1 CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SCRICTO SENSU DOUTORADO EM AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO MOVIMENTAÇÕES DE POPULAÇÕES GUARANI, SÉCULOS XIII AO XVIII – BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO TAQUARI, RIO GRANDE DO SUL Marcos Rogério Kreutz Lajeado, dezembro de 2015 2 Marcos Rogério Kreutz MOVIMENTAÇÕES DE POPULAÇÕES GUARANI, SÉCULOS XIII AO XVIII - BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO TAQUARI, RIO GRANDE DO SUL Tese apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento do Centro Universitário Univates, como exigência parcial para obtenção do grau de Doutor em Ambiente e Desenvolvimento. Orientadora: Profa. Dra. Neli T. G. Machado Coorientador: Prof. Dr. Luis F. da S. Laroque Lajeado, dezembro de 2015. 3 Marcos Rogério Kreutz MOVIMENTAÇÕES DE POPULAÇÕES GUARANI, SÉCULOS XIII AO XVIII - BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO TAQUARI, RIO GRANDE DO SUL A Banca examinadora abaixo aprova a tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento, do Centro Universitário Univates, como parte da exigência para a obtenção do grau de Doutor em Ambiente e Desenvolvimento: _____________________________________________________________ Profª. Drª. Neli Teresinha Galarce Machado – Centro Universitário Univates ___________________________________________________________ Prof. Dr. Luis Fernando da Silva Laroque – Centro Universitário Univates ______________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Périco – Centro Universitário Univates _________________________________________________________ Profª. Drª. – Raquel Piqué Huerta – Universitat Autònoma de Barcelona _______________________________________________ Prof. Dr. Marcos Gerhardt – Universidade de Passo Fundo 4 AGRADECIMENTOS Agradeço à Professora Neli T. G. Machado pela oportunidade de realizar o trabalho sob sua orientação e ter propiciado a participação nos Projetos de Pesquisa vinculados ao Setor de Arqueologia. Ao professor Luis F. da S. Laroque pela coorientação. Agradeço a Elizete pelo apoio e auxílio durante a realização da pesquisa. A minha mãe Ivonne, bem como a D. Olga que sempre demonstraram apoio incondicional. A Fernanda pelas conversas sobre Arqueologia e nas atividades de campo. A Karen pelo auxilio nas traduções. E ambas por dividir a sala nesse tempo de pesquisa. Aos amigos e colegas Patrícia, Sidnei, Sérgio, Eduardo, Letícia, Jones, Diego Gheno, Cadu, Daniel, Paula, Antônio Marcos, Jean, Jéssica, Natália Devitte, Clara, Lauren, Inauã, Camila e Marina pelas conversas sobre Arqueologia, imigração e “outros papos”. Aos bolsistas de iniciação científica Fernanda Schmitt, Sinandra, Alecsander, Diego e Leonardo pelo auxílio em muitas tarefas. A Daniel Santos pela elaboração dos mapas, a Edgar Azevedo pelas ilustrações, ao professor Sebastian pelas traduções de documentos, a Josiane Carboni e Natalia pela participação em atividades de campo. Agradeço a Darci Hüther, Vicente Marobin, Erio Klein, Egídio Ferabolli, Aroldo Pasquali, José Bennini, Inácio Birck, Claudio Marckmann, Vedelino Rabaiolli, Giacomin Villa, Osmar Patuzzi, Lavio Baier, Ibanor Locatelli, Jaime Brino, Gema Lucca, Alex 5 Wüllrich, Darci Nabbinger e muitos outros pela receptividade em suas propriedades e apoio às pesquisas. Agradeço também a Ana pelas questões relacionadas ao PPGAD, bem como dos colegas e professores do Programa, e aos demais que contribuíram de uma forma ou outra para a realização deste estudo. Por fim, ao Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela concessão da bolsa. 6 RESUMO Estima-se que o processo de colonização Guarani, na porção territorial Vale do Taquari, drenada pela Bacia Hidrográfica do Rio Taquari, Estado do Rio Grande do Sul tenha iniciado por volta do século XIII. Datações radiocarbônicas realizadas em sítios arqueológicos demonstram que a ocupação fora ao longo de pelo menos seis séculos. Até princípios do século XVII, os Guarani colonizaram o espaço, não de forma homogênea ou exclusiva, fixando-se nas planícies ao longo dos rios e arroios da bacia, promovendo deslocamentos comuns à sua cultura. A partir da década de 1630, os deslocamentos Guarani, passam a sofrer pressões externas, em função da vinda de jesuítas espanhóis, de bandeirantes paulistas e, mais tarde, de imigrantes europeus e seus descendentes. O objetivo do presente estudo é demonstrar os fatores que interferiram nos processos de territorialização e desterritorialização dos Guarani no Vale do Taquari, pré e pós-contato, passando por quatro fases: a significativa ocupação, a redução, reocupação e a ausência de aldeias no referido espaço. Optou-se pela metodologia qualitativa-descritiva, e os instrumentos metodológicas foram: a pesquisa bibliográfica, documental e atividades de campo. Embora tenha-se avançado nos estudos em relação ao referido grupo, constata-se que existem muitas lacunas ainda para serem preenchidas sobre à colonização de indígenas Guarani no espaço Vale do Taquari, dessa forma, como resultado espera-se apresentar os deslocamentos Guarani em dois momentos, pré e pós-contato com o colonizador europeu, bem como contribuir para a formação de uma consciência para preservação do patrimônio arqueológico e histórico. Palavras-chave: Deslocamentos; Guarani; Ambiente; Pré-Colonial; Pós-Contato. 7 ABSTRACT It is estimated that the Guarani colonization process, at the Taquari Valley territory, Taquari River Hydrographic Basin, State of Rio Grande do Sul, have started around the XIII century. Radiocarbon dating carried out in archaeological sites demonstrates that the occupation had lasted for at least six centuries. To the beginning of the XVII century, the Guarani populations colonized the space in a non-homogeneous and non-exclusive way. They would rather establish settlements along the rivers and streams of the hydrographic basin followed and then promote movements, common to their culture. From the 1630 decade, the Guarani movements started to be influenced by external pressure, because of the arrival of the spanish jesuits, the paulistan settlers, and later the european immigrants and their descendants. The aim of this study is to demonstrate which factors have influenced the Guarani’s processes of territorialization and deterritorializing at the Taquari Valley, pre and post-contact, analyzing four phases: significant occupation, reduction, reoccupation and the lack of settlements in the referred territory. A qualitative–descriptive methodology has been chosen, and the utilized methodological tools were bibliographical research, documentation and field trips. In spite of the progress made on studies of the referred group, there are many gaps still to be solved about the Guarani indigenous colonization of the Taquari Valley area. Therefore, as a result it is expected to show the Guarani movements in two periods, pre and post-contact with the european colonizers, as well as to contribute for building awareness around the importance of preserving archaeological and historical heritage. Key words: Movements; Guarani; Environment; Pre-Colonial; Post-Contact. 8 LISTA DE FIGURAS FIGURA 01 - Reconstituição de vasilhas cerâmicas utilizadas pelas sociedades Guarani ................................................................................................. 62 FIGURA 02 - O Vale do Taquari se insere na Bacia Hidrográfica do Rio Taquari ... 68 FIGURA 03 - Na Unidade Serra Geral observa-se que em determinados locais, os vales fluviais apresentam-se alojados e encaixados ............................. 69 FIGURA 04 - A Unidade Geomorfológica Patamares da Serra Geral se localiza ao centro da região foco do estudo ........................................................... 70 FIGURA 05 - Unidade Geomorfológica Patamares da Serra Geral apresenta formas mais rebaixadas e contínuas ................................................................. 71 FIGURA 06 - A Unidade Geomorfológica Depressão Rio Jacuí ocorre ao Sul do Vale do Taquari, apresentando um relevo homogêneo, sem muitas variações altimétricas ........................................................................... 72 FIGURA 07 - Mapa da altitude do Vale do Taquari ................................................... 73 FIGURA 08 - Declividade da área de estudo............................................................... 74 FIGURA 09 - Vale do Taquari e seus principais recursos hídricos ............................ 75 FIGURA 10 - Mapa de solos do Vale do Taquari ....................................................... 77 FIGURA 11 - Em destaque, a Araucária angustifólia, espécie da Floresta Ombrófila Mista 79 FIGURA 12 - Área do sítio arqueológico RS-T 114, a qual apresenta uma planície de 800m de largura ............................................................................... 81 9 FIGURA 13 - Simulação do relevo apresentando planície em uma das margens do rio ......................................................................................................... 82 FIGURA 14 - Simulação do relevo apresentando planícies em ambas as margens do rio ......................................................................................................... 82 FIGURA 15 - Simulação do relevo da região com extensas planícies em ambas as margens do rio ...................................................................................... 83 FIGURA 16 - O sítio arqueológico RS-T 117 situa-se em uma planície de grande extensão na margem direita do Rio Taquari ........................................ 83 FIGURA 17 - Relação de proximidade entre os sítios RS-T 114, RS-T 122, RS-T 101 e RS-T 110, todos inseridos na margem direita do Rio Forqueta.. 84 FIGURA 18 - Banco de seixos de basalto as margens do rio Forqueta a cerca de 200m do sítio arqueológico RS-T 122 em Marques de Souza/RS ....... 85 FIGURA 19 - Fragmento de cerâmica proveniente do Sítio Arqueológico RS-T 114 87 FIGURA 20 - Fragmentos de cerâmica pintada proveniente do sítio arqueológico RS-T 114 apresentando engobo branco ou vermelho .......................... 89 FIGURA 21 - Sobre o engobo branco são aplicados desenhos com motivos geométricos .......................................................................................... 89 FIGURA 22 - Remanescente faunístico encontrado no sítio RS-T 114, tíbia proximal pertencente ao veado-campeiro ............................................ 92 FIGURA 23 - Remanescente faunístico encontrado no sítio RS-T 114, mandíbula pertencente ao bugio ............................................................................ 92 FIGURA 24 - Localização dos abrigos sob rocha pesquisados por Ribeiro e Equipe. 94 FIGURA 25 - Abrigo registrado pelo arqueólogo Dr. Sérgio C. Klamt ..................... 96 FIGURA 26 - Sítio RS-T-17, abrigo localizado no município de Paverama/RS ........ 98 FIGURA 27 - Localização dos sítios pertencentes a sociedades Caçadoras Coletoras .............................................................................................. 101 FIGURA 28 - Abrigo conhecido em Relvado por “Gruta dos Índios” ....................... 102 FIGURA 29 - Abrigos rochosos, um deles com as mesmas características descritas por Naue em 1972 ............................................................................... 103 FIGURA 30 - Abrigo sob rocha denominado RS 183 ................................................ 104 FIGURA 31 - O proprietário das terras onde se localiza o sítio, Egídio Feraboli, filho de David Feraboli (falecido), mostra o abrigo ............................. 105 10 FIGURA 32 - Área do sítio arqueológico RS-T 121 .................................................. 106 FIGURA 33 - Área do sítio arqueológico RS-TQ-127 ............................................... 107 FIGURA 34 - Inscrições recentes são observadas no abrigo ...................................... 108 FIGURA 35 - Abrigo com maior profundidade .......................................................... 