uma corrente historiográfica de valor considerável pelo fato de trazer à tona novas perspectivas da história. Não está entre os objetivos desta pesquisa aprofundar um aspecto específico, mas sim apontar a variedade de campos onde pode-se atestar a relevância de uma pesquisa proveniente das histórias em quadrinhos: posto isso, destacamos que esta leitura remete também à cultura visual, onde encontramos subterfúgio em Kern, quando ela afirma que Na atualidade, verifica-se a expansão da HA [História da Arte] para outros campos do conhecimento e a pesquisa empírica, a partir de fontes diversificadas, também tem permitido reformular conceitos e metodologias de análise, sem deixar de focar as especificidades das práticas artísticas. Estas possibilitam importantes revisões historiográficas (Kern, 2011, p. 516). Deste modo, consideramos a análise de imagem um modelo consistente, e fundamental para a interpretação do mangá. É esta análise que permite ao pesquisador elaborar uma interpretação válida a respeito de seu objeto de estudo, colocando-o no âmbito dos estudos visuais e na análise de conteúdo. Até aqui apresentamos uma série de colocações sobre as origens do mangá; sobre o conceito de arte sequencial; sobre mito, mitologia e o universo dos super-heróis; por fim, procuramos apresentar as divergências que os pesquisadores possuem em relação à indústria cultural; neste ponto, concluímos que a relação das ciências sociais (e especificamente no nosso caso, da historiografia) com os produtos da indústria de massa é considerada proveitosa por uma quantidade relevante de pesquisadores renomados, o que nos deixa em aberto a possibilidade de analisar a mitologia grega através do mangá Saint Seiya. 44 2 A MITOLOGIA GREGA NO MANGÁ SAINT SEIYA – CAVALEIROS DO ZODÍACO Neste capítulo, trataremos dos aspectos da mitologia grega no mangá Cavaleiros do Zodíaco partindo de duas bases: inicialmente, verificaremos quais são os deuses gregos representados e quais características deles que foram exploradas na elaboração da obra; em segundo lugar, apresentaremos quais são as relações entre esses deuses e a humanidade: quais os objetivos de ambos os grupos e a finalidade da formação das alianças entre homens e deuses no decorrer da história. Também dedicaremos um espaço para dissertar sobre outros elementos mitológicos que são referenciados ao longo do mangá. Para facilitar a abstração das explanações ao longo deste capítulo, é fundamental apresentar o contexto geral da obra. O mangá Saint Seiya foi lançado no Japão em 1986, mas a chegada dos Cavaleiros do Zodíaco ao Brasil foi através do animê (desenho animado japonês), exibido pela extinta Rede Manchete, a partir de 1994. O animê foi veiculado pela televisão concomitantemente à venda de bonecos, facilitando a assimilação de uma vasta gama de personagens e se tornando um sucesso que, duas décadas depois, mantém a mesma aceitação por parte dos antigos expectadores – e leitores, pois o mangá também seria lançado e relançado no Brasil a partir de 1999 até os dias atuais. Ao longo destes anos, novas versões foram criadas e continuaram a atrair novos públicos: o mangá considerado clássico (contendo as sagas do Santuário, de Poseidon e Hades) teve continuidade em Next Dimension, que até o presente momento não fora 45 concluído; o passado já foi contado nos mangás The Lost Canvas e The Lost Canvas Gaiden, que relembram a guerra santa contra Hades no século XVIII, quando Dohko e Shion eram jovens cavaleiros; o mangá Episódio G retrata o passado recente e foca no cavaleiro Aiolia de Leão, irmão de Aiolos de Sagitário, o cavaleiro que salvara Atena da tentativa de assassinato arquitetada por Saga de Gêmeos. Há também outros títulos como Saintia Shô, onde a armadura de Pégaso é dada a uma guerreira mulher, uma amazona; na televisão, alguns títulos como Asgard e