0 CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE DIREITO UNIFORMIZAÇÃO JURISPRUDENCIAL: ANÁLISE DOS ARTIGOS 926 E 927 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 André Otávio Pfeifenberg Lajeado, junho de 2016 1 André Otávio Pfeifenberg UNIFORMIZAÇÃO JURISPRUDENCIAL: ANÁLISE DOS ARTIGOS 926 E 927 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Curso II – Monografia, do Curso de Direito, como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Profa. Ma. Loredana Gragnani Magalhães Lajeado, junho de 2016 2 André Otávio Pfeifenberg UNIFORMIZAÇÃO JURISPRUDENCIAL: ANÁLISE DOS ARTIGOS 926 E 927 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 A Banca examinadora abaixo aprova a Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Curso II – Monografia, na linha de formação específica em Direito do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para a obtenção do grau de Bacharel em Direito: Profª. Ma. Loredana Gragnani Magalhães Centro Universitário UNIVATES Profª. Ma. Alice Krämer Iorra Schmidt Centro Universitário UNIVATES Prof. Luís Felipe Eloy Centro Universitário UNIVATES Lajeado, 29 de junho de 2016 3 RESUMO O Código de Processo Civil, o qual entrou em vigor em 18 de março de 2016, incluiu ao sistema jurídico nacional, importantes inovações, como o estabelecido no artigo 926. Através deste artigo, os tribunais têm o dever de uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente. Desta forma, a presente monografia tem como objetivo geral verificar como o Código de Processo Civil de 2015 prevê a nova forma de uniformização jurisprudencial, sendo analisados os artigos 926 e 927 do referido código, referentes à introdução do instituto dos precedentes e modificação dos conceitos de súmula e jurisprudência. Trata-se de pesquisa qualitativa, constituída pelo método dedutivo e de procedimentos técnico bibliográfico e documental. Dessa forma, o estudo começa pela evolução histórica dos dois sistemas jurídicos predominantes no ocidente, o sistema civil law e o common law. Em seguida, será tratada a evolução do direito processual brasileiro, a aproximação do sistema brasileiro com o do common law, continuando com a análise do processo civil no estado constitucional e a abordagem da evolução do instituto da uniformização jurisprudencial. Finalmente, no último capítulo se fará propriamente a análise dos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil de 2015, a verificação se o novo sistema de uniformização jurisprudencial será capacitado para uma verdadeira uniformização da jurisprudência dos tribunais superiores e a vinculação dos tribunais inferiores. Nesse sentido, conclui-se que há uma necessidade de o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal serem cortes Supremas, as quais unificam a jurisprudência através da utilização dos precedentes, das sumulas e da jurisprudência vinculante. Há também a necessidade do posicionamento dominante adotado pelas cortes Supremas ser vinculante para os demais tribunais inferiores, assim garantindo a estabilidade das decisões e propriamente o princípio da segurança jurídica. E que, essa vinculação, em nada interfere na independência do magistrado de primeiro grau em análise do processo. Palavras-chave: Uniformização jurisprudencial. Processo civil. Precedentes. Jurisprudência. 4 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 6 2 SISTEMAS JURÍDICOS ........................................................................................... 9 2.1 Noções gerais dos sistemas de civil law e common law ............................... 10 2.1.1 Sistema jurídico de civil law .......................................................................... 11 2.1.2. Sistema jurídico do common law ................................................................. 17 2.1.2.1 Dualismo: common law e equity ................................................................ 21 2.1.2.2 Trust ............................................................................................................. 23 2.1.2.3 Common law nos EUA ................................................................................ 24 2.1.2.4 Modernização do sistema de common law ............................................... 26 2.2 Fontes do direito ............................................................................................... 27 2.2.1 Lei como fonte de direito ............................................................................... 29 2.2.2 Jurisprudência como fonte de direito .......................................................... 31 3 SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO: APROXIMAÇÕES ENTRE CIVIL LAW E COMMON LAW ........................................................................................................ 34 3.1 Evolução do direito processual brasileiro ...................................................... 34 3.1.1 Brasil entre civil law e common law ............................................................. 38 3.1.2 O processo civil no Estado Constitucional .................................................. 40 3.1.2.1 Dignidade da pessoa humana .................................................................... 42 3.1.2.2 Segurança jurídica ...................................................................................... 44 3.2 Uniformização jurisprudencial ......................................................................... 46 3.2.1 Incidente de uniformização jurisprudencial ................................................. 48 3.2.2 Súmula vinculante .......................................................................................... 50 3.3 Precedentes ....................................................................................................... 51 4 ANÁLISE DOS ARTIGOS 926 E 927 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 .......................................................................................................................... 55 4.1 O dever dos tribunais de uniformizar sua jurisprudência ............................. 56 4.1.1 Dever do tribunal de manter a estabilidade, integridade e coerência. ...... 60 4.2 Precedentes, jurisprudência e súmulas .......................................................... 63 4.2.1 Precedentes no sistema processual brasileiro ........................................... 66 4.3 Sistemas vinculatórios no Código de Processo Civil .................................... 69 4.3.1 Como uniformizar a jurisprudência em casos que não são absolutamente iguais ........................................................................................................................ 73 5 4.3.2 Conflitos entre a independência funcional do juiz e os precedentes vinculantes ............................................................................................................... 74 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 79 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 83 6 1 INTRODUÇÃO Na tradição do sistema do civil law, o juiz deve aplicar literalmente a lei, como se ela não comportasse interpretação diversa, simplesmente investigando o texto e declarando a norma contida nele, com relevância àquele caso em análise. Assim, a interpretação da letra fria da lei no caso concreto se torna uma operação lógica. Já no sistema do common law, o juiz é peça chave na solução das lides, é ele quem estabelece o entendimento quanto ao que se pronunciará de decisões posteriores. Desta feita, no sistema do common law, a jurisprudência e os precedentes é quem tomam o lugar da lei, assim estabilizando o entendimento ao caso concreto. No sistema jurídico brasileiro, a constatação que diariamente são proferidas decisões que destoam da posição predominante de um tribunal superior gera certa inquietação na população, quanto à garantia dos princípios de estabilidade e de segurança jurídica. A posição de uma Corte Superior não deve ser deixada de lado, apenas, por simples entendimento dos magistrados de tribunais inferiores e dos de primeiro grau sem uma completa análise. Atualmente ainda, no momento de proferir uma decisão o juiz brasileiro faz a integração das normas, remetendo a julgados anteriores, se utiliza de súmulas vinculantes, de analogias e de doutrina, assim garantindo que sempre ocorra a melhor resolução da lide exposta. Nota-se assim, que o magistrado não está somente vinculado à letra fria da lei, ele tem alternativas, sendo algumas delas, institutos que são verificados na família jurídica do common law. Verifica-se aí, a aproximação, que com o passar dos anos, está estreitando laços entre os dois maiores sistemas do ocidente. 7 O Código de Processo Civil (CPC) de 2015 trouxe ao ordenamento jurídico, mudanças significativas, com novos princípios e temas, até então pouco explorados em nosso ordenamento jurídico. O artigo 926 inova o ordenamento infraconstitucional brasileiro, ao dispor o dever dos tribunais em buscar a uniformização de sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente, prevendo, assim, deveres gerais para os tribunais no âmbito da construção e manutenção de um sistema de precedentes. O dever de uniformização pressupõe que o tribunal não pode ser omisso diante de divergências internas, devendo sintetizar sua jurisprudência dominante. As decisões da Suprema Corte ao definirem o sentido do direito, conferem-lhe unidade revelando o sentido jurídico da norma que deve regular a vida em sociedade, a solução de conflitos e guiando a decisão em casos iguais. A previsibilidade jurídica é algo imprescindível para se conviver em um Estado de Direito. Nesse sentido, o presente trabalho pretende, como objetivo geral, fazer uma análise dos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil de 2015, e desvendar como se dará a busca pela uniformização da jurisprudência nos tribunais brasileiros. Assim, como problema é questionado: como o Código de Processo Civil de 2015 prevê a uniformização jurisprudencial? Como hipótese para tal questionamento, estabelece o artigo 926 do Código de Processo Civil de 2015 que, os tribunais deverão uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente, se utilizando da edição de súmulas, respeitando pressupostos do regimento interno, correspondentes a sua jurisprudência dominante. Porém, ao editarem enunciados de súmulas, deverão ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes, os quais motivarão suas criações e os precedentes que nortearão futuras decisões. Ainda, o artigo 927 da mesma lei traz que os juízes e os tribunais deverão observar decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), enunciados de súmula, acórdãos