109 FIGURA 36 - Abrigo com menor profundidade ......................................................... 109 FIGURA 37 - Localização do sítio arqueológico e área do seu entorno ..................... 110 FIGURA 38 - Mapa com sítios arqueológicos pertencentes à sociedades Proto-Jê ... 116 FIGURA 39 - Estrutura subterrânea pertencente ao sítio arqueológico RS-T 123 ..... 118 FIGURA 40 - Área e estruturas do sítio arqueológico RS-T 126 ............................... 119 FIGURA 41 - Localização dos sítios arqueológicos ao longo do Rio Forqueta e seus principais afluentes ....................................................................... 121 FIGURA 42 - Reconstituição de uma vasilha do sítio RS-T 101 ............................... 122 FIGURA 43 - Sítio arqueológico RS-T 107 situado a margem direita do Rio Forqueta ................................................................................................ 123 FIGURA 44 - Área do sítio arqueológico RS-T 110 e o seu entorno ......................... 124 FIGURA 45 - Área do sítio arqueológico RS-T 114 ................................................... 125 FIGURA 46 - Intervenções realizadas na planície ...................................................... 126 FIGURA 47 - Intervenções realizadas no talude do rio .............................................. 127 FIGURA 48 - Localização dos sítios próximos ao Rio Taquari ................................. 130 FIGURA 49 - Sítios arqueológicos RS-T 105 e RS-T 108 ......................................... 131 FIGURA 50 - Situação da urna funerária no talude do rio antes da intervenção na área e parte do material exumado ......................................................... 132 FIGURA 51 - Localização dos sítios RS-TQ-123, RS-TQ-130 e RS-TQ-131 ........... 134 FIGURA 52 - Em 2012 foram retomadas as pesquisas no sítio RS-03 ...................... 135 FIGURA 53 - Croqui da escavação realizada em julho de 2013 ................................ 135 FIGURA 54 - Emílio Patuzzi e família com artefatos arqueológicos encontrados em sua propriedade na década de 1960 ...................................................... 136 11 FIGURA 55 - Área do sítio com evidências cerâmicas .............................................. 137 FIGURA 56 - Localização dos sítios e área onde se localiza o sítio RS-29 ............... 138 FIGURA 57 - Sítios Guarani localizados ao Sul do Vale do Taquari ......................... 140 FIGURA 58 - Área do sítio arqueológico RS-TQ-66 ................................................. 141 FIGURA 59 - Área do sítio arqueológico na propriedade de Lávio Baier ................. 142 FIGURA 60 - Atividades de campo realizadas na propriedade de Luiz Pedro Scherer em Lajeado .............................................................................. 143 FIGURA 61 - Direções hipotéticas da colonização Tupiguarani no Rio Grande do Sul ........................................................................................................ 147 FIGURA 62 - Áreas 1 e 2 do sítio RS-T 114 .............................................................. 155 FIGURA 63 - Área do sítio RS-T 101 ........................................................................ 157 FIGURA 64 - Sítio localizado na margem direita do Rio Taquari ............................. 158 FIGURA 65 - Localização do sítio arqueológico RS-03 ............................................ 159 FIGURA 66 - Sítios Guarani datados no Vale do Taquari ......................................... 161 FIGURA 67 - Direções hipotéticas para colonização do território pelos Guarani ...... 163 FIGURA 68 - Hipótese de movimentação Guarani proposta por Schmitz (1985) ..... 164 FIGURA 69 - Movimentação hipotética segundo hipótese formulada por Schmitz (1985) ................................................................................................... 165 FIGURA 70 - Movimentos hipotéticos Guarani tendo como base a hipótese formulada por Brochado (1984) ........................................................... 166 FIGURA 71 - Relação entre as datas radiocarbônicas estabelecidas para o sítio RS- T-114 e para o sítio RS-T-101 ............................................................. 167 FIGURA 72 - Localização dos 16 sítios arqueológicos .............................................. 171 FIGURA 73 - Áreas com baixa possibilidade de ocupação ........................................ 173 FIGURA 74 - Áreas com média possibilidade de ocupação ....................................... 174 FIGURA 75 - Áreas com alta possibilidade de ocupação ........................................... 175 12 FIGURA 76 - Intersecção dos mapas, cujos resultado é dividido em três classes, de baixa, média e alta probabilidade para a ocorrência de sítios arqueológicos ....................................................................................... 176 FIGURA 77 - Área 1 ................................................................................................... 179 FIGURA 78 - Área 2 ................................................................................................... 179 FIGURA 79 - Área do sítio RS-61 .............................................................................. 180 FIGURA 80 - Área 3 ................................................................................................... 180 FIGURA 81 - Área 4 ................................................................................................... 181 FIGURA 82 - Área 5 ................................................................................................... 181 FIGURA 83 - Extensas planícies na margem esquerda do Rio Taquari ..................... 182 FIGURA 84 - Área 6 ................................................................................................... 182 FIGURA 85 - Área 7 ................................................................................................... 183 FIGURA 86 - Área 8 ................................................................................................... 183 FIGURA 87 - Planície onde foram encontrados os artefatos arqueológicos .............. 184 FIGURA 88 - Área 9 ................................................................................................... 185 FIGURA 89 - Área 10 ................................................................................................. 185 FIGURA 90 - Área 11 ................................................................................................. 186 FIGURA 91 - Área 12 ................................................................................................. 186 FIGURA 92 - Área 13 ................................................................................................. 187 FIGURA 93 - Área 14 ................................................................................................. 187 FIGURA 94 - Área 15 ................................................................................................. 188 FIGURA 95 - Área 16 ................................................................................................. 189 FIGURA 96 - Área 17 ................................................................................................. 190 FIGURA 97 - Área 18 ................................................................................................. 190 FIGURA 98 - Área 19 ................................................................................................. 191 13 FIGURA 99 - Área 20 ................................................................................................. 191 FIGURA 100 - Áreas que apresentam características para assentamentos Guarani que a partir da chegada do imigrante europeu tiveram seu uso intensificado (agricultura) .................................................................... 192 FIGURA 101 - Área 1 ................................................................................................... 193 FIGURA 102 - Área 2 ................................................................................................... 194 FIGURA 103 - Área 3 ................................................................................................... 194 FIGURA 104 - Área 4 ................................................................................................... 195 FIGURA 105 - Área 5 ................................................................................................... 195 FIGURA 106 - Área 6 ................................................................................................... 196 FIGURA 107 - Área 1 ................................................................................................... 197 FIGURA 108 - Área 2 ................................................................................................... 197 FIGURA 109 - Área 3 ................................................................................................... 198 FIGURA 110 - Área 1 ................................................................................................... 199 FIGURA 111 - Área 2 ................................................................................................... 199 FIGURA 112 - Área 1 ................................................................................................... 200 FIGURA 113 - Área 2 ................................................................................................... 201 FIGURA 114 - Espaço do Arroio Jacaré cujas Áreas Ideais localizam-se próximo a foz no Rio Taquari ............................................................................... 202 FIGURA 115 - Espaço localizado em ambas as margens do Arroio Augusta que apresenta Áreas Ideais .......................................................................... 203 FIGURA 116 - Áreas Ideais ao longo do Arroio da Seca ............................................. 203 FIGURA 117 - Área 1 ................................................................................................. 204 FIGURA 118 - Área 2 ................................................................................................... 204 FIGURA 119 - Áreas Ideais no entorno do Arroio Estrela ........................................... 205 FIGURA 120 - Áreas Ideais no entorno do Arroio Capivara ........................................ 206 14 FIGURA 121 - Áreas Ideais no entorno do Arroio Santa Cruz .................................... 206 FIGURA 122 - Áreas Ideais no entorno do Arroio Santa Cruz .................................... 207 FIGURA 123 - Planície na margem direita do Fão onde foi evidenciado material arqueológico ......................................................................................... 209 FIGURA 124 - Localização do Sítio Favaretto em relação ao RS-03 .......................... 210 FIGURA 125 - Movimentações hipotéticas das sociedades Guarani pré-coloniais no Vale do Taquari .................................................................................... 211 FIGURA 126 - O Tradado de Tordesilhas na perspectiva portuguesa .......................... 220 FIGURA 127 - Reduções fundadas a partir de 1610 na América espanhola ................ 231 FIGURA 128 - Reduções fundadas no Rio Grande do Sul entre 1626 a 1634 ............. 239 FIGURA 129 - Os aldeamentos fundados a partir de 1680 no Rio Grande do Sul ...... 242 FIGURA 130 - Roteiro hipotético dos padres Ximenes e Suárez desde a redução de Santa Teresa e possíveis incursões pela região do Vale do Taquari .... 245 FIGURA 131 - Possíveis incursões realizadas por Ximenes pelos Rios Mbocarirói (Guaporé) e Tibiquari (Taquari), visitando aldeias localizadas as margens destes rios............................................................................... 247 FIGURA 132 - Roteiro hipotético de Antônio Raposo Tavares desde os Campos de Cima da Serra até a localidade de Colinas ........................................... 