Omega foram exclusivos, além do já anunciado Soul of Gold, previsto para 2015. Vale lembrar que os cavaleiros foram também protagonistas de seis animações produzidas para os cinemas. Nesta vasta mitologia heróica, é possível detectar a presença de elementos culturais de diferentes partes do mundo: do Oriente e do Ocidente, e até mesmo dos países nórdicos: eles enfrentaram os guerreiros de Odin e deuses como Cronos, Éris, Marte (Ares, para os gregos), Pallas e os doze Titãs. O fato de limitarmos a análise apenas ao mangá clássico não interfere nos nossos objetivos, que dizem respeito à verificação dos elementos mitológicos gregos e à caracterização de suas personalidades e relações com o outro, seja deus ou humano. (Kurumada, 2004, ed. 01, p. 28-29) Figura 15 – Os personagens do mangá estão inseridos no contexto da mitologia grega, defendendo deuses com poderes provenientes dos personagens mitológicos. 46 Percebemos já na primeira edição que o enredo gira em torno de batalhas entre os deuses, como ilustra a Figura 15. Os deuses utilizam exércitos de humanos conhecidos como cavaleiros (ou santos, na tradução literal): a história base é que, de tempos em tempos, o deus do mundo inferior, Hades, organiza seus exércitos para invadir a Terra e conquistá-la. Apenas Atena pode evitar este intento, ela que é a deusa da justiça, defendida por guerreiros abençoados com poderes divinos. A última Guerra Santa ocorrera no século XVIII e fora novamente vencida pelas tropas de Atena, mas teve como saldo final a morte de todos os seus defensores, com exceção de Shion de Áries, consagrado então como Grande Mestre do Santuário, e Dohko de Libra, que recebeu a missão de proteger o invólucro que mantém Hades, derrotado, afastado da Terra. Entretanto, nos últimos anos do século XX muitos habitantes do Santuário, localizado na Grécia, sabiam que Hades estava prestes a retornar; por sua vez, a reencarnação de Atena em um corpo mortal também era esperada para reassumir sua posição como defensora da Terra. Atena renasceu como humana e era protegida pelos cavaleiros de ouro do Santuário. Um desses cavaleiros, Saga de Gêmeos, tinha um irmão gêmeo chamado Kanon. Enquanto Saga era bondoso e apontado como candidato a sucessor do Grande Mestre, Kanon era maligno e influenciava Saga a tomar o caminho do mal. A insistência de Kanon levou seu irmão a prendê-lo no cabo Sunion; mas a semente do mal já estava plantada dentro de Saga, que acabou matando Shion de Áries para usurpar a posição de Grande Mestre. Coincidentemente, o local onde Kanon foi aprisionado por Saga era onde Poseidon, o deus dos mares, repousava. Kanon acordaria Poseidon e envolveria os cavaleiros em uma guerra desnecessária, às vésperas do conflito decisivo com as forças de Hades. Alguns anos antes de Kanon acordar Poseidon, Saga tentara matar o bebê que carregava a deusa Atena reencarnada, na esperança de alcançar um poder supremo capaz de lhe dar a hegemonia sobre a Terra. No entanto, Aioros, cavaleiro de ouro de Sagitário, salvou Atena e fugiu do Santuário levando o bebê e sua armadura, e os entregou a Mitsumasa Kido, um bilionário que viajava pela Grécia e cruzou seu caminho. Mitsumasa tomou conhecimento dos intentos divinos e da existência dos defensores de Atena, e iniciou uma jornada na formação de guerreiros capazes de defendê-la no futuro com as armaduras de bronze, visto que os cavaleiros de ouro e de prata não sabiam da traição de Saga e da ausência da deusa no Santuário. 