CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA “HISTÓRIAS CRUZADAS” E A MOVIMENTAÇÃO SOCIAL FEMININA NEGRA PELOS DIREITOS CIVIS NOS EUA NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960 Fernanda Dorneles da Silva Lajeado, junho de 2015 Fernanda Dorneles da Silva “HISTÓRIAS CRUZADAS” E A MOVIMENTAÇÃO SOCIAL FEMININA NEGRA PELOS DIREITOS CIVIS NOS EUA NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960 Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, na linha de formação específica em História, do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para obtenção do título de Licenciado em História. Orientadora: Rosane Cardoso Lajeado, junho de 2015 “A história das interpretações de uma obra de arte é uma troca de experiências ou, se quisermos, um jogo de perguntas e respostas”. Hans Robert Jauss RESUMO A luta pelos Direitos Civis foi episódio marcante da história norte-americana. Muito pouco se menciona sobre a participação feminina durante a luta que exigiria a igualdade social. Em 2011, uma obra sensível e bem humorada que apresenta a força, esperança e determinação de mulheres negras em meio a uma sociedade branca, segregacionista e preconceituosa. Este trabalho realiza uma análise interpretativa da obra fílmica Histórias cruzadas, através da qual é possível observar a luta feminina pelos direitos civis. O filme aborda a coragem para transcender os limites que as definem e a conscientização de que às vezes esses limites existem para serem ultrapassados. Palavras-chave: História. Cinema. Mulheres negras. Direitos Civis. Interpretação Fílmica. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 5 2 O CINEMA COMO FONTE DE PESQUISA E POSSIBILIDADES INTERPRETATIVAS ................................................................................................... 8 3 THE HELP: HISTÓRIAS QUE SE CRUZAM ......................................................... 15 4 SEPARADOS, MAS IGUAIS: EXPLORANDO A BASE HISTÓRICA DA OBRA FÍLMICA .................................................................................................................... 27 5 ENTRE REALIDADE E FICÇÃO: MULHERES QUE OUSARAM ROMPER O SILÊNCIO ................................................................................................................. 39 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 54 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 58 5 1 INTRODUÇÃO Nas décadas de 1950 e 1960 as mulheres ainda permaneciam inseridas no papel de mãe, esposa e com participação limitada na sociedade. Ou seja, as mulheres estavam confinadas à posição doméstica. Obviamente, o fator raça1 reforçou essa ideologia doméstica. Mulheres negras eram “melhor” vistas dentro da sociedade branca, pois desempenhavam o papel doméstico e eram menos ameaçadoras que o homem negro. Dessa forma, algumas, tornaram-se responsáveis pelo sustento familiar. Também foi um período crucial na construção de um dos movimentos mais marcantes da história norte-americana: A luta pelos Direitos Civis. Os efeitos dessa luta consistiam em reformulação da Constituição, visando igualdade social, término da segregação racial e do preconceito. Quando mencionamos este episódio, sempre nos detemos a homens como Martin Luther King e Malcolm X. Poucos sabem, ou percebem a influência feminina por trás da luta contra o preconceito. Segundo o historiador Charles Payne: “Os homens lideraram, mas as mulheres organizaram” (KARNAL, 2007, p. 232). Ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de visa de formação cultural e educacional das pessoas, quanto à leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais; por essa razão, o cinema passou a ganhar espaço como ferramenta de pesquisa. 1 Apresentado através do conceito nativo, trabalhando com uma categoria que tem sentido no mundo prático, efetivo. Ou seja, possui um sentido histórico, um sentido específico para um determinado grupo humano. Destacando que nos Estados Unidos, raça é um conceito nativo classificatório, central para a sociedade americana. 6 Quando Alice Walker recebeu o convite para transformar seu livro A cor púrpura (The color purple) em um filme, mostrou-se bastante relutante diante da forma como cinema representa os negros; aceitando a proposta com a seguinte condição: escolher um diretor que não se fixasse ao estereótipo racial. Desde então, vem-se discutindo o modo como a arte cinematográfica apresenta o negro ao seu público, principalmente as mulheres negras. Geralmente o cinema tende a masculinizar e inferiorizar as personagens negras. Recentemente, o cinema trouxe uma obra baseada em um best seller; Histórias cruzadas (The help). Um filme onde a força feminina é destacada, “libertando-se” do estereótipo cinematográfico. O filme aborda com sensibilidade a luta [silenciosa] feminina negra dentro da sociedade branca dos anos de 1960. Tais mulheres sabiam de sua condição dentro da sociedade e paralelamente a essas personagens fictícias, eventos históricos reais estão ocorrendo. A obra apresenta uma série de histórias que se cruzam (ficção e realidade) e, principalmente, a relação de uma jovem branca com um grupo de empregadas domésticas negras. Mulheres tão diferentes que, sufocadas pelos limites e regras impostos pela sua época, decidem ousar. A arte literária é arrebatadora por permitir que, contando, ao mesmo tempo em que lemos uma determinada obra, criamos nossa própria leitura em um sentido interpretativo. Não há quem não interprete ou analise, somos condicionados a isso desde o momento em que nascemos; também, não conseguimos contemplar qualquer forma de arte (literária, cinematográfica, fotográfica, entre outras) sem sermos afetados por ela. O cinema, como expressão artística carrega consigo um objetivo que vai além do simples entretenimento; toda e qualquer obra fílmica tenta manter um diálogo com aquele que a observa, neste caso, o espectador. Dessa forma, diante dessa conversação visual criamos nossa própria interpretação; somos afetados pelo cinema, mas nunca da mesma forma e cada individuo carrega consigo sua própria leitura. Este trabalho vai além da contemplação estética de um longa-metragem, não se trata apenas de assistir a um filme, trata-se de interpretá-lo. O que este trabalho propõe é uma leitura analítica- interpretativa, que tem um recorte e parâmetros específicos. Primeiramente, para que possamos criar uma leitura, utilizaremos como base condutora a hermenêutica; justificada como a arte da compreensão, da 7 interpretação. Obviamente, atrelada à leitura interpretativa fílmica, está a análise histórica. Dessa forma, é importante delimitar até onde esta leitura será conduzida. As mulheres negras lutavam por seus direitos, utilizando os meios que lhes eram possíveis; e neste sentido, estamos antecedendo os acontecimentos das décadas de 1950 e 1960. A proposta é interpretar, através da obra fílmica (The help, 2011) a participação dessas heroínas que desafiaram a sociedade em busca de igualdade, relacionando-as com as mulheres que estiveram realmente participando dessa revolução, analisando a história real por trás da história ficcional. Em outras palavras, trata-se da contemplação do universo feminino negro até o ápice da luta por liberdade e igualdade racial, nas décadas de 1950 e 1960. 8 2 O CINEMA COMO FONTE DE PESQUISA E POSSIBILIDADES INTERPRETATIVAS O cinema nasceu pelas mãos e mentes criativas dos irmãos Lumiére, inicialmente como um recurso de representação da realidade. Porém, com o decorrer dos anos e o sucesso gigantesco diante do público, passou a ganhar outros enfoques e possibilidades; conforme crescia, definia suas próprias leis e não poderia ser utilizado apenas como uma tentativa simplista de representar o cotidiano. Segundo o autor Sidney Leite (2003), a invenção do cinema deve ser associada à vontade do homem, da segunda metade do século XIX, de reproduzir visualmente a realidade que estava à sua volta. É o mito do realismo total, a recriação do mundo à sua imagem. Em seu processo de desenvolvimento artístico, transformou-se em uma fonte de experimentação, onde era possível: alterar, introduzir e distorcer. Em 1980, no Brasil, Wilson Cunha, apresentava um estudo histórico da trajetória do cinema, do entretenimento à indústria. A publicação nacional iniciava da seguinte forma: “Hoje, o cenário já existe: basta comprar ingresso, entrar na sala de exibição, sentar-se numa poltrona e assistir ao filme escolhido [...]” (p. 3). O que antes era uma simples atividade de lazer destinada às salas de exibição, hoje passa a ocupar lugar de destaque em ambientes educacionais. Cada vez mais, a historiografia atual tem percebido as múltiplas potencialidades do cinema como fonte de análise para o estudo da história. Segundo 9 Névoa e Barros (2012), o cinema é fonte primordial e inesgotável para o trabalho historiográfico; permite várias utilizações, recepções, apropriações de discurso, práticas e interpretações. Contudo, sua utilização ainda é muito recente. Somente na primeira metade do século XX, é que temos a expansão das concepções de “fonte histórica”, já que apresentava um interesse mais voltado às fontes iconográficas, por fontes de cultura material, pela história oral e tantas outras possibilidades de materiais que poderiam ser utilizados pelos historiadores. A relação cinema-história integra o discurso verbal das dimensões da visualidade e oralidade; para além de suas dimensões como “expressão”, “representação” e “tecnologia”. Dentro da análise apresentada por Névoa e Barros (2012), o cinema tem-se mostrado como importante veículo significativo para ação de vários agentes históricos, para a interferência desses agentes na própria história. Mostra-se como um instrumento de difusão ideológica e reflexão, mais uma razão para observá-lo muito além da simplicidade do entretenimento. Até mesmo as práticas e transformações cinematográficas são um importante objeto de estudo. Faz-se necessário compreender o cinema como uma ação que interfere diretamente na história, não como história no sentido de campo de estudo, mas a própria história realizada pelos homens na sua vida social. O cinema apresenta-se como “agente da história”, seja por meio da indústria cultural, das ações estatais e dos diversos usos políticos, da difusão de diversificadas ideologias ou da resistência a essas mesmas forças. Isso sem contar que – por meio de uma obra fílmica mais específica – diversos agentes estão frequentemente atuando de modo bastante significativo na história. Aqui, portanto, o cinema assume – para muito além de sua dimensão como meio e como objeto de estudo – a função de sujeito da história (NÉVOA; BARROS, 2012, p. 62). Segundo Rosália Duarte (2009), ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista de formação cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais. O cinema como objeto de análise permite inúmeras interpretações, em diferentes áreas da ciência. Contudo, ainda há uma resistência sobre a utilização do cinema como ferramenta de pesquisa; comete-se o erro de encarar a obra fílmica apenas como um complemento secundário ao processo educacional. Ou seja, ainda ignoramos o 10 fato de que o cinema é uma fonte de conhecimento: O cinema lhes oferece uma nova dimensão expressiva. Esse aspecto, conforme dissemos, ainda clama por ser percorrido mais sistematicamente por aqueles que têm se dedicado aos estudos da história (NÉVOA; BARROS, 2012, p. 11). Os livros ainda detém o posto de “portadores de conhecimento”, ideia assumida por pesquisadores, autoridades e educadores. Dentro do meio acadêmico isso ocorre com maior frequência, já que o cinema é caracterizado como mero coadjuvante; sem levar em conta seu potencial dentro dos diferentes campos científicos. Devemos ter a clara noção de que, apesar de uma representação artística, a obra fílmica é um produto, algo que precisa ser “vendido”. E qual método é utilizado para que este objetivo seja alcançado com êxito? A emoção. O filme utiliza o sentimento como ferramenta de conectar-se ao