e orientações do plenário ou do órgão especial a que estiverem vinculados. A pesquisa teve o caráter subjetivo para a abordagem do tema, adotando assim, o modelo qualitativo, o qual de acordo com Mezzaroba e Monteiro (2014), é o exame focado na natureza do conteúdo pesquisado e a interpretação possível atrelada à delimitação do pesquisador. O método utilizado para elaboração desta pesquisa foi o dedutivo, o qual, segundo os autores, parte de um pressuposto mais 8 amplo de análise, como o enfoque evolutivo, histórico, reconhecimento de técnicas e noções gerais para findar em uma análise mais aprofundada do tema central mais específico proposto no trabalho. Assim, a pesquisa baseou-se em doutrina, artigos de publicação periódica, legislação e materiais de estudiosos da área encontrados em sites especializados. Desta forma, inicialmente será feita a abordagem da evolução histórica dos sistemas de civil law e common law, e a evolução do sistema jurídico brasileiro, passando pelos princípios constitucionais e processuais ligados à uniformização jurisprudencial e também sua evolução histórica, findando com a análise da técnica da uniformização jurisprudencial presente no Código de Processo Civil de 2015. Desta forma, para ser possível uma boa compreensão do tema abordado, no primeiro capítulo da monografia tratará sobre a evolução histórica dos principais sistemas jurídicos do ocidente: o civil law e o common law, assim como, se fará uma abordagem das fontes principais de direito desses dois sistemas – sendo elas em destaque a lei, como primordial do sistema de civil law e a jurisprudência, essencial para o sistema do common law. No segundo capítulo será abordada a evolução do sistema processual brasileiro, passando após há análise do processo civil no Estado Constitucional e os princípios da dignidade da pessoa humana e o da segurança jurídica. Ainda, se verificará a evolução do conceito de uniformização jurisprudencial, que começa com os assentos em Portugal, passa a ser o incidente de uniformização jurisprudencial do Código de Processo Civil de 1973 e a mudança pra o CPC de 2015, com a análise do que vem a ser precedente. O terceiro capítulo, do presente trabalho, culminará com a análise de fato dos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil de 2015. Primeiramente se abordará o artigo 926 e o dever de uniformizar a jurisprudência pelos tribunais mantê-la estável, íntegra e coerente, observando para tanto os seus parágrafos. Ainda se fará a diferenciação de precedente, súmula e jurisprudência que o código de 2015 impõe e a abordagem do sistema de precedentes. Ainda se verificará o sistema vinculatório estabelecido no artigo 927 do Código de Processo Civil de 2015, e se examinará se o sistema vinculatório interferirá na independência funcional dos magistrados de primeiro grau, em suas decisões. 9 2 SISTEMAS JURÍDICOS O direito em vários países é inegavelmente diferente, porém, pode-se de certa forma, observando seus elementos essenciais, fundamentais e estáveis desvendar regras, interpretando-as e atribuindo assim valores. Segundo Silva e Gomes (2006, p. 11) “os juristas que se dedicam ao estudo da história do direito e do direito comparado costumam classificar os sistemas contemporâneos em grandes famílias jurídicas”. Desta forma, destaca David (1996, p. 16), que é possível “agrupar os diferentes direitos em „famílias‟, da mesma maneira que nas outras ciências, deixando de parte as diferenças secundárias”, reconhecendo assim a ligação de famílias à religião, a linguística ou de ciências naturais. Assim, utilizando-se do conceito de famílias jurídicas, David (1996, p. 17), reúne três grupos de direitos, os quais ocupariam uma situação proeminente no mundo contemporâneo: a família romano-germânica, a família dos sistemas socialistas e os sistemas filiados à commom law. Todavia, cabe salientar que esses três grupos estariam, nas palavras do doutrinador, “longe de dar conta de toda a realidade do mundo jurídico contemporâneo”. Segundo Silva e Gomes (2006), deve-se ter certas ressalvas ao adotar essa tentativa de formação de grupos, pois, o fenômeno jurídico é um ramo do saber humano, assim, não se harmonizando com o conhecimento sistemático, típico das ciências da natureza. 10 Desta forma, Silva e Gomes (2006, p. 11-12) esclarecem: O direito, enquanto ciência hermenêutica, busca o individual, em toda sua riqueza existencial e histórica, e, mesmo admitindo que se o descreva como sistema, como é própria das ciências explicativas, que buscam alcançar o domínio da natureza e a construção de princípios e regras de validade universal, sua vocação natural orienta-o para a compreensão do fenômeno humano, que será sempre situado historicamente (SILVA E GOMES, 2006, p. 11-12). Ainda, conforme os doutrinadores, para poder fazer a reunião de vários sistemas em uma única família, deve-se abstrair de cada unidade as mais notórias individualidades e reagrupar observando alguns princípios genéricos. Todavia por causa dessa separação peculiar deixa-se de observar alguns aspectos, às vezes, mais relevantes. O Brasil, que possui colonização portuguesa, se fundou no sistema da família, destaca por Silva e Gomes (2006), denominada romano-germânica. Desta família jurídica fazem parte a Alemanha e os países de origem latina – França, Itália, Portugal e Espanha -, assim também os países fora da Europa, na América – países de colonização espanhola, francesa e holandesa –, inclusive alguns países da África – que têm vínculo com os países colonizadores da Europa. Apesar de poderem ser separadas em “famílias”, há de se ter em mente que os sistemas jurídicos de uma forma geral sofrem interferências constantes uns dos outros, decorrentes das interações globais intensas, como: sociais, econômicas e culturais. Nesse sentido, é importante para o desenvolvimento deste trabalho a análise das duas grandes famílias de destaque no ocidente, pois essas têm influência direta no meio jurídico adotado no Brasil. Assim, o presente capítulo abordará a evolução histórica do sistema de civil law e common law, suas diferenças e interações, ao final deste capítulo será verificado a questão das duas principais fontes de direito ligadas aos dois sistemas, sendo essas a lei e a jurisprudência. 2.1 Noções gerais dos sistemas de civil law e common law As normas processuais sofreram grandes alterações desde seu surgimento. Sistemas jurídicos tradicionais como o common law e o romano-germânico, ou civil law, surgiram no continente europeu e suas raízes se espalharam por outros 11 continentes por meio da colonização, como o caso do continente americano. Atualmente, esses dois sistemas estão de certa forma interagindo, formando, assim, um sistema híbrido. Os dois principais sistemas jurídicos atuais do ocidente são o sistema de common law, adotado em países anglo-saxônicos; e o sistema de civil law ou direito romano-germânico, adotado, segundo Branco (2003), em países da África e da Ásia, assim como, de modo geral, os países latinos também podem ser incluídos nesse sistema. Complementa David (1996, p. 20): A common law conserva hoje a sua estrutura, muito diferente da dos direitos romano-germânicos, mas o papel desempenhado pela lei foi aí aumentado e os métodos usados nos dois sistemas tendem a aproximar-se; sobretudo a regra de direito tende, cada vez mais, a ser concebida nos países de common law como o é em países da família romano-germânica. Durante o decorrer dos séculos, países de direito romano-germânico e de common law, tiveram diversos contatos. Para ambos os lados houve influências da moral cristã, assim como, as doutrinas filosóficas puseram em primeiro plano o individualismo, o liberalismo e a noção de direitos subjetivos. Em diversos países não se tem como distinguir a qual família de direito o país pertence, ocorrendo em alguns a mistura das duas famílias. (DAVID, 1996). 2.1.1 Sistema jurídico de civil law No sistema da civil law ou família direito romano-germânico, a fonte para resolução de conflitos basicamente é a lei escrita, geral e abstrata, sendo o Poder Legislativo o responsável pela sua elaboração. Esse sistema abrange todos os países que formaram sua base jurídica sobre o direito romana. O doutrinador David (1996) menciona que as regras de direito originalmente concebidas nestes países são voltadas à preocupação de justiça e moral, e que somente a partir do século XIX atribuíram papel importante à lei, as quais foram reunidas em códigos. 12 O sistema do civil law teve sua origem no século XIII, na Europa Continental, sendo ainda seu principal centro de referências. Para compreender o surgimento desse sistema, conforme Girardi (2006) devem ser considerados três fatos notórios: primeiro, a queda do império romano; posteriormente, a sequência de invasões de povos bárbaros; e, por último, o processo de cristianização dos povos bárbaros. O início da ruína do império romano se deu aos poucos. Sendo alguns dos fatores: a incapacidade de gerenciar o grande império formado e o poder exercido sobre ele. Assim, como exemplos estão: a concessão de cidadania romana dada pelo imperador a todos estrangeiros que viviam em territórios anexados pelo império romano; as constantes falhas na questão de legislar – com as grandes ambições e extravagâncias do setor político e administrativo somado à elevada carga tributária; e o fato da baixa fecundidade das famílias romanas –, o que ocasionou a diminuição da concentração de descendentes romanos no exército, facilitando assim as invasões bárbaras (GIRALDI, 2006). O direito vindo com os bárbaros era revestido de costumes. Ocorreram várias tentativas de compilar esse direito, mesmo que, sob a forma de costumes. Por último, ocorreu a cristianização dos povos bárbaros, tendo como princípios: o direito, a hierarquia, as obrigações, a organização, a vivência e a fé. Destaca-se que, antes desse período, houve intensa perseguição aos cristãos, cessando com o edito de Milão, do imperador Constantino, o qual estabeleceu o princípio da liberdade religiosa. Desta forma, a grande maioria dos povos bárbaros se converteu ao cristianismo, que além de fé e dos princípios cristãos, “também tinha normas de disciplinas para a prática da religião, para a vida familiar e para as relações sociais, econômicas, políticas e afins” (GERARDI, 2006, p. 60-61). A partir da convivência em grupo dos dois povos, aproximaram-se os modos de vida, misturando conceitos éticos e sociais, existindo por um lado a sociedade romana – com sua legislação – e por outro, os povos bárbaros – com seus costumes e suas regras de vida. Formou-se, assim, a partir do século XIII, um direito conhecido como direito romano-germânico, excluindo-se o princípio primitivo da lei (GIRARDI, 2006). 