47 Cronologicamente, então, temos a aliança de Atena com os cavaleiros de bronze, e sua luta contra as forças do Santuário, liderado pelo traidor Saga de Gêmeos; o despertar de Poseidon, acordado de seu sono por Kanon, irmão gêmeo de Saga; e por fim, a verdadeira batalha pela qual Atena reencarnou: a luta contra Hades e suas tropas. É sobre este panorama geral que se desenvolve o enredo de Saint Seiya, conhecido no Brasil como Cavaleiros do Zodíaco, mangá que se desdobrou em diversas sagas diferentes, e que é constantemente retratado em todos os campos da arte sequencial, em jogos eletrônicos, brinquedos e uma série de outros produtos que a quase três décadas são explorados pelo mercado japonês sem apresentar sinais de exaustão. Embora nosso foco seja a fase considerada clássica, os Cavaleiros do Zodíaco deram origem a diversos outros mangás, e a muitos títulos exclusivos de outros campos da arte sequencial, como na animação televisiva e no cinema (mas nunca com a utilização de atores humanos). Uma análise geral do universo dos cavaleiros aumentaria consideravelmente o número dos personagens mitológicos relacionados aqui, mas não alteraria as conclusões que por fim apresentaremos. Nossa atenção se volta agora para os elementos relacionados à mitologia grega e que são apresentados em Cavaleiros do Zodíaco; conforme destacado anteriormente, daremos ênfase às características dos deuses protagonistas e o âmbito em que se dão suas relações com os mortais. 2.1 Características dos deuses em Cavaleiros do Zodíaco Ao longo daquela que é entendida como a saga clássica de Cavaleiros do Zodíaco, detectamos um ponto de partida politeísta e de miscigenação cultural: os personagens são de diferentes partes do mundo e misturam elementos de suas próprias mitologias à presença de três dos principais deuses gregos: são eles Atena, Hades e Poseidon. Se levarmos em consideração todas as produções derivadas do mangá original, a referência a elementos mitológicos e religiosos da Grécia e de outras culturas aumentará consideravelmente, pois detectaremos elementos chineses, cristãos, egípcios e nórdicos. Mesmo cientes da variedade de referências a essas culturas e religiões, voltamos nossa proposta exclusivamente às representações da mitologia grega, dando pouca atenção às outras culturas. 48 A constatação de outros elementos culturais pode ser exemplificada com referências ao budismo (FIGURA 16) e à religião egípcia (FIGURA 17): Shaka de Virgem é considerado no mangá o homem mais próximo de Deus, e mesmo sendo um defensor de Atena, é adepto do budismo, dialoga com Buda e expande seus poderes com a utilização de preceitos religiosos. Já Faraó de Esfinge é um cavaleiro com traços físicos que remetem ao Egito, e também é um defensor de uma deusa considerada justa, mas que não é Atena. Ele adora Maat, a deusa egípcia da verdade e da justiça que portava a pluma utilizada por Anúbis no Tribunal de Osíris (Bartlett, p. 83). (Kurumada, 2006, ed. 36, p. 60-61) Figura 16 – O personagem Shaka é defensor da deusa Atena, mas seus valores éticos e morais, assim como seus poderes, representam o budismo. 49 (Kurumada, 2006, ed. 40, p. 32,33). 2.1.1 Atena A Atena da mitologia grega era uma deusa vinculada à sabedoria e à guerra. Filha de Zeus e Métis, foi a mais forte e leal aliada de seu pai no Olimpo, e deusa protetora da cidade de Atenas, onde era adorada através de cultos e templos como o Partenon (Bartlett, 2011, p. 108; Commelin, s.d., p. 39). Embora seja mais lembrada por ser a deusa da sabedoria, Atena foi também deusa da guerra estratégica; lutou contra outros deuses e apoiou heróis como Perseu, a quem doou seu escudo de bronze polido para ele derrotar a Medusa. Masami Kurumada retratou a deusa Atena de duas maneiras: através da estátua dedicada à ela (FIGURAS 18 e 19) e como uma divindade que ocupa o corpo de um ser humano (FIGURA 20). A deusa encarnou no corpo de Saori Kido para enfrentar Hades, Figura 17 – Referência ao Tribunal de Osíris, elemento da religião egípcia. 