espectador. O cinema, assim como a literatura, utiliza-se dos sentimentos para atrair e aproximar-se de seu público. Seria audacioso pensar quem em tempos onde a ciência predomina, o sentimento é deixado de lado? Talvez, esta seja a razão da resistência em relação ao cinema: a difícil missão de separar sentimentalismo/ficção de racionalismo. Contudo, vale destacar que a arte fílmica é uma releitura expressiva da vida humana; de certa forma, impossível extrair por completo sua carga emocional. Este trabalho tem como foco a interpretação analítica de um determinado fato histórico através de uma obra fílmica. Contudo, faz-se necessário pontuar alguns aspectos sobre a utilização do cinema como ferramenta de pesquisa. Obviamente, que analisar uma obra fílmica requer muito cuidado, principalmente quando contém um cenário fictício sobre uma base histórica. Primeiramente é importante compreender que uma obra fílmica não é um todo, já que esta seria uma forma muito simplista de contemplar tal arte trata-se de um conjunto de pequenas partes, cada uma contendo sua própria significação e consequentemente, permite interpretações variadas. Já que uma única obra fílmica possui amplas possibilidades interpretativas, o melhor modo de analisá-la é utilizando recortes, dessa forma, é possível variar a análise de acordo com a delimitação estabelecida por aquele que a observa. O que 11 faremos neste trabalho não é diferente, através de uma obra fílmica será apresentado um recorte sobre o qual será feita uma análise interpretativa. Segundo Luiz Rohden, autor da obra Interfaces da Hermenêutica, do nascer ao morrer, do acordar ao adormecer, talvez sem termos muita consciência, estamos interpretando e procurando compreender o mundo em que nos encontramos, e no qual nos constituímos. E através dos processos interpretativos que criamos uma relação com o outro, e com isso, obtemos nossa própria leitura. Partindo do princípio de que este trabalho está fixado sobre a interpretação, ou ressignificação fílmica, temos como metodologia, a abordagem hermenêutica. A obra fílmica torna-se, portanto, o objeto da reflexão hermenêutica, que não consiste apenas em um objeto frente a um sujeito que o é para si mesmo; mas converte-se em uma experiência que modifica quem a experimenta. A hermenêutica permite a relação de pergunta e resposta a partir de suas práticas interpretativas, contudo, não apresenta um método limitado e assim como o cinema, possui diversas possibilidades de perguntas, respostas e significados dentro do qual a obra originalmente se inseriu. Atrelada à hermenêutica e à sua história, está a noção de sentido, que é obtida através da leitura que desenvolvemos ou que nos dispomos a desenvolver. Retomando a perspectiva de Rohden, ao criarmos uma linguagem movida pela interpretação, ensaiamos a partir de nossa realidade/leitura novas possibilidades de ser e pensar. Para aquele que se dispõe a utilizar as bases hermenêuticas compreender é compreender-se diante do texto; trata-se de uma perspectiva interpretativa que deriva de uma determinada leitura, de modo que se pode exigir não um método ‘fechado’ de reflexão dentro da hermenêutica. A partir de estudos derivados das obras de Palmier, Rohden destaca que a tarefa metodológica do intérprete não é mergulhar totalmente no seu objeto de estudo (o que de qualquer modo seria impossível), mas sim a de encontrar modos de uma interação viável entre o seu horizonte e o horizonte do texto. Segundo Glauco Machado e Fábio Silva, autores do artigo Significante e significado do audiovisual: um diálogo entre cinema, história e cultura (2010), a hermenêutica moderna propõe novos parâmetros de reflexão. É necessário não desconsiderar as possibilidades interpretativas que uma narrativa, seja imagética, 12 literária ou cinematográfica. É fundamental aos pesquisadores discutir os impactos dessas produções para o conhecimento. Um filme não pode ser considerado apenas um texto, objeto de interpretação hermenêutica, mas um pré-texto capaz de sugerir temáticas significativas para a auto-reflexão crítica que conduz ao conhecimento. Uma obra cinematográfica auxilia a reconstituição das subjetividades complexas revelando a ação social dos sujeitos históricos, ou seja, aqueles observados pela câmera como interlocutor. Esse fato estabelece uma rede de significados e significantes que proporcionam um diálogo capaz de dar novo sentido à estrutura narrativa. Estamos apresentando uma proposta de leitura fílmica fixada sobre a hermenêutica. E o que significa ler? Neste sentido, ler significa realizar uma tradução. Segundo Rohden, ao ler não apenas ocorre uma transposição de sentido, de uma margem para outra, mas acontece a instauração de uma terceira margem que antes não existia e que a leitura configura. E torna-se um ato inconclusivo à medida que não há uma palavra final sobre a compreensão do sentido; a cada leitura, surge um novo significado, uma nova percepção. É preciso ter em mente que assim como nas artes em geral, há, por um lado, um objeto em questão (filme, livro, pintura, escultura, etc.) e, por outro, um sujeito que se coloca diante dela, sabemos que este tem diferentes posturas para interpretá-lo, para compreendê-lo, enfim, para ‘complementá-lo’. Trabalhar sobre a dinâmica da leitura fílmica não é uma tarefa simples, são diversos elementos a serem observados, ainda mais quando se tem como plano de fundo a relação cinema-história. O texto fílmico permite diversas abordagens e, são estas inúmeras variações que podem vir a causar certo desconforto em quem se compromete a realizar a tarefa interpretativo-analítica. O cinema é uma arte representativa, dentro da História podemos classificá-la como veículo interpretante da realidade histórica específica. A análise fílmica, dentro da relação cinema–história, apresenta duas vertentes representativas básicas que se complementam: a realidade percebida e a realidade/leitura interpretativa. O objeto da análise deve estar bem definido, já que dentro das possibilidades cinematográficas, podemos explorar: estética, música, cenário, vestuário, entre outros. 13 Dentro do cenário acadêmico é muito comum ouvir que deve haver certo distanciamento emocional entre objeto de estudo e aquele que o estuda. Contudo, a leitura de uma obra cinematográfica só é possível quando o espectador se deixa sequestrar pelo filme; deve haver um diálogo constante entre espectador e obra. Para uma análise fílmica, é necessário permitir que o filme fale conosco, não se pode simplesmente vê-lo, mas senti-lo. A arte cinematográfica se constitui num laboratório de explicitação, de compreensão e exercícios lúdicos. Enquanto objeto e experiência realizada pelo espectador, o filme se constitui num autentico laboratório da vida humana, numa sessão de cinema ele se depara diante de novas descrições e possibilidades da construção do seu real. Para realização de uma análise fílmica existem duas posturas que podem ser adotadas: passiva/prática ou ativa/analítica. A postura passiva pressupõe a concepção segundo a qual o cinema é visto apenas como meio de entretenimento. Aqui, um componente da atitude passiva diante do filme refere-se ao deslumbramento do espectador; há uma apatia conceitual, que cria uma leitura incompleta. Dentro da análise fílmica é defendido como ideal, o deslumbramento participativo por parte do espectador; dessa forma, há uma comunicação completa entre ele e a obra fílmica. Assistir a um filme significa mergulhar em suas águas (sons, imagens, falas, expressões, etc.) e nelas nadar; porém a efetivação plena da estética da recepção precisa ser complementada. Ao mesmo tempo em que pesquisadores da arte cinematográfica defendem a comunicação entre longa-metragem e espectador, concordam que para a realização de uma leitura efetiva, é necessário um distanciamento que permita analisá-lo com certo grau de objetividade; é necessária a adoção da postura ativa. A segunda postura diante de um filme é designada predominantemente ativa e unidirecional. Se a postura passiva se constitui enquanto exercício passional, esta outra se caracteriza como uma atividade racional. Na perspectiva ativa, o filme é um objeto a ser estudado; o espectador define qual aspecto quer analisar e através dele, realiza a dissecação da obra. Contudo, diferente da postura passiva, é necessário a criação de um espaço entre filme e espectador; dessa forma haverá uma adequada compreensão da obra. Isso não significa que o espectador deve 14 desvincular-se totalmente do objeto em questão. Segundo Rodhen, negativamente falando, o espectador-analista não se abre nem se dispõe a olhar aquilo que o filme realmente quer mostrar; ao longo do filme, é incapaz de saborear ou de refletir sobre o que ele lhe apresenta. É fato que quem assiste a um filme é sempre afetado por ele, não é possível nos colocarmos de forma neutra diante de um filme e aqui está a complexidade de utilizar o cinema como uma ferramenta de pesquisa. Seu objeto de análise deve ser bem definido, ou perde-se diante da vasta gama de possibilidades que a arte cinematográfica apresenta. Quando se propõe a realizar uma leitura fílmica analítica, deve-se manter-se atento às duas posturas, pois ambas são essenciais. Autores como Rodhen e Bahiana defendem uma postura passiva-ativa, ou seja, aquela que permite o diálogo entre filme e espectador. Esta será a postura adotada neste trabalho, um jogo dialógico entre interpretação, arte cinematográfica e história. Uma leitura analítico-interpretativa fílmica pede e precisa do envolvimento do espectador; isso permite dar um significado ao filme, deixa de ser apenas entretenimento para tornar-se um objeto de análise. Assim como não existe um modelo padrão/fechado para a realização de uma análise fixada sobre a hermenêutica, não existe tal situação para a realização de uma analise fílmica. Não se trata de algo ‘solto’, sem um significado ou sem uma base substancial, contudo, cabe ao leitor estipular seus limites e recortes. Este trabalho tem como base a análise interpretativa fílmica, onde o objeto de análise são as mulheres negras contempladas na obra. Qual seria a leitura a ser realizada? Através da obra fílmica The help/Histórias cruzadas (2011), será realizada uma análise interpretativa que tem como recorte o universo feminino negro durante as décadas de 1950 e 1960 nos Estados Unidos. Através da realidade percebida na obra fílmica, podemos desenvolver a leitura interpretativa; fixada sobre o cenário histórico da luta pela igualdade racial. 