269 FIGURA 133 - Localização do acampamento de Raposo Tavares as margens do Rio Taquari e as reduções mais próximas que foram atacadas pelo sertanista em 1636 ................................................................................ 270 FIGURA 134 - Colônias no Vale do Taquari ................................................................ 280 FIGURA 135 - As margens colonizadas pela imigração alemã ao Sul do Rio Forqueta foram outrora espaços colonizados por grupos Guarani ....... 281 FIGURA 136 - Áreas que foram colonizadas por populações Proto-Jê que a partir de finais do século XIX foram sendo ocupadas em sua maioria por imigrantes italianos .............................................................................. 283 FIGURA 137 - Deslocamentos hipotéticos ocorridos no século XVII ......................... 285 FIGURA 138 - Deslocamentos a partir das reduções e do litoral em direção ao Vale do Taquari ............................................................................................ 287 FIGURA 139 - Área com estreita planície onde foram encontradas evidências arqueológicas ........................................................................................ 290 15 FIGURA 140 - Provável colonização Guarani no território Vale do Taquari entre os séculos XIII e meados do século XVI .................................................. 292 FIGURA 141 - Situação hipotética das aldeias Guarani entre 1550 a 1630 ................. 294 FIGURA 142 - Situação do espaço Vale do Taquari em 1800 ..................................... 295 16 LISTA DE TABELAS TABELA 01 - Sítios arqueológicos pertencentes a sociedades Caçadoras Coletoras . 99 TABELA 02 - Sítios arqueológicos associados a sociedades Proto Jê ........................ 116 TABELA 03 - Sítios Guarani localizados ao longo do Rio Forqueta, Fão e Arroio Forquetinha .......................................................................................... 120 TABELA 04 - Sítios Guarani registrados ao longo do Rio Taquari e afluentes .......... 128 TABELA 05 - Sítios Guarani registrados ao Sul e Sudeste do Vale do Taquari ......... 139 TABELA 06 - Sítios arqueológicos com a presença de cerâmica neo-brasileira ........ 144 TABELA 07 - Sítios registrados com insuficiência de informações ........................... 144 TABELA 08 - Datas publicadas para o Rio Grande do Sul ......................................... 153 TABELA 09 - Sítios arqueológicos Guarani que foram utilizados como base para a formulação do Modelo Preditivo ......................................................... 170 TABELA 10 - Sítios e locais com evidências arqueológicas ao longo de ambas as margens do Rio Taquari ....................................................................... 177 TABELA 11 - Sítios e locais com evidências arqueológicas ao longo de ambas as margens do Rio Forqueta ..................................................................... 193 TABELA 12 - Sítios e locais com evidências arqueológicas ao longo de ambas as margens do Arroio Forquetinha ........................................................... 196 TABELA 13 - Locais com evidências arqueológicas as margens do Rio Guaporé e do Arroio Zeferino ............................................................................... 200 17 LISTA DE QUADROS QUADRO 01 - Ocupação Guarani para o leste da América do Sul .............................. 149 QUADRO 02 - Relação de datações sistemáticas realizadas no sítio RS-T 114 .......... 156 QUADRO 03 - Relação de todas as datas obtidas por C14 para o sítio RS-T 114 ........ 156 QUADRO 04 - Datações do sítio RS-T 117 .................................................................. 158 QUADRO 05 - Datações do sítio RS-03 ....................................................................... 160 QUADRO 06 - Classes e percentuais dos sítios arqueológicos .................................... 172 QUADRO 07 - Datações realizadas no sítio arqueológico RS-T 101 .......................... 287 QUADRO 08 - Datações realizadas no sítio arqueológico RS-T 114 ........................... 288 QUADRO 09 - Datações apontam para ocupação do sítio até o ano de 1800 .............. 289 QUADRO 10 - Censo de 1780 com a população das Freguesias de Triunfo, Taquari e Santo Amaro ...................................................................................... 296 18 LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 01 - Períodos mais intensos de ocupação com probabilidade de 68% ... 159 GRÁFICO 02 - Períodos mais intensos de ocupação do sítio RS-03 com probabilidade de 68% ...................................................................... 160 19 LISTA DE ABREVIATURAS AD - Anno Domini AP - Antes do Presente BP - Before Present BR - Rodovia Federal C14 - Datação pelo método Radiocarbônico Cf - Clima oceânico Cfa - Clima subtropical Cfb - Clima temperado CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNSA - Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos d.C. - Depois de Cristo. DNAEE - Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica E - Leste EUA - Estados Unidos da América FAPERGS - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul 20 FATES - Fundação Alto Taquari de Ensino Superior FECLAT - Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Alto Taquari Fm - Formação IHGVT - Instituto Histórico e Geográfico do Vale do Taquari IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional JTT - Sigla usada para sítio arqueológico L - Leste LACIFID - Laboratório de Cristais Iônicos Filmes Finos e Datação N - Norte NE - Nordeste NSA - Núcleo de Solo Antropogênico NW - Noroeste PCH - Pequena Central Hidrelétrica PPGAD - Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento PRONAPA - Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas RS - Sigla usada para sítio arqueológico RS-C - Sigla usada para sítio arqueológico RS-CM - Sigla usada para sítio arqueológico RS-LC - Sigla usada para sítio arqueológico RS-M - Sigla usada para sítio arqueológico RS-MJ - Sigla usada para sítio arqueológico RS-RG - Sigla usada para sítio arqueológico RS-RP - Sigla usada para sítio arqueológico RS-S - Sigla usada para sítio arqueológico 21 RS-SM - Sigla usada para sítio arqueológico RS-T - Sigla usada para sítio arqueológico RS-TQ - Sigla usada para sítio arqueológico RS-VZ - Sigla usada para sítio arqueológico S - Sul SE - Sudeste SW - Sudoeste TL - Datação pelo método Termoluminiscência UHE - Usina Hidrelétrica USP - Universidade de São Paulo UTM - Universal Transversa de Mercator W - Oeste 22 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 25 2 REVISÃO DE CONCEITOS PARA COMPREENSÃO DA COLONIZAÇÃO GUARANI ....................................................................................................................... 33 2.1 Arqueologia da paisagem ........................................................................................ 34 2.2 Ecologia da paisagem ............................................................................................... 36 2.3 Geoarqueologia ......................................................................................................... 38 2.4 Território e territorialidade .................................................................................... 39 2.5 Migração e expansão ................................................................................................ 44 2.6 Contato cultural ....................................................................................................... 47 2.7 Etno-história ............................................................................................................. 50 3 UM POVO COLONIZADOR: O GUARANI .......................................................... 52 3.1 Deslocamentos e a expansão Guarani .................................................................... 54 3.2 As sociedades Guarani ............................................................................................. 59 4 PAISAGEM E A ARQUEOLOGIA NO VALE DO TAQUARI ............................ 66 4.1 Uma paisagem com muitos atrativos ambientais para os Guarani ..................... 67 23 4.1.1 Delimitação da área .............................................................................................. 67 4.1.2 O relevo da área .................................................................................................... 68 4.1.3 A hipsometria e a clinografia ............................................................................... 72 4.1.4 Os recursos hídricos .............................................................................................. 75 4.1.5 Solos da região ....................................................................................................... 76 4.1.6 O clima ................................................................................................................... 77 4.1.7 A vegetação ............................................................................................................ 78 4.1.8 A fauna ................................................................................................................... 79 4.2 Apropriação do ambiente ........................................................................................ 80 4.3 A Arqueologia no Vale do Taquari: sua história .................................................. 93 4.3.1 Sociedades Caçadoras Coletoras e os sítios arqueológicos prospectados ........ 96 4.3.2 Sociedades horticultoras: os Proto-Jê e os sítios arqueológicos prospectados. 112 4.3.3 Sítios arqueológicos Guarani no espaço Vale do Taquari ................................. 120 5 A COLONIZAÇÃO GUARANI NO RIO GRANDE DO SUL .............................. 146 5.1 O tempo e os deslocamentos .................................................................................... 146 5.2 As datações ................................................................................................................ 148 5.3 5.3 Datações radiocarbônicas realizadas no Rio Grande do Sul ............................... 149 5.3.1 Município de Rio Grande ..................................................................................... 149 5.3.2 Vale do Rio Jacuí ................................................................................................... 150 5.3.3 Litoral do Rio Grande do Sul ............................................................................... 152 5.3.4 Médio Rio das Antas ............................................................................................. 152 5.4 A cronologia da colonização no Vale do Taquari .................................................. 154 6. MOVIMENTAÇÕES GUARANI PRÉ-CONTATO E OS ESPAÇOS COLONIZADOS NO VALE DO TAQUARI .............................................................. 162 6.1 Os espaços colonizados ............................................................................................ 167 24 7 PORTUGUESES E ESPANHÓIS NO SUL DO BRASIL ...................................... 213 7.1 Expedições exploratórias ......................................................................................... 214 7.2 Rio Grande do Sul: português ou espanhol? ......................................................... 218 8 OS GUARANI E OS NOVOS CONTATOS: JESUÍTAS ESPANHÓIS NO VALE DO TAQUARI ................................................................................................... 224 8.1 A função dos jesuítas na América ........................................................................... 224 8.2 A fundação das reduções ......................................................................................... 229 8.3 As reduções no Rio Grande do Sul ......................................................................... 233 8.4 Jesuítas espanhóis no espaço Vale do Taquari ...................................................... 