13 Cabe ressaltar que o sistema jurídico do direito romano-germânico não surgiu oficialmente com esse nome e nem era assim identificado. Houve um período extenso na história em que o direito vigorante era o consuetudinário. Os costumes é que comandam a vida em sociedade, influenciado pela ideia do cristianismo, o qual queria formar uma sociedade cristã, com um único comandante – o rei – detentor do poder, sendo aconselhado por um guia espiritual – o papa (GIRARDI, 2006). O renascimento do ideal de direito está ligado ao surgimento da família de direito romano-germânica, manifestado segundo David (1996, p. 31), em todos os planos, dos quais “um dos seus aspectos importantes é o jurídico”. O ressurgimento das cidades e do comércio, segundo o autor, floresce nas pessoas a necessidade de ordem e segurança, os quais são asseguradas pelo direito, para o progresso. Desta forma, é renunciada à criação da cidade de Deus na Terra, abandonando o ideal de caridade. A partir desse período, a igreja observando essas mudanças, distingue a “sociedade religiosa dos fiéis da sociedade laica, o foro externo do foro interno, e se elabora, nesta época, um direito privado canônico”. Assim, deixa-se “de se confundir a religião e a moral com a ordem civil e o direito; o direito vê-se reconhecer com uma função própria e uma autonomia que, no futuro, serão características dos modos de ver e da civilização ocidental” (DAVID, 1996, p. 31). As ideias de que, a sociedade deve ser apoiada sobre o direito para se garantir a ordem e o progresso, e a substituição das regras do poder pessoal pela democracia, tornam-se as ideias mestras na Europa Ocidental nos séculos XII e XIII. O sistema romano-germânico se diferencia do sistema common law, pois não vinculado sua ascensão a um poder político ou a centralização da administração em uma autoridade soberana, mas é “fundado sobre uma comunidade de cultura”, “independentemente de qualquer intervenção política” (DAVID, 1996, p. 32). Um dos meios para a divulgação e difusão das tidas novas ideias foram às universidades. A primeira foi a Universidade de Bolonha, na Itália. Tais universidades, não se constituíam em "escolas práticas de direito”. Cabia ao professor lecionar e destacar “as regras de fundo consideradas as mais justas, as 14 mais conformes à moral, as mais favoráveis ao bom funcionamento da sociedade” (DAVID, 1996, p. 32). Passou-se a estudar nas universidades o direito romano (lex romana), obra considerada de uma civilização brilhante, tida como um direito acessível, de fácil compreensão, pois já estaria redigida na linguagem que a igreja conservava – o latim. Muito embora não existisse o papel, a atividade dos copistas, os quais se utilizavam dos raros e caros pergaminhos, possibilitava a sua divulgação (DAVID, 1996). Contudo, como se tratava de um direito feito ao longo de um período anterior ao cristianismo, era muito criticado, pois, se tratava de um direito pagão. Tido como contrário aos ensinamentos cristão e muito malvisto a época. Proposta a questão a um padre dominical para conceder seu parecer, padre esse “professor de filosofia e teologia na Universidade de Paris e assessor para assuntos de teologia do papa Urbano IV, Tomás de Aquino” (GIRARDI, 2006, p. 63). O parecer de Tomás de Aquino, segundo Girardi (2006, p. 63): [...] tranquilizou os juristas dizendo que o direito romano, assim como a filosofia, baseado na razão, nada tem contra o cristianismo, pois a doutrina cristã não é contra a natureza, assim como não é contra a razão. Desta forma não havia nenhum obstáculo a que se ensinasse o direito romano nas universidades, juntamente com o ensino do direito. Em 1215, expõe David (1996), o IV Concílio de Latrão, proíbe os clérigos de participarem em processos, pois, segundo o estudioso, era inconcebível a sociedade ser regida pelo direito, enquanto, decisões eram proferidas com apelo ao sobrenatural. Desta forma, excluiu-se o sistema antigo, tomando por consequência a adoção de um processo racional, o qual tem como modelo o direito canônico, abrindo assim, o caminho para o reino do direito racional. Duas opções restavam às universidades nas quais se produz a renovação do direito: manter o direito romano, ou criar um novo direito ligado aos costumes, ou, na falta desse, ligado à jurisprudência. Nesse período, prevalece a adoção da segunda opção na Inglaterra, assim se formou o sistema do common law. Já nos países do continente, prevaleceu a primeira opção, surgindo a partir daí a família romano-germânica. 15 Desta forma, de acordo com David (1996, p. 41): O renascimento dos estudos de direito romano é o principal fenômeno que marca o nascimento da família de direito romano-germânica. Os países que pertencem a esta família são, na história, aqueles onde os juristas e práticos do direito, quer tenham ou não adquirido a sua formação nas universidades, utilizam classificações, conceitos e modos de argumentação dos romanistas. Ministrado em todas as universidades da Europa, o direito romano teve uma evolução. Várias escolas tinham seus métodos próprios para interpretar os textos romanos. Sendo a primeira delas, a dos glosadores, a qual procurou “reencontrar e explicar o sentido originário das leis romanas”. Esse período foi coroado com a obra Grande Glosa de Acúrio, por meados do século XIII (DAVID, 1996, p. 35). Do surgimento da escola dos pós-glosadores, já no século XIV, surge a necessidade de adaptação dos textos, sendo então, o direito romano expurgado e submetido a distorções. “Os juristas já não procuram encontrar soluções romanas, mas preocupam-se, sobretudo, em utilizar os textos do direito romano, para introduzir e justificar regras adaptadas à sociedade do seu tempo” (DAVID, 1996, p. 35). Passou-se, assim, segundo Lima Júnior (2015, p. 79), ao “estudo sistemático dos direitos romano e canônico pelo meio acadêmico” culminando na: [...] constituição do denominado jus commune, o direito comum das universidades, ensinado nos diferentes Estados nacionais, que serviu de base à formação do jurista do continente europeu. Diferentemente dos juízes e solicitadores da Inglaterra, que aprendiam a profissão a partir de um treinamento eminentemente prático, o jurista europeu era tipicamente letrado e sua formação, centrada em princípios suprapositivos, contribuindo para a estabilidade da ideia de Direito nas sociedades politicamente divididas do alvorecer da Idade Moderna. Com essa necessidade de adaptação do direito, complementa David (1996), deixou-se de seguir o dito direito de Justiniano, passando assim a ser considerado um direito sistemático, fundado sobre a razão, de modo que foi possível sua aplicação universal. As universidades, de acordo com o doutrinador, passaram a preocupar-se mais em ensinar e descobrir os princípios do direito plenamente racional, deixando de respeitar o direito romano. Por essa razão, nasce, nos séculos XVII e XVIII, a escola do direito natural. 16 A escola do direito natural volta seu pensamento ao indivíduo, os direitos naturais inerentes à personalidade das pessoas, a ideia do direito subjetivo domina o pensamento jurídico, desta forma, de acordo com David (1996, p. 36-37): Recusando a concepção clássica de uma ordem alicerçada na vontade divina e na própria natureza das coisas, relacionando todas as regras do homem considerado como única realidade existente, a escola do direito natural, mal denominava, não vê mais no direito um dado natural, mas uma obra da razão. A partir de então, segundo David (1996, p. 39), a razão humana será o único guia, “a exaltação da razão, e a nova função reconhecida à lei pelas doutrinas voluntaristas, preparará a via da codificação”. Passa o direito a ser dividido em dois domínios, do direito privado e do direito público. Quanto ao direito privado, a escola de direito natural é mais conservadora do que na época dos glosadores, apenas as regras são examinadas do ponto de vista da razão. Para esse período, o direito romano serviu de base, ocasionando a modernização e o melhoramento garantindo um melhor esclarecimento das regras de aplicação já estabelecidas. Em relação ao direito público, houve uma enorme mudança, não sendo utilizado de base o direito romano. A escola de direito natural propôs, com base na razão, novos modelos, referentes ao direito constitucional, administrativo e criminal (DAVID, 1996). A escola de direito natural, segundo Girardi (2006, p. 66), ainda, “quer a elaboração de um direito público que consagre os direitos naturais do homem, com garantia de sua liberdade”. Com sua persistência e sua expansão obteve êxito, reconhecendo a importância do direito público e tornando o direito uma ciência pelo método científico da sistematização. Isso resultou, conforme o autor, na necessidade de uma codificação dos direitos, exigência da moderna sociedade, fundada no direito e na vontade dos homens. A primeira codificação deveria surgir de um soberano esclarecido governante de um grande país, com ânsia de consagrar novos princípios de justiça, liberdade e dignidade, fundado na razão e afastado das trevas do passado. Assim, em 21 de março de 1804, Napoleão Bonaparte promulga o Código Civil Francês, constituído de 1.181 artigos, sendo uma obra notável e influenciadora de outros países europeus e americanos, incluindo o Brasil (GIRARDI, 2006). 17 Assim, complementa Girardi (2006, p. 67): Na esteira do código civil francês, a Bolívia publicou seu código civil em 1830, sendo, em grande parte, tradução literal do código civil francês. O Peru publicou seu código civil em 1852, o Chile em 1855, o Equador em 1857, o Uruguai em 1868, a Argentina em 1869, o Paraguai em 1876, a Colômbia em 1887, o Brasil em 1916 e a Venezuela em 1922. Haiti e República Dominicana adotaram integralmente o código civil francês. Cabe, ainda, destacar que a codificação, conforme David (1996, p. 53), é tida como se fosse “causa de uma fragmentação do direito europeu, e como tendo originado uma ruptura da comunidade jurídica europeia e da família de direito romano-germânica”. No entanto, cabe esclarecimento, pois “é necessário ver que o direito ensinado antes do século XIX nas universidades não era o direito aplicado na prática” (p. 53). Apresenta, ainda, David (1996, p. 53) que “a codificação, por si mesma, não rompeu de modo nenhum a unidade do direito europeu. Pelo contrário, a expansão do código de Napoleão serviu para reforçar esta unidade”. Complementa o autor que “a codificação constituiu um instrumento admirável pra a expansão, na Europa e fora dela, do sistema de direito romano-germânico” (p. 53). Assim, conclui David (1996, p.56) que “o direito romano-germânico é um direito vivo”. Desta forma, implica em uma transformação constante, se adequando com as necessidades de cada época. 