15 3 THE HELP: HISTÓRIAS QUE SE CRUZAM Observar as delicadas formas femininas e suas representações diante das telas de projeção não é nenhuma novidade, contudo, ainda há uma preocupação com o tipo de abordagem que é utilizada e como o feminino é representado. O cinema é arrebatador e ao mesmo tempo, maravilhosamente tendencioso, principalmente quando se trata do feminino negro. Segundo Ronald Bergan (2010), autor da obra Ismos para entender o cinema, a questão racial é ainda é muito recente no universo cinematográfico. Dentro da questão racial, o cinema apresenta duas vertentes básicas: que promovem a diversidade racial; outra tem cunho racista. Os estúdios hollywoodianos sempre foram parte da superestrutura ideológica determinada pelo sistema capitalista. Desde seu início, projetaram a visão do mundo da classe média branca, em grande parte conservadora. Assim, não em é de se surpreender com o modo como o racismo, consciente ou não, é apresentado ao espectador. O cinema norte-americano sempre estereotipou os negros, assim como os índios nativos; e durante muito tempo, esta foi uma de suas principais características. Ainda sobre a perspectiva de Bergan, os estúdios escalavam atores negros apenas para atuar como covardes, oportunistas, criados e amas servis, ou ainda, selvagens. Percebemos, portanto, uma grande contribuição dos estúdios hollywoodianos na construção distorcida do negro diante da sociedade. Acompanhando as mudanças sociais dos anos 1950 e 1960, os estúdios cinematográficos norte-americanos passaram a adotar atitudes menos passivas 16 diante da cultura branca dominante. Obviamente, o cinema não poderia mudar por completo seus velhos hábitos, mas houve uma considerável transformação e as obras fílmicas passaram a assumir um posicionamento mais critico em relação à deturpação das raças. Quando Alice Walker recebeu o convite para transformar seu livro A cor púrpura (The color purple) em um filme, mostrou-se bastante relutante diante da forma como cinema representa os negros; aceitando a proposta com a seguinte condição: escolher um diretor que não se fixasse ao estereótipo racial. Walker queria retratar o negro através de uma perspectiva diferente: humanos dotados de valores e defeitos; que amam e sofrem; e vivem intensamente. Pela primeira vez, o negro não era retratado conforme os moldes hollywoodianos, representado como escravo ou inferiorizado de forma tão brutal. Pela primeira vez tivemos a humanidade que vai muito além da cor. Além disso, Walker fez questão de que a equipe cinematográfica fosse composta por negros, exigência que causou espanto aos produtores. Desde então, ainda discute-se o modo como a arte cinematográfica apresenta o negro ao seu público, principalmente ao que diz respeito às mulheres negras. É a partir desse ponto que o cinema comete um de seus erros mais comuns, masculinizando e inferiorizando as personagens negras. Recentemente, o cinema trouxe o longa-metragem Histórias cruzadas, uma obra baseada em um best seller (The Help, que no Brasil é conhecido como A Resposta). Um filme onde a força feminina é destacada, “libertando-se” do estereótipo cinematográfico. Trata-se de uma obra de grande complexidade emocional, tornando impossível ao espectador não se conectar aos personagens e ao contexto em que estão inseridos. Partindo do princípio, temos como cenário desencadeador a cidade de Jackson, no Mississippi (EUA) em meados dos anos 1960. Para quem não sabe, existe realmente uma cidade chamada Jackson, no Mississipi, é a capital e a maior cidade do estado sulista norte-americano. O que podemos pontuar é que ambas as ‘Jackson’, ficcional ou não, sofreram os efeitos do escravismo e segregação racial. Na obra fílmica acompanhamos a história de Aibileen (Abiee), uma empregada doméstica negra, interpretada por Viola Davis. Em determinado 17 momento a personagem acaba envolvida em projeto secreto idealizado por uma jovem branca (Skeeter) e que desafia todas as regras da sociedade. E qual seria o projeto? Escrever um livro fixado sobre a perspectiva das empregadas domésticas, da mulher negra. Faz-se necessário pontuar que não acompanhamos somente a trajetória de Abiee, pois a trama não possui apenas uma protagonista. São várias vidas que se cruzam e nos conduzem a uma história belíssima e emocionante. De uma forma superficial, podemos dizer que o filme aborda luta feminina negra dentro da sociedade branca dos anos 1960. E como isso pode ser considerado uma ruptura ao estereótipo racial cinematográfico? Temos mulheres negras como empregadas domésticas, tentando sobreviver em meio a uma sociedade racista e segregada! Onde está a inovação? Aparentemente a obra parece reduzir-se ao estereótipo. Contudo, é através dele que surge a ruptura. E mais um questionamento deve ser levantado: que tipo de luta estas empregadas estariam travando? Para muitos os Anos Dourados, assim apelidada de forma nostálgica o período que vai de 1945 a meados de 1965, foi um momento em que surgem inúmeras figuras como a boa esposa, a jovem rebelde, a rainha do lar e tantas outras. A obra fílmica apresenta através de um cenário encantador esta realidade, a versão “clássica” dos anos 1960; ao mesmo tempo aborda o outro lado da história, uma variante menos contemplada pela história e também pelo próprio cinema. Por vezes ficamos “cegos” diante do glamour da década de 60, e esta talvez seja a primeira ruptura ao estereótipo hollywoodiano ao qual estamos acostumados, pois somos apresentados a uma diferente perspectiva, a face por detrás da sofisticação dos anos dourados. A obra fílmica vai muito além da rotina doméstica do período, e trata de explorar a perspectiva feminina negra dentro de uma sociedade elitizada e racista. Temos em evidência três protagonistas que vivem a realidade da empregada doméstica norte-americana: Minny Jackson, interpretada por Octavia Spencer (indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante); Constantine Bates, interpretada por Cicely Tyson e Aibeleen Clark, interpretada por Viola Davis (indicada ao Oscar de melhor atriz). Mulheres negras, de personalidades muito distintas e igualmente apaixonantes; mas sua posição jamais deve ser vista como uma aceitação às normas que lhe são impostas, pois elas tinham total conhecimento de sua condição dentro da sociedade, sabiam que o modo mais seguro de sobreviver era 18 “condescendendo” ao sistema. É importante destacar que não significa que elas aceitem o que lhes é imposto, mas estão em um período em que manifestar-se pode resultar em uma violência que vai muito além da própria conduta segregacionista. Neste ponto podemos destacar os assassinatos, a prisão e a violência física. São personagens que, mesmo vítimas constantes de um sistema onde o preconceito racial é determinante, em nenhum momento envergonham-se de quem são, o que as torna mais fascinante. Ao espectador são apresentadas personagens que carregam consigo uma força interior e o desejo por mudança, mesmo que escondam seus posicionamentos diante da elite branca. O preconceito racial é um fenômeno de grande complexidade, na obra Psicologia social do racismo a autora Kabengele Munanga (2012), utiliza metáforas para explicá-lo. Segundo a autora, podemos comparar o preconceito racial a um iceberg cuja parte visível corresponderia às manifestações do preconceito, tais como as práticas discriminatórias que podemos observar através dos comportamentos individuais e sociais. Enquanto a parte submersa do iceberg corresponderia, às atitudes não manifestadas, presentes invisivelmente na mente dos indivíduos. Se explicar o racismo é uma tarefa complexa, apresentá-lo através de uma obra fílmica requer um cuidado redobrado. O filme analisado apresenta o preconceito racial de uma forma bastante sensível, a ponto de emocionar e fazer com que o espectador questione-se sobre as condutas sociais adotadas. Falamos, inicialmente, sobre a ruptura do estereótipo negro através da obra analisada. E qual seria esta ruptura? Temos personagens femininas negras sufocadas por uma sociedade elitizada e racista, contudo, ao contar sua história ao espectador, estas personagens estão rompendo o silêncio ao qual sua raça foi submetida. Nossas personagens passam a questionar, a não-aceitar o que a sociedade impõe e isto é uma ruptura ao padrão. Até então, o cinema apresentava mulheres negras masculinizadas, inferiorizadas e que simplesmente submetem-se ao sistema social imposto, uma forma bastante superficial e que não contempla sua essência como individuo construtor e/ou portador de uma história. Na obra analisada, este perfil é desconstruído através de personagens sensíveis aos acontecimentos, que em determinado momento, encorajadas por uma jovem branca, decidem romper o silêncio a que foram submetidas durante tanto tempo. 19 Mais do que um drama que retrata o começo de uma transformação social dentro da sociedade norte-americana, principalmente pela forte presença do discurso de liberdade e igualdade, trata-se de um longa-metragem sobre a coragem e tomada de consciência. A obra fílmica apresenta ao espectador a questão social por detrás da rotina doméstica, assim como a contemplação do universo feminino negro. Também podemos perceber o instinto abusivo, de propriedade, com o qual as patroas tratavam as empregadas domésticas negras. Não há como manter-se apático às histórias das personagens, afinal, temos um cenário chocante, onde o preconceito era encarado com muita naturalidade. A obra apresenta três personagens que serão o eixo condutor da trama: Aibileen, Minny e Skeeter. Comecemos por Aibileen Clark, aquela que nos conta a história por detrás de várias histórias. Também é a primeira mulher a aceitar falar sua história. Aibileen trabalha como empregada doméstica para família Leefolt, logo nos momentos iniciais do filme, apresenta ao espectador um pouco de sua rotina doméstica: Trabalho para os Leefolt das 8 às 16h, seis dias por semana. Ganho 95 centavos por hora. Isso dá $182 por mês. Eu cozinho, limpo, lavo, passo e faço as compras no mercado. Mas, principalmente, cuido do bebê. Podemos complementar o fragmento acima, utilizando um dos trechos do best-seller que deu origem ao filme: Então me sento para ver as minhas contas, porque aconteceram duas coisas: a passagem de ônibus subiu para quinze centavos e o meu aluguel subiu pra vinte e nove dólares por mês. [...] Isso quer dizer que, depois de pagar a minha conta de luz, a conta de água, a conta de gás, a conta de telefone, fico com treze dólares e cinquenta centavos por semana pra comprar comida, roupa, arrumar o cabelo e pagar o dízimo da igreja (STOCKETT, p. 27). Temos acima, algo que vai além das rotinas domésticas; percebemos a questão econômica, a pobreza como uma realidade para as mulheres negras. Esta protagonista é uma mulher solitária, que perdeu seu único filho de forma trágica. Seu filho foi vítima do sistema vigente da época: após sofrer um acidente de trabalho, jogado na porta de um hospital para negros e sem o devido atendimento acaba falecendo. Não é preciso dizer que os hospitais para pessoas de cor não dispunham de tanta infraestrutura quanto os hospitais para brancos. Sobre este episódio, o filme apresenta o seguinte desabafo: 20 Eu perdi meu filho, Treelore há 4 anos. Depois disso, eu não quis mais viver. Me agarrei a Deus e a Minny para conseguir ir em frente. Minny é minha melhor amiga. Um velha como eu tem sorte de tê-la. Depois que meu filho morreu, uma semente amarga foi plantada em mim. E eu deixei de ser tão tolerante. A perda de seu filho faz com que Aibileen sinta-se cada vez mais sufocada pelas injustiças sociais que presencia diariamente. Trata-se de uma personagem intensa e dotada de grande conhecimento proveniente de suas próprias experiências e dos acontecimentos que observa ao seu redor. Aibileen concentra-se em seu trabalho e, principalmente, dedica-se a cuidar da pequena Mae Mobley, dando à pequena criança todo seu amor e dedicação, uma forma de superar a perda de seu próprio filho. Em seguida, temos Minny Jackson, melhor amiga de Aibileen. Acidentalmente descobre o projeto secreto em que Aibileen e Skeeter estão envolvidas. Após ser demitida e surrada pelo marido, decide participar do livro. A personagem de Minny é um exemplo cruel dos abusos os quais as mulheres negras sofriam; além do racismo declarado por parte da sociedade, ainda sofre constante violência doméstica. Trata- se de uma personagem muito intensa e carismática. Aibileen descreve Minny como a melhor cozinheira do Mississipi; informação que pode ser complementada através de um dos trechos do livro: Minny é praticamente a melhor cozinheira do condado de Hinds, talvez até de todo o Mississipi. [...] Ela devia ser a empregada mais preciosa do Estado. O problema é: Minny adora bater boca. Sempre retruca. Um dia é com o gerente branco no mercadinho Jitney Jungle, no dia seguinte é o marido dela, e uma hora acaba que é a madame branca para quem ela trabalha. A única razão por que ela trabalha com a dona Walter há tanto tempo é que a dona Walter é surda como uma cabeça de veado empalhada (STOCKETT, p. 14). Na obra fílmica, perecemos que Minny é a principal provedora do sustento familiar; outra característica bastante comum para as mulheres negras da época. É o tipo de personagem que transmite uma energia indescritível; possui temperamento forte, coragem e ousadia. Através da narração de Aibileen, somos apresentados à Eugenia Phelan, a jovem Skeeter: A Dona Leefolt só pega o bebê uma vez ao dia. A tristeza do parto pegou ela de jeito. Já vi acontecer muito, quando bebês começam a ter seus próprios bebês. E as jovens brancas em Jackson... Ai, Senhor, como elas estavam tendo bebês. Mas não a Dona Skeeter, nada de homens ou bebês. 