243 9 OS GUARANI E OS NOVOS CONTATOS: BANDEIRANTES PAULISTAS NO VALE DO TAQUARI ............................................................................................ 253 9.1 Os bandeirantes e a economia ................................................................................. 253 9.2 As bandeiras: expedições violentas e grosseiras .................................................... 259 9.3 O indígena: integrante indispensável nas bandeiras ............................................ 262 9.4 Rumo ao Sul .............................................................................................................. 264 9.5 As bandeiras de maior impacto para as populações Guarani radicadas no Rio Grande do Sul ................................................................................................................. 266 9.5.1 Bandeira de Fernão Camargo .............................................................................. 267 9.5.2 Bandeira de Antônio Raposo Tavares ................................................................. 267 9.5.3 Bandeira de André Fernandes ou Francisco Bueno .......................................... 271 9.5.4 Bandeira de Fernão Dias Pais .............................................................................. 273 10 DISPUTANDO O TERRITÓRIO: OS GUARANI E OS IMIGRANTES EUROPEUS E SEUS DESCENDENTES .................................................................... 275 10.1 A chegada dos imigrantes açorianos ao Vale do Taquari .................................. 276 10.2 Alemães e italianos no Vale do Taquari ............................................................... 279 25 10.3 Deslocamentos Guarani pós-contato com o europeu ......................................... 283 11 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 291 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 297 ANEXOS ......................................................................................................................... 322 26 1 INTRODUÇÃO Os Guarani não ficavam em um só lugar. [...] Eles se moviam livremente. Eles não imaginavam que um dia os brancos iam acabar com as matas. Eles limpavam um pedaço para plantar e depois se mudavam. Depoimento de indígena Guarani1. Estima-se que o processo de colonização Guarani, no atual Estado do Rio Grande do Sul2, tenha iniciado aproximadamente 2000 anos Antes do Presente. A ocupação, não de forma homogênea ou exclusiva no território que passou a constituir o estado mais meridional do Brasil, teria sido promovida a partir de três movimentos expansionistas, o primeiro, em torno do início da Era Cristã, o segundo por volta dos séculos IX e XIII e por fim, o terceiro nos séculos XV e XVI (ROGGE, 2004). Originários da região amazônica, os Guarani, sociedades que apresentam comportamentos sócio econômicos definidos, ao longo de 3000 anos promoveram sucessivos movimentos expansionistas, colonizando os atuais estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, além de países como o Paraguai e parte da Argentina (NOELLI, 1993). Dessa forma, a porção territorial Vale do Taquari, recorte espacial selecionado para este trabalho, drenada pela Bacia Hidrográfica do Rio Taquari no centro-leste do Estado do Rio Grande do Sul, fora colonizada por sociedades Guarani pertencentes à Tradição Tupiguarani. 1 Depoimento de indígena Guarani para o documentário “Bicicletas de Nhanderu”. Segundo Silva (2012, p. 25) Bicicletas de Nhanderu é um filme documentário, produzido em 2011, realizado no âmbito das oficinas do projeto Vídeo nas Aldeias na aldeia Guarani Mbya de Alvorecer, no município de São Miguel das Missões/RS. 2 Independente da época, toda vez que se menciona no texto, Rio Grande do Sul, considera-se a configuração política atual (2015) do estado. 27 Datações radiocarbônicas realizadas no sítio arqueológico RS-T 1143, localizado na margem direita do Rio Forqueta, o qual faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio Taquari, demonstram que ao longo de pelo menos seis séculos, 1300 AD e 1800 AD (SCHNEIDER, 2014), o local fora ocupado por sociedades Guarani. Sendo assim, é possível que o espaço atualmente denominado Vale do Taquari tenha sido colonizado por sociedades Guarani, a partir do terceiro movimento expansionista proposto por Rogge (2004) para o Rio Grande do Sul. Até princípios do século XVII, os Guarani colonizaram parte do território, fixaram-se nas férteis planícies ao longo dos maiores rios e arroios da bacia, entre eles, os rios Taquari e Forqueta, locais potencializados ecologicamente como Áreas Ideais à manutenção do padrão sócio, político e econômico dessas populações. Até o período do contato com o colonizador europeu, os Guarani viveram naquilo que se pode afirmar de manutenção de sua cultura, promovendo deslocamentos4, ampliando seus domínios, guerreando com seus inimigos, plantando, colhendo, caçando, pescando, desenvolvendo normalmente sua sociedade. A partir da terceira década do século XVII, os deslocamentos Guarani, passam a sofrer pressões externas, em função da vinda de jesuítas espanhóis e de bandeirantes paulistas. Em 1635, os primeiros religiosos da Companhia de Jesus chegam ao Vale do Taquari. Tinham como intenção a fundação de aldeamentos para, ao mesmo tempo, cristianizar os Guarani e, fazer frente ao avanço dos bandeirantes paulistas. Havia também a hipótese dessas populações se deslocar para reduções já instaladas. Entretanto, ambas situações não satisfaziam a totalidade da população Guarani, influenciadas por liderança indígenas, contrárias aos aldeamentos, bem como, se estabelecer em alguma redução. Um ano mais tarde, em 1636, os bandeirantes paulistas chegam ao Vale. Relatos dão conta de que Raposo Tavares tenha erguido, no mesmo ano, um acampamento, um cativeiro, no atual município de Colinas, situado na margem esquerda do rio Taquari (JAEGER, 1939; PORTO, 1954). Durante o trajeto do sertanista, por onde passava aprisionava indígenas, confinando-os no referido cativeiro até serem conduzidos a Vila de São Paulo de Piratininga para trabalhar nas fazendas. Após a vinda de Raposo Tavares, pelo menos mais duas 3 Sítio arqueológico localizado em Linha Bastos, município de Marques de Souza/RS - Coordenadas UTM: 22J, 391.260 L e 6.760.400 N - Altitude 54m. 4 Na presente tese optou-se em usar os termos deslocamentos ou movimentos, em substituição à migrações. No Capítulo 2, “A revisão de conceitos para compreensão da colonização Guarani”, são abordados os conceitos sobre migração e expansão e seus desdobramentos. 28 expedições sertanistas possivelmente tenham vindo para a região na busca de mão de obra escrava. Embora até o momento (2015) não foram encontrados registros de viajantes, jesuítas ou bandeirantes, que tenham circulado ainda no século XVI na região, há probabilidade da existência de expedições para prear indígenas já no final do referido século, pois no litoral catarinense já havia um intenso comércio de escravos, entretanto, fica só no campo da especulação. A vinda desses grupos “estrangeiros” desestruturou, por um período, a sociedade Guarani radicada no espaço Vale do Taquari. Talvez milhares de indivíduos tenham sido capturados, outros tantos pereceram em combates ou epidemias, outros podem ter acompanhado os jesuítas e alguns grupos permaneceram no Vale. A partir da década de 1640, os jesuítas espanhóis migram para a margem direita do Rio Uruguai, levando consigo indígenas para se estabelecerem em aldeamentos naquela região. Da mesma forma, para os bandeirantes paulistas o Rio Grande do Sul, território então pertencente à Coroa espanhola, não estava mais em seus planos, uma vez que suas campanhas concentravam-se mais ao centro do Brasil Colônia. Dessa forma, estima-se que depois da década de 1640, remanescentes da população Guarani, sobreviventes das campanhas bandeirantes e do assédio dos jesuítas, podem ter permanecido nas áreas colonizadas. Outros grupos, que possivelmente tenham abandonado o território em função das expedições bandeirantes e a ação dos jesuítas, poderiam ter retornado, estabelecendo-se novamente nas Áreas Ideais antes colonizadas. Foi por um curto espaço de tempo, pouco mais de um século, pois a partir de meados do século XVIII, novos colonizadores se estabelecem oficialmente em terras que outrora pertenciam aos Guarani. Por volta de 1750 inicia-se o processo de colonização do Vale por imigrantes europeus e seus descendentes. A partir da segunda metade do século XVIII, o município de Taquari, localizado ao sul da Bacia Hidrográfica do Rio Taquari, recebe os primeiros imigrantes açorianos, seguida pela vinda dos escravos africanos. E, a partir da metade do século XIX, os imigrantes alemães e italianos ocupam outras áreas da região. Movimentos ocupacionais e transformações culturais são características das sociedades humanas e são provocadas por fatores diversos. As sociedades Guarani, como outros grupos, sofreram transformações impostas direta ou indiretamente pelos agentes da 29 expansão. Ocorreram mudanças na demografia, na distribuição espacial, na organização social e política de suas culturas (MACHADO, 1999). Assim, os Guarani desenvolveram estratégias que tinham como objetivo além da manutenção da sobrevivência física, a possibilidade de recriar o seu modo de viver e ser, em suma, a manutenção de sua identidade cultural (MONTEIRO, 1992). A partir da vasta cultura material e analisando as datações das evidências dos sítios arqueológicos do Vale do Taquari, percebe-se que no período pré- contato, as sociedades Guarani puderam colonizar Áreas Ideais, na perspectiva dessas populações, motivadas pelos fatores internos dos deslocamentos, sejam estes sociais, políticos e/ou econômicos. No período pós-contato, os deslocamentos ganham um novo ingrediente, possivelmente tenham sido motivados também pela pressão dos novos colonizadores, jesuítas, bandeirantes e imigrantes. O tema desta pesquisa tangencia a questão da movimentação da sociedade Guarani no território Vale do Taquari o qual abandonou, em virtude do avanço da colonização europeia, posto que, de fato, neste início do século XXI, não existem mais aldeias Guarani no espaço Vale do Taquari, somente a sociedade Kaingang. A tese da pesquisa é de que até a chegada do colonizador europeu, as sociedades Guarani tenham colonizado, de acordo com sua cultura e de seus tradicionais deslocamentos, parte de áreas que margeiam rios e arroios que drenam o território do Vale do Taquari, demonstrando uma forte relação com o ambiente. Após o contato com jesuítas e bandeirantes, com base em datações radiocarbônicas, os Guarani promoveram deslocamentos, abandonando áreas, especialmente aldeias estabelecidas próximo aos rios de maior porte, entre eles o Forqueta. E, após um espaço de tempo retornaram, fixando-se em antigas aldeias até finais do século XVIII. Em função dos novos colonizadores europeus, provalmente movimentaram-se pelo território do Vale, mantendo possivelmente contatos com imigrantes. Esses fatos geraram as questões de pesquisa que foram fundamentais para nortear o estudo: (1) onde e quando se deu a significativa ocupação Guarani e quais os fatores que contribuíram para isso? (2) Quando, como e por que ocorreu a redução da presença das sociedades Guarani no Vale do Taquari? (3) Se ocorreu a reocupação do Vale pelos Guarani, onde, quando, como e quais os fatores que contribuíram para tal acontecimento? (4) Quais os fatores que interferiram no abandono de áreas colonizadas no Vale pelos Guarani? 