2.1.2. Sistema jurídico do common law O sistema da common law tem sua origem na Inglaterra pela ação de Tribunais Reais de Justiça, formado, inicialmente, pelos juízes, os quais tinham de solucionar litígios particulares rapidamente. Assim, o sistema, também conhecido como anglo-saxônico, foi formulado para resolver o litígio imediato, não sendo inicialmente elaborado para ser, segundo David (1996, p.19), uma “regra de conduta para o futuro”. Segundo Streck (1998), o common law não é voltado às universidades ou a princípios, mas sim um direito voltado aos processualistas e aos práticos. Esclarece o doutrinador Venosa (2012, p. 74) que é um “engano dizer que o direito inglês é um direito costumeiro. Hoje, é essencialmente de precedentes judiciais. Os costumes antigos formaram tão-só o início do Direito”. 18 Para entender o sistema do common law, deve-se, segundo David (1996, p. 286), começar pelo estudo do direito inglês, pois este é exclusivo até o século XVIII. Segundo o doutrinador, o direito inglês “não conheceu a renovação pelo direito romano, nem a renovação pela codificação, que são características do direito francês e dos outros direitos da família romano-germânica”. Reconhecem-se, segundo David (1996, p. 283-284), quatro períodos principais ligados à história do direito inglês: O primeiro é o período anterior à conquista normanda de 1066. O segundo, que vai de 1066 ao advento da dinastia dos Tudors (1485), é o formação da common law, no qual um sistema de direito novo, comum a todo o reino, se desenvolve e substitui os costumes locais. O terceiro período, que vai de 1485 a 1832, é marcado pelo desenvolvimento, ao lado da common law, de um sistema complementar e às vezes rival, que se manifesta nas “regras de equidade”. O quarto período, que começa em 1832 e continua até os nossos dias, é o período moderno, no qual a common law deve fazer face a um desenvolvimento sem precedentes da lei e adaptar-se a uma sociedade dirigida cada vez mais pela administração. Por ser uma ilha, sempre ocorreram inúmeras invasões na Inglaterra, de modo que várias etnias governaram seu território. Durante mais de 400 anos, segundo Girardi (2006) foi domínio romano. Durante este período, pelas constantes invasões, nunca houve uma legislação escrita, desta forma, o direito sempre se baseou nos costumes. Posteriormente, no século VI, “desembarcam na Inglaterra 40 monges liderados por Agostinho de Canterbury, a mando do Papa Gregório Magno”, com o objetivo de cristianização do povo que ali vivia. Esse objetivo foi bem sucedido e parte da população aderiu ao cristianismo. Desta forma, há na formação do direito inglês, influências da legislação da Igreja (GIRARDI, 2006, p. 78). Para Soares (1999, p. 32), o common law é o direito “nascido das sentenças judiciais dos Tribunais de Westminster”, ou seja, os Tribunais Reais fixados a partir do século XIII em Westminster, onde era exercida a alta justiça pelo rei – Curia regis. Os Tribunais Reais de Justiça, segundo Girardi (2006, pag. 80), “foram criados para exercer a justiça no reino da Inglaterra”, sempre que envolviam assuntos ligados às finanças do reino, à propriedade imobiliária e à posse de bens 19 imóveis, assim como ao julgamento de crimes que possivelmente abalariam a paz do reino. As grandes causas envolvendo a perda da paz do reino eram julgadas pelo rei, assessorado por intelectuais e juristas importantes. Já os pequenos litígios e questões que não eram referentes ao interesse de manter a paz no reino eram direcionadas às jurisdições senhoriais, eclesiásticas, municipais e comerciais. Desta forma, a maioria dos litígios era resolvida por estes, enquanto as exceções eram solucionados pelos Tribunais Reais (DAVID, 1996). As decisões proferidas por esses tribunais vão, aos poucos, se tornando “normas legais e, assim, construindo um ordenamento jurídico embasado em julgamentos, onde os juízes procuram julgar em conformidade com os costumes e, às vezes, com algum elemento do direito romano e canônico” (GIRARDI, 2006, p. 81). Para ter acesso ao julgamento do Tribunal Real, segundo Girardi (2006), o interessado deveria dirigir sua pretensão ao chanceler do rei, mediante pagamento de taxas, para conseguir uma autorização, denominada como whit. Complementa David (1996, p. 288), que era possível encaminhar a pretensão diretamente aos juízes por meio de queixas ou petições, sendo algumas whits “a simples cristalização de uma prática judiciária estabelecida com fundamentos nestas queixas”. As autorizações, dadas por meio de whits, não eram largamente distribuídas. Havia a necessidade, segundo David (1996), de considerar a oportunidade, assim os números de concessões eram reduzidos. Em 1227 foram concedidos 56 writs, e em 1832, foram 76, data essa última que houve profunda reforma no sistema. Com intenção de expandir seu poder por sobre o reino, o rei, acompanhado do interesse do chanceler e dos juízes de conhecer um maior número de casos, força os Tribunais a expandir sua competência. Quanto aos particulares, há o interesse pela maior abrangência de competência, pois esses veem, nos Tribunais Reais, uma superioridade sobre os tribunais comuns. Os Tribunais Reais possuíam meios eficazes, segundo David (1996, p. 288), para “assegurar o comparecimento das testemunhas e para executar as suas decisões”. Somente o rei com a Igreja 20 poderia obrigar as pessoas a prestar juramento. Assim, de acordo com o autor, os Tribunais Reais puderam modernizar o processo e submeter o julgamento dos casos a um júri. Por meio destes motivos no final da Idade Média, “os Tribunais Reais são os únicos a administrar a justiça” (p. 288). Complementa David (1996, p. 289): Para que os Tribunais Reais se decidissem a alargar a sua competência, utilizou-se uma outra técnica: o autor, num ato introdutório de instância (declaration), expunha pormenorizadamente os fatos da causa (case), e pedia aos juízes reais, em consideração por esses fatos, que aceitassem julgar o litígio. As novas ações, nas quais os juízes admitiam a sua competência, passaram a chamar-se, por esta razão, ações super casum (actions on the case). Com o tempo, estas ações vieram a diversificar-se e a receber nomes especiais relacionados com os fatos que motivaram a sua outorga: ações de assumpsit, de deceit, de trover, de negligence, etc. Com o passar do tempo, segundo Girardi (2006), as autorizações (whits) são concedidas mesmo sem exame preliminar, assim, os juízes e juristas deixam de ter interesse pela matéria de direito em si – a qual no continente os juristas concentravam sua atenção – e passaram a se interessar pelo processo – modus operandi. Passando o direito processual a ter um domínio sobre o material. Cada whit correspondia a um processo que, segundo David (1996, p. 289) determinava: A sequência dos atos a realizar, a maneira de regular certos incidentes, as possibilidades de representação das partes, as condições de admissão das provas e as modalidades da sua administração, e os meios de fazer executar a decisão. Num determinado processo certas palavras devem usadas para designar demandante e demandado; o emprego das mesmas palavras seria fatal em outro tipo de processo. Em certo tipo de ação recorre-se a um júri; em outros não há júri, mas admite-se a prova por compurgação (wager of law): malogra-se a ação se o demandado apresentar um certo número de “testemunhas” que se limitam a atestar, sob fé de um juramento, a sua credibilidade. Em certos tipos de ações o demandado pode ser julgado à revelia, mas não em outros. A intenção maior dos juristas, na Inglaterra até o século XIX, não era se a decisão dada ao processo era ou não justa, o interesse maior era o formalismo do rito processual em si, sendo, um aglomerado de litígio de forma a garantir a solução do caso analisado. Assim, sua finalidade era de “formular as questões de fato que seriam submetidas ao júri”, que agia em todas as questões dos Tribunais Reais (DAVID, 1996, p. 290). 21 Desta forma, destaca Girardi (2006, p. 82), que “o conjunto dos processos e suas decisões, ao longo da evolução histórica, é que formará o que se chama de common law, gerada sobretudo no âmbito deste tipo especial de justiça, em que a atividade jurisdicional era oral e pública”. Enquanto que, nos países do continente europeu, não havia limites para o conhecimento dos litígios, o qual não havia entraves e nem obstáculos, podendo ser modernizado, na Inglaterra, os Tribunais Reais eram apenas exceções e para cada caso havia um único processo. Desta forma, houve a necessidade de criar um novo direito, comum a toda Inglaterra e tendo como fonte principal os costumes locais, surgiu assim, o comune ley ou common law (DAVID, p. 294). A enorme rigidez processual impediu a Inglaterra de recepcionar os conceitos do direito romano. De acordo com David (1996, p. 294), “a complexidade e a tecnicidade dos seus processos eram tais que não podiam ser aprendidos senão pela prática”. Desta forma, embora, “uma formação universitária baseada no direito romano, poderia ajudar a encontrar a solução justa para um determinado litígio”, segundo o autor não era suficiente para ganhar o processo. 2.1.2.1 Dualismo: common law e equity Pelo rigor do processo instituído pelos Tribunais de Westminster, o sistema da common law encontrava-se engessado, não tendo liberdade suficiente para se desenvolver, surge assim, um sistema rival conhecido como Equity. Obstáculos administrativos nos Tribunais ocasionavam a não solução de inúmeros casos. A parte perdedora, resignada com a total falta de justiça, buscava recurso direto ao rei. O pensamento dominante da parte perdedora, segundo David (1996, p. 295), era que, se “as jurisdições reais decidirem mal na concreta espécie; não deveria o rei remediar o erro dos seus tribunais? ”. Todavia, não era simplesmente requerer ao rei que fizesse a revisão do processo, era necessário que esse recurso passasse pela aprovação do Chanceler, que o transmitia ao rei, para o julgamento em seu Conselho. 