21 Eugenia (Skeeter) retorna a Jackson após concluir seus estudos na faculdade e tem como objetivo tornar-se uma grande escritora. Possui grande vínculo afetivo com a empregada doméstica que a criou, é este sentimento que vai mover a personagem durante a trama. Determinada a tornar-se escritora e inconformada com o modo como a sociedade trata as empregadas domésticas negras, decide escrever um livro sobre como é ser uma empregada doméstica negra em uma cidade como Jackson. Para alguns, a introdução da personagem Skeeter, uma jovem branca e de família rica, vem a manter o padrão da inferiorização. Entretanto, podemos perceber esta personagem tanto como uma ruptura quanto como um ponto de ligação entre as duas raças. De que forma isto seria possível? Levando em conta o período em que a história se desenvolve, é necessária a existência dessa personagem. Trata-se de uma ficção ligada ao cenário histórico dos anos 1960, sendo assim, empregadas domésticas negras não poderiam desafiar uma sociedade racista, seriam vítimas de uma violência muito maior. Nesse ponto, Skeeter torna-se o escudo para estas mulheres, permitindo que seu silêncio seja rompido sem comprometê-las diante da sociedade em que estão inseridas. E como a jovem personagem branca se torna uma ruptura? Pelo fato de questionar o modo como a sociedade vem tratando estas mulheres negras, as mesmas mulheres que cuidam de suas casas e criam seus filhos. Skeeter pertence a uma família rica, foi criada por uma empregada doméstica negra e obviamente utiliza-se da publicação do livro para obter seu próprio sucesso pessoal como escritora; no entanto, por trás disso há uma motivação muito maior e claramente exibida na obra: trata-se do amor que sente pela mulher que a criou, sua empregada Constantine. Inicialmente falamos sobre o rompimento do silêncio. De que forma ele ocorre? As três personagens mencionadas anteriormente estão unidas por um projeto ousado e arriscado: a publicação de um livro que apresenta a perspectiva negra, relatos de empregadas domésticas. A iniciativa parte Skeeter, claramente perturbada pelo sistema segregacionista da época e encorajada pelo sentimento que nutre por sua empregada Constantine. A jovem branca não consegue se desprender 22 do amor que sente pela empregada que a criou e questiona-se como a cor da pele pode se sobrepor ao sentimento: Skeeter: Disse em sua carta para escrever sobre o que me perturba, especialmente se não chateia mais ninguém. E agora eu entendo. Srta. Stein: Continue. Skeeter: Eu gostaria de escrever algo do ponto de vista das empregadas. Essas mulheres negras criam crianças brancas, e em 20 anos, essas crianças se tornam patrões. Nós nos amamos, mas elas não podem nem usar o banheiro da casa. Acha isso irônico? Srta. Stein: Estou ouvindo. Skeeter: Margaret Mitchell glorificou a figura da “Mammy”... Que dedica a vida inteira a uma família branca. Mas ninguém jamais perguntou a Mammy como ela se sentia. Srta. Stein: Então, um lado jamais foi ouvido? Skeeter: É. Porque ninguém nunca fala sobre isso aqui. No período em questão, era extremamente arriscado se mostrar a favor da igualdade racial. Em uma das cenas apresentadas no filme, temos a seguinte fala: Toda pessoa que publicar, divulgar ou circular temas escritos a favor da aceitação pública ou igualdade entre negros e brancos está sujeita à prisão. A ficção e a realidade estão muito bem costuradas na obra fílmica; o medo de se expor era uma realidade na época, durante muitos séculos os negros tiveram suas opiniões silenciadas, ao mesmo tempo em que ansiavam por mudanças, tinham forte receio em manifestar-se. Nenhum negro, em juízo perfeito arriscaria-se tanto, ainda mais em um estado como o Mississipi, conhecido pelo rigor com que mantinha as leis segregacionistas; além do histórico de escravidão negra. O espectador consegue perceber este conflito de sentimentos através da personagem Aibileen, pois sua inquietação é perceptível pelo modo como sua respiração se altera toda vez que Skeeter a questiona, ao mesmo tempo em que transmite a sensação de que tem muitas coisas a serem ditas. No momento em que tais personagens decidem falar a verdade, estão rompendo com um silêncio que vem sendo mantido há séculos. Um aspecto interessante é que a obra literária que deu origem ao filme foi escrita por uma mulher branca. A autora, Kathryn Stockett, escreveu a obra como homenagem a uma mulher negra, Demetrie, a empregada de sua família. Qual a 23 importância desta informação? É vital para que possamos compreender o significado emocional que a obra carrega, algo que vai muito além da tela ou das páginas do livro. O conhecimento dos elementos envolvidos na composição de uma obra fílmica devem ser levados em conta, conhecer a trajetória da obra é fundamental. Pode parecer estranho pontuar a história por detrás da obra literária que deu origem ao longa-metragem. Mas, ao utilizar-se das narrativas da mulher que a criou, a autora acaba, indiretamente, contribuindo para a compreensão do universo feminino negro. Intencional ou não, Stockett acaba validando ainda mais as experiências vividas pelas personagens fictícias. Segundo Luiz Rohden, em seu artigo O jogo enquanto estética dialética da recepção fílmica, podemos realizar a leitura fílmica sem conhecer seu diretor, seu projeto ou sai intenção fílmica; porém, a compreensão mais completa implica em conhecer a maior qualidade possível de informações. A Resposta é, na maior parte, ficção. Ainda assim, enquanto escrevia, me questionei muito sobre o que minha família pensaria do livro, e sobre o que Demetrie pensaria, também, apesar de que ela já havia morrido. Tive medo, uma grande parte do tempo; de estar ultrapassando um limite, ao escrever na voz de uma mulher negra. Eu tinha medo de falhar ao tentar descrever a relação que era tão intensamente influente na minha vida, tão amorosa, tão grosseiramente estereotipada na história e na literatura americanas (STOCKETT, p. 572). Skeeter é, na verdade, uma representação de Stockett quando jovem; e todas as personagens negras, são um pedaço de Demetrie: A empregada da nossa família, Demetrie, costumava dizer que colher algodão no Mississipi, no auge do verão, é o pior passatempo que existe, a menos que também considere a colheita de quiabo, outra coisa espinhenta que demora a crescer. Demetrie costumava nos contar todo tipo de história sobre colher algodão quando era menina. Ela ria e balançava os dedos para nós, nos alertando, como se um punhado de crianças ricas pudesse sucumbir aos perigos de colher algodão, como ao cigarro e à bebida. “Durante dias eu colhi e colhi. E então olhei para baixo e a minha pele estava toda em bolhas. Mostrei à minha mãe. Nenhuma de nós jamais havia visto uma queimadura de sol em uma pessoa negra antes. Isso era coisa de branco!”. Eu era jovem demais para entender que o que ela estava nos contando não era muito engraçado. Demetrie nasceu em Lampkin, Mississipi, em 1927. Um ano terrível para se nascer, pouco antes da Depressão começar. O exato momento para uma criança presenciar, com todos os detalhes, como era ser pobre, de cor e mulher vivendo em uma fazenda arrendada (STOCKETT, p. 569). Considerando a citação acima, podemos dizer que em um cenário onde o racismo era algo comum ao ponto de ter um segregacionismo institucionalizado, não importa em que ano uma pessoa negra nasça, ela vai compreender o quão difícil era sobreviver em meio àquela sociedade. Como era ser uma mulher negra na 24 sociedade estadunidense da época? É isso que Stockett tenta trazer ao seu leitor, reflexão mantida na obra fílmica: Porém, tenho certeza do seguinte: não pretendo pensar que sei como era ser uma negra no Mississipi, sobretudo nos anos 1960. Acho que é algo que uma mulher branca que paga o salário de uma mulher negra jamais poderá entender completamente. Mas tentar entender é vital para a nossa humanidade. Em A Resposta há uma frase que me é realmente especial: Não era esse o objetivo do livro, afinal? Que as mulheres se dessem conta: Somos só duas pessoas. Não há tanto assim a nos separar. Nada do que havia imaginado. Tenho bastante certeza de poder dizer que ninguém da minha família jamais perguntou a Demetrie como era ser negra no Mississipi e trabalhar para nossa família. Nunca nos ocorreu perguntar. Era vida cotidiana, simplesmente. Não era algo que as pessoas se sentissem compelidas a examinar. Durante muitos anos desejei ter tido idade e consideração suficiente para ter feito a Demetrie tal pergunta. Ela morreu quando eu tinha dezesseis anos. Passei muito tempo imaginando como seria sua resposta. E essa é a razão por que escrevi o livro (STOCKETT, p. 573). Assim que o longa-metragem foi lançado, muitas críticas surgiram, nem todas foram positivas à obra, da mesma forma que o livro foi duramente criticado, por ter conter uma perspectiva negra que partiu de uma autora branca. Para alguns, o filme deveria ter sido dirigido por um negro. Diante das discussões em torno da obra, percebemos que a questão racial ainda é algo que desacomoda. De qualquer forma, mesmo escrita ou dirigida por brancos, o filme conseguiu romper os tradicionais estereótipos cinematográficos. Dentro do cenário fílmico, há uma série de mulheres que, aos olhos da sociedade norte-americana do período, estão cometendo um crime. Estão rompendo com um silêncio que vem sendo mantido durante séculos, estão questionando o sistema segregacionista. Lembrando também, que levando em conta o período histórico, as mulheres estão apenas começando a ganhar espaço dentro da sociedade, que até então, era claramente dominada pelos homens. Não iremos debater as questões de ordem feministas neste trabalho, mas é outra característica importante a ser observada para que possamos perceber a desconstrução de um padrão cinematográfico. Nossas personagens são sensíveis, femininas, ousadas e sem o famoso apelo sexual que é comum quando se trata da exposição do feminino nas telas de cinema. Através da leitura fílmica proposta, podemos destacar uma resistência por parte das mulheres negras. De que forma isso ocorre? Se não podem manifestar-se 25 abertamente, como podem resistir ou lutar? Estas mulheres lutam constantemente para sobreviver dentro das normas exigidas pela sociedade. Contudo, ao manter seus cultos, sua música, sua culinária e os vários ensinamentos passados de geração em geração, estas mulheres estão lutando, resistindo à supremacia branca. Aibileen, Minny e Sketeer, utilizam papel e caneta como ferramenta para algo muito maior do que contemplar a percepção do cotidiano doméstico negro: estão lutando pela igualdade racial. A obra fílmica contempla uma luta silenciosa, lenta e gradual. Acima de tudo, retoma a discussão acerca do preconceito racial. Trata-se da tomada consciência e através dela, o verdadeiro significado de liberdade. A obra é finalizada com a libertação emocional das protagonistas e com a reflexão de Aibileen: Mae Mobley foi meu último bebê. Em apenas 10 minutos, a única vida que eu conhecia acabou. Deus diz que precisamos amar nossos inimigos. É difícil de fazer. Mas pode-se começar contando a verdade. Nunca ninguém tinha me perguntado como era ser eu. Assim que eu disse a verdade sobre isso... Eu me senti livre. E comecei a pensar em todas as pessoas que conheço, nas coisas que vi e fiz. Meu filho, Treelore, sempre disse que íamos ter um escritor na família. Suponho que serei eu. O passado é uma preciosa ferramenta de estudo, através dele moldamos o presente e construímos o futuro. Há um importante passado histórico diante do espectador, um passado recente e que precisa ser discutido e relembrado constantemente. E, através disso, percebemos a importância do cinema como ferramenta social e reflexiva, temos diante de nós, uma arte que vai muito além do simples entretenimento. Segundo a autora Maria Aparecida Bento, cujo artigo integra a obra Psicologia Social do Racismo, o legado da escravidão para o branco é um assunto que não se pode discutir, ou melhor, que se evita discutir. No contexto norte- americano não é diferente, evita-se falar sobre a herança racista na qual seu país foi constituído. Deparamo-nos com uma obra fílmica que apresenta um assunto ou um momento histórico que muitos evitam lembrar. A obra em si não visa discutir quem está certo ou errado, quem é o mocinho ou bandido; mas conduz o espectador à reflexão. Preconceito racial ainda é presente nos dias atuais, a luta pelos direitos civis ainda é muito recente em questão temporal e evitar falar sobre o assunto é, de 26 certa forma, ignorar os esforços que foram aplicados para que tais direitos fossem obtidos. 