0 UNIVERSIDADE DO VALE DO TAQUARI - UNIVATES CURSO DE HISTÓRIA A MOVIMENTAÇÃO TROPEIRA NA ABERTURA E CONSOLIDAÇÃO DOS CAMINHOS MERIDIONAIS DO BRASIL Carlos Augusto Weizenmann Lajeado, julho de 2020 1 Carlos Augusto Weizenmann A MOVIMENTAÇÃO TROPEIRA NA ABERTURA E CONSOLIDAÇÃO DOS CAMINHOS MERIDIONAIS DO BRASIL Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Conclusão II – do Curso de História, Universidade do Vale do Taquari - Univates, como parte da exigência para obtenção do título de licenciado em História. Orientador: Prof. Me. Sérgio Nunes Lopes Lajeado, julho de 2020 2 Carlos Augusto Weizenmann A MOVIMENTAÇÃO TROPEIRA NA ABERTURA E CONSOLIDAÇÃO DOS CAMINHOS MERIDIONAIS DO BRASIL A Banca examinadora abaixo aprova a Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, da Universidade do Vale do Taquari - UNIVATES, como parte da exigência para a obtenção do grau de Licenciado em História: Prof. Me. Sérgio Nunes Lopes Universidade do Vale do Taquari – Univates Profa. Dra. Neli Teresinha Galarce Machado Universidade do Vale do Taquari - Univates Prof. Dr. Luís Fernando da Silva Laroque Universidade do Vale do Taquari - Univates Lajeado, 16 de julho de 2020 3 AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer a todos que fizeram parte deste trabalho ou que me aturaram em todo este tempo de produção e vida acadêmica. Agradeço imensamente ao meu orientador Sérgio que teve paciência e rigidez nos momentos certos, na tentativa de que o trabalho pudesse alcançar excelência. Aos meus companheiros de vida acadêmica, em especial à Fernanda e ao Willian, que são amigos e parceiros para a vida toda. Foram eles, que me incentivaram, me fizeram rir e, especialmente, me aconselharam. A Neli e ao Laroque que aceitaram com carinho a participação na banca, me deixando honrado em saber que professores renomados querem contribuir para minha formação. A Camila e o Artur, um casal que considero amigos de coração, que me fizeram sentir que a vida é bela e única e que tenho que curtir cada instante apaixonadamente. A todos meus amigos e aos contatinhos que surgiram no caminho para que eu não desistisse de realizar este trabalho. Por fin, quiero que mi carrera como maestro sea tan hermosa como mi experiencia de intercambio. Obrigado a todos! 4 “Um povo sem conhecimento, saliência de seu passado histórico, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”. Bob Marley 5 RESUMO A temática do tropeirismo até fins do século XX era pouco visada pela historiografia, e quando enunciada, aparecia como uma atividade subsidiária de uma economia principal da segunda metade do século XVIII, a da extração aurífera. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar a implicação do Tropeirismo dimensionando o seu protagonismo na abertura e consolidação dos caminhos meridionais. Trata-se de uma revisão bibliográfica de pesquisa qualitativa. Desta forma, as reflexões iniciais giram em torno de como o tropeirismo pode ser estudado e representado em uma perspectiva historiográfica e literária a partir de diferentes aportes teóricos, expondo aspectos econômicos, políticos, arqueológicos, sociais e culturais. Além disso, a literatura e a música são analisadas enfatizando a representação de uma perspectiva estética desses agentes sociais que permeiam o mito fundador do homem sulino. Em seguida, o movimento tropeiro é abordado dentro de uma análise socioeconômica a partir do conceito de Sistema Social para compreender como é realizada a movimentação na formação do território meridional. Portanto, o trabalho divide-se em duas partes: a da abertura e consolidação de caminhos e o surgimento de cidades como Cruz Alta/RS, Lages/SC e Castro/PR. Palavras-chave: Tropeirismo. Caminhos Meridionais. Sistema Social. 6 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Mapa da divisão territorial do trabalho do tropeirismo. .................. 41 Figura 2 – Mapa das rotas e localidades por onde passavam os tropeiros .... 42 Figura 3 – Mapa da região marcado por caminhos (2007) ............................. 46 Figura 4 – Monumento tropeiro na entrada da cidade de Castro - PR ........... 51 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8 2 REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO ...................................................... 12 2.1 Sistemas sociais: os sistemas-mundo ............................................................ 13 2.2 A vertebralização da História Econômica ....................................................... 15 2.3 Revisão bibliográfica ........................................................................................ 17 2.4 Pesquisa documental........................................................................................ 20 2.5 Pesquisa qualitativa .......................................................................................... 21 3 O TROPEIRISMO E OS REVEZES HISTORIOGRÁFICOS .................................. 24 3.1 O tropeirismo pelas lentes do materialismo histórico ................................... 24 3.2 O tropeirismo: para além das questões econômicas..................................... 26 3.3 Arqueologia das tropeadas .............................................................................. 29 3.4 O tropeirismo na literatura ............................................................................... 30 3.4.1 O tropeiro na poesia....................................................................................... 31 3.4.2 O tropeiro na música...................................................................................... 33 4 A ATIVIDADE TROPEIRA NA FORMAÇÃO TERRITORIAL MERIDIONAL: UMA ANÁLISE SOCIOECONÔMICA ................................................................................ 36 4.1 Interconectando caminhos: o sistema social de economia-mundo ............. 36 4.2 A abertura de estradas...................................................................................... 39 4.3 O surgimento de cidades .................................................................................. 44 4.3.1 Cruz Alta – Rio Grande do Sul ...................................................................... 46 4.3.2 Lages – Santa Catarina .................................................................................. 48 4.3.3 Castro – Paraná .............................................................................................. 49 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 52 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 54 8 1 INTRODUÇÃO Indiscutivelmente, a historiografia procura retomar no século XXI a temática do tropeirismo em busca de uma melhor reconstituição da formação do território meridional tendo em conta a disputa entre Espanha e Portugal. Tratar a História dessa maneira pode ser realmente atraente, todavia, analisar de forma simplificada a movimentação tropeira limita a compreensão do que realmente foi este movimento como um todo. Este trabalho procura explorar o Tropeirismo dimensionando o seu protagonismo tanto na história do Rio Grande do Sul, como na história do Brasil Meridional. A dinâmica das movimentações antrópicas pelos espaços é imanente à existência da espécie. As motivações para tais deslocamentos variam e adquirem significados específicos em cada conjuntura. No contexto estudado os tropeiros compõem o grupo social a desempenhar um papel socioeconômico articulado com contextos mais amplos. A partir da revisão bibliográfica empreendida nessa produção tenta-se inferir: qual é a implicação da atividade comercial tropeira na consolidação dos caminhos que interconectam o Brasil meridional? As tropeadas surgem como um movimento propulsor em meio à estagnação da atividade aurífera. Desta forma, grande parte da historiografia argumenta que a movimentação tropeira interessava somente pela movimentação do transporte do ouro ao litoral. Assim, ignorou-se a importância socioeconômica e cultural, seja na abertura de estradas, que atualmente, são rodovias de importantes acessos ou no fomento à um comércio interior através das invernadas, que eram acampamentos que deram origem a freguesias, que hoje, são grandes cidades do Brasil Meridional. 9 A necessidade de analisar os aspectos sociais, econômicos e culturais para compreender a amplitude da movimentação tropeira e sua importância na formação territorial brasileira faz com que seja imprescindível questionar: qual é a importância das tropeadas na conexão entre regiões economicamente relevantes? Há relação da atividade tropeira com o surgimento de povoados nas margens dos caminhos? A partir da análise das produções de autores como Barroso (2006) e Neumann (2004) é possível constatar que há um discurso marginal por parte da ciência histórica frente aos aspectos sociais e culturais da movimentação tropeira. Sendo assim perceptível que a principal narrativa constituída do discurso historiográfico não partia da análise do movimento tropeiro como central, mas sim, das atividades econômicas principais para a legitimação do processo de colonização da América Portuguesa. Pesquisas desenvolvidas por estudiosos como: Frasson e Gomes (2010), Barroso (2006), Hameister (2002), Thomé (2012), Gil (2009) e Zimmermann (1991) possibilitam entender que há uma grande movimentação de compra e venda de cabeças de gado nos centros urbanos que estavam em formação, como São Paulo e Minas Gerais. Essa movimentação fora fator importantíssimo nas relações sociais, políticas e econômicas das regiões abrangidas. A partir dessas atividades tropeiras, há o surgimento de caminhos como o das Tropas, de Viamão, Palmas, etc. No percorrer dos caminhos, com o estabelecimento de pousadas, há o surgimento de pequenos acampamentos que originam grandes cidades. Neste trabalho, é desenvolvida uma análise socioeconômica e cultural de pesquisa bibliográfica, a fim de compreender a movimentação tropeira e suas influências na formação do território brasileiro meridional. Assim, a pesquisa terá como procedimento metodológico uma abordagem qualitativa partindo de uma centralidade da movimentação tropeira, permitindo identificar e mensurar a relação do movimento na abertura e consolidação dos caminhos. Desta forma, o objetivo geral deste trabalho se configura no estudo da implicação tropeira na consolidação dos caminhos que interconectam o Brasil Meridional, tendo como objetivos específicos: 10 − Pesquisar, a partir de uma revisão bibliográfica, o tratamento dispensado pela ciência histórica à atividade tropeira no Brasil Meridional; − Investigar a relevância socioeconômica da atividade tropeira na estruturação territorial do Brasil Meridional; − Discutir as influências das tropeadas na formação de cidades meridionais da América Portuguesa; − Identificar a relação entre as tropeadas e a abertura de novos caminhos, bem como na consolidação dos já existentes. Para tentar cumprir os itinerários acima referido o trabalho foi dividido em três capítulos. O primeiro capítulo apresenta o referencial teórico-metodológico da pesquisa, aplicando os conceitos de história econômica, pesquisa documental, revisão bibliográfica, pesquisa qualitativa e, especialmente, o conceito de Sistema Social a partir de Parsons (1966) que compreende a configuração dos espaços a partir de ações individuais de diferentes atores. A contemplação da teoria dos sistemas sociais a partir de sua proposição clássica tem como premissa tomá-la livre das contaminações que as evocações a posteriori trouxeram para o seu entorno. Assim, é introduzida a temática do tropeirismo e seus revezes nos caminhos percorridos também da perspectiva da construção da narrativa. O segundo capítulo retrata a temática do tropeirismo na perspectiva historiográfica a partir de diferentes aportes teóricos, o primeiro, de olhar materialista, o segundo em um panorama além das questões econômicas, o terceiro, a percepção arqueológica da movimentação e por último a literária, apresentando uma perspectiva estética, sendo dividida em duas partes: a música e a poesia. No terceiro e último capítulo, o movimento tropeiro é apresentado a partir de uma análise socioeconômica. Neste capítulo, o conceito de sistema social é aplicado, desenvolvendo a ideia de que a atividade tropeira vai além das questões econômicas operadas nos espaços, exaltando as influências socioculturais. A partir disso, prioriza-se a movimentação tropeira na abertura e consolidação de caminhos, exemplificando a partir de três povoados que se tornam grandes cidades, sendo 11 elas: Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, Lages, em Santa Catarina e por último, Castro, no Paraná. 