50 mas outros conflitos inesperados surgiram antes que o deus do mundo inferior se manifestasse. (Kurumada, 2004, ed. 01, p. 26-27) A deusa é lembrada no mangá como uma guerreira que já enfrentou Ares, Poseidon e os Titãs, em batalhas onde ganhava o apoio de homens conhecidos como cavaleiros (ou santos, na versão original). Atena odiava o uso de armas, mas todos os seus defensores eram dotados de grande força e coragem, além de receberem armaduras representando heróis ou constelações. Esses deuses que ela enfrentava também formavam alianças com a humanidade, envolvendo-os diretamente em seus conlitos e levando-os a lutarem pelos seus interesses (ed. 01, p. 28,29). Figuras 18 e 19 – Ilustrações representando a estátua da deusa Atena. A estátua decapitada na mão direita de Atena representa Nike, a deusa da vitória. 51 Os símbolos esculpidos pelo homem para homenagear a deusa também têm poderes, como percebemos quando Gêmeos revelou a Pégaso que o escudo de Atena era capaz de salvar a vida dela, que se extinguia devido a um ataque ordenado pelo próprio Saga: pois ele era um homem atormentado pela dupla personalidade, oscilando entre o bem e o mal, em uma clara analogia à sua constelação protetora, Gêmeos. Entre estes símbolos encontramos também divindades alegóricas como Nike, a deusa da vitória que no mangá permanece na mão direita de Atena, o que sempre lhe garante a vitória. Nike é representada através da uma estatueta alada e decapitada que fica na mão da estátua principal de Atena no Santuário, e também como um cetro que Saori carrega (ed. 21, p. 28). (Kurumada, 2006, ed. 48, p. 83) Inicialmente, nem os cavaleiros de bronze acreditavam que Saori Kido era a reencarnação da deusa Atena (ed. 10, p. 76), mas com a aparição da ameaça do Santuário os poderes dela começaram a se manifestar rapidamente. Em pouco tempo, Saori mudou de personalidade: ela foi uma criança egoísta e arrogante, mas suas atitudes mudaram depois de saber que o Grande Mestre impostor, Saga, tentou matá-la após seu nascimento. Ela reconheceu que deveria seguir o destino ditado pela sua estrela, e garantir a justiça (ed. 13, p. 10). Seu poder aumentou consideravelmente quando chegou ao Santuário e foi ferida gravemente por uma flecha; a relação entre a deusa Atena e seus cavaleiros é Figura 20 – Atena encarnada em Saori Kido. 52 transcendental, como percebemos quando o Dragão enfrentou o cavaleiro de Câncer: ambos estavam à beira da morte e em locais diferentes, mas ela auxiliou a alma do Dragão a encontrar seu caminho para voltar e derrotar um adversário que era muito mais poderoso (ed. 15, p. 73). A rebelião de Saga teve como saldo final o amadurecimento de Saori como deusa Atena, e a morte de diversos cavaleiros de prata e de ouro nas mãos dos cavaleiros mais fracos, os de bronze. A vitória deles foi possível pelas circunstâncias já relatadas: Atena, a quem defendiam, era a deusa da guerra e estava acompanhada da deusa da vitória. Diversas mortes em seu nome fizeram com que ela prometesse também dedicar sua vida à luta pela justiça (ed. 22, p. 112-113), e a consolidar a sua posição de deusa perante todos os cavaleiros do Santuário. Pouco tempo depois Atena reencontrou Poseidon, deus dos mares que fora aprisionado por ela há séculos atrás, mas que teve seu sono interrompido por Kanon no Cabo Sunion. Poseidon reencarnou em Julian Solo, iniciou um novo dilúvio e propôs à Atena uma aliança para dominarem o mundo. Atena não aceitou, mas concordou em receber todas as chuvas sobre si para atrasar o dilúvio (ed. 24, p. 16). Aprisionada por Poseidon, Atena demonstrou suas principais características: ela aceitou sacrificar-se pela humanidade, mas manteve a perseverança na intervenção dos cavaleiros (ed. 26, p. 41; ed. 29, p. 35) e mesmo aprisionada, as suas preces foram sentidas e temidas por aqueles que estavam no templo submarino, como Sorento de Sirene demonstrara antes de ser derrotado por Andrômeda (ed. 29, p. 45). Mais tarde, Sirene admitiria que após perceber o verdadeiro poder de Atena, seria impossível