27 4 SEPARADOS, MAS IGUAIS: EXPLORANDO A BASE HISTÓRICA DA OBRA FÍLMICA The Help é muito mais do que um filme. Sendo bastante redutor vê-lo somente como uma história ficcional sobre empregadas domésticas negras que resolvem expor seus pensamentos e sentimentos, rompendo o silêncio no qual viviam. Trata-se de uma obra de arte que, de forma muito delicada, retrata uma realidade absurda. Sabemos sobre as injustiças e a segregação norte-americana, mas comete- se o erro de sintetizar por demais estes acontecimentos. É necessário esmiuçar este episódio, buscar a história por trás da história, entender a origem de algumas posturas adotadas pela sociedade branca norte-americana, observar que a luta ocorria muitos anos antes e de forma sutil e, acima de tudo, compreender a participação da mulher negra neste processo de revolução social. A intenção deste capítulo é pontuar alguns aspectos relevantes para compreensão do contexto histórico em que obra fílmica analisada está situada; tentar compreender como o processo de segregação aconteceu, de que forma ocorreu, como se deu a ação de luta e seus efeitos futuros. A ideia não é desviar da análise interpretativa, mas complementá-la. No capítulo anterior, apresentamos uma análise totalmente voltada ao filme e suas personagens. Contudo, retomaremos um dos diálogos do filme; voltemos à primeira cena, onde temos duas de nossas protagonistas: Aibeleen e Skeeter. Na 28 cena em questão temos a jovem Skeeter iniciando sua entrevista com Aibelee, mantendo o seguinte diálogo: Aibileen: Eu nasci em 1911, no condado de Chickasaw, Piedmont Plantation. Skeeter: E como você sabia, quando criança que um dia seria empregada doméstica? Aibileen: Sim, senhora, eu sabia. Skeeter: E sabia disso por que... Aibileen: Minha mãe era empregada doméstica. Minha avó era escrava doméstica. A fala de Aibeleen nos remete a um passado em que a condição do negro não era muito diferente em relação ao período em que a história se desenrola. Mesmo dotada de grande sensibilidade e inteligência, Aibeleen sabia desde muito cedo qual seria sua função na sociedade. Damos ênfase especial à fala: “Minha avó era escrava doméstica”. Temos a errônea impressão de que as coisas ocorreram de forma lenta; que os negros gozaram de uma liberdade pós-abolição da escravatura, contudo a história norte-americana nos mostra o contrário. O simples fato de não ser propriedade de um branco e não ser forçado a trabalhar nas plantações de algodão já era uma grande conquista, infelizmente, os negros tornaram-se um “problema” a ser resolvido. Apesar de serem livres, o modo como eram vistos pela sociedade ainda era discriminatório e esta situação não mudaria tão cedo. Para o autor Ira Berlin (2006), depois de quase três séculos, iniciavam as negociações sobre a o processo de libertação do escravo negro. Nesse momento, alguns teriam aproveitado o momento de divergências entre Norte e Sul, alguns pediam por melhores condições de trabalho: melhor alimentação, vestuário, fim do castigo corporal, afastamento dos capatazes, menos horas de trabalho de campo e mais tempo com suas famílias. Não mencionavam a liberdade como um objetivo, pediam humildemente uma vida mais “leve” em troca de maior rendimento nos campos. Outros, vendo as possibilidades revolucionárias do momento, ignoravam os limites que há muito confinavam as negociações entre senhor e escravo a questões de bem-estar material e graus de independência. Exigiam liberdade e, à medida que as oportunidades surgiam, eles as aproveitavam (muitas vezes sem questionar). Em meados de 1861, os tempos de conflito entre Norte e Sul trouxeram mudanças, 29 transformando homens e mulheres nascidos escravos em uma nova ordem, que Berlin denomina como “geração da liberdade”. Tanto para escravos e pessoas de cor livres, acabar com a escravidão era apenas o primeiro passo para obter a liberdade e cidadania. Acreditavam que ao soltarem seus grilhões, homens e mulheres teriam a chance de refazer suas vidas com maior dignidade (sem agressões e limitações). Ainda utilizando os estudos de Ira Berlin, podemos dizer que conseguiram mais liberdade do que nos tempos anteriores, já que com a abolição, antigos escravos conseguiram adotar novos nomes, criaram residências, reconstruíram suas famílias e transformaram seu trabalho em independência material. Não podemos ignorar que houve uma mudança significativa na vida do negro. Até mesmo as instituições como igrejas, escolas e associações funerárias, que eram obrigadas a funcionar de forma clandestina, agora atuavam de forma aberta. Outra grande mudança foi a representatividade negra em cargos executivos, legislativos e judiciários. Obviamente, que sua voz não tinha o mesmo poder que a de um branco, mas era um progresso e uma esperança. Os últimos não eram os primeiros, mas não eram mais os últimos. Aos poucos, desvencilhavam das sobras da escravidão. A Décima Quarta Emenda Constitucional, em particular, aprovada em 1868, estabeleceu o seguinte: Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos, nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição igual proteção das leis (MENDES; LOPES, 2012, p. 134). Fica óbvio que, diante do Congresso Nacional, toda e qualquer forma de diferenciação entre brancos e/ou negros estaria abolida e que dentro do território americano, todos seriam considerados iguais. Mas a igualdade e a liberdade propriamente dita estavam longe de acontecer. Ainda no ano de 1868, o parlamento norte-americano aprovava a criação de escolas específicas para pessoas de cor. Não é necessário destacar que, de acordo com a concepção dos autores da emenda da igualdade, a segregação escolar entre negros e brancos não seria considerada inconstitucional. A partir disso, iniciam-se uma série de medidas contraditórias por parte do Congresso. 30 Segundo Nimrod, autor de Rosa Parks: não à discriminação racial, nos Estados Unidos, a abolição da escravatura, assinada em 1863, foi imediatamente sucedida pela segregação racial. Em 1983, ela foi ratificada por uma lei votada pelo Congresso. Apesar das lutas pelos direitos civis iniciadas pelos negros a partir de 1900, os Estados Unidos arrastaram como uma bola de ferro o “problema negro”, consequência direta dos hábitos perversos adquiridos da época da escravidão. Em uma das cenas, Aibeleen narra algumas das leis segregacionistas que fazem parte de sua realidade e que todo negro deveria saber. É uma cena muito interessante, pois a narração é feita por Aibeleen, contudo, quem está em foco é a personagem Skeeter; que está buscando compreender a razão pela qual os negros são tratados de tal forma. Na cena em questão, a jovem Skeeter tem em mãos a cartilha de normas que circulava no Mississipi durante os anos 1960. Trata-se de um manual específico para pessoas de cor e minorias. Temos em destaque algumas das normas que constavam na cartilha de conduta: Ninguém poderá exigir que qualquer mulher branca atenda em ala ou quarto em que homens negros estejam internados. [...] Livros não poderão ser trocados entre as escolas de brancos e de negros, e deverão continuar a ser usados pela raça que os usou primeiro. [...] Barbeiros de cor não poderão atender a mulheres e meninas brancas. [...] Toda pessoa que publicar, divulgar ou circular temas escritos a favor da aceitação pública ou igualdade entre negros e brancos está sujeita à prisão. Tal informação nos é comprovada pelo autor Demétrio Magnoli, em sua obra Uma gota de sangue (2007), onde conta a história da invenção, desinvenção e reinvenção do mito da raça em diferentes localidades mundiais. Dessa forma, nos apresenta um pouco da trajetória do negro em território norte-americano. Segundo o autor: Nos estados do Sul e do Sudeste, as leis segregacionistas abrangiam o casamento e as relações sexuais, os transportes públicos, os banheiros, as escolas, os hospitais, os hotéis e restaurantes, os reformatórios penais, os teatros, as bibliotecas, os equipamentos esportivos e de lazer. Na Carolina do Norte, uma lei proibia o intercambio de livros entre as escolas para brancos e para negros: depois que utilizado pela primeira vez por alguém de uma raça, o volume tornava-se de uso exclusivo daquela raça (MAGNOLI, p. 121). Ainda utilizando os estudos de Magnoli, podemos destacar que antes da Guerra Civil, diversos estados norte-americanos, principalmente no Sul, criaram leis de discriminação ao negro. A Constituição do estado de Indiana, de 1851, é um dos 31 exemplos citados pelo autor, onde era proibido aos negros e mulatos se estabelecessem no estado. Nesse período, destacam-se os Black Codes (códigos negros), como eram chamadas as leis de discriminação reforçadas com a derrota da Confederação em meados de 1856, mas removidas logo em seguida pelo governo da Reconstrução. Contudo, ao fim das ocupações militares nos estados confederados, em 1877, os governos dos redeemers passaram legislações segregacionistas, que ficaram conhecidas como Leis Jim Crow. No início dos anos 1900, não bastava o rigor das leis segregacionistas, ainda foram criados bairros específicos para as pessoas de cor. Donald Clarke, autor do livro Whishing on the moon: A vida e o tempo de Billie Holiday (1995), apresenta um pouco da história negra norte-americana como uma breve introdução à trajetória de Holiday. Segundo ele, a história da nação afro- americana apresenta-se como luta para manter as famílias unidas, começando com o terrível absurdo da escravidão; onde a dor insuportável de tantos laços de parentescos quebrados não foi curada por gerações de racismo institucionalizado. Os direitos civis dos negros, em todo território, eram grosseiramente violados e aqueles que se recusassem a obedecer poderiam sofrem sérias consequências: prisão e/ou agressão física. E qual a justificativa para leis tão severas em relação aos negros? Isso é explicado pelo autor Ricardo Lessa, em sua obra Brasil e Estados Unidos: o que fez a diferença (2002). Segundo o autor, a razão da adoção de posições tão duras teria se originado muitos anos antes, em 1791, durante a revolta dos escravos negros do Haiti, liderados por Toussaint Louverture. A ousadia daqueles escravos apavorou toda a elite branca do velho e do novo mundo e, a partir disso, com medo de que surgissem outras revoltas, a sociedade branca escravista tratou de aplicar condutas bem mais severas em relação aos negros. A sociedade branca depositava muita pressão sobre as famílias afro- americanas para se comportarem de maneira aceitável, e elas até gostariam de fazê-lo, mas as desvantagens econômicas da cidadania de segunda classe tornavam isso impossível. Dessa maneira, a natureza inferior da cidadania negra era confirmada, completando o círculo. O que podemos dizer é que esta postura surtiu resultados no cenário norte-americano até meados dos anos 1950, quando os 32 negros, tomados pela consciência de raça e cansados de viver em uma sociedade injusta e segregacionista, levantaram-se contra o sistema que os havia privado de seus direitos por tanto tempo. Diante dos fatos, como caracterizar a vida do negro nos EUA? Segundo Karnal (2013), a resposta é muito óbvia: segregação formal e informa, linchamento e violência policial, discriminação no emprego, na educação e em serviços públicos, falta de