12 2 REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO Apesar de habitar o imaginário e indicando parte do mito fundador do homem sulino é possível salientar que a temática do Tropeirismo tem sido pouco visada pela historiografia, constituindo-se em objeto de estudo muito recente. Pesquisas acadêmicas no âmbito da Arqueologia e da História sobre fins do século XX reiteram a prática tropeira como um movimento subsidiário do processo econômico principal, o da extração aurífera. Segundo Neumann (2004, p. 25) “A historiografia brasileira e particularmente a sul-rio-grandense, no século XX quase sempre procurou legitimar a expansão luso-brasileira em terras meridionais”. Assim, é possível compreender que os autores procuravam dar ênfase a procedimentos legitimadores, sendo que os fatores econômicos e políticos constituíram-se como os mais importantes. As atividades que não eram consideradas prioritárias na sustentação do paradigma da lusitanidade no Brasil Meridional foram ponderadas como subjacentes. Assim, este estudo procura tratar o Tropeirismo enunciando suas implicações sócio comerciais dentro dos processos de consolidação dos caminhos de interconexão do Brasil Meridional, desconstruindo a ideia de atividade periférica e introduzindo um teor central ao assunto. A partir disso, buscou-se realizar neste trabalho uma pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo, analisando o movimento tropeiro dentro de um sistema-mundo de maneira socio-econômico-cultural para compreender as influências da movimentação na formação territorial do Brasil meridional. 13 2.1 Sistemas sociais: os sistemas-mundo Um sistema social é um modo de organização de elementos de ação e interação plural de atores individuais. Essa interação entre atores individuais somente se torna possível no momento em que há uma persistência ordenada desses elementos (PARSONS; BLANCO; PÉREZ, 1966). Segundo Parsons, Blanco e Pérez (1966) a ação é o mais importante em um sistema social. Desta forma, cada ator acaba se envolvendo em uma pluralidade de análogas relações de interação que podem desencadear diversos fins. Un sistema social —reducido a los términos más simples— consiste, pues, en una pluralidad de actores individuales que interactúan entre sí en una situación que tienen, al menos, un aspecto físico o de medio ambiente, actores motivados por una tendencia a «obtener un óptimo de gratificación» y cuyas relaciones con sus situaciones —incluyendo a los demás actores— están mediadas y definidas por un sistema de símbolos culturalmente estructurados y compartidos (PARSONS;BLANCO;PÉREZ, 1966, p. 7). Em vista disso, um sistema social é apenas um dos três aspectos de estruturação de um sistema total concreto de ação social. Os outros aspectos são relacionados ao sistema de personalidade de cada ator individualmente e de um sistema cultural que se estabelece a partir das ações destes atores (PARSONS;BLANCO;PÉREZ, 1966). De acordo com Arienti e Filomeno (2007) há uma complexidade para compreender os sistemas sociais. Essa complexidade se dá devido à diversidade de estruturas. Cada sistema social pode representar uma rede associada a processos culturais, econômicos e políticos, podendo ter dinamicidade própria e potenciais que diferenciam um do outro, mesmo que os procedimentos e estruturas os mantenham unidos. Segundo Califano (2009, p.14): Os sistemas sociais podem ser mini-sistemas, por sua modesta abrangência geográfica e duração, ou sistemas-mundo, por sua maior magnitude espacial e temporal, cuja única divisão do trabalho contém múltiplos sistemas culturais. Os minissistemas referem-se a economias tribais integradas a partir de uma prática recíproca em uma unidade única de trabalho efetivo, uma única cultura e administração política. Atualmente todos os minissistemas foram sobrepostos pela 14 expansão dos sistemas-mundo, e agora, somente estes são possíveis. Um sistema- mundo como qualquer outro tipo de sistema social é dividido por unidades espaços- temporais, onde o espaço é constituído por uma divisão de trabalho, para que assim, se possa produzir a materialidade deste mundo (ARIENTI; FILOMENO, 2007). Os sistemas-mundo em forma política, podem ser classificados de impérios- mundo e economias-mundo. São denominados de impérios-mundo quando há envolvimento de dois ou mais grupos culturalmente diferentes que dependem de uma única administração vinculada a uma elite central, mas que os conecta geopoliticamente. Essa administração controla as divisões de trabalho e apropria-se dos excedentes a partir de redistribuição de tributos controlados por mecanismo burocráticos e amplos exércitos. Já as economias-mundo são completamente opostas, onde o mercado define o setor trabalhista, não a administração política do centro. (ARIENTI; FILOMENO, 2007). Arienti e Filomeno (2007) referem o estudo de Braudel (1995) que propõe conceitualmente um esquema tripartido para a análise dos sistemas sociais. Para Braudel há uma divisão da vida econômica no capitalismo a partir de três andares. A primeira camada, a vida material, refere-se às atividades inconscientes, do cotidiano, da rotina, baseando-se mais no valor de uso do que pelo valor de troca. Já o seguinte andar, chamado de “economia de mercado” relata a vida econômica em si, o que se produz ao mercado, as relações sociais e o que é baseado no valor de troca. Já o último e superior é um mercado muito maior e complexo, definido pela competição e pela transparência das trocas realizada pelos atores. Para Braudel, quem opõe evento e estrutura e se detém ou no evento ou na estrutura são o sociólogo e o antropólogo. O historiador não comete este erro de análise. Ele os articula em uma “dialética da duração”. Por isso, para ele, é importante afirmar com força a importância e a utilidade da história, que trata das durações sociais, dos tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens. O historiador se interessa pelo que é mais importante na vida social: a oposição viva, íntima, repetida, entre o instante e o tempo lento a passar (REIS, 2008, p. 15-16). Aprofundar a temática do Tropeirismo é algo realmente laborioso por ser um movimento comercial que transpassa séculos e deixa resquícios que afloram na formação social das comunidades. Essas movimentações são possíveis de observar a partir de dados econômicos diante do seu processo de movimentação e também através da geografia humana gerada (BARROSO, 2006). 15 Para Furtado (1979) era impossível dissociar a importância do sistema de transporte com a atividade da mineração, de tal modo, que as tropas de mulas constituíam a base para o funcionamento de todo este conjunto, para que o ouro pudesse chegar ao litoral. Assim, se cria um grande mercado para estes animais. Segundo Pesavento (2007), ao longo dos anos 1980, apesar de em pequena escala, há uma vertente da historiografia brasileira inspirada na Escola de Annales. Essa vertente era apoiada na ideia do econômico-social com inspirações em Braudel e tinha como sustentação a estrutura e a conjuntura, delimitando-se na longa e na média duração. Para Burke (2011, p. 338), [...] os historiadores estruturais mostraram que a narrativa tradicional passa por cima de aspectos importantes do passado, que ela simplesmente é incapaz de conciliar, desde a estrutura econômica e social até à experiência e os modos de pensar das pessoas comuns. Deste modo, este trabalho desperta e sinaliza a relevância de estudar o Tropeirismo como um movimento indispensável não somente em sua compreensão estrutural econômica, mas também nos aspectos socioculturais vistos dentro de um sistema social. 2.2 A vertebralização da História Econômica A História Econômica como campo de pesquisa surge depois da Economia e da História. É um campo de estudo que pode ter várias correntes que divergem em seus fundamentos teórico-metodológicos, sobretudo, por implicações políticas e ideológicas (SAES; SAES, 2013). A partir dos estudos da revista dos Annales entre os anos de 1929 e 1945, quando a revista estava em mãos de Lucien Febvre e Marc Bloch, se produzia cerca de 60% dos trabalhos voltados à História Econômica. De 1946 a 1969, quando houve a influência de Braudel, os trabalhos destinados à História Econômica decaíram para em torno de 40% da produção, sobretudo, devido às questões relacionadas ao desenvolvimento e subdesenvolvimento, que foram avolumadas pela internacionalização de capitais, Guerra Fria, etc. A partir deste momento, os 16 trabalhos voltados para o estudo econômico decaíram bruscamente e os princípios passaram a serem outros, surgindo a necessidade de uma indústria cultural (FRAGOSO; FLORENTINO, 1997). A História Econômica dividiu-se entre nova e velha. A nova história econômica, datada entre 1950 e 1960, preocupou-se com as questões do consumo, sendo assim, algo difícil de se separar do social e do cultural. Assim, surgem diversos novos campos, como até mesmo a História Social, que se fragmentou para tratar de novas nações, história do trabalho, história rural, história urbana, etc (BURKE, 2011). A utilização da História Econômica para tratamento de dados, consiste em debruçar-se em uma metodologia quantitativa. O historiador econômico tem como imprescindível o uso de ferramentas como a Estatística e a Econometria. A Estatística permite analisar o objeto de estudo de forma temporal, possibilitando levantar diversas características de uma certa população, já a Econometria permite relacionar dados gerados pela Estatística, elaborando diversificadas interpretações a partir da identificação das causas e dos comportamentos cíclicos (SOUZA, 2008). Para Fragoso e Florentino (1997) a história econômica pode ser agonizante, pois a análise econômica de forma excessiva pode-se tornar algo pouco atraente e distante da realidade e da complexidade da história humana. Por isso, recentemente a História Econômica acabou perdendo espaço para outros campos do saber histórico. A quantificação proposta em dados “vertebralizados” sugere apenas o que se ganha, não esclarece a perda, assim há uma limitação dos caminhos metodológicos e reflexivos que orientam o ofício do historiador. O historiador se instala na fronteira onde a lei de uma inteligibilidade encontra seu limite como aquilo que deve incessantemente ultrapassar, deslocando-se, e aquilo que não deixa de encontrar sob outras formas. Se a ‘compreensão’ histórica não se fecha na tautologia da lenda ou se refugia no ideológico, terá como característica, não primordialmente, tomar pensáveis séries de dados triados (ainda que isto seja a sua ‘base’), mas não renunciar nunca à relação que estas ‘regularidades’ mantém com ‘particularidades’ que lhe escapam (CERTEAU, 1982, p. 92). Segundo Arruda (1977) a mentalidade do quantitativo está interligado com a precisão que é demandada pelo capitalismo. A ideia de transformar a História Econômica em algo mensurável, técnico, matemático e rigoroso faz com que se 17 apresente uma história linear. Assim, os quantativistas criam ilusões de que somente o racional é matematizável e ignoram o social, sendo algo perigoso na realização de análises de particularidades de objeto históricos. A grande limitação desta História Econômica está no fato de que é necessário ir além dos dados para compreender a História do homem; é necessário captar as estruturas mais profundas, que meia dúzia de dados estatísticos ou modelos econométricos não são capazes de traduzir. Para atingirmos o âmago da explicação da História, o concurso de muitos elementos é indispensável. Nessa medida, e apenas nestes limites, é que o tratamento quantitativo dos dados, a realização de modelos, a adoção de testes de credibilidade das hipóteses, têm sentido, porque permitem o aprofundamento até a compreensão do processo subjacente (ARRUDA, 1977, p. 481). Contudo, o historiador social não deve rejeitar metodologias quantitativas, mas sim, transformá-las em objeto de estudo e de utilidade. O quantitativo deve ser um instrumento de análise, aprofundamento e reavaliação e não somente dados e números que tenham final em si mesmos (ARRUDA, 1977). Dentro do próprio âmbito da história econômica, pode-se facilmente observar as inter-relações que existem entre os processos econômicos que estudamos e os que são analisados por outros ramos do conhecimento histórico – como a história social, a história política ou a história cultural, sem esquecer o importantíssimo campo da história das ideias (econômicas e outras). Como bem sabemos, não há compartimentos estanques no conhecimento histórico. Por essa razão, a história econômica só pode ser adequadamente estudada na medida em que tiver como pano de fundo o processo histórico como um todo, e não apenas seus aspectos econômicos (SZMRECSÁNYI, 1992, p. 131). Por isso, é importante destacar que analisar o movimento tropeiro somente de maneira econômica quantitativa inibe a compreensão da atividade nas relações socio-comerciais e culturais, seja na abertura e consolidação dos caminhos meridionais, nas relações de comércio interiorano ou no surgimento de cidades. 