22 Sendo esse recurso, segundo David (1996, p. 296): Perfeitamente justificado e admitido sem contestação, enquanto era excepcional, este recurso à “prerrogativa real” não podia deixar de dar lugar a um conflito se apresentasse uma tendência para se institucionalizar e para se desenvolver num sistema de regras jurídicas, que se opusesse, quando aplicadas, à common law propriamente dita. Porém, quando o rei vislumbrou a necessidade de estar envolvido com suas tropas, durante a Guerra das Duas Rosas, ficou impossibilitado de instituir o Conselho, passando ao Chanceler as prerrogativas de poder resolver os litígios dos recursos. No século XV, o Chanceler passa a ser um juiz autônomo, sendo sua intervenção cada vez mais solicitada. O Tribunal do Chanceler recepciona os princípios da common law, intervindo em um certo número de casos – surge como forma de aperfeiçoar e complementar, no interesse da moral, o sistema dos tribunais, estabelecendo regras complementares, assim surge a equity (DAVID, 1996). As decisões tomadas pelo Chanceler são baseadas na equidade quanto ao caso particular, sistemáticas, aplicando doutrinas equitativas, assim, sendo consideradas adjunções ou corretivas quanto aos princípios dos Tribunais de Westminster. Menciona ainda Soares (1999), que a crescente frequência com que esses recursos eram concedidos, fez com que se gerasse uma verdadeira justiça paralela aos Tribunais, tendo uma linguagem própria, com seus próprios precedentes e aplicado, em todos os tribunais do Chanceler. A partir de 1529, com as Reforma Anglicana de Henrique VIII, o Chanceler passa a não ser mais confessor do rei, nem eclesiástico, sendo quase sempre um jurista. Analisa e julga as queixas que lhe são encaminhadas, como um verdadeiro juiz, utilizando-se para tanto um processo inspirado no direito canônico, escrito e secreto, diferente do oral e público utilizado nos Tribunais Reais, mas, sem deixar a forma inquisitória na produção de provas. (DAVID, 1996). Com o passar dos anos, segundo Soares (1999), a Equity se afasta do direito canônico e desenvolve suas próprias regras, contudo, se contaminando com o formalismo e a morosidade da common law, ambos embasados na regra do stare decisis – coisa julgada, direito expresso pela atuação do juiz. Contudo, traz David (1996), pelo modo de agir da jurisdição do Chanceler – o qual complementava e 23 revia as decisões da common law – houve inúmeros conflitos, até mesmo com extrema violência. O rei Jaime I, em 1616, se pronunciou a favor do Chanceler, assim, a jurisdição do Chanceler poderá continuar, mas, não poderá mais se intrometer em assuntos de common law. No período de 1873 a 1875, surgem os Judicature Acts ingleses, os quais suprem as Courts of Chancery (Cortes de Chancelaria), e também as distinções formais que havia entre os tribunais de common law e equity. Não se buscou a fusão das duas categorias de regras, mas, todos os tribunais comuns da Inglaterra passaram a poder aplicar as duas formas. Assim, as duas formas passaram a ser administradas pela mesma jurisdição (DAVID, 1996). Com o passar dos anos, matérias inicialmente julgadas pelas regras de common law, passaram a ser julgados pela equity, e vice-versa. Alguns exemplos são: a matéria de falências (bankruptcy) que passou a ser julgado pela equity – dando a prioridade à organização da liquidação do patrimônio do falido, deixando de lado o seu comportamento delituoso; e a common law passou a administração de certas soluções que interviam no direito dos contratos, antes originalmente matéria decididas pela equity. De uma forma geral as questões de common law são julgados pelo júri, enquanto as questões de equity são julgados pelo juiz togado (DAVID, 1996), Não há mais, de acordo com David (1996), uma grande distinção entre common law e equity como tempos passados. A equity, atualmente, segundo o autor, tende a tornar-se o conjunto de matérias apropriados ao processo escrito, já à common law, se torna um processo voltado ao conjunto de matérias apropriados ao processo oral. 2.1.2.2 Trust O trust é criação da Equity, sendo sua noção fundamentalmente do direito inglês, segundo David (1996, p. 316) o trust apoia-se da seguinte forma: [...] uma pessoa, o constituinte do trust (settlor of the trust), determina que certos bens serão administrados por um ou vários trustes, no interesse de uma ou várias pessoas, os cestuis que trust. Este acordo é, na Inglaterra, muito frequente, porque serve para fins múltiplos de ordem prática: a 24 proteção dos incapazes, da mulher casada e a liquidação dos patrimônios hereditários são assegurados por este meio; as fundações e estabelecimentos de utilidade pública utilizam muitas vezes esta técnica; o direito das sociedades também recorre ao trust, que é também frequentemente utilizado para as operações internacionais (Euro-emissão, Euro-créditos, contratos petrolíferos, etc.). De acordo com a commom law, “o trustee não é um simples administrador dos bens constituídos em trust”. Pode administrar os bens como quiser, dispondo deles de seu modo, e não necessita prestar contas a ninguém. As limitações que têm são da ordem da moral, e não jurídicas, devendo o administrador administrar, não segundo o direito, mas de acordo com a consciência, assim, “deve entregar os lucros e transferir, em dado momento, o capital para certas pessoas, designadas pelo constituinte do trust, como sendo os beneficiários” (DAVID, 1996 p. 316). Ainda, segundo a common law, não cabe aos beneficiários ou cestui que trust, qualquer meio de ação para fazer valer seus direitos, não possuindo nenhum direito sobre o trust. Desta forma, diante dessa carência, restava ao Chanceler à solicitação para intervir quando o trustee agia em desconformidades de confiança e consciência quanto à exploração dos bens dos cestuis que trust. O Chanceler ordenava que o trustee agisse de acordo com os compromissos firmados no ato constitutivo do trust, caso contrário, não sendo respeitado, se utilizava de sanções como prisão e penhora de bens do trustee (DAVID, 1996). 2.1.2.3 Common law nos EUA A common law em essencial se consolidou em países de língua inglesa, porém, o seu desenvolvimento mais peculiar aconteceu nos Estados Unidos da América (EUA). Exemplos disso são que: o país norte americano possui uma Constituição própria; e, também um estado inteiro dedicado ao civil law. Nos EUA, até o século XIX, não se tinha ideia de qual dos dois sistemas triunfaria, de common law ou de civil law. De acordo com Venosa (2012), o sistema que se estabeleceu foi o de common law, com exceção, apenas, do Estado da Louisiana, que manteve-se fiel à tradição francesa. No entanto, esse triunfar da common law não foi completo, vários normas puramente desse sistema não ingressaram no novo país, destaca Venosa (2012), o 25 exemplo dos EUA terem um sistema de federalismo – existe um direito federal e paralelamente a ele um direito dos Estados. Há, todavia, uma unidade no common law, assim não se pode falar em ter os EUA, um sistema especial para cada Estado. Assim esclarece Venosa (2012, p. 76): Há a tendência de ver o Common Law dos EUA como um direito de razão, um direito federal, em vez de um direito repartido entre vários Estados. É certo que cada Estado tem sua autonomia, mas o Common Law deve ser encarado de maneira uniforme. Há certa hierarquia de leis, havendo um extremo respeito à Constituição federal – a qual tem caráter fundamental, sendo considerada mais que uma carta política – e, as constituições estaduais, sendo a Corte Suprema Federal a guardiã final de defesa da Constituição. Encontram-se no país norte americano, um grande número de códigos, inclusive há Estados com seus próprios códigos civis, no entanto, estes necessitam de uma primeira aplicação feita pelos tribunais para que gerem eficácia (VENOSA, 2012). A Equity nos EUA era utilizada essencialmente na ausência de solução no direito. Como no novo país não havia jurisdição relacionado ao direito canônico, que na Inglaterra era domínio da jurisdição eclesiástica, a Equity tomou para si questões de anulação de casamento, divórcio e testamento (DAVID, 2012). Desta forma: Os EUA receberam a Equity no momento histórico em que as oposições Common Law v. Equity já se encontravam esmaecidas. Nos EUA inexistem common lawyers e equity lawyers e, a partir da última unificação, em 1938 (na justiça federal), na atualidade, as actions at law e os suits in equity se encontram reunidos no que se denomina civil actions (SOARES, 1999 p. 36). Porém, mesmo unificados, de acordo com Soares (1999, p.37), há nas duas formas jurídicas importantes traços que os diferenciam, como exemplo: Nos procedimentos de triable at law, nos quais se buscam common law reliefs, é possível, como regra, o julgamento, nos processos civis e criminais, pelo jury; o processo é inflexível sendo que os remédios oferecidos resultam sempre numa indenização em dinheiro (award of Money damages). Já nos procedimentos triable in equity, os equity reliefs se traduzem em operações contra a pessoa do réu, não mais condenações em dinheiro, mas em injunctions, ordens judiciais de fazer ou deixar de fazer (specific performance), multas compensatórias ou prisão, sob sanção por desrespeito a um aordem judicial (contempt of court); verifica-se a ausência 26 do jury, bem como maior alargamento dos julgamentos em recurso (“wider scope of review on appeal”). Nos EUA as instituições do júri são mais presentes, sendo bastante difundidas, pois, segundo Venosa (2012, p. 76): No que toca às jurisdições federais, o júri está garantido constitucionalmente pela Emenda VII da Constituição Federal, pela qual todo cidadão tem direito a ser julgado por um júri quando a questão em litígio tiver interesse superior a 20 dólares, sempre que não se tratar de caso afeto à Equity. Nos EUA a Constituição Federal é tida como sendo um ato fundamental, ultrapassando o conceito de apenas uma carta política. Como meio para não entrar em crise o sistema de common law, o pais norte americano adota um sistema de intervenção do Congresso norte-americano ou da administração federal, sempre que a abrangência da matéria se faça necessário, desta forma ampliando os poderes da autoridade federal (VENOSA, 2012). 2.1.2.4 Modernização do sistema de common law Com a evolução houve a necessidade de modernização, adaptação e também, algumas modificações no direito inglês, pois, o mundo se desenvolve em todas as dimensões, não estando o direito imune a isso. A Revolução Industrial, ministrada na Inglaterra, obriga o sistema inglês a deixar o conservadorismo, e adaptar sua legislação a novos parâmetros. A Revolução Francesa introduziu os “princípios a respeito da origem da autoridade”, tiveram lugar às novas ideias de democráticas sendo o instrumento de convívio social o uso da lei (GIRARDI, 2006, p. 84). Nos séculos XIX e XX, o sistema da common law experimentou o desenvolvimento da legislação, que se desenvolveu pelas novas ideias e segundo influência de novos pensadores como Jeremy Bentham. As reformas radicais, realizadas no processo, nos anos de 1832, 1833 e 1852, introduziram várias formas de ação, assim, substituindo a ênfase no processo, liberando os juristas ingleses a voltar uma maior atenção ao direito substantivo (DAVID, 1996). 