continuar defendendo os propósitos de Poseidon (ed. 31, p. 55). Poseidon, por sua vez, viu todos os seus sete generais serem derrotados pelos cavaleiros de bronze e teve que enfrentar a deusa Atena. Ela o lembrou que ele acordou contra a própria vontade e o ordenou a voltar para o seu sono (ed. 31, p. 90-91). Derrotado e incapaz de enfrentar Atena, o deus dos mares acabou aprisionado novamente na Ânfora de Atena, o mesmo vaso em que ele repousava antes no Cabo Sunion. Ao longo da batalha entre Atena e Poseidon, verificamos diversos aspectos mitológicos que permitem afirmar que o mangá representa os deuses gregos com exatidão. Atena é bondosa, sábia e perseverante, enquanto Poseidon é maldoso e destruidor. No 53 entanto, os deuses compartilham duas características em comum: ambos têm interesse na Terra e utilizam os homens para alcançar os seus objetivos; enquanto Atena defende a justiça e a vida, Poseidon deseja inundar o planeta e acabar com todas as formas de vida, para repovoar a Terra. Na mitologia grega, o deus dos mares é frequentemente derrotado pela deusa da sabedoria, e no mangá esse fato se repete: quando se deparou com Poseidon, Atena o derrotou mais uma vez, e com relativa facilidade. Ela demonstrou tanta proximidade com a humanidade que afirmou que enfrentaria todo o panteão olimpiano em defesa da Terra (ed. 31, p. 93). Mas foi contra Hades que Atena consolidou sua supremacia perante o verdadeiro mal que assolava a Terra. Hades, um deus poderoso e desperto, não poderia ser derrotado por mortais, apenas pela própria Atena vestida com a armadura com que nascera, portando seu escudo e com o auxílio de Nike, deusa da vitória, representada por um cetro. Antes de contê-lo, Atena condenou as qualidades do deus inimigo e exaltou as qualidades da humanidade (ed. 48, p. 82-83, 92). A deusa Atena de Saint Seiya é, portanto, possuidora das qualidades que os antigos atenienses creditavam à ela: sábia e justa, guerreira e vencedora, ela se colocou ao lado do partido dos humanos mesmo não sendo aceita por todos, visto que muitos aliaram-se a outros deuses e dificultaram a luta contra o mal; no entanto, muitos inimigos que a encontravam temiam ou se rendiam ao seu poder, sem precisar nada mais do que sentir a energia por ela emanada para concluir que ela era a verdadeira protetora da Terra. Seus inimigos, Hades e Poseidon, também possuíam homens aos seus lados e ambos chegaram próximos da vitória; o que lhes impediu foi a interferência dos cavaleiros de bronze, guerreiros jovens que derrotaram as tropas inimigas e colocaram Atena em posição capaz de conter os adversários divinos (Poseidon e Hades), e de homens com pretensões se igualarem aos deuses (os irmãos Kanon e Saga). 2.1.2 Poseidon Poseidon é um deus de alto escalão, do patamar de Zeus e Hades. Da mesma forma que Atena e Hades, Poseidon também foi retratado como um deus que precisava de um corpo humano para poder reencarnar. Um adolescente chamado Julian Solo foi o escolhido para abrigar o deus dos mares, que estava determinado a inundar a Terra iniciando um 54 novo dilúvio. O Poseidon apresentado no mangá afirma que foi o responsável pelo dilúvio bíblico, quando Noé e sua família foram poupados, mas nos dias atuais ele desejava exterminar toda a vida do planeta. Como Atena interferiu e optou por receber toda a água das chuvas no lugar do planeta, Poseidon a aprisionou no pilar central do seu templo submarino, localizado sob o mar Mediterrâneo. Os cavaleiros de bronze tiveram que derrotar os sete generais de Poseidon e derrubar os sete pilares do templo, cada um referente a um dos oceanos do planeta (os oceanos Atlântico e Pacífico estão divididos em Norte e Sul): só assim o nível das águas baixaria; eles também precisaram libertar Atena no pilar central, sustentáculo sob o templo de Poseidon no Cabo Sunion, no Mediterrâneo, para