2.3 Revisão bibliográfica A importância de revisitar bibliografias permite ao pesquisador compreender os fatos com maior amplitude do que realizar uma pesquisa direta, principalmente devido as muitas produções e materiais dispersos. A pesquisa bibliográfica permite que o investigador analise dados sem precisar percorrer todo o território (GIL, 2004). Assim, com a pesquisa bibliográfica há a possibilidade de estudar o tratamento da ciência histórica às movimentações tropeiras. 18 Para Gil (2004, p. 50) “A pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos”. Na revisão bibliográfica devem aparecer trabalhos que sejam suporte ao investigador para que se tenha uma visão mais ampla sobre a temática pesquisada, como também trabalhos que façam contrapontos ao que se está estudando, ou seja, embasamentos e contraposições (BARROS, 2009). Para a realização da investigação, o historiador deve tratar de forma minuciosa os dados. Segundo Felix (1998, p. 91), A coleta de dados envolve duas atividades que são concomitantes e complementares: uma atividade de prática documental, realizada através do contato com os acervos documentais, e uma atividade de contato com a produção teórica e historiográfica referente ao tema geral da pesquisa. No primeiro caso, é o momento da localização dos acervos – da identificação, catalogação e seleção, da produção de instrumentos de pesquisa ou da seleção de quais utilizar e da atividade de fichamento e registro dos dados obtidos. Também fora revisada a bibliografia de Arqueologia Histórica a partir de trabalhos de Herberts (2009) e Silva (2010) para compreender a materialidade gerada nos caminhos tropeiros e, sobretudo, a influência tropeira nas transformações e (res)significações dos territórios. A arqueologia, como uma ciência social, deseja ultrapassar as abordagens funcionalistas e a simples busca pelo onde e quando determinados grupos desenvolveram suas mais diversas atividades. Almeja aproximar-se dos sujeitos e interpretar o sentido dos vestígios analisados em um complexo contexto num determinado espaço e tempo. Cientes, é claro, de que este sentido jamais será alcançado em sua totalidade, apenas tentamos nos aproximar deste, através de nossas construções particulares. Buscando, cada um fazer a sua viagem ao passado, por diferentes caminhos que nos levam as mais diversas interpretações (SILVA, 2010, p. 16). O espaço é apresentado como um meio de transformação de ação humana, então toda a construção social constituída, dá um novo sentido aos espaços. As transformações e configurações dos espaços são elaboradas por diversos grupos e/ou sujeitos em diferentes tempos, assim, diversas significações podem ou não serem atribuídas (SILVA, 2010). Deste modo, dentro da revisão bibliográfica foi possível revisitar trabalhos que utilizam como metodologia a Arqueologia da Paisagem. Reflexões daquele matiz auxiliam na compreensão das transformações espaciais ocasionadas pela movimentação tropeira e também, nas análises documentais. 19 Além disso analisou-se a literatura e a música na compreensão de uma representação estética dos discursos que relacionam o tropeirismo. Para Chartier (2000) a relação da história com a literatura pode ocorrer de duas maneiras. A primeira, ressalta uma condição de relação absolutamente histórica dos textos, onde nessa perspectiva, não se deve cometer anacronismos de que toda produção textual, obras e outros gêneros foram compostos com critérios que sejam caraterísticos de uma relação com o escrito e, que há diversas operações e sujeitos por trás da construção desses sentidos. Já a segunda maneira, mais inesperada, é completamente o contrário disto, onde alguns textos literários podem representar de forma aguda e original o que fora redigido e transmitido esteticamente, considerando o texto escrito como algo fixo, estabilizado. O discurso literário resulta de uma reflexão e se constitui em uma mediação social, tal como o discurso histórico. Daí ser possível através das técnicas de expressão literária, tais como os modos de narrar e construir pontos de vista, poder-se revelar a história (SANTOS, 2007, p. 122). Segundo Santos (2007), o historiador ao trilhar uma aproximação multidisciplinar com ciências como a antropologia, filosofia, literatura, entre outras, encaminha a história para novas teorias, metodologias e técnicas. A multidisciplinaridade pode ser inovadora, pois, com a troca de saberes com outras áreas, se permite uma carga maior de capacidade criativa e competência para que o historiador possa exercer o seu ofício. A utilização da música como instrumento interdisciplinar pode auxiliar o historiador a descobrir processos pouco frequentados pela historiografia. Mas para isso, o historiador deve ir além do tradicional para buscar compreender as relações entre a canção e o conhecimento histórico. A utilização da música como documento, permite ao historiador habitar e desvendar obscuridades dentro da história, sobretudo, no que relaciona às camadas populares (MORAES, 2000). Um dos obstáculos gerais colocados às investigações no campo da música é a dificuldade em circunscrevê-la como uma “disciplina” voltada claramente para a produção do conhecimento. Algumas discussões e debates internos na área da musicologia têm procurado ressaltar a condição da música como um objeto do conhecimento, estabelecendo, assim, a distinção – se é possível mesmo fixar tal distinção! - entre “o fazer ciência e o fazer arte” e, consequentemente, entre os pesquisadores e os artistas. Sua identificação e organização como disciplina possibilitou certo avanço científico nos últimos anos ao incorporar as contribuições vindas da etnologia, 20 arqueologia, linguística, sociologia e, mais tradicionalmente, da estética e história (MORAES, 2000, p. 209). A música como algo imaterial atinge os sentidos dos receptores, e por se tratar de algo fundamentalmente artístico e estético, de usufruto pessoal ou coletivo, traz à tona singularidades e características próprias dos autores, e isso, remete essencialmente a sua cultura. Assim, os sons podem reproduzir características físicas e intangíveis que ganham sentido quando relacionadas ao social e o cultural, ganhando forma de música, portanto, produto de historicidade. Nesta perspectiva de revisão bibliográfica, a música e a literatura podem auxiliar a compreender a influência da movimentação tropeira nas questões socioculturais, sendo suporte na confirmação de que o tropeirismo fora uma atividade além das questões econômicas. 2.4 Pesquisa documental A partir do século XX há uma crítica de noção sobre o que é o fato histórico, sendo este não apenas um objeto entregue e acabado, mas sim, resultado da organização do historiador. A noção de documento que se tem hoje é maior. O documento não é apenas um material compacto, objetivo, inócuo, mas sim, algo que expõe o poder da sociedade do passado a partir da memória. Atualmente amplia-se a concepção da área dos documentos, que antes, devido a história tradicional, era apenas reduzido ao uso de textos e artefatos da Arqueologia, esta, que por muito tempo fora separada da História. Os documentos neste momento chegam até abranger as palavras e os gestos (LE GOFF, 1990). A partir dessa perspectiva, pode-se considerar a música e a literatura como documentos para a análise estética do movimento tropeiro. De acordo com Jenkins (2004, apud Pereira e Seffner, 2008) o historiador tem a tarefa de investigar o passado como um objeto de estudo separado apenas pela linguagem. A história é produzida através de uma análise rigorosa das fontes e da separação de teorias e metodologias, sendo assim, um trabalho complexo e longo. Para que ciência histórica fosse reconhecida, fora necessário compreender que a 21 análise rigorosa transpassava desde o caráter documental até o monumental, e a partir deste momento, o documento acabou deixando de ser a única verdade. Contudo, é importante destacar que a pesquisa documental é importante na compreensão da história, pois grande parte da produção das ciências humanas provém de fontes escritas. O documento é um objeto de estudo que pode ser considerado determinante para a obtenção de dados, contudo, a hermenêutica é fundamental ao investigador (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009). A pesquisa documental recorre a fontes mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico, tais como: tabelas estatísticas, jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias, pinturas, tapeçarias, relatórios de empresas, vídeos de programas de televisão, etc (FONSECA, 2002, p. 32). A história como ciência em sua consumação necessita o uso da técnica, da metodologia e do auxílio documental, contudo, este não deve ser inflexível. As regras jamais devem ser sólidas ou universais na análise do objeto de estudo do historiador (FÉLIX, 1998). O documento e a revisão bibliográfica permitem analisar dados palpáveis. Todavia, a partir da investigação do Tropeirismo como temática central é possível mensurar as influências do movimento na formação territorial e no advento de cidades do Sul da América Portuguesa. 