27 De acordo com Giraldi (2006, p. 85): Os embates ideológicos entre as correntes do liberalismo e do socialismo provocam uma crise na common law. A Inglaterra, inserida no contexto das nações, modernizou sua legislação, pois para participar do comércio internacional os ingleses não poderiam desprezar as normas do direito comercial internacional. Atualmente, expõe Soares (1999, p. 35), na Inglaterra a Common Law abrangem o direito criminal, toda parte de contratos e de responsabilidade, enquanto que à Equity pertencem às matérias relacionadas aos direitos da real property, do trusts, da sociedade comercial, de falência e de questões referentes à interpretação de testamentos e liquidação de heranças. 2.2 Fontes do direito Emprega-se, segundo Reale (2004, p. 139-140), “o termo fonte do direito para indicar apenas os processos de produção de normas jurídicas”, sendo que esses processos formam “uma estrutura de poder, desde o poder capaz de assegurar por si mesmo adimplemento das normas por ele emanadas”, como o processo legislativo, entre outros capazes de garantir a execução outorgada pelo Estado. A fonte material é “o estudo filosófico ou sociológico dos motivos éticos ou dos fatos econômicos que condicionam o aparecimento e as transformações das regras de direito”. Já o termo fonte do direito designa “os processos ou meios pelos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa” – que segundo o autor compreendem em processo legislativo, costumes jurídicos, atividade jurisdicional e o ato negocial (REALE, 2004, p. 140). Venosa (2012, p. 9) extrai dois sentidos da expressão fontes de direito os quais sejam: a origem histórica ou as diferentes maneiras de realização do direito. Não há uniformidade na prevalência de alguma fonte de direito, pois, segundo o autor, essa depende de exclusivamente de circunstâncias sociais e históricas. Nos primórdios da evolução social, residiam, nos costumes a principal fonte, sendo a tradição oral a que “desempenha papel importante no estabelecimento de condutas”. Posteriormente, a lei escrita foi elevada a fonte principal. Sendo assim 28 decorrentes os dois sistemas principais atuais: o sistema da common law – com sua origem nos costumes –, e, o sistema de civil law – o qual destaca a importância da lei escrita, como fonte de direito (VENOSA, 2012, p. 9). Há, no estabelecimento das fontes do direito a necessidade de distinguir as fontes diretas – as quais, por si só “possuem força suficiente para gerar a regra jurídica”, sendo essas, ainda, consideradas como fontes imediatas ou primárias –, e, seguindo ao lado dessas, as fontes mediatas ou secundárias – as quais, não têm sozinhas a força necessária para garantir a norma jurídica em si, mas fornecem a base para a aplicação do direito. A doutrina majoritária destaca como fontes primárias ou formais a lei e os costumes, e como fontes mediatas ou secundárias, não sendo de total acordo entre os juristas, a doutrina, a jurisprudência, a analogia, os princípios gerais de Direito e a equidade (VENOSA, 2012, p. 10). Esclarece ainda Venosa (2012) que a fonte formal do Direito é entendida como expressão do Direito Positivo, sendo que, só a lei e os costumes são assim considerados fontes primárias. As demais, segundo o autor, são tidas como auxiliares há aplicação do Direito. Atualmente se destacam os dois grandes sistemas jurídicos: o da família romano-germânico, estabelecida sobre a lei e o processo legislativo, e a família do common law, do direito não escrito, estabelecida sobre os costumes e os precedentes. Embora, parte da doutrina destaque, como fonte de direito da família do common law os costumes, o doutrinador David (1996, p. 324) destaca, como sendo a jurisprudência a fonte primordial: O direito inglês, proveniente dos processos da common law, é essencialmente um direito jurisprudencial (case law); suas regras são, fundamentalmente, as regras que se encontram na ratio decidendi das decisões tomadas pelos tribunais superiores da Inglaterra. Na medida em que faz declarações que não são estritamente necessárias para a solução do litígio, o juiz inglês fala obiter, emite opiniões que podem ser sempre postas em causa e discutidas, porque não constituem regras de direito. A legal rule inglesa coloca-se ao nível do caso concreto em razão do qual, e para cuja resolução, ela foi emitida. Não se pode colocá-la e um nível superior sem deformar profundamente o direito inglês, fazendo dele um direito doutrinal; os ingleses são bastante avessos a uma tal transformação e apenas adotam, verdadeiramente, em particular as regras formuladas pelo legislador, por menor que seja a interpretação que elas exijam, quando forem efetivamente interpretadas pela jurisprudência; as aplicações jurisprudenciais tomam então o lugar, no sistema do direito inglês, das disposições que o legislador editou. 29 Desta forma, de acordo com David (1996, p. 324), “a regra de direito inglês é uma regra apta a dar, de forma imediata, a sua solução a um litígio; não a compreendemos verdadeiramente e não podemos apreciar o seu alcance sem conhecer bem todos os elementos do litígio” a qual a formou. Já a família jurídica da civil law não se estabelece a partir de decisões jurisprudenciais, pois seus princípios são elaborados pela doutrina, nas universidades ou nos enunciados do legislador, sistematizado e modernizado, ligada mais à teologia moral do que propriamente o processo em si, “apta a dirigir a conduta dos cidadãos, numa generalidade de casos, sem relação com um litígio particular (p.324). Visto que a lei é utilizada como fonte primária perante a civil law e secundária para a common law, e a jurisprudência toma o lugar na common law como fonte principal, enquanto na civil law, é fonte secundária, faz-se adequada a breve análise da lei e da jurisprudência como sendo as fontes de direito. 2.2.1 Lei como fonte de direito A lei, lato sensu, é fonte primordial, em países de civil law, nos quais, segundo David (1996), os juristas procuram desvendar as regras e estabelecer soluções dos textos legislativos, do parlamento, das autoridades governamentais ou administrativas. Cabe assim, aos juristas descortinar a solução que corresponde à vontade do legislador. Todavia, em uma análise mais detalhada, a lei, segundo o pensador, nunca foi plenamente aceita na prática como fonte única e absoluta, se vê claramente que essa seja uma ficção em países de civil law: As universidades, que através do seu ensino forjaram as nossas concepções jurídicas, puderam apoiar-se sobre as leis romanas, apenas até certo ponto; os tribunais, especialmente os parlamentos franceses, desempenharam um papel fundamental na elaboração dos direitos nacionais e só excepcionalmente eles foram orientados, nesta obra, pelas leis. A escola de direito natural, a partir do século XVII, apelou para que o legislador sancionasse, com a sua autoridade, as regras justas elaboradas a partir dos postulados da natureza e da razão; mas, preconizando uma nova técnica, a da codificação, ela jamais pretendeu afirmar que direito e lei devam ser confundidos, e que o simples estudo das leis possa dar-nos a conhecer o que é o direito (David, 1996, p. 88). A partir do século XIX, a maioria dos países ligados ao sistema do civil law, editaram seus códigos e promulgaram suas constituições, assim, passaram os juristas a buscar na lei a principal fonte de inspiração. A lei passa a ser tratada de 30 forma hierarquizada, tomando o topo da pirâmide, à constituição de cada país (STRECK, 1998). A lei, empregada como uma regra geral e abstrata, conforme Venosa (2013, p.11), “não se dirige a um caso particular, mas a um número indeterminado de indivíduos”. O legislador tem em mente as condutas sociais que serão alcançadas pela lei, sendo assim, quando da sua vigência, abarcarão toda situação concreta que entrarem em sua descrição. A presente também na lei, segundo o autor, o caráter de permanência, pois, há o sentido dela ser aplicada a todos os casos abrangidos por ela indefinidamente, sendo assim, os efeitos da aplicação da lei permanentes. No entanto, para Diniz (2013, p. 63) a lei, não corresponde à fonte de direito, mas segundo a autora, a lei é produto da legislação, sendo assim “não representa a origem, porém o resultado da atividade legislativa”. O processo legislativo vem a ser: um conjunto de fases constitucionalmente estabelecidos, pelas quais há de passar o projeto de lei, até a sua transformação em lei vigente. A obra legislativa compreende “várias operações previstas constitucionalmente e levadas a efeito pelo órgão competente” (DINIZ, 2013, p. 64). De acordo com Streck (1998, p. 68): O direito não somente é produto do processo legislativo, sendo seu produto final resultante da imbricação com o trabalho hermenêutico-aplicativo dos juízes e tribunais. Daí a necessária pergunta: isso não coloca em cheque a condição da lei como tendo um sentido abstrato, com validade erga omnes, aproximando-se perigosamente, a civil law da common law? Ascensão [...] tenta responder à indagação, asseverando que a lei ocupa indiscutivelmente o lugar cimeiro: ao ponto de em todos os países ter havido a tendência de confundir Direito e a lei. Na doutrina clássica da common law, a lei é considerada fonte secundária. Assim constituída a “lei propriamente dita (statute, Act of Parliament) e disposições regulamentares variadas tomadas para execução da lei, pelas autoridades”. Na teoria clássica da common law, a lei “nada mais faz que introduzir uma série de errata e de addenda no corpo principal do direito inglês constituído pelo direito jurisprudencial”. Assim, a lei apenas traz ao direito inglês uma serie de corretivos e adjunções aos princípios, não estabelecendo propriamente os princípios (DAVID, 1996, p. 344). 31 No entanto, atualmente “ao lado da common law tradicional, há uma tendência na Inglaterra, no que respeita a algumas matérias, à formação de um sistema complementar de regras pelo legislador ou pela administração” (DAVID, 1996, p. 347). Desta forma, “a lei desempenha, na Inglaterra de hoje, uma função que não é inferior à da jurisprudência”. Todavia, nas condições atuais a Inglaterra, “continua a ser um direito essencialmente jurisprudencial” destacando-se duas razões: a jurisprudência continua como base orientadora, e “o seu desenvolvimento em certos setores que se mantêm muito importantes” e, por outro lado, porque, os juristas estão “habituados a séculos de domínio da jurisprudência”, assim não conseguiram se desvincular de sua tradição (DAVID, 1996, p. 347). 