que ela pudesse novamente aprisionar o deus dos mares. Antes de ser enclausurado por Atena, Poseidon enfrentou os cavaleiros de bronze liderados por Seiya de Pégaso, protegido então pela armadura de ouro de Sagitário. Como vemos nas Figuras 21 e 22, o deus teve oportunidade para mostrar o seu poder, reverteu ataques e deixou os cavaleiros de bronze à beira da morte, mas não conseguiu enfrentar Atena, que precisou apenas de palavras para derrotá-lo (ed. 31, p. 90-91). Figura 21 – Pégaso, trajando a armadura de Sagitário, enfrenta Poseidon. O deus dos mares planejava confrontar Atena inundando o planeta e acabando com a humanidade. 55 (Kurumada, 2005, ed. 30, p. 60-61) Mais tarde, quando os cavaleiros de bronze enfrentaram os deuses nos Campos Elíseos, Poseidon os auxiliou na batalha contra Thanatos (ed. 47, p. 20), movido por um interesse político: malgrado o fato de Atena o ter impedido de dominar a Terra, Poseidon ainda preferia a Terra sob o domínio desta deusa, e não sob o controle de Hades. Sua ajuda foi enviada porque sua simpatia com a causa de Atena era maior do que com a deus do mundo inferior, que ambicionava transformar o planeta em um lugar eternamente obscurecido através da manipulação do movimento dos astros do Sistema Solar. Irmão de Zeus e de Hades, Poseidon era o governante dos mares e possuía um tridente capaz de erguer montanhas e agitar o mar. Insatisfeito com seu reino marinho e frequentemente irritado com os humanos, na mitologia ele também teve conflitos com Atena pela posse da cidade-Estado de Atenas, mas foi derrotado pelo julgamento dos doze grandes deuses (Bartlett, p. 105; Commelin, p. 105). Na Teogonia de Hesíodo, Poseidon foi responsável pela criação das portas de bronze e de enormes muralhas, que cercavam o Tártaro e limitavam os domínios dos Titãs e também de Hades, Hypnos e Thanatos (Hesíodo, 2010, p. 52); já em Homero, ele ajudou tanto aos gregos quanto aos troianos, pois fora traído pelo rei de Troia, que não lhe pagou pela construção dos muros da cidade; mas ele voltaria a se aliar aos troianos quando envolveu-se em uma rixa com Odisseu que é descrita na Odisseia (Bartlett, p. 344; Homero, 2010). Vale lembrar que neste poema, Atena é a deusa protetora de Odisseu e ajuda a ele e à sua família, enquanto Poseidon tem como objetivo a ruína do herói. 56 (Kurumada, 2005, ed. 29, p. 57) Percebemos que Poseidon é retratado em ambas as versões, a da mitologia e a do mangá, como um deus rival de Atena, e que se aproxima dos homens pelos interesses que lhe convêm; forte e vingativo, suas qualidades não impedem que seja derrotado frequentemente por deuses de menos poder ou até mesmo enganado pelos homens: enquanto na mitologia é enganado pelo rei de Troia, Laomedonte, no mangá Saint Seiya temos Kanon, que o manipula para alcançar seus próprios objetivos de dominação. Os fracassos de Poseidon fazem com que deuses inferiores, como Thanatos, zombem de suas atitudes, menosprezando as suas ações (ed. 47, p. 22-23). 2.1.3 Hades O mundo inferior, também chamado de mundo dos mortos, mundo das trevas e inferno, era o local para onde seguiam todos os mortos. Commelin lembra que a imaginação dos poetas e a credulidade dos povos deram características divergentes e contraditórias ao inferno mitológico (p. 163), mas o imaginário antigo sobre o mundo dos mortos baseava-se fundamentalmente na crença em um vasto local, dividido em Érebo, a região mais próxima da Terra, onde os maus recebiam o castigo eterno; o Tártaro, onde estavam aprisionados todos os deuses antigos, Titãs e Gigantes, além de ser a morada do próprio Hades; e por fim, pelos Campos Elísios, local destinado a todas as almas virtuosas que ganhariam a felicidade eterna. Figura 22 – Poseidon, o deus dos mares, representado como um guerreiro disposto a dominar a Terra. 57 A mitologia registrada por Hesí