2.5 Pesquisa qualitativa O procedimento metodológico eleito para essa monografia observa o que prescreve uma abordagem qualitativa. A centralidade ao tropeirismo, permite identificar e mensurar a relação do movimento para compreender como suas particularidades são imprescindíveis na formação do território brasileiro. Flick (2009) conclui que no método qualitativo a comunicabilidade do investigador com o campo é essencial para produzir conhecimento, não sendo apenas uma variante que interfere no procedimento. A subjetividade é fundamental na análise do pesquisador, sendo que as emoções, atitudes, observações, impressões, entre outras, fazem parte da interpretação. Para Godoy (1995, p. 58), 22 [...] a pesquisa qualitativa não procura enumerar e/ou medir os eventos estudados, nem emprega instrumental estatístico na análise dos dados. Parte de questões ou focos de interesses amplos, que vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve. Envolve a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos, ou seja, dos participantes da situação em estudo. Segundo Günther (2006) uma pesquisa qualitativa não se define por si só, mas sim, sempre em contraponto com uma pesquisa quantitativa. Do mesmo modo, o investigador que é qualificado como quantitativo, raramente exclui o proveito em compreender as relações, por mais complexas que sejam. O investigador quantitativo busca relacionar as variáveis dentro das relações para poder chegar a tal compreensão enumerada. Enquanto as pesquisas quantitativas procuram enumerar, a pesquisa qualitativa costuma ser algo mais direcionado, sem medir acontecimentos. O foco da pesquisa qualitativa tem maior amplitude e tem perspectivas diferentes da metodologia quantitativa. A partir da pesquisa qualitativa se obtêm descrições no contato direto e interativo do pesquisador com o objeto de estudo, fazendo com que se entenda os feitos na perspectiva dos sujeitos participantes, para que assim, sejam interpretados os estudos (NEVES, 1996) Figueiredo, Chiari e Goulart (2013) afirmam que, quando o pensamento é materializado sob discurso, é considerado qualitativo, ou seja, um produto que é qualificado. Contudo, no momento em que há o compartilhamento de opiniões entre indivíduos, ou seja, o pensamento coletivo, também se pode afigurar em uma variável quantitativa. Analisar desta forma, possibilita compreender a relevância econômica do movimento tropeiro ao longo da consolidação dos caminhos meridionais brasileiros. Dentro das ciências sociais, os investigadores ao utilizarem de métodos qualitativos, estão mais preocupados em explicar os processos sociais do que as estruturas. O investigador se debruça em visualizar contextos e possibilidades de maneira empática com o objeto de estudo, implicando em melhores aproximações da realidade. Contudo, os métodos quantitativos e qualitativos não se anulam como instrumentos de análise (NEVES, 1997). Assim, o investigante que se debruça de 23 maneira quali-quantitativa ao objeto de estudo, pode se aproximar de resultados mais autênticos. Desta forma, a necessidade de uma análise qualitativa reflete na possibilidade de compreensão da atividade tropeira em sua totalidade, seja na sua relação socioeconômica ao longo dos caminhos ou na venda das diferentes mercadorias. 24 3 O TROPEIRISMO E OS REVEZES HISTORIOGRÁFICOS Este capítulo tem como propósito trazer apontamentos da historiografia, arqueologia e da literatura em relação ao movimento tropeiro. Sendo assim, fora dividido em 4 partes. A primeira e a segunda parte se referem a ótica de alguns autores das escolas teóricas do Materialismo Histórico e dos Annales, sobre como é visto o Tropeirismo na historiografia. A terceira parte, refere-se à Arqueologia, sobretudo, em como as tropeadas ocasionaram as mudanças na Arqueologia da Paisagem do território meridional brasileiro. E por último, a quarta parte, onde a literatura e a música apresentam um discurso sobre a atividade tropeira relacionando-a com o mito fundador do homem sul-rio-grandense. 3.1 O tropeirismo pelas lentes do materialismo histórico Para Triviños (1987) o materialismo histórico é esclarecedor nas questões sociais, sobretudo nas relações materiais geradas a partir da associação homem- natureza. A “consciência social” pode ser originada de ideias estéticas, políticas, religiosas, entre outras. Além disso, os meios de produção podem gerar os bens materiais a partir de forças produtivas, onde o homem relaciona sua experiência de trabalho com seus hábitos. O materialismo histórico define outra série de conceitos fundamentais para compreender suas cabais dimensões, como: sociedade, formações socioeconômicas, estrutura social, organização política da sociedade, vida espiritual, a cultura, concepção do homem, a personalidade, progresso social, etc. (TRIVIÑOS, 1987, p. 52). Sandra Jatahy Pesavento (1997) relaciona o tropeirismo com a história do Rio Grande do Sul a partir de bases econômicas. O tropeirismo é definido como uma economia subsidiária que surge a partir de uma demanda de uma economia central, que naquele momento era a da extração aurífera. A autora contextualiza os processos econômicos como a decadência do açúcar e da descoberta das Gerais, sendo essa última, um polo econômico de atração portuguesa e uma atividade renovadora ao sistema colonial. Pesavento (1997) assegura que é a partir de 25 atividades econômicas que se estabelece um domínio estratégico português em território brasileiro. Para Goulart (1961) aquela gadaria vivendo solta sem dono era nada mais nada menos do que lucrativo. Para quem buscava uma mercadoria de fácil comércio, essas cabeças de gado poderiam ser comercializadas em regiões desprovidas desses animais. Para Pesavento (1997) é a partir da atividade econômica principal que surge uma relevância ao gado do Sul, e é assim, que o Rio Grande do Sul se conecta ao restante do país. De tal modo, a partir do incentivo da coroa portuguesa, lagunistas e paulistas passam a rumar ao sul para prear gado e levar o tal gado perdido a zona de extração aurífera. Para Flores (2006) a criação de muares foi a principal economia da região dos Campos de Viamão, pois estes animais eram os preferidos para o transporte de cargas por serem maiores e mais resistentes. Sem os muares, o comércio teria sido impraticável no Brasil durante os séculos XVIII e XIX, já que o gado do tipo cavalar não resistia a viagens longas em terrenos irregulares. Foram motivações econômicas, derivadas da descoberta e exploração da Minas Gerais, especialmente as necessidades de abastecimento e transporte, que provocaram a integração do Sul ao mercado interno colonial (KUHN, 2011, p. 46) Pesavento (1997) considera que o tropeiro era um tipo social por excelência. O tropeiro era um chefe que andava armado conduzindo tropas, especialmente de muares, para comercializar nos grandes mercados, como o de Sorocaba. Gil (2009) constata que a negociação de animais era realizada por membros de uma elite local que viam possibilidades mercantis. Esta negociação era realizada sobretudo por aqueles que possuíam alguma condição de solicitar recursos ou empréstimos, já que os riscos não eram tão grandes para montar uma tropa, contudo, não era qualquer um que podia fazer esta montagem. Vamos agora avançar por este caminho. Comecemos no que chamo a “área de produção” pecuária, o que inclui não apenas a produção propriamente dita, mas também a produção social via contrabando. A Rota das Tropas interligava uma vasta área dentro do continente americano, no Atlântico Sul ocidental. Ela se inicia numa grande área de produção, que se estende da localidade de Cerro Largo, então sob domínio da Coroa de Castela, até o 26 Viamão, nos territórios portugueses. O caminho segue por uma região de serra até um planalto de cerca de 900 metros de altura, passando por alguns povoados como São Francisco de Paula, Vacaria e Lages, até chegar à região da Lapa e Curitiba, passando por Castro e outras pequenas povoações até a Vila de Sorocaba, de onde os animais eram redistribuídos para diversas regiões. Um percurso de mais de 1000 km, no qual pudemos contar mais de duas mil viagens de transporte de animais, apenas no sentido sul-norte, entre 1760 e 1810, feitas por mais de quinhentos negociantes com a ajuda de um número ainda maior de peões, capatazes, fiadores, cobradores, fiscais, entre outros como os que forneciam víveres na viagem ou os estancieiros que alugavam ou arrendavam campos de invernada (GIL, 2009, p. 60-61). A partir da ótica do materialismo histórico é possível afirmar que unidades econômicas são centrais para a análise. O dominante, a Coroa Portuguesa, exerceu os poderes de dominação econômica sobre as regiões, estabelecendo uma prática expansionista. A partir disso, o tropeiro aparece na análise destes autores como uma classe social em desenvolvimento, mas subordinada a uma elite. Na visão do materialismo histórico o movimento tropeiro não passou de uma atividade subsidiária, assim como as demais, pois estas, apenas auxiliaram o desenvolvimento da economia principal, a da extração aurífera. 3.2 O tropeirismo: para além das questões econômicas Segundo Frasson e Gomes (2010) o movimento tropeiro pode ser considerado um ciclo econômico de longa duração, abrangendo o século XVII ao XX quando não havia estradas, apenas caminhos abertos por nativos. Segundo os autores, o movimento tropeiro não deve ser analisado somente a partir das necessidades de transporte de riquezas ou outras mercadorias, mas sim, como um movimento que é determinante na ocupação e integração do território, sobretudo, na constituição social do país. Constata-se como um movimento que dá origem à criação de povoados que se transformam em grandes cidades, sendo assim, importante para o desenvolvimento social e econômico. A temática envolvendo o tropeirismo se contextualiza e prolifera em diversos segmentos sociais e tem estimulado estudos sobre documentos de cartórios, acervos de museus temáticos, arquitetura de casas antigas em fazendas e centros urbanos, culinária, festas e diversos eventos relacionados ao folclore tropeiro. Essas iniciativas constituem fatos que renovam o apreço pela diversidade étnico-cultural e o reconhecimento da identidade social, as quais se integram às atividades da área da Educação, Turismo e Arte, estimulando assim a pesquisa científica e informações 27 sobre o movimento tropeirista e a formação dos povoados e consequente cidades ao longo do caminho (FRASSON; GOMES, 2010, p. 2). Hameister (2002) acredita que é inadequado classificar em categoria os “tropeiros” ou “condutores de tropas”, já que categorizar limita a análise e não dá conta de explicar a complexidade das relações sociais e dos distintos status dentro deste grupo. Para isso, utiliza de uma análise da micro-história buscando solucionar este tipo de investigação, seja através de minuciar textos de documentos ou cruzando diversas fontes de variadas naturezas, sobretudo, através do nome desses sujeitos e suas ligações sociais. As viagens de conduta de animais até os locais de sua venda eram muito longas. Duravam até três meses ou mais para Curitiba, nove meses ou mais até Sorocaba e mais de ano para as Minas. Foram estas relações, estabelecidas com famílias locais e que estabeleceram novas famílias ao longo do trajeto que deram sustento aos condutores. De uma certa maneira, estes relacionamentos possibilitavam a sua aceitação e assimilação nos diferentes locais onde exerciam seu ofício de comerciantes e condutores. A obtenção de bons negócios, compradores certos, e melhores preços para suas mercadorias, hospedagem, satisfação de necessidades básicas e mesmo sobrevivência, podiam depender do estabelecimento dessas ligações (HAMEISTER, 2002, 137-138). Hameister (2002, p. 137) complementa, O Caminho das Tropas não uniu apenas geograficamente os pontos de atividade de pouso, invernada e comércio de animais que ficavam ao longo de seu trajeto. Aproximou a gente que habitava os povoados, pequenos ou grandes, que passaram a contar com um fluxo sazonal, mas constante, de peões, condutores, comerciantes, tratadores e adestradores de animais. As famílias se utilizavam da rota. O contato entre membros de comunidades por vezes com mais de mil ou mil e quinhentos quilômetros entre elas se fazia através dos migrantes. Estes deixavam seus lugares de origem e de nascimento, mas não rompiam os vínculos com tais localidades. Para Fitz (2013) o tropeirismo teve fundamental importância em difundir valores culturais de região para região, abrindo caminhos, mas estes, não somente geográficos. Os tropeiros propagavam seus conhecimentos e ampliavam o repertório cultural por onde passavam, assim, sendo incontestável sua importância para a formação da sociedade contemporânea do Sul do país. A influência tropeira é considerada como um processo civilizador, pois contribuiu para a expansão cultural fazendo a integração do Brasil Meridional e deu sentido ao modo com que os povoados assistidos por eles encaravam a vida e as oportunidades que ela proporcionava (FITZ, 2013, p. 23). Segundo Baddini (2002) grande parte dos historiadores até finais do século XX dissertavam sobre a ação tropeira