2.2.2 Jurisprudência como fonte de direito O termo jurisprudência é empregado para designar “o conjunto de decisões dos tribunais, ou série de decisões similares sobre uma mesma matéria”. Sendo sua origem no Direito antigo, significando “a sabedoria dos prudentes, os sábios do direito”. Assim, como substantivo coletivo, nunca é constituído de apenas uma decisão, mas formado por uma pluralidade de julgados (VENOSA, 2013, p.20). Na Inglaterra, país de origem do sistema de common law, nunca se reconheceu a autoridade do direito romano, diferente do continente. Como visto acima o common law foi criado pelos Tribunais Reais de Westminster, se originando um direito jurisprudencial, baseada nas decisões proferidas pelas cortes. A regras advindas das decisões proferidas pela corte deveriam ser respeitadas a bem de não destruírem as certezas e de não comprometer há existência da common law. Desta forma, David (1996, p. 341) esclarece: A obrigação de recorrer às regras que foram estabelecidas pelos juízes (stare decisis), de respeitar os precedentes judiciários, é o correlato lógico de um sistema de direito jurisprudencial. Contudo, a necessidade de certeza e de segurança não foi sentida sempre no mesmo grau, e só depois da primeira metade do século XIX é que a regra de precedente (rule of precedent), impondo aos juízes ingleses o recurso às regras criadas pelos seus predecessores, rigorosamente se estabeleceu. 32 Em análise a regra dos precedentes, David (1996), extrai três proposições simples: 1.º - As decisões tomadas pela Câmara dos Lordes constituem precedentes obrigatórios, cuja doutrina deve ser seguida por todas as jurisdições salvo excepcionalmente por ela própria; 2.º - As decisões tomadas pelo Court of Appeal constituem precedentes obrigatórios para todas as jurisdições inferiores hierarquicamente a este tribunal e, salvo em matéria criminal, para o próprio Court of Appeal; 3.º - As decisões tomadas pelo High Court of Justice impõem-se às jurisdições inferiores e, sem serem rigorosamente obrigatórias, têm um grande valor de persuasão e são geralmente seguidas pelas diferentes divisões do próprio High Court of Judice e pelo Crown Court (DAVID, 1996, p. 341). Assim, ressalta o último autor, somente as decisões emanadas de tribunais superiores é que geravam precedentes obrigatórios, enquanto as decisões proferidas por outros tribunais inferiores têm apenas valor de persuasão. Para fundamentar sua decisão, de acordo com David (1996, p. 342), o juiz inglês, ao menos em tribunais superiores: Geralmente expõe as razões que explicam sua decisão. Em um comentário, que não tem a brevidade nem a precisão dos “motivos” franceses, expõe, de forma dedutiva, as regras e os princípios de direito inglês, a propósito da decisão tomada. Nesta exposição, frequentemente, emprega fórmulas e anuncia regras que, por sua generalidade, ultrapassam o âmbito do processo. Já em países de civil law, a jurisprudência é tida como fonte secundária de direito. Assim conclui Lima Júnior (2015, p. 90): O direito jurisprudencial, pois, nos países de civil law, é reconhecidamente fraco quando em comparação a lei; é frágil e suscetível de modificações a todo tempo, vez que, em regra, não obriga ou compele senão às partes do litígio, não vinculado o órgão jurisdicional que o emanou o julgado, nem as jurisdições a ele inferiores, e, muito menos, particulares não integrantes da relação processual originária; é, precisamente, o oposto do precedente de common law, ostentando, em regra, eficácia meramente persuasiva. No sentido amplo, a jurisprudência pode ser vista “como a coletânea de decisões proferidas por juízes e tribunais sobre determinada matéria, fenômeno ou instituto jurídico, podendo, dessa forma, agasalhar decisões contraditórias”. E em seu sentido estrito, “costuma-se referir à jurisprudência como o conjunto de decisões uniformes, isto é, no mesmo sentido, acerca de determinada questão” (VENOSA, 2014, p. 127). 33 Inafastável é, que embora a jurisprudência não seja fonte principal em países de civil law, seu papel é fundamental na produção do direito. Assim também, exerce influência na tomada de decisões proferidas pelo magistrado, pois, preenchem lacunas de lei e auxiliam na interpretação dessas. Assim como, contribuem para a formação viva do direito (VENOSA, 2014). Outro fator relevante a qual a jurisprudência tem papel fundamental é o fato dela “exercer enorme influência sobre o legislador. Sendo, um retrato vivo das necessidades sociais, o legislador absorve as decisões para converter em lei a orientação jurisprudencial” (VENOSA, 2014, p. 128). A constante adaptação dos dois sistemas jurídicos às necessidades de cada época é fundamental para um Direito vivo. O sistema adotado no Brasil corrobora para essa análise, pois é um sistema que esta em evolução constante. Assim, no próximo capítulo será analisada a evolução do direito processual brasileiro, o processo civil no Estado Constitucional, e finalizando com a conceituação de uniformização jurisprudencial e sua evolução no ordenamento brasileiro. 34 3 SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO: APROXIMAÇÕES ENTRE CIVIL LAW E COMMON LAW O Brasil como colônia de Portugal viu sua origem jurídica no sistema trazido pelos portugueses nos primeiros anos de seu descobrimento. Os nativos destas terras nada poderiam fazer ante ao poder dos colonizadores, assim não restando influências indígenas em nosso ordenamento. O direito português teve sua origem nos sistemas canônicos e romanos. Assim não restando dúvidas de que o sistema que seria desenvolvido no Brasil para efeitos de regulamentar o Direito como um todo seria o do sistema romano- germânico ou civil law. Desta forma, neste capítulo será analisada a evolução do direito processual brasileiro, as influências do common law, assim como, o processo civil no estado constitucional, o respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica. Por último, se conceituará o instituto da uniformização jurisprudencial, sua evolução histórica, finalizando com o conceito geral de precedentes. 3.1 Evolução do direito processual brasileiro Na data da descoberta do Brasil vigia em Portugal as “Ordenações Afonsinas” de 1446, instituídas por D. Afonso V sendo está empregada nas novas terras, tanto na área civil como criminal. As “Ordenações Afonsinas” mantiveram sua vigência, no Brasil, até 1521, quando foram substituídas pelas “Ordenações Manuelinas” 35 instituídas pelo rei D. Manoel, que segundo Silva e Gomes (2006, p. 29-30), representava, de certo modo, a sobrevivência dos princípios jurídicos romanos, destacam desta forma, em síntese, alguns princípios presentes nessa legislação: a) os juízes ordinários, ou da terra, eram eleitos pelas comunidades, sempre que estas estivessem distantes das cidades e vilas por mais de uma légua, aquém se conferia jurisdição para as causas de pequeno valor, que variavam segundo o número de habitantes (vizinhos) de cada povoado; b) o procedimento, em tais casos, era inteiramente oral, sem registro algum escrito, a não ser o da sentença final; c) e contra esta não se dava nem apelação nem agravo; d) a execução da sentença era desde logo ordenada pelo julgador (Ordenações Manuelinas, Liv. I, Tít. 44, §64). Porém, esse sistema, segundo os doutrinadores, não vigorou no Brasil, pois, como as terras brasileiras eram recém-descobertas não existia aqui uma organização política, consequentemente, não haveria um sistema jurídico. Posteriormente foram baixadas as “Ordenações Filipinas”, em 1603, por D. Felipe II da Espanha, e I de Portugal, sendo a última mais antiga desse período, e segundo Alvim (2011), as que tiveram grande influência em nosso direito. As Ordenações Filipinas apresentavam uma estrutura moderna, sendo a parte processual, dividida em quatro fases: 1.ª) “fase postulatória”, que se encontra nos Códigos Modernos; 2.ª) “fase instrutória”, destinada a prova; 3.ª) “fase decisória”, destinada à decisão; 4.ª) “ fase executória”, destinada ao processo de execução”. Ademais, regulava o processo ordinário – processo comum – e os processos sumários, concomitantemente com os processos especiais (ALVIN, 2011, p. 66). Com a independência do Brasil em 1822, ocorreu à desvinculação da nova nação a Portugal. No entanto, como no Brasil não existiam leis próprias e não havia uma cultura de produção de leis, foram adotadas as “Ordenações Filipinas”, pelo Decreto de 20.10.1823, como lei brasileira, assim passando a reger o processo civil. A única lei, porém, necessária, era a confecção da Constituição Federal, símbolo da independência política, elaborada em 1824 (ALVIN, 2011). Em 1824, segundo o último autor, é promulgada a primeira constituição do Brasil, estabelecido sob a forma de Império, estruturada segundo um Estado unitário, subdividido em províncias as quais tinham autonomia limitada. 36 Em 1830 surge o primeiro Código Penal. Já em 1850, é elaborado o Código de Processo Comercial, instituído pelo Regulamento 737, passando ele a reger as matérias de processo comercial, enquanto as Ordenações regiam as matérias de civil. Já em 1871 foi encarregado, pelas ordens do governo imperial, o Conselho Ribas para consolidar as Ordenações e as leis extravagantes. Culminando por meio de uma resolução imperial, a ser adotada em 1876, a Consolidação Ribas como lei processual. Através dessa consolidação, as Ordenações Filipinas continuaram a reger o processo civil até o advento da proclamação da República em 1889 (GIRARDI, 2006). Em 1890, através do Decreto 763, passa-se a aplicar o Regulamento 737, também às questões do processo civil, sendo desta forma revogadas as Ordenações Filipinas (ALVIN, 2011). Com a proclamação da República, em 1889, o Brasil se torna um Estado Federado, o que posteriormente é instituído definitivamente pela Constituição de 1891. Esse modelo primeiramente fora implantado provisoriamente pelo Decreto n.1, de 15 de novembro de 1889, assim adotando a República como forma de governo e fixou as normas pelas quais se devem reger os Estados Federais (ALVIN, 2011). A redação da Constituição da República de 1891 foi inspirada, segundo Alvim (2011, p. 67) na Constituição política dos Estados Unidos da América do Norte, instituindo no Brasil os Estados federados. Essa constituição foi a mais duradoura até hoje. Com a instituição do Dec. 763, foi estabelecido que no Brasil continuasse a vigência do Regulamento 737, sobre as matérias civil e comercial, enquanto, os Estados, com poderes para elaborar seus próprios códigos de processo civil, não os baixassem. Em 1905, teve início o movimento de codificação dos estados, sendo o Estado do Pará o primeiro – baixando o estatuto de processo civil – seguido dos outros. São