direitos políticos e pobreza extrema. Contudo, ainda segundo o autor, é preciso deixar claro que o negro norte-americano não foi uma vítima passiva, já que desde o inicio da primeira metade do século, importantes organizações políticas negras estavam atuando e aos poucos ganhando força, mas as condições das décadas de 1950 e 1960 propiciaram o estouro de um movimento em massa. Dessa vez, negros, no Norte e no Sul, fixaram-se sobre as mensagens de liberdade e prosperidade do discurso oficial e popular alimentado por décadas, mas nunca aplicado plenamente. Constituía-se o mais importante movimento social da história norte- americana, o momento tão esperado, e que serviu de inspiração para o mundo: o movimento pelos direitos civis. Foi nesse momento, que organizados e tomados pela consciência de raça, que variados grupos e organizações passaram em todo o território. De Norte a Sul, no campo ou na cidade, homens e mulheres levantaram-se contra o sistema ao qual haviam se adaptado por tantos anos. A palavra liberdade, que por séculos serviu como base para a construção da nação americana, passou a ter um peso muito maior, ganhava amplo significado: tratava-se de igualdade, reconhecimento, respeito, direitos e oportunidades. Não se tratava apenas de um discurso bem intencionado e mal aplicado. Dessa vez, buscava-se resultados efetivos. Abraham Lincoln pôs fim à escravidão nos estados do Norte. Dois anos mais tarde, com o encerramento da Guerra Civil e derrota da Confederação escravagista, milhões de escravos ansiavam por um novo momento. Por algum tempo tudo parecia estar em ordem, os negros estavam aceitando as oportunidades que lhes eram oferecidas. Contudo, a velha doutrina do “separados, mas iguais”, aplicada por volta de 1880 e que havia proporcionado a acomodação de leis segregacionistas já não era mais argumento suficiente: separação e igualdade não cabiam mais na 33 mesma frase. Os tempos eram outros, décadas haviam se passado e os pilares remanescentes da velha doutrina precisavam ser derrubados. Uma grande influência para estas mudanças foi a maior participação das organizações negras, como a NAACP (National Association for the Advancement of Color People – Associação Nacional para o Desenvolvimento de Pessoas de Cor), principal responsável pela defesa dos diretos civis negros nos Estados Unidos. Esta associação, muito bem organizada e estruturada (utilizando-se de brechas e violações óbvias da Constituição), passou a lutar judicialmente com a Corte Suprema, exigindo melhor qualidade de vida aos negros. Sua insistente luta por igualdade ganhava espaço dentro do ambiente judicial. Os negros, até então subestimados, mostraram sua força. Surgem as grandes lideranças, homens e mulheres de cor, instruídos, dotados de argumentos inquestionáveis e de grande sentido político. A Suprema Corte via-se cada vez mais pressionada, ou melhor, a sociedade branca estava sendo confrontada de forma extraordinária e inesperada. Nas palavras de Stéphane Koechlin, autora de Jazz Ladies: a história de uma luta (2012): Durante os anos 1950, o povo americano viveu numa certa despreocupação. O modelo liberal parecia tão sólido quanto arrogante, na escala das carrocerias cromadas de “belezas americanas”, que faziam sonhar os adolescentes europeus. O país pensou em exportar seu modo de vida através da guerra na Coreia contra o eterno inimigo comunista. No entanto, algumas rachaduras resistentes floresciam lá e cá, de um lado a outro do país. Algumas vozes criticavam essa guerra inútil. Afinal, o sistema americano era realmente tão bom, um sistema que depois de mais de um século ainda conservava o racismo e as desigualdades? Até as altas esferas começaram a banir as ideias do século XIX. Em 16 de novembro de 1956, a Corte Suprema condenou o apartheid nos ônibus, abrindo uma brecha pela qual se enfiaram os novos políticos negros que surgiam durante aqueles anos: o magnifico Martin Luther King, de quem o país já falava muito, e o futuro Malcolm X. Os negros redescobriram seu orgulho e embarcaram nesse impulso ofensivo contra o sistema doentio que os havia excluído. Eles se apoiavam na literatura, na música, um jazz mais agressivo, no be-bop (“no be-bop ou no barulho do cassetete cada vez que um policial batia na cabeça de um negro”, escreveu o poeta negro Langston Hughes), em Monk, Bud Powell, Charlie Parker, aficionado da noite americana e das orgias musicais (p. 141). Martin Luther King Jr., citado por Koechlin (2012), é um dos nomes mais significativos da luta pelos direitos civis, principalmente após a Marcha Washington, que ocorreu em 28 de agosto de 1963. Diante do Monumento Nacional de Washington, Martin Luther King, cercado por uma multidão de mais de 250 mil 34 pessoas vindas de todo o país, realizaram um protesto pacífico onde exigiam seus direitos democráticos e o fim das injustas leis de segregação. O ato foi televisionado, atingindo um público gigantesco. O famoso discurso de King causou comoção, foi um ato de coragem extrema: um negro consegue fazer um país inteiro calar-se e ouvi-lo. O autor Freddie Addis, em sua obra Discursos que mudaram a história (2012), apresenta alguns dos principais trechos do lendário discurso de King. Segundo Addis, o discurso iniciava com as seguintes palavras: Cem anos atrás, um grande americano, em cuja sombra simbólica nos encontramos hoje, assinou a Proclamação da Emancipação dos Escravos. Esse decreto momentoso foi como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que murchavam nas chamas da injustiça. Ele foi como uma alvorada festiva para dar fim à longa noite de seu cativeiro. Mas cem anos depois o negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do negro ainda é lamentavelmente tolhida pelas algemas da segregação e os grilhões da discriminação. [...] Assim, viemos aqui hoje para exprimir dramaticamente uma situação vergonhosa. Addis destaca que King utilizou-se sabiamente de referências históricas, aos Pais Fundadores e à Constituição. Não era apenas um discurso, tratava-se de um material poderoso, que denunciava todas as injustiças cometidas contra os negros. Ainda segundo o autor, em determinado ponto de seu discurso e, extremamente nervoso, King ia sentar-se quando foi surpreendido pela cantora de soul Mahalia Jackson: Conte a eles sobre seu sonho, Martin. Fale a eles sobre o sonho. Ao ouvi- la, King começou a improvisar e falar tudo o que realmente sentia. A partir desse momento seu discurso ganhava vida. A marcha abriu caminho para a criação de novas leis, o país deveria transformar-se. E, obviamente que a mobilização dos negros trouxe certa preocupação ao governo; não podemos esquecer que os negros constituíam uma minoria importante, eram a classe operária, fundamentais ao país. Com a mobilização ficou muito claro que algumas medidas seriam necessárias, principalmente para acalmar a multidão que ganhava voz. Em uma das cenas do filme analisado, a personagem Aibeelen deixa óbvio, em apenas uma frase, o risco que os negros corriam ao tentar exigir seus direitos. Uma simples frase, onde é possível perceber a razão pela qual, os negros preferiam ficar calados e “submissos” à sociedade branca: “Botaram fogo no carro da minha prima Shinelle, só porque ela foi ao posto de votação”. 35 Outro exemplo da crueldade que era cometida contra o cidadão negro no período é o caso Medgar Evers, também mencionado na obra fílmica. Em 12 de junho de 1963, Evers foi assassinado ao voltar de um comício por volta da meia- noite em sua casa, com um tiro que o atingiu pelas costas. E quem foi Medgar Evers? Era um ativista negro que residia na cidade Jackson (onde a obra se desenrola, costurando a ficção à realidade), na época estava relacionado ao NAACP (National Association for the Advancement of Color People). O assassino era um membro da famosa organização racista Ku Klux Klan (KKK). O caso teria ocorrido na mesma noite em que John Kennedy havia se dirigido à nação, dizendo que iria encaminhar uma lei ao Congresso pedindo maior justiça racial. Sua morte repercutiu nacionalmente e com isso, aumentava a pressão sobre o governo americano. Em 1964, o governo finalmente aprovava a Lei dos Direitos Civis e com isso oficializando o término da segregação. Um ano após, a Lei sobre o Direito de Voto acabava com a proibição de que negros não poderiam votar. A luta não terminaria, a discriminação ainda era corrente. Como acabar com hábitos cruéis adotados por tantos séculos? Obviamente, nem todo branco agia de forma discriminatória, mas havia uma grande maioria que não aceitava as mudanças. Para alguns, o negro jamais seria um cidadão, jamais poderia gozar dos mesmos direitos concedidos aos brancos. Assim como havia discordâncias entre os brancos em relação ao fim da segregação, os negros também passavam por situações de conflito entre os seus. Mesmo com alguns importantes direitos obtidos, muitos ativistas negros estavam desiludidos com os preceitos de não violência de King e defendiam um tipo de luta com perfil militante. Com essa ruptura entre os negros, King passa a exercer menos influência, mas continuava otimista em relação à luta. A história não acaba com a morte de King, mas é necessário destacar que nossa obra de análise, The Help, apresenta acontecimentos somente até a morte de Kennedy. Contudo, como estamos falando do cenário base dos anos 1960, é interessante finalizá-lo e, dessa forma conhecer um pouco mais sobre a história do negro norte-americano. Trajetória e luta que inspiraram várias outras nações. 36 Enquanto King buscava igualdade pelo diálogo, racionalidade e não violência, um movimento mais sombrio em ambíguo se desenvolvia clandestinamente, tendo como representante o ativista islâmico Malcom X. Este por sua vez, opunha-se vigorosamente às práticas de King, acreditando que o país jamais mudaria e que as minorias ainda viveriam em desigualdade. Em um de seus discursos, King proferiu as seguintes palavras: Infelizmente, a História transforma algumas pessoas em oprimidas e outras em opressoras. [...] os indivíduos oprimidos podem lidar com a opressão. Uma delas é se levantar contra o opressor com violência física e ódio corrosivo. Mas este não é o caminho. Pois o perigo e a fragilidade deste método são sua futilidade. A violência cria mais problemas sociais do que soluções. Como disse várias vezes, se o negro sucumbir à tentação de usar a violência em sua batalha, as gerações que ainda não nasceram receberão uma longa e desoladora noite de amargura, e nosso principal legado ao futuro será um eterno reinado de caos sem sentido. A violência não é o caminho [...]