apenas como atividade econômica importante 28 para o desenvolvimento paulista e sua inserção na política da Nação. Essa interpretação ignorava completamente as particularidades da movimentação tropeira, resultando em uma análise homogênea e sempre de caráter econômico, que era consequentemente, o de fornecimento de meio de transportes no centro-sul do país. Com relação ao conceito de “tropeirismo”, já foram consideradas as abordagens interpretativas que o consagram como termo explicativo de uma condição econômica e/ou política do centro-sul do Brasil. Tal conceito condiciona a leitura da história de Sorocaba em função do comércio de animais, permitindo a percepção da feira de muares como principal etapa dessa atividade mercantil na província. Portanto, uma leitura que favorece a sua valorização enquanto evento econômico nacional, desconsiderando sua capacidade de refletir as condições urbanas que possibilitaram o desenvolvimento dessa atividade na região (BADDINI, 2002, p. 275). Para Borges (2016) estudar a trajetória econômica de indivíduos tropeiros focando no negócio de muares autoriza conhecer a atividade “por dentro”. Assim, possibilitando um melhor conhecimento de como funcionava o mercado interiorano e os documentos nos registros de passagem, definindo semelhanças e diferenças dentro dos espaços coloniais. Zimmermann (1991) considera que a história não deve ser somente uma linha cronológica de fatos, mas sim, sendo a soma de legados passados, seja nas tradições, nos hábitos ou nas experiências de vida. É neste momento que o tropeiro é conectado devido a sua importância na formação histórico-social de cidades, como por exemplo a de Soledade. A imprescindibilidade de uma preservação do patrimônio folclórico surge especialmente na busca por uma preservação de valores culturais e de memória, já que cada vez mais é intensa a invasão de cunho econômico-cultural das elites. Zimmermann (1991, p. 22) assegura: “As danças, a música, a literatura oral, as manifestações religiosas de cunho popular, expressam muito da tonalidade afetiva e da alma de cada povo”. Para Vera Barroso (2006) até fins do século XX a temática do tropeirismo vinha sendo abordada perifericamente, contudo, desde 1992, em Bom Jesus se promove o Seminário Nacional sobre o Tropeirismo (Senatro) e o Seminário sobre o Tropeirismo no Cone Sul. A partir disso, o cenário da historiografia vem se modificando, especialmente, no que refere à ocupação do Rio Grande do Sul. O 29 tropeirismo desempenha um papel importante na demarcação de terras entre Portugal e Espanha na disputa por território. O tropeirismo é um fenômeno histórico de larga repercussão, definidor da ocupação e da economia dos espaços sociais abrangidos por sua atuação. Como processo delineador de relações de comércio e trocas, o movimento das populações por ele estabelecido formulou a construção de redes de múltiplos significados que assentaram as bases de muitas das comunidades brasileiras e americanas, ou seja, através do trânsito de tropas, paisagens foram alteradas e processos sociais foram desencadeados (BARROSO, 2006, p. 172). Ao longo do século XX, a análise historiográfica trouxe para o texto histórico elementos até então marginais. A partir do movimento dos Annales é possível identificar o tropeiro na longa duração, especialmente pelas questões socioeconômicas e culturais. Aspectos do cotidiano incorporados a cultura de alguns locais decorrem da relação que o agente social tropeiro estabelece com o espaço e com os demais viventes à beira dos caminhos. 3.3 Arqueologia das tropeadas Segundo Herberts (2009) a produção de bibliografia arqueológica é bem limitada comparada a produção da historiografia. Há poucos trabalhos de cunho arqueológico relacionados aos caminhos, sobretudo, das tropas. O Registro de Viamão acabou sendo um dos alvos destes poucos trabalhos de pesquisa voltados à Arqueologia da Paisagem, sobretudo, em diversos momentos no século XX. Na década de 1960 foram realizadas algumas prospecções propostas pelo Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, através do PRONAPA, sendo estas, coordenadas por Eurico Theófilo Miller. Na década de 1990, as pesquisas acabaram se acentuando com novos projetos, como o Projeto Arqueológico de Santo Antônio da Patrulha (HERBERTS, 2009). Em seu estudo sobre as estruturas viárias remanescentes entre os rios Pelotas e Canoas, em Santa Catarina, Ana Lúcia Herberts (2009) procurou analisar os caminhos como objetos de pesquisa, através da ótica da Arqueologia da Paisagem. Para isso, utilizou de perguntas primárias e iniciais para investigar, sendo elas: quais os vestígios arqueológicos que ainda são remanescentes nos caminhos, 30 quais os tipos de estrutura, como eram construídas, os materiais, a relação com o ambiente, a função dos corredores de pedra, etc. Farias (2013) em seu trabalho “Geóglifos gaúchos: um estudo sobre o tropeirismo e as cercas e currais de terra, pedra e plantas no sudoeste do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina” constata que devido a quantidade dispersa de informações sobre as construções de currais e cercas, principalmente, pelas mais diferentes épocas, localidades, materiais, métodos de construção, entre outros, fazem com que seja necessário fazer recortes temporais e geográficos. Do mesmo modo que, muitas fontes abordam a temática de forma rasa, criando-se assim, a necessidade de juntar as informações para se entender melhor a cultura sul-rio- grandense, a motivação da construção dos currais, das cercas anteriores ao arame de metal, sobretudo, nas estâncias e nas tropeadas. Herberts (2009) buscou averiguar dados disponíveis que indicassem locais de pouso de tropeiros, especialmente, para entender quanto tempo durava uma jornada tropeira pela região. A região dos campos de Lages reunia características ambientais importantes para o Caminho das Tropas: um relevo de amplos campos com suaves coxilhas onduladas, cobertura vegetal abundante de gramíneas e leguminosas, “capim mimoso”, propício para a pastagem, e era entrecortada por diversos cursos de água como banhados, córregos, lajeados e rios que formam a bacia do Rio Pelotas, fornecendo aguada durante todo o percurso. Nestes campos nativos, os animais poderiam se recuperar antes de seguirem com a viagem. Por outro lado, buscaram-se subsídios na iconografia e nos relatos de viajantes e ex-tropeiros sobre as formas de pousos, os locais, a infraestrutura e a tralha doméstica, apontando quais seriam os vestígios arqueológicos que poderiam ser encontrados nestes espaços e como eram estes locais. Os pousos ao relento e os sob barraca eram realizados em locais que não dispunham de estruturas construídas para o pernoite, ou quando, por algum motivo, a comitiva atrasava e não conseguia chegar a um local determinado de pouso no trajeto (HERBERTS, 2009, p. 176). A maior parte dos trabalhos que são produzidos sobre a Arqueologia da Paisagem em relação ao tropeirismo utilizam-se de estratégias metodológicas de pesquisa documental, seja ela cartográfica, iconográfica ou até mesmo textual, pois estes documentos auxiliam nas interpretações e análises dos vestígios materiais. 3.4 O tropeirismo na literatura 31 Para Teixeira e Ertzoge (2012) a literatura é uma expressão de sentimentos, do ser, do ver, do sonhar a sociedade, sendo um elemento polifônico por excelência. Uma obra literária trata a história político-social de um grupo ou indivíduo dentro de determinado tempo e espaço. O romance, por exemplo, pode ser definido como um gênero que representa o “pensar a história”, pois estabelece uma memória do tempo e uma reconstituição dos espaços, tornando as sociedades e as práticas sociais objetos de reflexão. A partir desta abordagem, este subtítulo fora dividido em 2 partes: a poesia e a música. 3.4.1 O tropeiro na poesia Segundo Charão (2009) a história e a poesia estão conectadas desde as primícias, e, nesta conexão estão diversas linhas de pensamentos que são direcionadas para analisar aspectos de semelhança entre a realidade e a arte. O historiador tem como papel principal avaliar as fontes através de uma análise empírica, para assim, designar sua veracidade. Através da obra literária pode-se entender o imaginário social como ponto de referência no sistema de símbolos produzidos por uma determinada coletividade que organizam e regulam a vida coletiva. Esse imaginário não só representa a realidade, atua sobre ela acionando práticas e imprimindo direções essas representações são construções coletivas através das quais os grupos constroem sua identidade e elaboram sentidos para o mundo em que se encontram inseridos. Nesta visão a produção literária rio-grandense promoveu a construção de alguns signos e símbolos que foram marcados na memória como sendo parte da cultura na qual está inserida a figura do tropeiro (CHARÃO, 2009, p. 2-3). A partir deste gênero de texto, fora selecionado o “Poema de Tropeiro” de Luis Perequê para a compreensão dos espaços, das subjetividades e das expressões culturais proporcionadas pelas movimentações tropeiras. Poema de Tropeiro Era uma vez, Uma estrada tão bonita, Curva, descida e subida E a gente morava lá No pé da serra Num rancho em baixo do mato Pai e mãe, foice e machado Pra botar roça no chão Pra poder ter sete fio bem criado Ter feijoal florado 32 E mio sortano pendão E pai se acordava no pé do dia Chamava Lica e maria e mãe e se acordava também Minino, se acorda sem teimosia Que já tá raiando o dia Passarada, cantoria, é hora de trabaiá E era assim a vida do povo da forquia E no sistema da roça, nossa vida maravia Prantava um pouco de tudo e de tudo se coia Só se comprava o sá, querosena e a pinguinha Na birosca do arraiá que quase nada tinha E na manhã de sexta-feira pai punha a tropa na tria Gorumgumba de tropeiro Lembro ligeiro dizia: Mete a manta na potranca, puxa amula de guia Fio, vamo pra cidade cum carga de farinha Mulé, aqui cum Deus e cuida bem das criançinha Se a gente não vorta hoje, só amanhã de tardinha Tem caruela pros capado e mio dibuiado Dá de cumê pras galinha E os restoio da quiçamba é ração das cabritinha Foi a derradeira vez que nóis fez essa viagem Cá na curva do ruturvo Antes de chegar na varge da Maria Caetana Encontremo a caravana cum a notícia da cidade Tava fazendo a picada pra estrada de rodage Pra encurtar essa conversa Pode acreditar meu moço Vi morro do Pedroso ser cortado pelo meio E essa estrada tão bonita que cantei nesse ponteio Foi trocada pelo asfarto frio, faminto e feio Roceiro virou pedreiro Trabalhando em construção Fez as casa do estrangeiro Grileiro de nosso chão Tropeiro patrão de burro Hoje é burro de patrão (PEREQUE, 2010, texto digital). No poema o tropeiro é apresentado no seu dia a dia, seja nas longas e curvas estradas ou até mesmo no rancho com a sua família. É nos pequenos detalhes que o tropeiro ia se constituindo. O tropeiro era o agente que levava as notícias e informações pelos seus caminhos, que abria as picadas, que contava suas estórias. São nesses caminhos que as nostalgias dos grandes feitos são sentidas, entretanto, nelas surgiram o asfalto frio, pois o roceiro com o passar do tempo tornou-se pedreiro, construindo as casas dos estrangeiros que chegavam. No final do poema, o autor faz uma analogia, manifestando o tropeiro, antes, como “patrão do burro”, pois carregava sua mercadoria por longos e difíceis caminhos na esperança de chegar aos mercados. Contudo, hoje, o tropeiro se 33 tornou um “burro de patrão”, pois abandonou sua sina, sobretudo, pela sua prosperidade econômica. 