30 O objetivo geral deste estudo é interpretar os fatores que interferiram nos processos de territorialização e desterritorialização dos Guarani no Vale do Taquari, pré e pós-contato, passando por quatro fases: (1) a significativa ocupação, (2) a redução, (3) reocupação e (4) a ausência de aldeias dessa sociedade no referido território. Para se alcançar o objetivo geral proposto, é preciso desenvolver os objetivos específicos, a saber: revisar os conceitos, bibliografias e documentos disponíveis sobre os sítios arqueológicos Guarani; verificar a atuação dos diversos atores, pré e pós-contato, envolvidos na colonização do Rio Grande do Sul e aspectos fisiográficos do Vale do Taquari; realizar novo levantamento de sítios arqueológicos na região; aprimorar o conhecimento a respeito da colonização Guarani pré-colonial, obtido em 2008 com a realização da pesquisa “O contexto ambiental e as primeiras ocupações humanas no Vale do Taquari, Rio Grande do Sul”; efetivar saídas de campo para coletar amostras de carvão para datação pelo método C14; analisar documentos e os resultados obtidos das datações; inferir a respeito processos de territorialização e desterritorialização das sociedades Guarani no Vale do Taquari. E para responder as questões e alcançar os objetivos propostos, optou-se pela metodologia qualitativa-descritiva (GIL, 2008), e os instrumentos metodológicas foram pesquisa bibliográfica (STUMPF, 2006; LIMA; MIOTO, 2007), de internet (YAMAOKA, 2006), documental (BLOCH, 1997; MOREIRA, 2006) e atividades de campo (ARAUJO, 2001). No que diz respeito à relevância desta pesquisa, considera-se a afirmação de Wichers (2010, p. 03) “No Brasil, a Arqueologia ainda é pouco conhecida pela maioria da população” e, mais ainda, em relação aos estudos arqueológicos e históricos regionais. Araujo (2001, p. 7) corrobora com essa ideia, A Arqueologia brasileira permanece carente de estudos regionais sistemáticos para que se torne um corpo sólido de conhecimentos. A acumulação de dados na disciplina ainda se faz de maneira assistemática, grandes áreas permanecem desconhecidas do ponto de vista arqueológico, e até mesmo a simples sequência cronológica de acontecimentos, que constitui a base para se construir hipóteses e aplicar teorias, ainda é falha. 31 A necessidade de produção de conhecimento na área se revela em afirmações como a de Silva (2014, p. 12)5 que, equivocadamente, acredita que o atual contexto da região, foco da tese, é resultado de apenas da colonização de uma etnia/sociedade: “A cidade que a família escolheu para viver tem passado germânico, o que contrasta com sua origem de Passo Fundo, município povoado por indígenas em seus primórdios”. Esta afirmação reflete o imaginário coletivo de uma sociedade que não possui conhecimento dos fatos que originaram a formação da região sócio/política/econômica. É papel da Arqueologia demonstrar como as populações pretéritas viviam e, para Robrahn-González (2006, p. 172), tanto a Arqueologia quanto a História podem oferecer a educação da cidadania. Para a autora Hoje necessitamos compreender a história do mundo e de pessoas de diferentes culturas e contextos que desenvolveram ideias, instituições e formas de vida diferentes da nossa. Precisamos aprender a viver em um mundo multicultural, e a Arqueologia pode proporcionar ferramentas que auxiliem a viver numa sociedade crescentemente complexa. O conhecimento de diferentes formas de vida, experiências e perspectivas da humanidade no passado ensina sobre outras culturas e outros tempos, permitindo melhor compreender a diversidade, expandindo nossa visão de mundo, e contribuindo em criar cidadãos mais tolerantes, especialmente com grupos excluídos ou minorias étnicas. Considerando o senso comum, o imaginário coletivo, percebe-se que a estrutura do pensamento historiográfico regional está calcado na perspectiva do progresso personalizado na figura do imigrante europeu, em especial do século XIX. Com isso, constata-se que existem muitas lacunas ainda para serem preenchidas em relação à colonização de indígenas Guarani no espaço que passou a ser tratado como Vale do Taquari. É necessário trazer à tona uma cultura, a Guarani, que habitou o território por pelo menos seis séculos, e que deixou para a população atual um legado, na alimentação, no uso de determinadas ervas como medicamento, entre outros, o que justifica a realização desta pesquisa, dessa forma cumprindo com o papel da Arqueologia, da História, bem como do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento6. 5 Extraído de reportagem publicada no O Informativo (2014, p. 12), de Lajeado/RS. Entre os assuntos abordados na matéria está a escolha de uma família, oriunda da cidade de Passo Fundo, pela cidade de Colinas/RS para morar. 6 A presente tese está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento do Centro Universitário Univates - PPGAD, inserida na Linha de Pesquisa, Espaço e Problemas Socioambientais, a qual “Estuda interações entre sociedade e natureza, ocupações humanas, implicações entre desenvolvimento, organizações produtivas e sociais, políticas públicas, saúde e ambiente. Sustentabilidade e práticas culturais. Cidadania, comunicação e educação ambiental” (PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO, 2015). 32 É importante salientar que a construção do conhecimento é um processo que contempla o que já existe, em termos de teoria e conceitos, e a observação de dados, indícios e práticas. Portanto, neste estudo apresenta-se o conhecimento já existente na área definida, sem interferências, e, posteriormente, apresenta-se os novos dados vinculando-os às teorias e aos conceitos revisados, o que permite inferir sobre o assunto e construir um novo conhecimento. É importante também enfatizar que o estudo focou na obtenção dos dados relevantes para a pesquisa, procurando ignorar aspectos subjetivos, muitas vezes impostos como verdades por muitos autores, encontrados nos diversos documentos e bibliografias. Considerando o exposto, a presente pesquisa está dividida em onze capítulos. Capítulos de um a seis abordam, além da Introdução e do referencial teórico, o cenário da colonização pré-colonial Guarani, espacial e temporal, no território Vale do Taquari. Os capítulos sete a onze englobam os movimentos Guarani no período pós-contato, bem como a participação dos outros atores que tiveram influência nos deslocamentos, além das Considerações Finais. No Capítulo 1, “Introdução”, são elencados os aspectos pertinentes ao de um trabalho científico no qual são delineados os problemas, as hipóteses, os objetivos e a metodologia sobre o estudo proposto. No Capítulo 2, encontra-se o referencial teórico da pesquisa, constituído de temas e conceitos que dão sustentação ao estudo. No terceiro Capítulo, “Um povo colonizador: o Guarani”, faz-se uma exposição sobre os fatores que levaram as sociedades Guarani, grupos oriundos da região amazônica, aos contínuos deslocamentos, além de apresentar uma descrição desses grupos. No Capítulo 4, “Paisagem e a Arqueologia no Vale do Taquari”, são descritos as características ambientais do local da pesquisa, assim como a apropriação pelos Guarani dos recursos naturais disponíveis. Ainda é feito um relato sobre a história da Arqueologia no Vale, descrevendo os sítios prospectados e registrados, tanto de horticultores quanto de caçadores coletores. O Capítulo seguinte, o quinto, aborda os deslocamentos pré-coloniais das sociedades Guarani no Rio Grande do Sul e no Vale do Taquari, bem como as datações, o período temporal dessas populações a partir da análise de datas obtidas pelo método C14. 33 No sexto Capítulo, intitulado “Os deslocamentos Guarani pré-contato e os espaços colonizados no Vale do Taquari”, são abordados os possíveis movimentos que esses grupos empreenderam, além de apontar os espaços colonizados e as áreas que suportariam aldeias Guarani. O Capítulo 7 trata da chegada dos espanhóis e portugueses ao sul do Brasil. Os primeiros viajantes que circularam pela Banda do Uruguai, como era chamado o Rio Grande do Sul pelos espanhóis no século XVI. No mesmo capítulo são abordadas as questões pertinentes à disputa do território do Estado do Rio Grande do Sul entre as coroas espanhola e portuguesa. No Capítulo 8, “Os Guarani e jesuítas espanhóis”, é descrita a atuação dos religiosos da Companhia de Jesus no Rio Grande do Sul, a fundação das reduções, assim como os objetivos dos mesmos em relação aos indígenas Guarani no espaço Vale do Taquari. O Capítulo 9 aborda a atuação dos bandeirantes paulistas. As principais bandeiras que dizimaram aldeias e interromperam as intenções dos jesuítas, tanto no território do Vale do Taquari como no Rio Grande do Sul. O Capítulo 10, “Disputando o território: os Guarani e os imigrantes europeus e seus descendentes”, trata da chegada dos imigrantes ao Vale, vindos da Europa. São abordados os movimentos dos Guarani depois do contato com o colonizador europeu. Além da discussão sobre as datações C14 obtidas a partir de fragmentos de carvão de sítios arqueológicos Guarani situados no espaço Vale do Taquari. Para finalizar a tese, nas Considerações Finais faz-se inferências sobre a colonização Guarani, antes e depois da chegada do europeu e a relação com o ambiente, cumprindo assim com os objetivos propostos para este estudo. 34 2 A REVISÃO DE CONCEITOS PARA COMPREENSÃO DA COLONIZAÇÃO GUARANI A Arqueologia, ciência social, procura entender o que aconteceu a um grupo humano no passado e fazer generalizações sobre o processo de mudança cultural. Entretanto, ao contrário de geógrafos, sociólogos, entre outros, para o arqueólogo há uma limitação, pois não pode observar o comportamento da sociedade que estuda. Há certa semelhança entre arqueólogo e historiador, pois este, muitas vezes, não tem acesso direto ao pensamento das populações, registrados em textos escritos. Assim, segundo Trigger (2004, p. 19), “A Arqueologia infere comportamento humano, e também ideias, a partir de materiais remanescentes do que pessoas fizeram e usaram, e do impacto físico de sua presença no meio ambiente”. E, a interpretação dos dados arqueológicos “[...] depende da compreensão de como os seres humano se comportam no presente e, em particular, de como esse comportamento se reflete na cultura material”. Nesse sentido, para o entendimento sobre os processos de ocupação e colonização dos territórios pelos Guarani, é necessário revisar os conceitos vinculados ao tema. Na visão holística de Arqueologia e Ambiente, pode-se verificar que muitos termos concorrem para a elucidação do passado, como: Arqueologia da Paisagem, Ecologia da Paisagem, Geoarqueologia, Território e Territorialidade, Migração e Expansão, Contato Cultural e Etno- História. Alguns deles podem repetir informações, entretanto, considera-se que o somatório dessas pontuações se complementa, formando um quadro que visa esclarecer o passado das populações Guarani que colonizaram o Vale do Taquari. 