. Torna-se óbvia a preocupação de King em relação ao discurso mais enérgico que aos poucos estava emergindo dentre a população negra. Para Malcom X, velhos hábitos jamais mudariam e era necessária uma revolução e, segundo ele: A revolução é hostil, a revolução não faz concessões, a revolução subverte e destrói tudo o que obstrui seu caminho. Em meados de 1964, porém, passou a abrandar seu discurso, mas já havia inflamado muitos seguidores com seus posicionamentos extremistas. Rejeitou a crença de que os brancos eram “demônios” e passou a defender o ativismo mais político do que militante. Mesmo polindo-se mais e utilizando-se da política, mantinha ideias extremistas, como o famoso discurso do “Voto ou Bala”. Segundo Addis, os dois líderes negros possuíam estilos de oratórias completamente diferentes e Malcom seria muito mais agressivo e bombástico. De qualquer forma, seu discurso conseguiu motivar uma plateia oprimida e privada de seus direitos. Só não podemos afirmar que seu discurso foi benéfico para a causa dos direitos civis. Ao falar em “balas”, Malcom não fomentou a confiança entre as raças, porém a fala agressiva pode ter sido um benefício oculto. Ainda segundo Addis, ao que consta, o próprio Malcom X teria dito a seus seguidores: Se os 37 brancos perceberem qual é a alternativa, talvez fiquem mais dispostos a escutar o Dr. King. O que podemos destacar é que a nação negra optou pelo voto, não pela bala. O voto seria sua arma mais poderosa, já que finalmente poderiam exercer suas funções como eleitorado. Porém, Malcom não estaria vivo para testemunhar a vitória negra sobre o voto: em 1965 foi assassinado com um tiro no peito e os responsáveis eram membros vingativos de sua antiga organização, a Nação do Islã. Segundo Addis, em 1968, durante um de seus discursos realizado aos seus seguidores, King teria dito: Isso não importa para mim agora, pois eu estive no topo da montanha e vi a Terra Prometida. Talvez eu não chegue lá com vocês, mas quero que saibam esta noite que nós, como um povo, chegaremos à Terra Prometida. Lamentavelmente, no dia seguinte, quando em uma sacada de hotel em Memphis, Martin Luther King Jr., aos 39 anos, foi alvejado e morto por segregacionistas brancos. King estava certo, a população negra já havia sofrido com a ignorância por tantos séculos, usar a violência só a aumentaria. Aqueles milhões de pessoas que lutavam por igualdade e direitos, não queriam mostrar-se como um grupo a ser temido, mas como uma raça igualmente importante a nação e que deveria ser respeitada. No entanto a luta pela liberdade, igualdade e direitos, não se baseou apenas em uma marcha organizada. Ela já acontecia muito antes, através de diversos meios. A resistência deu-se através da música, que sutilmente cantava os horrores cometidos contra a população negra, cantava esperança e gritava por tempos melhores. A literatura negra também permitiu um pouco de paz as almas sofridas. A culinária, com ensinamentos que foram passando de geração em geração. Os cultos religiosos e sermões, que durante muito tempo, mesmo que clandestinamente, trouxeram o conforto àqueles que precisavam. Pode não parecer, mas trata-se de uma forma de resistir! Estamos falando de uma luta silenciosa que ocorreu durante séculos e foram estes gestos de resistência que protegeram uma cultura de ser completamente massacrada pelas limitações e a pressão da sociedade branca. 38 O negro acatava as ordens, poderia obedecer, mas seu espírito era livre e isso nenhum branco poderia controlar. Em meados de 1930, por exemplo, quando criaram os guetos ou bairros específicos para as pessoas de cor, os brancos permitiram de forma não intencional, que estas pessoas tivessem um espaço “livre” dos olhares da sociedade branca. Nossa obra de análise apresenta isso de uma forma muito delicada, mas fica claro que quando em seu próprio bairro, entre os seus e em sua própria casa, o negro não tinha mais a obrigação de agir de acordo com o que o branco desejava. Nesses bairros, haviam bares de jazz, de blues, igrejas e tantas outras formas de expressar a negritude que lhes era impedida. Tudo começou através de uma organização, de um reconhecimento de raça; a luta negra acabaria por inspirar demais grupos, como os indígenas norte- americanos que também haviam sido explorados e excluídos pelo homem branco. Ao final dos anos 1960, o negro já podia votar, estudar em qualquer instituição, expressar-se abertamente, frequentar todo e qualquer estabelecimento público. Ou seja, finalmente poderia agir como um cidadão norte-americano comum, independente de sua cor. Se a luta acabou com a conquista dos direitos civis? Não, mesmo com as grandes conquistas, o preconceito ainda é uma realidade constante em tempos atuais. Contudo, é importante salientar que essa luta ou resistência não foi feita apenas por lideranças masculinas. No próximo capítulo será possível perceber que as mulheres foram grandes ativistas da luta pelos diretos civis e pela igualdade. 39 5 ENTRE REALIDADE E FICÇÃO: MULHERES QUE OUSARAM ROMPER O SILÊNCIO A obra fílmica analisada nos conduz ao ponto de vista feminino, de empregada doméstica negra que, em contrapartida à sua própria luta pela sobrevivência em uma sociedade racista, vê-se envolvida em algo muito maior, um dos momentos mais importantes para sua raça: a luta pelos direitos civis. Já falamos sobre o filme e de seu plano de fundo histórico. Contudo, falta explanar um pouco sobre o eixo principal deste trabalho: as mulheres. É preciso adentrar no universo negro feminino através de um olhar histórico e analítico. Neste momento, iremos especificar a luta pela igualdade e liberdade racial e falar sobre as mulheres negras dentro do cenário norte-americano e sua colaboração, consciente ou não, para as mudanças sociais que viriam a ocorrer em meados dos anos dourados. Novamente destacamos que a busca pelos direitos igualitários entre as raças foi um processo em construção, ocorrendo lentamente ao longo dos séculos e teve seu estopim em meados dos anos 1960. Precisamos compreender que houve uma resistência por parte da população negra. De que forma? Através de sua música, sua culinária, sua dança e seus cultos. Mesmo sob as rígidas regras segregacionistas, souberam manter viva sua negritude, e passar isso às demais gerações. Conservar elementos de sua cultura é uma forma de resistir! Não vamos adentrar na questão de apropriação cultural, afinal nessa situação ela acontece de forma inconsciente no momento em que o branco apropria-se do negro, ele acaba tomando para si características do outro. Apesar das leis segregacionistas, a sociedade branca não percebia [ou recusava-se a perceber] o quanto as culturas 40 estavam fundidas; o branco tomava para si aspectos que ele mesmo condenava, um exemplo clássico é a questão musical. No sentido de resistência da cultura negra, as mulheres foram peças fundamentais. Dessa forma, para compreender a participação feminina negra, precisamos explorar a história norte-americana. Segundo a autora Carla Pinsky (2014), mesmo numa época de importantes avanços, as diferenças sociais entre homens e mulheres continuavam sendo traduzidas pelas desigualdades e violência. Apesar de a autora apresentar um estudo voltado às mulheres nos aos dourados em um sentido mais amplo, podemos utilizar alguns fragmentos de sua obra para dar início a este capítulo. No período denominado por muitos autores como “anos dourados”, as distinções de gênero eram bastante explícitas. Então, ao unir a questão de gênero com a discussão racial, temos um objeto de análise cercado de complexidade. Ser mulher neste período significava, de certa forma, submissão e privação de seus direitos, mesmo pertencendo à sociedade branca e privilegiada. Propomos refletir sobre o que representava ser mulher e negra dentro de uma sociedade desigual em questão de gênero e raça. Segundo Leandro Karnal, autor da obra História dos Estados Unidos, ainda nas décadas de 1950 e 1960 as mulheres permaneciam fixadas no papel de mãe, esposa e com participação limitada na sociedade. Ou seja, as mulheres estavam confinadas à posição doméstica. Obviamente, a questão racial reforçou essa ideologia doméstica. Negros recebiam salários inferiores e em muitos casos, exerciam atividades inferiores. Afinal, estamos falando de uma sociedade que vivia a sombra das leis Jim Crow2. Contudo, antes de falarmos sobre a movimentação social feminina negra nas décadas de 1950 e 1960, precisamos [tentar] compreender o que significava ser uma mulher negra nos Estados Unidos. Não é tão simples analisar a história da mulher negra norte-americana, o que fazemos com certa constância é refletir sobre os fatos históricos e imaginar como teriam se sentido ou (re)agido. Os primeiros questionamentos a serem feitos: Como era ser uma mulher negra nos EUA? Como 2 Jim Crow: No fim do século XIX, os estados do Sul, afetados economicamente com o fim da escravidão, promulgaram as chamadas leis Jim Crow, uma série de normas para legitimar a discriminação racial e dificultar o acesso dos negros ao voto. Marca a institucionalização da segregação nos Estados Unidos. 41 sobreviver em uma sociedade racista? Como sobreviver em uma sociedade masculina? São perguntas obvias, perguntas que nos levam a refletir sobre determinados aspectos da sociedade americana e o modo como a mulher negra era vista. Ousamos analisar e interpretar os fatos, mas até mesmo quem vivenciou o peso das injustiças raciais teria dificuldades em responder tais questionamentos com precisão. Primeiramente, destacamos que a situação feminina negra era completamente diferente à condição feminina branca; enquanto a mulher branca submetia-se a um sistema machista, a mulher negra carregava um fardo duplo: gênero e raça. Segundo Elaine Feinstein, autora da obra Bessie Smith: Imperatriz do Blues (1989), embora as mulheres tivessem conquistado o direito ao voto em 1920, a situação das mulheres negras continuava a mesma, ainda estavam na camada mais baixa da escala social. Saíram do cenário escravista, mas ainda eram exploradas por toda a sociedade, reduzidas aos papéis de domésticas ou de prostitutas. Para a mulher negra nem mesmo o cenário familiar era sinônimo segurança e de aceitação: ter um companheiro permanente muitas vezes significava violência, eram frequentemente maltratadas e por esta razão eram obrigadas a abandonar o lar e assim, muitas delas eram forçadas a trabalhar nas ruas, por não terem para onde ir. A condição da negra norte-americana era bastante complexa, segundo a autora Stéphane Koechlin. Se renunciava à agricultura, era obrigada a cozinhar para um tirano doméstico, teria filhos com um marido inconstante, ou, pior ainda, com um proprietário branco. O casamento a expunha às maiores desilusões: as cantoras de blues se queixavam com frequência desse engano e da deslealdade masculina. Então, para escapar ela se prostituía ou tentava a chance de ser artista, duas atividades muito próximas uma da outra. Mas a segunda propiciava bem mais: os sonhos, as grandes noitadas e talvez um pouco de dinheiro. Segundo os autores Pinsky e Pinsky (2014), a história negra nos dois terços de século desde o fracasso da integração nos anos 1880 até os primeiros grandes sucessos do movimento de direitos civis nos anos 1950 se reduz essencialmente a 42 tentativas frustradas de uma minoria socialmente desprezada, economicamente marginalizada e politicamente excluída a lidar com uma situação desesperadora. Desde as últimas décadas do século XIX, se desenvolveu uma importante divisão demográfica. A miséria do Sul rural causou a migração negra para as cidades industriais do Norte, onde os mais indigentes se organizavam em guetos informalmente segregados, como o Harlem, em Nova York: ao invés de escapar do racismo, os migrantes negros despertaram por toda parte dos EUA onde se assentaram. As mulheres lançavam-se em direção às grandes cidades do Norte, em uma fuga incerta e perigosa, tentando afastar-se de qualquer tipo de escravidão. Encontramos na música exemplos femininos que ansiavam por mudar de vida; mulheres que escolheram viagens, noites agitadas e independência: Ida Cox, Trixie Smith, Sippie Wallace, Victoria Spivey, Bessie Smith e tantas outras. Nas palavras de Koechlin (2012): carregavam feridas pesadas e um estranho complexo, curando seu sofrimento através do blues. Dentro da perspectiva doméstica, Donald Clarke, autor de Whishing on the moom: A vida e o tempo de Billie Holiday (1995), destaca que a mulher negra era sempre considerada menos ameaçadora para o branco do que o negro, que, dessa maneira, ficava ainda mais marginalizado, a ponto de ser efetivamente emasculado, tornando-se incapaz de desempenhar o papel tradicional de chefe da família. Dessa forma, as mulheres negras passaram, em grande maioria, a serem responsáveis pelo sustento familiar. A questão da não participação masculina e da mulher negra como provedora do sustento familiar ou de seu próprio sustento também é abordada na obra fílmica analisada através da personagem Minny. O best-seller de Kathryn Stockett, que deu origem à obra fílmica apresenta de forma detalhada o universo em que as protagonistas estão inseridas, contemplando até mesmo, a preocupação da mulher negra em relação aos seus relacionamentos. Em um dos capítulos do livro, temos o seguinte desabafo de Aibileen: Memphis Minny começa a contar no rádio, dizendo que carne magra não frita direito, que é como dizer que o amor não dura. De tempos