3.4.2 O tropeiro na música Segundo Moraes (2000), analisar a música é algo muito complexo para os historiadores, pois há necessidade de examinar os códigos e linguagens musicais. Entretanto, a música não deve ser impedida de ser utilizada na análise de questões culturais, pois as linguagens e códigos não devem impedir que o historiador manuseie canções como fontes históricas, pois elas podem auxiliar na compreensão iconográfica, bibliográfica, documental, cinematográfica, entre outras. De acordo com Napolitano (2002), as canções são ótimos instrumentos para a compreensão da história e da sociedade. A música não é apenas algo bom para se ouvir, mas também para se pensar. Experienciar musicalmente infere em atos de liberdade de criação e expõe comportamentos que autenticam o contexto histórico e cultural de qual o sujeito está inserido. Para isso, fora utilizada a canção “A Última Tropeada” composta por Edson Copetti para compreender nos versos as influências estéticas do tropeirismo na formação histórico-cultural. A Última Tropeada (Edson Copetti) – Alma de Galpão É com saudade que recordo das tropeadas Chuvas e geadas que dobrei com meus avios Naquele tempo em que a lida me levava Onde eu cruzava serras, matas, campos, rios Tinha na estampa a rudeza do campeiro E, por primeiro, o respeito com a boiada Não há notícia que eu perdi algum novilho Neste meu trilho de cruzar léguas de estrada Eira, eira, boi Vai levantando a poeira do estradão Trago no peito as lembranças do passado E esta saudade me machuca o coração Que coisa linda a comitiva estendida Seguindo a lida na direção do povoado E a gauchada com a cuscada em retoço Neste alvoroço iam gritando com o gado Quantas façanhas que ficaram como exemplo 34 Para esses tempos que nos versos eu bendigo E dava gosto de ver toda a gauchada Sempre disposta a matar ou morrer pelo amigo Eira, eira, boi Encilho o mate e a nostalgia me peala Nada se iguala a este passado de andanças Espero ainda rever as grandes tropeadas Que, desgarradas, só as tenho nas lembranças Tenho consciência que não fico pra semente Mas pros tropeiros que me orgulho e tiro o chapéu Igual ao boi na sua derradeira jornada Faço minha última tropeada lá pro céu Eira, eira, boi... Vai levantando a poeira do estradão Trago no peito as lembranças do passado E esta saudade me machuca o coração (ALMA DE GALPÃO, 2016, texto digital). Nos versos do canto é romantizada a figura do tropeiro e enaltecida a organização do movimento, especialmente o do transcorrer das tropas e dos “lindos” e “difíceis” caminhos até chegar aos povoados. Os versos expressam exaltação aos tropeiros no momento em que referem que era lindo como o tropeiro gritava com o gado e, principalmente a conexão de um tropeiro com o outro no decorrer da levada das tropas, sendo dispostos a morrer e matar pelo outro. O modo de vida tropeiro era vasto, complexo e levado como uma sina, pois segundo os versos, um tropeiro só deixava de tropear no momento da sua morte. Na letra da canção é possível sentir o amor pelo o que a tropeada significava para estes homens e também as lembranças deixadas para as gerações de filhos, netos e bisnetos. O orgulho pelo passado é evidente, sendo as tropeadas formadoras de uma cultura nos caminhos percorridos, seja nas vestimentas, no mate ou no modo de vida. De fato, a figura do tropeiro ficará na lembrança e as andanças vangloriadas na história. “Eira, eira, boi!” É esse sentimento que irá percorrer de geração em geração através dos versos da música, das poesias, etc. Como vimos ao longo deste capítulo, o tropeirismo pode ser estudado e representado da perspectiva historiográfica e literária a partir de diferentes aportes teóricos. O materialismo histórico priorizará uma análise econômica e política. Ao longo do século XX, as possibilidades de análise e representações historiográficas 35 expandiram-se abrangendo temáticas socioculturais. A literatura e a música, como supracitado, representaram daquela perspectiva estética o tropeirismo. 36 4 A ATIVIDADE TROPEIRA NA FORMAÇÃO TERRITORIAL MERIDIONAL: UMA ANÁLISE SOCIOECONÔMICA Ao longo deste capítulo, o tropeiro será abordado como um agente social que através de suas movimentações modificou os espaços, tanto de maneira econômica, quanto social e cultural. Logo, o tropeirismo será evidenciado como um movimento importante na constituição dos espaços meridionais, com a abertura de estradas e o surgimento de cidades. Essa importância da movimentação tropeira nos espaços será demonstrada através de aspectos historiográficos, arqueológicos e literários. 4.1 Interconectando caminhos: o sistema social de economia-mundo O sistema social de economia-mundo capitalista no século XVIII era movimentado por um mercado que demandava metais preciosos. No momento em que houve a descoberta do ouro em abundância no Brasil, principalmente na região das Gerais, a atividade econômica aurífera tornou-se centro das atenções da Coroa portuguesa. Contudo, houve uma estagnação desta atividade, especialmente quando houve a diminuição da mão-de-obra escrava que extraía e transportava este ouro ao litoral. Desta forma, a partir da movimentação econômica através da comercialização de cabeças de gado, o agente tropeiro acabou sendo inserido dentro deste sistema social para abastecer o mercado que necessitava de um meio de transporte a direcionar o ouro ao litoral e, consequentemente, à metrópole. [...] el sistema social es esencialmente una trama de relaciones interactivas. Las instituciones más centrales son, por ello, las directamente constitutivas de las pautas de essas relaciones mismas, a través de la definición de los estatus y roles de las partes en el processo interactivo. Esta primera categoría será llamada instituciones relacionales. En segundo lugar, los actores particulares, individuales o colectivos, actúan sobre la base de intereses que pueden ser independientes, en un grado mayor o menor, de las pautas moral-integrativas del sistema social, es decir, la misma colectividad total. De ahí que, en términos del sistema social, es la regulación de la persecución de estos intereses más bien que la definición constitutiva de las metas y médios (PARSONS, BLANCO, PÉREZ, 1966, p. 36). 37 Em virtude disso, mesmo que o agente tropeiro não soubesse diretamente dessa movimentação de mercado, acabou por interagir com estes atores através da comercialização de cabeças de gado, e desta forma, exerceu um papel imprescindível na formação territorial do Brasil. Essa movimentação comercial, sobretudo de muares, acabou tornando o mercado dependente, resultando como principal meio de transporte em território brasileiro no período colonial (BORGES, 2016): O tropeiro pode ser enquadrado, sem prejuízo, como um tipo social transitório entre o século das bandeiras e as novas formas de ocupação territorial e de transações econômicas erigidas a partir do século do ouro. Do sertanista, carrega o gosto pela aventura e a habilidade para percorrer os mais remotos rincões do território, graças ao sólido conhecimento acerca das antigas trilhas indígenas, que também foram amplamente utilizadas por bandeirantes. Porém, esse tropeiro já apresenta alguns traços de sedentarismo, devido à necessidade de instalar ranchos de tropa para descanso da comitiva durante a jornada, em lugares fixos ou estratégicos, e uma certa conexão com as práticas capitalistas de então, também por exigência da profissão, pois as negociações comerciais se davam nos ranchos de tropa (ALGATÃO, 2015, p. 41). Todavia, é importante destacar que este trabalho não tem como objetivo adentrar o conceito de sistema social, mas sim, compreender os fatores além do econômico. A intenção é complexificar a atuação dos tocadores de tropa ampliando a dimensão analítica e desviando-se o quanto possível da exclusividade da abordagem econômica e do romantismo da representação do mito fundador do tropeiro. Para isso, é necessário debruçar-se na importância do movimento tropeiro e compreender as influências socioculturais na constituição dos espaços percorridos. A partir de Hameister (2002) é possível constatar que essa complexidade do tropeirismo exigia certa organização das tropas, sempre buscando agradar o mercado interno, mesmo que não fosse lucrativo. O tropeiro deveria estar sempre atento ao que era demandado pelo mercado das populações interioranas para poder realizar uma conexão através da sua comercialização, qual fosse a diligência: alimentação, montaria, carga, tração, tiro, etc. Os estudiosos em geral se tem preocupado muito mais em analisar não só a produção de mercadorias destinadas ao mercado externo, como também o comércio exterior, ficando relegados para um segundo plano, ou inteiramente esquecidos, o comércio interno, a circulação de mercadorias e de capitais no interior e o abastecimento das populações integradas na economia de exportação, havendo apenas alguns estudos sobre o 38 abastecimento das áreas mineradoras e do litoral canavieiro do Nordeste (PETRONE, 1973, p. 383). A organização do movimento evidencia a importância das atividades adjacentes frente a um comércio interiorano de diversas demandas, desconstruindo a ideia de subsídio de uma atividade econômica principal. Assim, sendo possível identificar que o acúmulo de capital e a consolidação de diversas cidades do Brasil Meridional se devem principalmente à flexibilidade comercial e às influências socioculturais dos tropeiros. O tropeirismo contribuiu muito para o que houvesse disseminação de valores culturais de uma determinada região para outra, abrindo espaço, não somente em termos geográficos, mas também para que propagasse uma gama de conhecimentos, ampliando o repertório cultural dos povoados por onde passavam. É incontestável a importância da atividade e do ir e vir desses agentes para a formação social contemporânea do Sul do Brasil (FITZ, 2013, p. 22). Frasson e Gomes (2010) permitem perceber que a mula era uma mercadoria valorizada, além de que os tropeiros também transportavam diversos produtos de gêneros alimentícios e manufaturados, e através de suas circulações, eram muitas vezes intermediadores de informações. Como um processo da economia-mundo capitalista, a divisão mundial do trabalho e a distribuição desigual do excedente geram atividades centrais e periféricas conforme a capacidade de a aliança capital e Estado absorver excedentes dos vários elos das cadeias mercantis, por meios econômicos e extra-econômicos (ARIENTI; FILOMENO, 2007, p. 108). Desta maneira, é possível perceber que dentro da historiografia brasileira o movimento tropeiro fora referido como uma atividade econômica periférica da considerada atividade central, a da extração aurífera. Barroso (2006, p.171) afirma que, A história colonial do Rio Grande do Sul está intimamente ligada ao Tropeirismo. Entretanto a historiografia gaúcha, até o último decênio, ao referenciá-lo, vinha abordando perifericamente o tema e, também, focando sua importância desprovida de outros sentidos. Por fim, fica evidente que as atenções da historiografia gaúcha e brasileira estavam voltadas à legitimação e consolidação portuguesa nos espaços territoriais brasileiros. Assim, ignorou-se as influências sociais, culturais e até mesmo econômicas das movimentações tropeiras no surgimento de estradas e povoados. 39 4.2 A abertura de estradas Apesar do caráter econômico da movimentação tropeira, diversos autores aqui citados, informam a importância do tropeirismo no surgimento de caminhos e, como essa movimentação acarretou na composição social e cultural desses espaços. A partir disso, Silva (2010) provoca a pensar como o aumento da demanda de mercado acabou engrandecendo o olhar luso sobre o território. Desta forma, investiu-se na abertura de estradas, que por muito tempo foram caminhos desbravados que tinham o objetivo de afirmar as áreas de mineração. A abertura de estradas no Brasil Meridional fora importante para a economia colonial, contudo, as rotas por si só não eram suficientes. Com a expansão do mercado comercial, os tropeiros foram evidenciados como importantes figuras do comércio colonial durante o século XVIII. Assim, a abertura de estradas propiciou a ocupação de localidades e o estabelecimento de propriedades. Os tropeiros paulistas que desciam ao Sul em busca de gado, especialmente muar, percorriam o caminho litorâneo até chegar a Colônia do Sacramento, pois eram nessas regiões do Prata que estavam os maiores criadouros de gado muar. Esta rota percorrida, fora chamada de “Caminho da Praia”, pois ligava Laguna à Colônia do Sacramento pelo litoral (AMBROSINI; OLIVEIRA; FAVRETO, 2017). É importante destacar que o transporte das cabeças de gado pelo litoral fora bastante complicado, devido aos mais diversos caminhos serem melindrosos e inexequíveis fazendo com que novos trechos interioranos fossem explorados (THOMÉ, 2012). Esse caminho que tinha como objetivo conectar o extremo Sul do Brasil com os grandes mercados da região de São Paulo pode ser traçado tomando-se como referência a atual BR 101. A rodovia é chamada BR-101 Osório-Torres e fora implantada pelo DAER em 1948. Essa autoestrada fora inicialmente construída a partir da atividade muar com o transporte de pedras. A atuação muar somente fora sobreposta no momento em que houve o processo de aperfeiçoamento das atividades de construção das rodovias (CANTON, 2003). 