35 2.1 Arqueologia da Paisagem A paisagem passou a ser incorporada à Arqueologia como objeto de análise, assim como os artefatos cerâmicos. Essas análises permitem inferir, elaborar reflexões de como a paisagem atua na configuração das sociedades, imprimindo valores, normatizando e influenciando comportamentos (BEZERRA DE MENESES, 1983; SOUSA, 2005). A paisagem pode ser definida como um cenário físico tal e como é conhecido pelos que habitam, vivem e se movem nela. Em outras palavras, é a percepção cultural, antrópica do meio natural. As paisagens são, portanto, um agregado de traços naturais, seminaturais e artificiais que dão caráter e diversidade na superfície terrestre e formam parte do suporte físico para o desenvolvimento das sociedades humanas. Os seres humanos não apenas habitam o meio como também criam seu próprio meio e, por consequência, constroem sua própria paisagem sociocultural. E o estudo desta construção da paisagem é, para Franch (1998, p. 79), o objetivo da Arqueologia da Paisagem: Ésta tiene dos objetivos principales y complementarios: por un lado la reconstrucción de los paisagens sociales de épocas prehistóricas o históricas concretas, y por otro, el estudio de procesos de cambio y continuidad que han llevado a los paisajes actuales. En definitiva, un nivel de análisis sincrónico y otro diacrónico. A Arqueologia da Paisagem se constitui em uma linha de investigação arqueológica que cobre os estudos de todos os processos sociais e históricos em sua dimensão espacial: os padrões de assentamento, o uso da terra, a reconstrução paleoambiental e o impacto da atividade humana sobre o meio (FRANCH, 1998). Para Mateus (1996, p. 01) a Arqueologia da Paisagem [...] procura lançar directamente do presente para o passado um inquérito sistematizado (e calibrado na continuidade) de produção de séries temporais de imagens, assegurando a explicação da diacronia pela própria exploração da “materialização” do tempo na continuidade da matriz ecológica da evolução, e da matriz sedimentar da fossilização. A Arqueologia da Paisagem é uma linha de pesquisa que possibilita reconstituir o modo de como as populações pretéritas organizavam seu espaço, sem interferir muito nos 36 registros arqueológicos deixados por estes grupos. Segundo Morais (2007, p. 103), a Arqueologia da Paisagem, Enquanto subcampo, ela estuda o processo de artificialização do meio, na perspectiva dos sistemas regionais de povoamento. Seu tema central é a reconstrução dos cenários das ocupações humanas, com foco na dispersão das populações pelo ecúmeno, episódio que gerou paisagens específicas. Boado (1999) considera a Arqueologia da Paisagem uma ferramenta importante para a pesquisa arqueológica, pois ela propicia ao pesquisador alcançar níveis inatingíveis pela Arqueologia tradicional. Para o autor, a paisagem, enquanto produto social, é formada pelo encontro de três tipos de elementos: o entorno físico ou matriz meio ambiental, o entorno social ou meio construído e o entorno pensado ou meio simbólico, configurando cada um deles uma determinada dimensão da paisagem. Para além de ser uma ferramenta, ela é uma estratégia de investigação arqueológica que compreende o estudo de todos os processos sociais e históricos em sua dimensão espacial, ou melhor, que pretende reconstruir e interpretar as paisagens arqueológicas a partir dos objetos. Para Villaescusa (2006), a Arqueologia da Paisagem pode ser situada em uma junção de correntes, da Arqueologia com as ciências ecológicas e paleoambientais, caracterizando-se por certa heterogeneidade interna no que confere aos problemas e perspectivas escolhidos. A mesma se ocupa da reconstrução ou recriação das paisagens, da natureza, em sua evolução a partir da presença do ser humano sobre a terra. Deve ser concebida como uma ferramenta para a compreensão das populações pretéritas por meio da análise paisagística e ambiental, e não como a investigação dos espaços em si. Segundo Honorato (2009), a Arqueologia da Paisagem é uma metodologia de pesquisa que considera todo o contexto ambiental no qual um sítio arqueológico está inserido, não apenas a cultura material, utilizando geoindicadores7 arqueológicos, os quais fornecem inúmeras informações a respeito de ocupações pré-históricas. 7 Conforme Honorato (2009, p. 131), “Geoindicadores são dados do meio físico e biótico que possuem relevância para os sistemas regionais de povoamento e indicam locais de assentamentos antigos. Esses indicadores estão presentes na paisagem e são analisados como complementos fundamentais para o entendimento dos artefatos encontrados em sítios arqueológicos”. 37 Para Segura (2007, p. 51), a Arqueologia da Paisagem “[...] propone es aproximarse a la realidade espacial de las poblaciones del pasado desde variables y presupuestos diferentes, incorporando a la definición de paisaje un sentido mito más holístico y relacional”. Fagundes e Piuzana (2010, p. 210) discorrem sobra a importância da Arqueologia da Paisagem, Faz-se imprescindível o uso de diferentes técnicas, métodos e postulado teórico que, interligados, permitem a compreensão de como as coisas vieram a ser com são, na busca pela observação sistêmica dos fenômenos para a reconstrução da dinâmica interna de uma dada sociedade via registro arqueológico, sobretudo por meio de dados coligidos à inferência sobre o contexto sistêmico em pré-história, justificando, portanto, a importância assumida pela Arqueologia da Paisagem para os estudos contemporâneos, nos quais artefatos ou sítios isolados não são capazes de elucidar com coerência esses fins. Para Wolf (2012), as abordagens da Arqueologia da Paisagem devem ser adequadas ao ambiente da pesquisa, cujo objetivo é a compreensão e no auxílio para a construção de um panorama da ocupação, bem como, deslocamentos pré-coloniais na região do Vale do Taquari. 2.2 Ecologia da Paisagem A Arqueologia da Paisagem como disciplina utilizada para investigação arqueológica foi inspirada na Ecologia da Paisagem (WOLF, 2012). A Ecologia da Paisagem surge na Europa em meados do século XX. A mesma, apontada, segundo Nucci (2007), “Como uma esperança de estudos que pudessem considerar o ser humano, a sociedade e o meio físico como um conjunto [...]”. Ou seja, inclui o homem, com o seu ambiente, formando um todo (METZGER, 2001). O termo Ecologia da Paisagem, como uma disciplina científica, foi empregado pelo biogeógrafo Troll em 1939, ao estudar questões relacionadas ao uso da terra por meio de fotografias aéreas e interpretação das paisagens (METZGER, 2001; NUCCI, 2007). Conforme Martins et al. (2004, p. 22), a Ecologia da Paisagem “[...] é uma disciplina desenvolvida com o objetivo de reunir as diversas ciências que estudam a paisagem para maior compreensão dos aspectos ecológicos, além dos limites dos ecossistemas”. 38 A Ecologia da Paisagem fornece bases conceituais e analíticas para o estudo e a gestão da biodiversidade em diversas escalas, assim ganha relevância para a compreensão dos padrões e das dinâmicas da diversidade biológica. Assume um lugar de destaque no contexto das ciências que tratam do planejamento, gestão territorial e conservação da natureza (HONRADO et al., 2012). A definição de Ecologia da Paisagem pode variar em função da abordagem, geográfica ou ecológica, bem como de autores. Entre as definições, Metzger (2001, p. 3) destaca, A ecologia de paisagens é entendida como: o estudo da estrutura, função e dinâmica de áreas heterogêneas compostas por ecossistemas interativos; a investigação da estrutura e funcionamento de ecossistemas na escala da paisagem; uma área de conhecimento que dá ênfase às escalas espaciais amplas e aos efeitos ecológicos do padrão de distribuição espacial dos ecossistemas; uma forma de considerar a heterogeneidade ambiental em termos espacialmente explícitos; uma área de conhecimento que considera o desenvolvimento e a dinâmica da heterogeneidade espacial, as interações e trocas espaciais e temporais através de paisagens heterogêneas, as influências da heterogeneidade espacial nos processos bióticos e abióticos e o manejo da heterogeneidade espacial; uma ciência interdisciplinar que lida com as interações entre a sociedade humana e seu espaço de vida, natural e construído. Para Metzger (2001, p. 3), “Essas definições mostram uma nítida bifurcação no foco principal de interesse do ecólogo da paisagem”. Sob um ponto de vista, linha seguida pela abordagem geográfica, “[...] há uma ecologia humana de paisagens, centrada nas interações do homem com seu ambiente, onde a paisagem é vista como o fruto da interação da sociedade com a natureza”. Na abordagem ecológica, “[...] há uma ecologia espacial de paisagens, particularmente preocupada na compreensão das conseqüências do padrão espacial nos processos ecológicos”. Duas diferentes dimensões ou atributos da paisagem podem ser quantificados, a composição (o quê e quanto está presente), e a configuração (que se refere à disposição espacial dos diferentes elementos na Paisagem). Conforme Honrado et al. (2012, p.37), Apesar de estas duas dimensões estarem mais intimamente relacionadas com aspectos estruturais e com a representação da paisagem através de mapas categóricos de uso/ocupação do solo, outras alternativas existem que tentam capturar aspectos funcionais da paisagem (em alguns casos) na relação com organismos, comunidades ou processos ecológicos específicos. 39 Assim, poderia ser definida como uma combinação de análise espacial da geografia com um estudo funcional da ecologia. “A ecologia de paisagens pode ser assim entendida como uma ecologia de interações espaciais entre as unidades da paisagem” (METZGER, 2001, p.5). 2.3 Geoarqueologia Na Europa, ainda no século XIX, os caminhos da Arqueologia e da Geologia foram-se aproximando. Isso pelo fato de que o objeto de estudo das ciências se entrecruzavam, ou seja, os vestígios materiais de antigas sociedades (Arqueologia) estavam em sua maior parte enterrados (Geologia). Essa conexão foi estimulada pela necessidade de ratificar a antiguidade do homem e esclarecer a evolução da humanidade, bem como, da sua cultura material (ZAMBUJO, 2010). O termo Geoarqueologia foi utilizado pela primeira vez em 1973 por Karl Butzer (GLADFELTER, 1981). E, para Bitencourt (2008, p. 43), o termo tem sido aplicado “[...] para designar variados tipos de pesquisas com utilização de técnicas das geociências na avaliação do registro arqueológico”. Renfrew (1976, p. 15) afirma que a Geoarqueologia é a disciplina que […] employs the skills of the geological scientists, using his concern for soils, sediments, and landforms to focus these upon the archaeological site, and to investigate the circumstances wich governed its location, its formation as a deposit and its subsequent preservation and life history. This new discipline is primarly concerned with the context in wich archaeological remains are found. Para Butzer (2006, p. 63), “La geoarqueología es una investigación arqueológica que utiliza los métodos y conceptos de las ciências de la Tierra”. Geoarqueologia não é sinônimo de geologia arqueológica e não está necessariamente vinculada à Geologia. Para o autor (2006, p. 63), as metodologias das ciências da terra (geociências) aportam informações empíricas e enfoques conceituais fundamentais para a compreensão do contexto pré-histórico. Cada uma das ciências da terra contém informações, subcampos e enfoques mistos relevantes para a arqueologia em graus distintos, portanto, o geoarqueólogo deverá ser capaz de valorizar estas diversas fontes de dados empíricos com o objetivo de aplicar estas informações à 40 construção de um modelo integrado de sistema geo-meioambiental, o qual “[...] podrá conectarse a la información relativa a los biotos, a la demografia y a la cultura material para crear un modelo de assientamientos y de subsistência prehistóricos de un orden superior” (BUTZER, 2006, p. 63). Fica evidente que, independentemente dos modelos teóricos, o objetivo da Geoarqueologia é de obter interpretações arqueológicas válidas e devidamente fundamentadas para explicar as interações existentes entre fatores naturais e culturais que afetam um sítio arqueológico recorrendo a conceitos e técnicas de várias disciplinas, em que as Ciências da Terra assumem um papel preponderante (ZAMBUJO, 2010). Goldberg e Macphail (2006, p. 86) enfatizam a importância da Geoarqueologia afirmando, “[…] geoarchaeology provides the ultimate context for all aspects of archaeology from understanding the position of a site in a landscape setting to a comprehension of the context of individual finds and features.” Conforme Angelucci (2003, p. 36), Na sua acepção original, Geoarqueologia indica assim uma ciência inter e multidisciplinar que emprega aproximações teóricas, vocabulários e instrumentos metodológicos variados, provenientes quer das Ciências da Terra, quer da Arqueologia, e cuja finalidade última é a compreensão das inter-relações existentes entre os grupos humanos do passado e o ambiente à sua volta. A Geoarqueologia está engajada no estudo de antigas áreas de ocupação humana. Compõe um campo de estudo na pesquisa arqueológica, pois age na interação entre os aspectos geomorfológicos, geológicos, pedológicos e paleoecológicos que envolvem o sítio e a cultura material (BITENCOURT, 2008; COLTRINARI, 2008). A inter-relação entre o homem e o ambiente possibilita desenvolver teorias referentes ao padrão de assentamento pré- histórico intra e entre sítios (KERN; COSTA; RUIVO, 2008). Tais assentamentos, com suas divisões e contornos determinados nem sempre ocorrem naturalmente, é o que chamamos de território/territorialidade. 