em tempos, penso que eu podia arranjar outro homem pra mim, um da minha igreja. O problema é o mesmo: mesmo amando muito o Senhor, homem que vai na igreja nunca me atraiu muito. O tipo de homem que eu gosto não é o que fica com a gente depois de gastar todo o nosso dinheiro. Cometi esse erro 43 vinte anos atrás. Quando meu marido Clyde me deixou por aquela vadia da Farish Street, uma que chamavam de Cocoa, achei que era melhor eu fechar a porta para sempre pra esse tipo de problema (STOCKETT, p. 34). Ainda sob a perspectiva de Feinstein (1989), as mulheres negras passaram a considerar seus homens preguiçosos, ineptos ou irresponsáveis. Dessa forma, tornaram-se donas de si mesmas, não contando mais com a cooperação masculina. Já que estamos falando sobre o universo feminino negro, podemos falar sobre algumas personalidades negras que ousaram romper com o silêncio. Iniciaremos por Bessie Smith, cantora de Blues nascida em Chattanooga, Tennessee, em 1894. Desde muito cedo, Bessie compreendia o que significava ser negra e pobre. Sua família vivia na pobreza, o que não era incomum para um negro, na verdade era quase inevitável, mesmo após o fim da escravidão. Utilizando novamente a obra original de Stockett, podemos encaixar aqui, um trecho que faz referência ao modo como algumas mulheres negras eram educadas. Desde muito cedo, já eram ensinadas por suas mães qual era sua função na sociedade e como deveriam se portar. Tinham total compreensão da realidade. As jovens meninas negras já deveriam aprender a trabalhar, para auxiliar no sustento de suas famílias. Estes ensinamentos que são passando de geração em geração são contemplados através das lembranças da personagem Minny: “Fique bem sentada com a bunda na cadeira, Minny, pois vou explicar pra você as regras para trabalhar na casa de uma Patroa Branca”. Eu tinha quatorze anos de idade nesse dia. Eu tava sentada na mesinha de madeira na cozinha da mãe, namorando aquele bolo de caramelo que estava esfriando sobre o descanso, esperando para ir pro gelo. Os aniversários eram os únicos dias do ano em que me deixavam comer tanto quanto eu queria. [...] Mamãe colocou as mãos nos meus ombros e me virou, pra eu olhar pra ela em vez de pro bolo. Mamãe era linha-dura. Era limpa. Não pegava nada de ninguém. Balançou o dedo tão perto do meu rosto que me deixou vesga. Regra número um pra trabalhar pra uma patroa branca, Minny: Não se meta onde não é chamada. Mantenha o seu nariz bem longe dos problemas da sua patroa branca, e nada de reclamar pra ela dos seus problemas. Não consegue pagar a conta de luz? Seus pés estão doendo? Lembre sempre de uma coisa: gente branca não é nossa amiga. Não querem saber de nada disso. E quando a dona patroa branca pega o homem dela com a vizinha, você fica bem longe disso, tá me ouvindo? (STOKETT, p. 55). Ainda muito jovem, Bessie começou a cantar nas esquinas para ganhar alguns trocados e, em busca de uma vida melhor, fazia testes como cantora em bares de jazz. A sociedade era racista e o mundo do entretenimento não era diferente, cultuavam coristas com pequenas feições europeias, traços delicados, 44 pele marrom-dourado, altas e corpo esbelto. Ou seja, mestiças. Bessie era baixinha, rechonchuda com fortes feições africanas e o tom de sua pele não era o desejado, destacando-se pela sua voz naturalmente forte. No auge de sua fama apresentava- se para plateias brancas no sul e em algumas boates do Norte, mas nunca considerou o público branco como uma oportunidade, já que os brancos jamais valorizariam realmente o trabalho de uma negra. Assim como muitas, Bessie foi vítima de violência física dentro de seus relacionamentos, além de ser explorada por estúdios musicais. Uma das características do trabalho de Bessie era a forma como relatava o cotidiano da mulher negra através do humor, tornando a amarga realidade em uma grande piada. Bessie Smith faleceu em 26 de setembro de 1937, seriamente ferida em um acidente de carro na estrada 61, ao sul de Memphis. Em 1973, suas músicas foram adicionadas ao Grammy Hall of Fame, devido a sua importância histórica. A lendária Billie Holiday não teve uma vida tão diferente de Bessie. Holiday nasceu em Baltimore, Maryland. Segundo Sylvia Fol, autora de Billie Holiday: Biografia (2010), Baltimore era a segunda maior cidade em população negra dos Estados Unidos, logo depois de Washington, com uma comunidade de 77 mil almas. Logo após a Guerra da Secessão (1861-1865), grande parte da população migrava dos campos sulistas para as grandes cidades do Nordeste em busca de trabalho nas fábricas. Holiday foi criada pela mãe, que foi expulsa de casa por estar grávida; condição comum entre as jovens mulheres negras. A realidade da jovem Holiday é bastante dura, jogada de uma casa para outra que, segundo vários biógrafos sempre eram ambientes altamente abusivos. Aos dez anos, presa ao tentar roubar um par de meias, declarada “menor sem guarda”, é internada em uma instituição para meninas negras. Sua história de vida envolve o descaso familiar, estupro, violência física e pobreza. Holiday, assim como a grande maioria das mulheres negras, trabalhou como empregada doméstica e mais tarde, acaba trabalhando nas ruas, como prostituta. Encontrando refúgio na música, foi uma das primeiras negras a cantar em uma banda de brancos em uma época de segregação racial. 45 Billie Holiday utilizou a música para cantar suas dores, ou seja, a vida de uma mulher negra, seus relacionamentos, seus medos e seus sonhos. Contudo, ousava ir mais além: um exemplo é a canção Strange Fruit, que provocava adesões fervorosas e rejeições ferozes quando era apresentada. Tratava-se de uma clara menção aos linchamentos e enforcamentos a que os negros eram submetidos, práticas muito comuns no território norte-americano entre 1889 e 1930. Anos mais tarde, a militante negra e comunista Angela Davis escreveu, em Blues Legacies and Black Feminism (Legados do blues e feminismo negro), que Strange Fruit devolveu o elemento de protesto e resistência ao centro da cultura musical negra contemporânea. Billie Holiday morreu em 1959, aos 44 anos, devastada pelo abuso do álcool e de drogas. Mulheres como Bess Smith e Billie Holiday, romperam com o silêncio no sentido de ousar cantar a realidade feminina negra: violência, cotidiano, expectativas, esperanças e medos. Elas não estão diretamente ligadas aos acontecimentos de 1960, mas são essenciais para a compreensão de como a sociedade tratava a mulher negra. Todos os abusos foram externalizados através da música, a sociedade racista não conseguiu calar estas mulheres. E não apenas Holiday e Smith, mas tantas outras que se utilizaram da música com o mesmo propósito. O que temos até o momento é uma pequena caracterização do cenário/realidade em que as mulheres negras estão inseridas. Não significa que seja uma regra, mas a história mostra que a grande maioria das mulheres encontrava-se em uma situação nada favorável; mesmo aquelas que possuíam maior autonomia ou apoio familiar ainda sofriam com as limitações das normas segregacionistas. Nem todas as mulheres eram obrigatoriamente forçadas a trabalhar como domésticas, cantoras ou prostitutas. Na história da mulher negra norte-americana tivemos operárias, militares, professoras, jornalistas, entre outras. Independente de sua época ou profissão, estamos destacando uma luta intensa pela sobrevivência dentro da sociedade norte-americana, no sentido de raça; e dentro de seus lares, adentrando a questão de gênero. Ao percebermos a realidade dessas mulheres, podemos compreender a razão pelo qual decidiram romper com o silêncio ao qual foram submetidas; o motivo pelo qual buscavam por mudanças em suas vidas e no modo como a sociedade às encarava. Explorando essa dualidade (gênero e raça), a 46 obra fílmica comtempla de forma muito delicada essa luta constante pela sobrevivência feminina através de personagens que, além do racismo declarado do segregacionista, tornam-se responsáveis por si mesmas [Aibileen] ou precisam resistir à violência dentro de seus lares [Minny]. Ao contextualizarmos a situação feminina negra dentro do cenário norte- americano, podemos adentrar os anos dourados. Pode parecer um grande salto temporal, pelo fato de termos utilizado exemplos femininos e um levantamento histórico anteriores às décadas de 1950 e 1960, contudo, a situação feminina negra não vai sofrer grandes alterações até a conquista pelos direitos civis. A mulher negra jamais se escondeu atrás de seu gênero, não se sentiam intimidades pelos homens. Na verdade aprenderam a sobreviver sem a dependência masculina. Dessa forma, a partir da década de 1950, diante de uma maior independência, o único obstáculo será a questão racial. Os anos dourados foram caracterizados por mudanças nas normas sociais, nos costumes, nas relações familiares, regras de comportamento, sexualidade e papéis atribuídos a homens e mulheres. A proposta deste trabalho é tentar mostrar a movimentação social feminina negra pelos direitos civis nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960 através da obra fílmica. Primeiramente, quando falamos em movimentação, imaginamos algo organizado e intencional; contudo, não é dessa forma que ocorre. Estamos fixados sobre uma leitura analítico-interpretativa fílmica e, na obra em questão, a movimentação feminina está diretamente associada à sobrevivência dentro de uma sociedade segregacionista. As personagens fictícias não decidem manifestar-se da noite para o dia, são conduzidas lentamente a tomada de consciência que se transforma em rompimento do silêncio. Na história norte-americana não é diferente, são pequenas atitudes que irão resultar em um esclarecimento, uma epifania racial e social. As mulheres possuem uma importância imensa, inicialmente, por adquirirem a consciência de si e através dela, a consciência de raça. Erros são cometidos, a história do negro norte-americano é contemplada de forma generalizada. Ao longo dos anos, os historiadores deram muito destaque aos chamados “Seis Grandes” que lideraram o movimento dos direitos civis: o reverendo Martin Luther King, James Farmer, John Lewis, A. Philip Randolph, Roy Wilkins e Whitney M. Young Jr. Height. 47 Contudo, utilizando as palavras do historiador Charles Payne, sobre os acontecimentos ocorridos nos anos 60, escreve: Os homens lideraram, mas as mulheres organizaram (KARNAL, 2007, p. 232). Talvez as mulheres não tivessem consciência de que suas atitudes viessem a colaborar para uma gigantesca alteração no sistema social norte-americano; mal sabiam elas que sua ousadia serviria de inspiração para muitos. A leitura fílmica interpretativa nos permite ir além da questão estética. Nossa leitura está fixada sobre o universo feminino e podemos fazer relações entre ficção e realidade através de elementos contidos na tela; aspectos que nem sempre são observados com atenção. No livro, a autora Kathryn Stockett, através dos relatos de Aibileen, faz uma pequena referência à personagem histórica que iremos mencionar. Na obra fílmica analisada, não temos uma referência direta, entretanto, em várias cenas as protagonistas são vistas próximas ou dentro de um ônibus e isso não é por acaso: Nessa tarde, subo no ônibus numero 6, que vai de Belhaven até Farish Street. O ônibus hoje tá cheio de empregadas domesticas indo para casa, vestidas com seus uniformes brancos. Todas sorridentes e conversadeiras, até parece que o ônibus é nosso – não que a gente dê bola se tem gente branca aqui, a gente sente onde bem entende, graças à dona Parks – só porque o ambiente é caloroso (STOCKETT, p. 22). Qual a importância do ônibus neste contexto? Não devemos observá-lo apenas como o meio de transporte das classes mais baixas, mas como um símbolo. Pode ser visto como um retrato da vida cotidiana norte-americana segregada, assim como pode ser relacionado à imagem de Rosa Parks. E quem foi esta mulher? Rosa Lee Parks nasceu no estado do Alabama em 1913, como qualquer pessoa de cor, já sabia desde muito cedo em que tipo de sociedade vivia e quais as