40 Segundo Canton (2003) fora somente após Segunda Guerra Mundial que os equipamentos mais sofisticados foram comprados. Antes disso, grande parte das rodovias do Brasil Meridional foram construídas a partir do lombo das mulas, inclusive, a BR-101. É importante destacar que a movimentação das tropas era realizada por um sujeito e seus auxiliares, e, somente em raras exceções ocorria de outra forma. Desta forma, alguns tropeiros faziam também o papel de intermediação do gado à região das minas. Por fim, estes tropeiros intermediadores além de movimentar o gado para a região mineradora, também municiavam mercados consumidores. (GIL, 2002). Os campos tinham uma função importante para a movimentação do gado, as chamadas “estações-invernadas”. As invernadas tinham como objetivo, estabelecer, criar e circular o gado. As funções destes largos campos eram de alimentar estes animais por longos caminhos, destinando aos grandes mercados, sejam eles distribuidores ou consumidores. Algumas outras invernadas obravam de maneira diferente, muitas vezes, fazendo a regulação destes animais. (PETRONE, 1972). O estabelecimento das invernadas ocorria normalmente em regiões de largos campos e rios para que os animais pudessem se alimentar, como por exemplo, as planícies dos campos de Viamão. Assim, se originam diversas rotas que conectavam o Rio Grande do Sul com o restante do país, principalmente com os grandes mercados, que era o principal objetivo destes tropeiros (THOME, 2012). A divisão territorial do trabalho do tropeirismo no Brasil Meridional pode ser vista no mapa abaixo. Neste mapa, é possível identificar localidades voltadas à criação, as invernadas, a comercialização e também, as localidades que utilizaram as tropas como meio de transporte. Figura 1 – Mapa da divisão territorial do trabalho do tropeirismo. 41 Fonte: (STRAFORINI, 2001). Os caminhos tropeiros não apenas geograficamente foram importantes com a abertura e estabelecimento das invernadas, mas também foram de suma relevância a partir da mobilização comercial com a população local (HAMEISTER, 2002). [...] o tropeirismo do século XVIII, responsável pela abertura de estradas e caminhos que ligaram o planalto ao litoral, teve na mula a mercadoria que os tropeiros comercializavam para as áreas de mineração, servindo de transporte para manter a principal economia da Colônia Portuguesa na América. Entretanto esta atividade permitiu a abertura de inúmeras rotas de comércio, que posteriormente foram utilizadas na comercialização de bovinos, suínos e produtos agrícolas no Brasil meridional, além de tornarem-se referenciais para o estabelecimento de propriedades rural e povoado (FORTKAMP, 2009, p. 07). O processo de abertura de caminhos para o comércio do gado acaba possibilitando compreender a formação territorial meridional, e, não somente o caminho da Praia surge, como também outras vias de grande destaque, como o caminho de Viamão (denominado de Estrada Real), o caminho das Missões, etc. Estas rotas podem ser visualizadas no mapa abaixo. 42 Figura 2 – Mapa das rotas e localidades por onde passavam os tropeiros Fonte: (HAMEISTER, 2006). Silva (2010) apresenta em sua dissertação as implicações tropeiras na construção de espaços e paisagens sociabilizadas e vivenciadas por cada agente e em diferentes períodos. Assim, através da arqueologia com abordagens que ultrapassam análises funcionais, buscou aproximar esses sujeitos da realidade histórica. A convivência de diferentes grupos e indivíduos em uma mesma área, as tensões e negociações constantes e necessárias deste convívio, geram uma paisagem que não apresenta as características particulares de uma só parcialidade. Tampouco o mesmo sentido e significado para cada grupo ou indivíduo. A espacialidade e, consequentemente, a paisagem resultante, 43 conterá elementos e significados de quantos forem os atores e grupos envolvidos neste espaço. Gerando uma paisagem e uma espacialidade únicas, que só tem e adquirem sentido naquele espaço, em um determinado tempo (FRAGA, 2010, p. 26). Ainda segundo Silva (2010) as mais diversas estruturas que foram estabelecidas por tropeiros, como: os locais de pouso, as vendas, os currais, entre outras, movimentaram os espaços. A Coroa Portuguesa também impactou nessas movimentações espaciais com a criação de postos de registros e arrecadação de impostos em certos pontos estratégicos. Fora através do uso do espaço com estratégias materiais e de ocupação que se designou um novo sentido de espacialidade, sobretudo, com as relações de dominante e subordinado, criando-se um “campo de forças”. [...] não foi somente a formação das Vacarias que deu diferentes faces a paisagem da região. Com a emergência de um mercado consumidor, nas áreas mineradoras, aumentava a demanda do gado vacum e muar abundantes no sul da América. No entanto, para exploração das Vacarias e transporte do gado algumas rotas foram abertas. Procurei, ao comentar três rotas que cruzaram a região sul, compreender estes espaços de movimento como novos elementos de uma espacialidade que deixava transparecer suas principais características: um espaço socialmente elaborado, conhecido, nomeado e experimentado através do qual surgia uma nova paisagem (SILVA, 2010, p. 162). A partir das preocupações ambientais de preservação e conservação, houve uma valorização dos patrimônios naturais e culturais em contexto mundial durante o século XX. As modificações geomorfológicas realizadas pelos tropeiros na abertura de estradas possibilitaram, a partir desse momento, a realização de atividades geoturísticas. Essas atividades puderam incentivar e oportunizar o desenvolvimento econômico e cultural dos mais diversos municípios ao longo dos caminhos percorridos pelas tropas (CASSOL PINTO, 2013). Na literatura, o tropeiro aparece como desbravador de caminhos em diversos livros, como em “O Gaúcho “, de José de Alencar, em poesias como “Ao Tropeiro” de Florisbela Zimmermann, e em diversos poemas como “Romance do tropeiro doido” de Aureliano Pinto. E, a partir da construção literária do imagético e do textual que se percebe aproximações sociais e culturais, tanto no âmbito material, quanto no subjetivo. A figura do tropeiro é representada a partir de lembranças, recordações, lugares, objetos, etc. É a partir da memória, da imaginação, da materialidade e de outras manifestações, que são construídas diversas realidades 44 culturais de grupos sociais que vão surgindo ao longo das passagens tropeiras (CHARÃO, 2009). Charão (2009) afirma que dentro da literatura, o tropeiro é definido como um condutor de cabeças de gado e responsável pela compra e venda dessas tropas. Entretanto, dentro da poesia gauchesca, o tropeiro adquire características diferenciadas e uma maior expressividade quando relacionado a temas da formação do Rio Grande do Sul. O tropeiro é destacado nas obras literárias como um agente diferenciado no trato com as atividades executadas e muitas vezes, dentro dos fatos narrados, os autores aparecem como espectadores dessas realizações, fazendo referências a aspectos socioculturais, como os modos de vida, costumes, as próprias tropeadas e invernadas. 4.3 O surgimento de cidades De acordo com Thomé (2012) ao longo dos caminhos tropeiros, as pousadas deram origem a currais, fazendas e povoados. A abertura de vendas nessas localidades significava prosperidade. As mais diversas estruturas promoviam o aparecimento de núcleos populacionais, que mais tarde fizeram surgir grandes cidades. Nesse vaivém, constante, realizavam as tropas importante intercâmbio econômico e social, portadoras que eram de vida e civilização juntamente com os volumes alçados às cangalhas. Nas suas constantes viagens, traçavam um emaranhado de comunicações entre cidades, vilas, povoados, vilarejos, ao mesmo tempo que estabeleciam o contato dessas comunidades [...] (GOULART, 1961, p. 64). Existem documentos que retratam diversas cidades que surgem nos caminhos percorridos por tropeiros no Brasil Meridional. Desta maneira, utilizarei de exemplos de cidades e municípios de Santa Catarina para falar da importância do tropeirismo no seu surgimento ao longo dos caminhos e na origem dos seus nomes. O caminho das tropas que fora iniciado por volta do ano de 1797, por exemplo, traça diversos municípios de Santa Catarina, como: Lages, Águas Mornas, São José, São Pedro de Alcântara, etc. O tropeirismo acabou influenciando fortemente no modo de vida e na cultura local dessas cidades. A cidade de Rancho 45 Queimado, por exemplo, foi fundada por imigrantes alemães, mas teve suas origens herdadas em um nome tropeiro. Há histórias que retratam que naquela região diversos tropeiros passavam a noite em um rancho que acabou incendiado, constituindo-se assim o nome de Rancho Queimado (BAUER; SOHN, 2018). Além disso, é possível perceber as ligações comerciais e sociais entre diversas vilas ao longo dos caminhos tropeiros até a região de Sorocaba, sobretudo, através de casos específicos como o do Major português Antônio Novaes Coutinho. Este Major era casado com Ana Brandina de Almeida Novaes que faleceu no ano de 1847 na vila de Castro, no Paraná. Antônio e Ana possuíam largos campos e terras, além de 22 escravos. Todavia, a morte de Ana fez Coutinho se transferir para a vila de Cruz Alta, pois ali aparecia como vereador eleito desde o pleito de 1834. Assim, ficando evidente uma conexão interprovincial com a demanda de cabeças de gado no percurso dos caminhos (ARAÚJO, 2008). No mapa abaixo é possível visualizar as 3 principais rotas de tropas. Estes trajetos eram chamados de: Caminho das Missões (ou Palmas), Caminho da Vacarias dos Pinhais e Caminho de Viamão. 46 Figura 3 – Mapa da região marcado por caminhos (2007) Fonte: (ZUCCHERELLI, 2008, p. 11). A partir disso, selecionei três cidades que estão entre os caminhos, sendo uma do Rio Grande do Sul, uma de Santa Catarina e outra do Paraná. Desta forma, tratarei da origem dessas cidades e da sua vinculação com o tropeirismo. 4.3.1 Cruz Alta – Rio Grande do Sul No início do século XIX houve a necessidade de abastecimento dos centros consumidores e distribuidores de cabeças de gado, principalmente em São Paulo. A partir dessa demanda, é possível identificar através da análise de inventários post- mortem de grandes fazendeiros de Cruz Alta que há diversos animais cavalares e muares sendo reproduzidos nas fazendas dessa região (SANTOS, 2010). 