2.4 Território e territorialidade 41 Toda e qualquer sociedade, de acordo com a sua perspectiva de mundo, produz a sua concepção de tempo e de espaço, capaz de orientar as práticas e relações sociais e simbólicas com a natureza e entre si (TOMMASINO, 2000). Com contornos e limites, o território é uma construção histórica. Conforme Bueno (2004, p. 229), o território não tem nada de espontâneo, “Para além das fronteiras naturais, a fronteira política é sempre uma linha abstrata e convencionada por alguns”. Da mesma forma como os animais se apropriam da natureza definindo territórios, os homens apropriam-se do espaço, percorrendo-o, conhecendo-o, nomeando-o e mapeando-o. O território é uma ação de poder, exercida por um ou mais grupos (alianças), a partir de ações organizadas, contínuas e muitas vezes repressoras. O território só existe se as ações de poder são capazes de delimitar e controlar os acessos dentro da área de abrangência delimitada (SACK, 1986; ESPÍNDOLA, 2012). É o espaço, do qual um indivíduo toma posse, definido e delimitado por e a partir de relações de poder, em suas múltiplas dimensões. Assim, o território é produto da intervenção e do trabalho de um ou mais atores sobre determinado espaço. Não se reduz apenas a dimensão material, mas o território é também está diretamente relacionado às relações sociais dos grupos humanos no ambiente físico (SANTOS, 1978; ALBAGLI, 2004; SAQUET, 2013). A materialidade do território manifestam-se nas relações intersubjetivas derivadas, “[...] em última instância, da necessidade de produzir e de viver, ligando os sujeitos humanos à materialidade do ambiente, provocando interações entre si, como membros de uma sociedade” (SAQUET, 2013, p. 08). Assim, segundo Saquet (2013, p. 24), o território corresponde a um processo de complexidade, pois O território significa natureza e sociedade; economia, política e cultura; ideia e matéria, identidades e representações; apropriação, dominação e controle; des- continuidades; conexões e redes; domínio e subordinação; degradação e proteção ambiental; terra, formas espaciais e relações de poder; diversidade e unidade. Isso significa a existência de interações no e do processo de territorialização, que envolvem e são envolvidas por processos sociais semelhantes e diferentes, nos mesmos ou em distintos momentos e lugares, centradas na conjugação, paradoxal, de des-continuidades, de desigualdades, diferenças e traços comuns. Cada combinação específica de cada relação espaço-tempo é produto, acompanha e condiciona os fenômenos e processos territoriais. Segundo Rogge (2004, p. 49), o território deve ser 42 [...] entendido como o reflexo, em um dado espaço físico, de uma estratégia territorial e sua delimitação irá depender da distribuição de recursos críticos, a partir da sua abundância e densidade e do seu grau de previsibilidade (no espaço e no tempo). Estes fatores indicarão a tendência de uma sociedade humana ao uso de uma determinada estratégia territorial. Para muitas culturas o território pode ser visto como um “arquipélago”, lugares denominados e apropriados geograficamente, dispersos e assentados em espaços de contornos indistintos que são limitados não por linhas, mas por pontos observáveis, rochedos, desníveis, rios, entre outros (HOLZER, 1997). Segundo Little (2002, p. 4), para se analisar o território de qualquer grupo, “[...] precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto específico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado”. Assim, o território é o resultado de processos sociais e políticos, um produto histórico, que surge a partir das condutas de territorialidade de um grupo social. A noção que se tem de propriedade privada é diferente que os povos indígenas têm sobre a ocupação espacial de um território, ou seja, a representação territorial não tem o mesmo sentido para os indígenas na perspectiva da dita sociedade moderna (ROSA; NÖTZOLD, 2014). Para compreender a concepção territorial das sociedades indígenas, é necessário, segundo Oliveira (2006), se depreender dos conceitos da sociedade ocidental sobre a terra. É necessário entender a concepção do território a partir da cultura dos povos indígenas. Para sociedades indígenas o território extrapola os marcos políticos. Para eles, o território compreende as áreas de exploração dos recursos naturais, os caminhos de circulação, os locais de moradias e os cemitérios, além dos espaços distinguidos pelas suas características históricas, simbólicas ou transcendentes, do lugar dos espíritos antepassados, dos mitos fundadores, entre outros (ROSA; NÖTZOLD, 2014). Segundo Seeger e Castro (1979, p. 4), Em termos econômico-jurídicos, a terra, para as sociedades indígenas que conhecemos, não se definia nunca como coisa, objeto alienável de transações individuais. A propriedade – se esta noção faz algum sentido no caso – era investida no grupo local e os direitos individuais ou familiares se exerciam sobre o trabalho na terra, sobre os frutos deste trabalho. Neste sentido, a terra não podia ser definida como espaço homogêneo e neutro, mas como mosaico de recursos (tipos de solo, de matérias e seres ali encontrados, etc.) desigualmente distribuídos por uma superfície 43 sem existência conceitual nítida. O território, enquanto tal, podia ou não ser pensado como espaço fechado – isto dependia sobretudo das relações entre os diferentes grupos tribais de uma mesma região, e também das formas econômicas prevalecentes. Para grupos pretéritos ocupar um território significa institucionalizá-lo, torná-lo parte da vida do grupo. A sua exploração implica em regras a serem seguidas não só por todos os membros do grupo, como pelos demais indivíduos de outros grupos que compartilham o espaço (LÉVI-STRAUSS, 1978). O território vai além do local onde são retirados os elementos para a subsistência e manutenção, é um espaço que possui dimensões sócio- político-cosmológicas mais amplas (SEEGER; CASTRO, 1979). Para Garlet e Assis (2009), o território de uma sociedade é formado por elementos que fazem parte da construção de sua identidade, bem como, da sua concepção de mundo. A noção de território é guiada pela delimitação de espaços, que se concretiza em uma esfera de jogo de poder, entre elementos de uma comunidade e seus membros, com a outorga desse poder de demarcar, e ser reconhecida uma territorialidade (BOURDIEU, 1989; AZEVEDO NETTO et al., 2007). Assim, territorialidade é a relação de poder na qual um indivíduo ou um grupo procura influenciar outras pessoas, fenômenos e relações por meio do controle e delimitação de uma determinada área. Em outras palavras, é a maneira que um grupo social ocupa, usa, controla e se identifica com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-o assim em seu território (SACK, 1986; LITTLE, 2002). Sendo assim, enquanto que o território expressa a apropriação e o controle político de um determinado espaço (CORRÊA, 2002), a territorialidade é o conjunto de práticas, sejam materiais ou simbólicas, que garantam a apropriação e o controle do território (SACK, 1986). A territorialidade é um processo social, na qual envolve uma gama de inter-relações mediadas por acordos entre distintos agentes que buscam algum tipo de objeto comum a eles, localizados em uma determinada área que se torna território (BRITO, 2005). É a manifestação dos movimentos das relações sociais responsáveis pela manutenção dos territórios, que produzem e reproduzem ações próprias ou apropriadas (FERNANDES, 2006). Para Maldi (1996, p. 186), a territorialidade se constitui como um fenômeno de comportamento atrelado à organização do espaço “[...] em esferas de influência ou em territórios nitidamente delimitados, que assumem características distintas e podem ser 44 considerados, pelo menos em parte, como exclusivos de quem os ocupa e de quem os define”. Portanto, a territorialidade não é um fenômeno estático, fixado e definitivo, mas sim algo mutável, exposto a múltiplas variações (MURA, 2006; PARMIGIANI, 2009). A territorialidade é conceituada pela multiplicidade de contextos histórico-sociais, nos quais se definem estratégias e os efeitos territoriais. Saquet (2013, p. 84) afirma que “A territorialidade como um componente do poder, não significa somente criação e manutenção da ordem, mas um esquema para criar e manter o contexto geográfico através do qual experimentamos o mundo e lhe damos significados”. Em povos tradicionais, entre eles as sociedades indígenas, os territórios se fundamentam em séculos de efetiva ocupação. A ligação entre as sociedades indígenas e o lugar que eles ocupavam tornava-se muito próximas, não somente devido à familiaridade e da dependência, mas também porque compreendiam os lugares orgânica e espiritualmente, de maneira conectada. Desperta um sentimento de apego ao local. “Os riachos, as montanhas e as fontes naturais são obras ancestrais de que ele mesmo, o homem primitivo, é descendente. O lugar é a sua vida. Limpar, plantar, capinar e colher são atividades estáveis no espaço e no tempo” (SAQUET, 2013, p. 84). Para esses grupos a expressão da territorialidade não está vinculada a leis ou títulos, mas permanece viva na memória coletiva, a qual incorpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área, o que dá profundidade e consistência temporal ao território (LITTLE, 2002). As sociedades Guarani, por exemplo, concebiam e concebem a territorialidade, não como um espaço fixo, estático ou delimitado, mas sim, como um espaço dinâmico, sujeito a múltiplas determinações e redefinições (PARMIGIANI, 2009). Segundo Rosa e Nötzold (2014, p. 11), Ousa-se afirmar aqui que o Guarani não possui o território, a terra, ele vive o território e tudo o que é possível se realizar neste espaço compreendido como tal e não dissocia da necessidade real e concreta de matar a fome, da crença em um lugar harmonioso de vida plena. Para os Guarani, estar e pertencer a um território é muito mais que ocupar um determinado e limitado espaço geográfico, físico, pois é também mítico, espiritual, o que fica difícil entender as demarcações, por exemplo. Nesse sentido entra a questão da territorialidade como compreensão de um sistema e não apenas do espaço em si. Aldeias Guarani poderiam estar dispersas territorialmente, afastadas por quilômetros, porém, estavam ligadas, pois mantinham relações de parentesco, unidade linguística e 45 cultural, tendo a religião como fator unificador. Assim, esses grupos consideravam e consideram, os espaços descontínuos de um território como parte de uma territorialidade (PARMIGIANI, 2009). Sendo o território o espaço no qual acontecem as relações sociais e socioambientais, o mesmo é marcado pelo poder e sentimento de pertencimento (SANTOS, 2006). Assim, as sociedades Guarani ao se deslocarem de uma aldeia para outra, seja para visitar parentes, constituir novas relações, entre outros, percebiam aquele espaço como de seu pertencimento, como o lugar ao qual eles pertenciam. “Nesse sentido, a mobilidade Guarani se transforma em um elemento revelador de sua territorialidade” (PARMIGIANI, 2009, p. 5). Segundo Ramos (1986, p. 19), para os indígenas o território grupal está ligado a uma história cultural, na qual “[...] cada sítio de aldeia está historicamente vinculado a seus habitantes, de modo que o passar do tempo não apaga o conhecimento dos movimentos do grupo, desde que se mantenha viva a memória dos ancestrais”, dessa forma, criando-se mitos, componentes fundamentais da cultura, da memória coletiva. Importante ressaltar que cada grupo constrói a memória coletiva a sua maneira a qual depende em parte da história de migrações que o grupo realizou no passado. A memória espacial pode não estar vinculado a um lugar primordial de origem do grupo, mas pode se alterar para atender novas necessidades e movimentos (LITTLE, 2002). A estreita ligação do Guarani com os mitos, demonstra o quanto é importante a terra e a territorialidade, pois trata- se de elementos fundamentais para essa cultura. “De acordo com os Guarani, a terra é um ser vivo que, assim como os demais, possui alma” (SCHALLENBERGER; SANTOS, 2014, p. 48). Segundo Garlet e Assis (2009, p. 16), “O território é o locus onde uma sociedade vive e se reproduz de acordo com seus preceitos culturais”. Associada ao território, o tema do movimento espacial está muito presente nas sociedades Guarani. 