47 A partir de Santos (2010), percebe-se que o povoamento do Planalto Médio iniciou por volta de 1816, a partir de uma expedição comandada por Atanagildo Pinto Martins. Fora através da oficialização da Estrada das Missões que houve maior movimentação das tropas em direção ao oeste do Rio Grande do Sul. Assim, muitos militares e tropeiros paulistas, sobretudo, oriundos dos Campos Gerais, começaram a movimentar em direção a essas extensas terras e se apropriarem delas através da concessão de posse. O principal objetivo desses homens era de formar enormes estâncias pastoris para a criação de animais. Após a Expedição de 1816, pode-se verificar o aumento do fluxo migratório para o Planalto Médio, especialmente de militares e tropeiros procedentes dos Campos Gerais do Paraná. Fundaram-se nesta região estâncias pastoris destinadas à criação de muares e invernada das tropas que seguiam rumo a São Paulo. Com o aumento da circulação das tropas pela Estrada das Missões surgem os primeiros núcleos urbanos, originários de pontos de infraestrutura destinada aos tropeiros (SANTOS, 2010, p.19). Santos (2010) afirma que essa enorme extensão de campos propiciou às invernadas, pois essas paradas faziam com que diversos animais advindos da região fronteiriça e de países vizinhos pudessem se adaptar as terras e ao clima da região. A movimentação do tropeirismo nessa região promoveu um fluxo migratório maior para a região do Planalto Médio, fazendo com que surgissem diversos núcleos populacionais que eram destinados a abastecer as necessidades dos tropeiros, e um exemplo disso, é Cruz Alta. A cruz alta tornou-se ponto de invernada e um grande pouso para milhares de tropeiros oriundos das fronteiras com a Argentina e Uruguai, que se dirigiam até a Feira de Sorocaba para comercialização dos animais. O local consolidou-se ainda no final do século XVIII como Pouso dos Tropeiros e muitos passaram a residir nas proximidades, até que, no início do século XIX depois de uma tentativa sem sucesso, mudaram-se então mais para o norte estabelecendo-se onde hoje está o município de Cruz Alta, cuja fundação deu-se no dia 18 de agosto de 1821 em resposta a uma petição feita pelos moradores (IBGE, 2012, p. 01). Desta forma, é possível perceber a partir do estudo do povoamento da região do Planalto Médio, que há uma motivação econômica para o estabelecimento das estâncias. É especialmente a partir da apropriação dos largos campos que há o estabelecimento de cabeças de gado e paradas, chamadas de invernadas. As motivações econômicas acabaram fazendo com que surgissem núcleos populacionais, e, desta forma, estes núcleos foram se aperfeiçoando no atendimento a demandas infra estruturais dos tropeiros, fazendo com que houvesse influências socioculturais. 48 4.3.2 Lages – Santa Catarina A região que compreende o município de Lages na atualidade, fora um cenário de lutas políticas e econômicas durante séculos. Inicialmente, o povoado fora criado para defender o território pertencente a Coroa portuguesa frente a ataques espanhóis. Todavia, ao longo do tempo, adquiriu maior relevância por estar em localização estratégica em meio a passagem do Caminho das Tropas, que partia de Viamão à Sorocaba. Antônio Correia Pinto de Macedo fora um bandeirante paulista e um dos primeiros povoadores portugueses a chegar na região dos campos de Lages. Pinto de Macedo e diversos familiares foram centrais no desenrolar de acontecimentos políticos e administrativos, de Lages e de Santa Catarina. A fundação de Lages no século XVIII esteve intimamente ligada a defesa das terras da colônia portuguesa de ataques espanhóis (BOGACIOVAS, 1999). Sob a jurisdição de Rio Grande, os campos de Lages passaram ao domínio dos paulistas, através da bandeira de colonização para a fundação dirigida de Lages, do abastado Antônio Correia Pinto em 1766 (fundando oficialmente a Póvoa em 1771), para resguardar o caminho de Viamão a São Paulo, fixando, assim, mais um ponto de defesa (contra os espanhóis) na colônia meridional (BASTOS, 2011, p. 39). Segundo Bastos (2011) o povoado que compreende os campos de Lages, serviam de pouso e pastagem para as tropas de muares ou cavalares que rumavam para a região das minas. Desta maneira, o local acabou se configurando economicamente através da pecuária. A região de Lages por ter extensos campos e um relevo homogêneo, acabou sendo favorecida nesta atividade econômica. Assim, a estrutura deste território era composta por um latifúndio com grandes fazendas que aumentavam gradativamente suas criações. O desenvolvimento da região acabou sendo repentino, fazendo com que houvesse migrações de muitas famílias para esta região (BASTOS, 2011). Francisco de Souza e Faria foi um Sargento-Mor que traçou os caminhos chamados de Estrada dos Conventos que partem do litoral aos Campos de Cima da Serra, estimulando incursões para melhor exploração da serra catarinense. Muitas famílias e tropeiros começaram a povoar a região chamada de “Sertão das Lagens”, 49 por Souza e Faria. Essa localidade era composta por inúmeros pinhais que formavam terras admiráveis para criação de gado (HERBERTS, 2009). Correia Pinto selecionou algumas famílias para povoar a região através de profissões indispensáveis para sua prosperidade: eram carpinteiros, ferreiros, obreiros, etc. Os moradores que se estabeleceram na região, além de empregar suas profissões eram tropeiros ou criadores de gado. Essas profissões exercidas faziam com que se tornassem negociantes natos. Correia Pinto fora um comerciante que tinha posse de muitas terras, e, dentro dessas terras haviam engenhos, uma ferraria, uma olaria etc. Antônio Correia Pinto produzia ferramentas indispensáveis como pás, foices, enxadas, além de farinhas de milho e trigo que eram comercializadas com a população local, e, o excedente para os mercados da região de Curitiba e Sorocaba (COSTA, 1982). Devido a impossibilidade de utilizar as vias de maneira direta para o escoamento da produção local, a maioria dos produtos eram mantidos em consumo interno (COSTA, 2001). Este débil comércio somente sobreviveu devido à região ser um entreposto de venda de cabeças de gado com preços favoráveis e, sobretudo, pela proximidade ao Caminho dos Conventos (BASTOS, 2011). Por fim, a região de Lages acabou sendo fundamental para a criação e distribuição do gado para o abastecimento de tropeiros que comercializavam nos mercados, sobretudo, de Sorocaba e das minas no século XVIII. Desta forma, fica claro que o surgimento de povoados, além de caráter protecionista para a coroa Portuguesa, configurava-se de maneira socio comercial ao abastecimento de tropas e ao desenvolvimento de um comércio interiorano. 4.3.3 Castro – Paraná Segundo Fitz (2013) existiam algumas localidades que ofereciam condições adequadas para realização das invernadas, e um desses lugares constitui a atual cidade de Castro. Era natural ocorrer alagamentos e outros contratempos na região, especialmente pela localidade estar próxima ao rio Iapó. 50 O chamado “Pouso de Iapó” constituiu-se como uma localidade propícia para plantio e criação de animais. Assim, a paragem passou a desenvolver atividades tropeiras na região, sobretudo, através de intermédios na compra de cabeças de gado no Rio Grande do Sul (FITZ, 2013). A área correspondente à atual cidade de Castro estava localizada próxima a chamada Rota dos Tropeiros, e, pela fertilidade da terra e pelos largos campos para criação de animais, acabou impulsionando-se economicamente no envolvimento com o tropeirismo (FITZ, 2013). Castro teve a sua origem ligada ao requerimento da sesmaria por Pedro Taques de Almeida, cuja finalidade era a implantação de currais e invernadas para criação de bovinos e muares. Com a inauguração da Sesmaria de Sant´Ana do Iapó dá-se início à ocupação dos Campos Gerais (FITZ, 2013, p. 19). Fitz (2013) afirma que o desenvolvimento do “Pouso de Iapó” acabou sendo tão considerável que se transformou em uma freguesia chamada de Sant’Ana do Iapó. Dentro dessa freguesia já havia uma capela, residentes regulares, diversas fazendas ocupadas e até mesmo um comércio abundante, sobretudo, pela movimentação de tropas. Em 1788, a Freguesia de Sant’Ana do Iapó foi elevada à categoria de vila, denominando-se Vila Nova de Castro. No início do século XIX, Castro já era uma vila reconhecida por seu envolvimento nas atividades tropeiras e pecuaristas (FITZ, 2013, p. 20). Para Fitz (2013) graças a movimentação tropeira houve uma mudança na percepção sobre trabalho. O tropeiro por ter uma sina de desbravador e de aventureiro acabou criando um ideal de valores e princípios que influenciaram a população ao longo dos caminhos, dignificando a ideia de trabalho e a todos que o desempenhavam. A cidade de Castro, mesmo com a chegada de muitos imigrantes europeus preservou uma herança tropeira. Isso permitiu que esses traços fossem vistos até os dias de hoje, repercutindo no modo de vida e na cotidianidade dos habitantes. Na imagem abaixo, é possível perceber através de um pequeno monumento a representação de um legado deixado por tropeiros. 51 Figura 4 – Monumento tropeiro na entrada da cidade de Castro - PR Fonte: (FITZ, 2013). Por fim, este capítulo não apenas evidencia as influências socioculturais dos tropeiros no surgimento de estradas e de cidades, mas também provoca a pensar que as atividades tropeiras vão além das questões econômicas. Dessarte, a movimentação tropeira não deve ser considerada subjacente de uma economia central que busca legitimar um Estado Nacional em solo brasileiro, e sim, uma atividade emancipadora que modifica os espaços através de suas interações sociais, culturais e até mesmo econômicas. 52 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da revisão bibliográfica realizada, fora possível perceber que a historiografia brasileira estava preocupada em legitimar a ocupação e as atividades econômicas da Coroa Portuguesa em território brasileiro. Desta forma, considerou- se que as atividades que surgiram em meio a apoderação do espaço por parte de Portugal, eram subjacentes ou auxiliares deste processo. Assim, a crítica à história econômica fica evidente no momento em que tudo se vertebraliza em dados econômicos para legitimar a ocupação portuguesa no Brasil. Estes dados buscavam assegurar que atividades econômicas centrais que eram orquestradas pela coroa portuguesa fossem principais na constituição da população que surge em meio aos caminhos. Dessarte, ocultando as atividades adjacentes e as questões socioculturais que eram estabelecidas nas relações com a população interiorana. Desta maneira, compreender a atividade tropeira dentro de um sistema social de economia-mundo fora necessário para entender a mentalidade econômica e comercial que surge em meio a este espaço. Ainda que, ignorassem as demandas características do período, os tropeiros compunham o projeto colonial arquitetado na metrópole. É a partir da ação e da interação individual de diversos atores dentro do território, que se percebe aproximações com interesses comerciais. Contudo, apesar do caráter econômico, as ações do tropeirismo provocaram modificações socioculturais no estabelecimento de povoados que surgiram em meio aos caminhos meridionais. Apesar da produção bibliográfica arqueológica ser bem limitada comparada a historiográfica é possível perceber através da Arqueologia da Paisagem, que utiliza métodos de pesquisa documental, seja cartográfica, iconográfica e até mesmo 53 textual, que as movimentações tropeiras modificaram os espaços através da construção de pousos, de currais, de vendas, etc. Além disso, com as preocupações ambientais de preservação das espacialidades em contexto do século XX, houve uma valorização de patrimônios naturais e culturais. Assim, muitas localidades que tiveram modificações geomorfológicas provocadas pelas movimentações tropeiras, foram incentivadas e “surfaram a onda” do geoturismo para o seu crescimento econômico. A partir de uma perspectiva estética da literatura e da música, o tropeiro aparece como um herói desbravador de caminhos. Essas construções literárias, sobretudo, do imagético e textual, apontam para questões socioculturais em âmbito material e subjetivo. O tropeirismo é representado a partir de lembranças, lugares, objetos, etc. Desta forma, a movimentação tropeira possibilitou através da materialidade e da subjetividade uma construção social e cultural de diversos grupos que se formaram ao longo dos caminhos e na consolidação dos espaços. A abertura de caminhos como o de Viamão, da Praia e das Missões propiciaram melhores condições de buscar este gado ao Sul. Assim, o estabelecimento de diversas localidades para o abastec