2.5 Migração e expansão Os deslocamentos das sociedades Guarani podem adquirir nuances diferentes no período pré, para o período pós-contato com o europeu. Os deslocamentos pré-contato poderiam ter um aspecto mais espontâneo, ou seja, regrado por situações culturais da etnia, 46 bem como por políticos e econômicos pertinentes ao próprio grupo. Já no período pós- contato, influências externas promovidas pelos europeus desencadearam outras movimentações. Faz parte da concepção humana a busca de um espaço necessário para viver, dominar instrumentos de produção, para gerar e satisfazer suas necessidades (SALADINI, 2011). Dessa forma, a migração, pode atender a esse anseio. Segundo Zamberlam (2004, p. 20), a migração “[...] é um movimento de pessoas, grupos ou povos de um lugar para outro com a finalidade de estabelecer-se ou de trabalhar naquele local”. A ideia de migrar pode envolver um alto nível de dificuldade em relação à tomada de decisão, acarreta consequências perenes, e não é desprovida de riscos (SALADINI, 2011). Pode significar em uma mudança na sua qualidade de vida, exclusão do seu habitat e o distanciamento da reinserção social, entre outros (ZAMBERLAM, 2004). Para Conte (2004), a migração não se constitui em apenas um deslocamento de pessoas pelo planeta, mas também de transformação na sociedade. Ocorrem por várias razões, podendo representar uma mudança radical, não só no aspecto físico, bem como, na vida dos indivíduos. As causas das migrações são múltiplas, econômicas, políticas ou sociais, mas normalmente podem ser divididas em dois grupos, as voluntárias e as involuntárias (GARLET; ASSIS, 2009; SALADINI, 2011). Um exemplo clássico de involuntária refere-se ao fluxo de escravos da África para América, pois se lhes fosse dado oportunidade de escolha, seria provável que permaneceriam no seu lugar de origem. Quanto às voluntárias, são as migrações de pessoas que buscam algo melhor para a sua vida (SALADINI, 2011). Normalmente é empreendida por um indivíduo, de forma racional, depois de ter avaliado o custo-benefício do movimento (LEE, 1980). Nesse caso, podem ser consideradas as imigrações alemãs e italianas para o Brasil entre os século XIX e XX. Eventos como conflitos armados, péssimas condições econômicas, lutas políticas, étnicas e religiosas, catástrofes naturais e a busca de realização pessoal influenciam a mobilidade humana (ZAMBERLAM, 2004). A migração, segundo Rogge (2004), é uma das principais fontes de mudanças culturais, pois, a partir da migração de um grupo, o mesmo leva consigo a sua cultura, material e imaterial, podendo influenciar outras populações, e, ao mesmo tempo, podendo assimilar a cultura dessas populações. Pode ser caracterizada como um comportamento, pois 47 geralmente, os grupos que o fazem, possuem objetivos específicos em relação ao local de destino e normalmente estão ligados por parentesco. Brochado (1989) considera que os deslocamentos humanos ocorridos na pré-história não foram exatamente migrações, pois as regiões de origem desses povos não ficaram vazias, mas continuaram crescendo demograficamente obrigando de tempos em tempos, a saída de novos indivíduos. Nesse sentido, Garlet e Assis (2009) afirmam que a migração de uma sociedade ou de um indivíduo é o processo que resulta na saída definitiva de um determinado espaço, região ou país. Conforme Noelli (1996), não se chegou a um acordo nem sequer no que diz respeito à denominação desses movimentos, classificados por muitos autores como migrações. Para o autor, o termo migração não seria o mais adequado, por ser normalmente empregado para nomear movimentos de saída de uma localidade para outra, abandonando a região de origem. Da mesma forma, Barbieri (2007) aponta que, nos estudos sobre mobilidade populacional, há carência de uma clara definição do termo migração. Quanto aos Guarani contemporâneos, normalmente os temas Deslocamentos e Terra sem Males são postos em uma relação de interdependência dos termos. Segundo Garlet e Assis (2009), as pesquisas que abordam, direta ou indiretamente, a questão dos deslocamentos espaciais dos Mbyá estão vinculadas à busca da Terra sem Males. Para os autores, as diferenças básicas fixam-se na ideia do que cada pesquisador entende pela expressão (migração). Conforme Garlet e Assis (2009, p. 16), algumas das formas dos movimentos dos Mbyá contemporâneos não se encaixam na categoria de migração, São os casos de visita, exploração sazonal do meio ambiente e de abandono do local em função de mortes, entre outros. Essa variabilidade de deslocamentos postula o uso de um conceito mais amplo que o de migração para que a análise não fique reduzida. Neste caso, considera-se que o uso do conceito de mobilidade contempla e engloba de forma satisfatória todas as modalidades de deslocamentos, inclusive a migração. As sociedades sempre tiveram suas formas de separar os estranhos (SPRANDEL, 2013). O imigrante é visto como o “outro” pelo nacional da terra, objeto de curiosidade, temor e, algumas situações de desprezo (SALADINI, 2011, p. 138). Nesse sentido, Saladini (2011, p. 134) afirma 48 Cada povo tem seus traços característicos – língua, costumes, culinária, religião, superstições, traços fenotípicos. A soma dessas características transmite às pessoas que não integram aquele povo uma ideia coletiva preconcebida. Os imigrantes, quando saem de seu local de origem e dirigem-se a uma nova terra, levam com eles esses traços característicos, e a simples presença desses caracteres, que os torna “diferentes” dos nativos, leva à criação de um estereótipo, de uma ideia preconcebida, e muitas vezes preconceituosa, porque não submetida à crítica, pelo povo receptor. Sprandel (2013, p. 24), mencionando a obra de Abner Cohen, Custom and politics in Urban Africa (1969), na qual o antropólogo faz uma reflexão sobre o ajuste de grupos étnicos a novas realidades sociais, diz que o referido pesquisador [...] chamou de retribalização o processo pelo qual indivíduos pertencentes a grupos tribais que se transferem para as cidades, enfatizam e exageram a sua identidade e exclusividade cultural, com objetivos políticos e econômicos. Para Cohen, dentro de um sistema político formal, como o Estado‑Nação, uma categoria étnica pode manipular costumes, valores, mitos, símbolos e cerimônias de sua tradição cultural no sentido de articular uma organização política informal. Dessa maneira, percebe-se que o processo de retribalização ocorreu na América, na medida em que o europeu impôs sua cultura, seus costumes. 2.6 Contato cultural Ao contrário da Antropologia, a Arqueologia, segundo Rogge (2004, p. 33), não deu a devida importância para os estudos sobre o contato cultural, Ao longo de quarenta anos de existência de uma Arqueologia acadêmica formal no Brasil, uma grande quantidade de dados arqueológicos foram acumulados, embora nem todos tenham recebido um tratamento analítico e interpretativo mais aprofundado. Entre esses dados, muitos se referem ou indicam evidências de contato entre os grupos portadores das culturas arqueológicas pré-históricas que foram definidas [...]. Para Rogge (2004), apesar de não terem sido realizadas pesquisas retratando a questão da interação sociocultural, não significa que essa área tenha sido ignorada. Em primeiro plano estava o conhecimento sobre as culturas, as quais deveriam ser vistas inicialmente como 49 entidades discretas. Os parcos estudos dedicaram-se mais à pesquisa sobre o contato entre o europeu e o indígena. A interação entre populações é um fenômeno que permeia as sociedades humanas desde os tempos mais remotos, talvez seja um dos eventos mais comuns no mundo. O convívio refletido por meio de experiências, troca de informações e até mesmo a cooperação, alianças de reciprocidade, ocorre e ocorreu nos mais diferentes sistemas socioculturais. O contato emerge das formas mais pacíficas, relações amistosas, às mais conflituosas, envoltas em incompreensão e violência, de formas mais ou menos equilibradas àquelas onde as relações foram totalmente diferenciadas (OLIVEIRA, 1976; ROGGE, 2004; DORNELLES, 2011). A ideia de isolamento cultural, de que em algum momento possa ter havido uma sociedade isolada é completamente refutada. Nesse sentido, todas as sociedades, em maior ou menor grau, já experimentaram contatos culturais. A interação entre sociedades pode ser averiguada por meio da Arqueologia, quando aspectos da cultura material são aceitos como plausíveis (ROGGE, 2004; OLIVEIRA, 2005). Conforme Machado (1999), quando há um contato entre grupos diferentes, uma sociedade se sobrepõe sobre a outra, não de forma igualitária, mas antagonicamente. Para Ribeiro (2000, p. 101), a situação de contato, [...] não deve ser tomada enquanto encontro de culturas desiguais, em que pese uma relação de superioridade/inferioridade, mas sim enquanto oposição de duas sociedades diferentes entre si, lutando cada qual em primeiro lugar, pela posse da terra e por conseguinte, pela imposição de sua visão de mundo sobre àquela com a qual está em confronto. Característica do contato se percebe, quase sempre, a criação de uma relação de dominação e de subordinação entre os grupos envolvidos. A cultura colonizadora impõe seus padrões culturais perante à colonizada. Desse contato emergem situações variadas, que em geral, provocam no interior das culturas colonizadas, desequilíbrio e tensão, exigindo um esforço de adaptação cultural (SALADINI, 2011). Para a população indígena, o avanço da nova sociedade, o “branco”, sobre seus territórios significou colocá-los diante de homens diferentes, ditos “civilizados”, bem como 50 significou em rearranjos espaciais de suas terras. Essas mudanças não representaram apenas em perdas do território, mas a vida de muitos indígenas (MARTINS, 1997; RIBEIRO, 2000). Exemplo disso, verificou-se no Brasil a partir da terceira década do século XVI. Assim que os portugueses chegaram à capitania de São Vicente, trataram logo de fazer contatos e alianças com os indígenas locais. Essas alianças, inicialmente beneficiaram ambos os lados, entretanto, com o passar dos tempos, os índios sentiram os efeitos nocivos de tais acordos, culminando com sérias rupturas na organização interna das sociedades indígenas. Segundo Monteiro (1994, p. 33), “Na Capitania de São Vicente, o portugueses buscaram aumentar a oferta de mão-de-obra indígena por meio da aliança com os Tupiniquim, transformando-a de uma relação de relativa igualdade para uma de subordinação”. As sociedades indígenas tinham um padrão cultural muito diferente das sociedades europeias. Por esse motivo, eram vistas de maneira negativa, um povo sem estado, sem escrita e sem história (CLASTRES, 2003). Diversificados discursos foram produzidos para descrever os indígenas, geralmente com a intenção de denegrir a sua imagem e ao mesmo tempo enaltecer os estrangeiros europeus e suas qualidades (DORNELLES, 2011). O indígena era visto como, “[...] animais sanguinolentos, totalmente arredios aos avanços dos brancos”, o que justificava ações mais violentas contra os nativos (MONTEIRO, 2001, p. 172). No século XIX, os imigrantes que chegaram ao Sul do Brasil viam os indígenas como indolentes e preguiçosos. Dessa forma, essa mentalidade propiciou ou emergiu um sentimento de superioridade dos imigrantes em relação aos índios (SELAU, 2010). Esse sentimento permitiu que em vários locais do Brasil, a aniquilação de grupos indígenas justificou o e