Paulo, porém, foi o último em 1930 (ALVIM 2011). Consequentemente, segundo Alvim (2011), as decorrências dessa fragmentação não foram positivas, restando a Constituição de 1934, determinar em seu art. 11 que, após a promulgação da Constituição o governo nomearia uma comissão de três juristas para organizar um projeto de Código de Processo Civil e 37 Comercial. “Em consequência de um contragolpe de Estado, a Carta Constitucional de 1937 substitui a Constituição de 1934.” Reafirmaram-se os propósitos da reunificação do processo, incluindo ainda, “uma inovação, que teve, por sua vez, reflexos no campo de aplicação da justiça: a supressão da Justiça Federal” (ALVIM, 2011, p. 68). Com a volta da competência de legislar sobre processo para a União, começaram-se os preparativos para a elaboração do novo Código de Processo Civil, assim, fora elaborada uma comissão de juristas incumbidos da tarefa de elabora-la. No entanto, contribuem Cintra, Grinover e Dinamarco (2012, p.120): Em fase de divergências surgidas na comissão encarregada de preparar um anteprojeto de Código de Processo Civil, um de seus membros, o advogado Pedro Batista Martins, apresentou um trabalho se sua lavra. Foi esse trabalho que, depois de revisto pelo então Ministro da Justiça, Francisco Campos, por Guilherme Estellita e por Abgar Renault, transformou-se no Código de Processo Civil de 1939. Serviram-lhe de paradigma os Códigos da Áustria, da Alemanha e de Portugal; adotou o princípio da oralidade, tal como caracterizado por Chiovenda, com algumas concessões à tradição, notadamente no que diz respeito ao sistema de recursos e à multiplicação de procedimentos especiais. Através do Decreto-lei n. 3.869, de 3 de outubro de 1941, instituiu-se o vigente Código de Processo Penal, entrando o mesmo em vigor em 1º de janeiro de 1942. Esse Código é composto por seis livros, totalizando oitocentos e onze artigos (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2012). Com o passar dos anos, verificaram-se os graves defeitos práticos contidos nos dois estatutos processuais. Ainda, “a apreciação crítica a que os submeteu a doutrina, bem como a assistemática afloração de leis extravagantes (complementares ou modificativas), acabam por exigir a reformulação da legislação processual”, assim começou-se a preparação para a nova codificação (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2012, p.120). Em 11 de janeiro de 1973 foi promulgado pela lei n. 5.869 o Código de Processo Civil de 1973, também conhecido como o código de Buzaid. Fruto do trabalho do Ministro Alfredo Buzaid, apresentava “três modalidades de processo – conhecimento, execução e cautelar”. Nesse código refletiam “os valores do direito liberal e, especialmente, a doutrina chiovendiana da abstração do processo em 38 relação ao direito material” (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2015, p.53 o novo). Todavia, destacam Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2015c, p.56): Esse Código, até a reforma processual de 1994, era incompatível com os valores da Constituição Federal de 1988. Uma constituição que se baseada na “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III), garantidora da inviolabilidade dos direitos de personalidade (art. 5.º, X) e o direito de acesso à justiça diante de “ameaça a direito” (art. 5.º XXXV) exige a estruturação de uma ação processual capaz de garantir de forma adequada e efetiva a inviolabilidade dos direitos, especialmente os de natureza não patrimonial. Em 5 de outubro de 1988, entra em vigor a Constituição Federal (CF), apelidada como a constituição cidadã, trazendo normas de proteção a igualdade perante a lei, garantidora da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Em 18 de março de 2016 entrou em vigor o atual Código de Processo Civil de 2015, o qual primeiramente muito comemorado pelos juristas, sendo prioridades trazidas pelo código à rapidez, a isonomia nas decisões de casos e a efetividade, vinculado aos preceitos das garantias constitucionais. 3.1.1 Brasil entre civil law e common law Como referido acima, o Brasil tem seu sistema jurídico amparado no sistema de civil law que é decorrente de seu país colonizador – Portugal. No entanto, segundo Didier Jr. (2014, p. 42), a afirmação de o Brasil ser um sistema de civil law: O sistema jurídico brasileiro tem uma característica muito peculiar, que não deixa de ser curiosa: temos um direito constitucional de inspiração estadunidense (daí a consagração de uma série de garantias processuais, inclusive, expressamente, do devido processo legal) e um direito infraconstitucional (principalmente o direito privado) inspirado na família romano-germânica (França, Alemanha e Itália, basicamente). Há controle de constitucionalidade difuso (inspirado no judicial review estadunidense) e concentrado (modelo austríaco). Há inúmeras codificações legislativas (civil law) e, ao mesmo tempo, constrói-se um sistema de valorização dos precedentes judiciais extremamente com plexo (súmula vinculante, súmula impeditiva, julgamento modelo para causas repetitivas etc.) de óbvia inspiração no common law. Embora tenhamos um direito privado estruturado de acordo com o modelo do direito romano, de cunho individualista, temos um microssistema de tutela de direitos coletivos dos mais avançados e complexos do mundo; como se sabe, a tutela coletiva de direitos é uma marca da tradição jurídica do common law. 39 Ainda o doutrinador reforça essa afirmativa com o art. 386 do Decreto n. 848/1890, sendo um dos atos normativos que inauguraram a nossa República, assim transcrito: Art. 386 Constituirão legislação subsidiaria em casos omissos as antigas leis do processo criminal, civil e commercial, não sendo contrarias ás disposições e espirito do presente decreto. Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações juridicas na Republica dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity, serão também subsidiarios da jurisprudencia e processo federal. Assim, complementa Didier Jr. (2014, 42): Este Decreto estruturava a justiça Federal e regulamentava o seu processo jurisdicional - à época, União e Estados possuíam competência legislativa em matéria processual. O curioso é que a Lei n. 5.010/1966, que reestruturou a justiça Federal, não possui enunciado semelhante, muito menos possui texto incompatível com esse antigo dispositivo. Ainda mais curioso é que este Decreto foi expressamente revogado por um Decreto n. 11 de 1991 (art. 4º) - mais de cem anos depois, portanto; e este Decreto n. 11 /1991 também foi revogado (revogou-se o decreto que revogava), sem ressalva alguma, pelo Decreto n. 761/1993. Interessante é que, em 1891, o Decreto n. 848/1 890 equivalia a uma lei; o Decreto presidencial de 1991 já não possuía esta natureza. Assim, poderia o segundo revogar o primeiro? Bem, de todo modo, a vigência formal por mais de cem anos deste dispositivo é um dado histórico que não pode ser ignorado. Para se identificar a qual tradição jurídica um país está vinculado deve-se investigar o papel desenvolvido e a relevância dada aos operadores jurídicos, assim também como o modo de ensinar o direito. No Brasil, embora haja ainda um grande apreço às opiniões divulgadas pelos doutrinadores – sendo uma característica de civil law – a um crescente interesse atribuído a jurisprudência – característica de common law – desta forma destacando-se a súmula vinculante (DIDIER JR., 2014, p. 43). O Brasil é um país de misturas, no qual a uma busca de inspiração nos mais diversos modelos jurídicos do mundo. Assim, segundo Didier Jr. (2014, p. 43-44), “a experiência jurídica brasileira parece ser única; é um paradigma que precisa ser observado e mais bem estudado”. O pensamento de sistema jurídico pátrio, segundo o autor, opera-se com alguma desenvoltura, tendo por base, os marcos teóricos e metodológicos dos dois grandes sistemas jurídicos, tanto civil law quanto common law. 40 Desta forma para Didier Jr. (2014, p. 44): Há, no Brasil, robusta produção doutrinária e vasta jurisprudência sobre o devido processo legal e a boa-fé objetiva. Operamos, sem maiores percalços, com institutos de origens diversas (o primeiro, common law , o segundo, civil law). O pensamento jurídico brasileiro começa, inclusive, a ganhar autonomia, desvinculando-se de sua ascendência, como demonstra a concepção brasileira sobre o devido processo legal substancial, bem diferente da visão original estadunidense. A própria vinculação entre a boa- fé processual e o devido processo legal é uma construção teórica brasileira, original e muito profícua (DIDIER JR., 2014, p. 44). Para melhor compreender o direito processual civil brasileiro atual, deve-se, segundo Didier Jr. (2014) haver um rompimento com o dogma da ascendência genética sistemático, o qual liga a origem do sistema brasileiro a uma ou outra tradição jurídica. Desta forma, conclui o autor, que “temos uma origem jurídica própria e bem peculiar” (p. 44). Há, portanto, a necessidade de quando se for analisar o sistema vigente no Brasil ter em mente de que ele tem sim origem na tradição de civil law, no entanto, as peculiaridades e os institutos que hoje fazem parte do nosso sistema o diferenciam, não o aproximando do civil law e nem do common law, mas sim, sendo híbrido desses dois sistemas. 3.1.2 O processo civil no Estado Constitucional A passagem do Estado Legislativo para o Estado Constitucional ocasionou, segundo Mitidiero (2014, p. 15), uma tríplice alteração na questão ligada à compreensão do Direito, deixando de ser pensado o processo apenas para a “resolução de casos concretos em juízo”. A primeira mudança está ligada a teorias das normas, desta feita: No Estado Legislativo, pressupunha-se que toda norma era sinônimo de regra. Os princípios eram compreendidos como fundamentos para normas, mas jamais como normas. No Estado Constitucional, a teoria das normas articula-se em três grandes espécies – as normas podem ser enquadradas em princípios, regras e postulados (MITIDIERO, 2014, p.15). Os princípios adquirem força normativa, vinculando seus destinatários, seguindo ao seu lado a os postulados normativos – que são “normas que visam a disciplinar a aplicação de outras normas”. A ainda, a pluralidade de fontes, onde o “Código perde o seu caráter de plenitude, próprio do Estado Legislativo, e passa a 41 desempenhar função de centralidade infraconstitucional”. Surgem inúmeros estatutos, instrumentos infralegais e legislações especiais, concorrendo para disciplinar à vida social, assim, o ordenamento jurídico passa a adquirir uma forma complexa (MITIDIERO 2014, p.15-16). A segunda mudança é a da técnica legislativa, onde para Mitidiero (2014, p. 16), “passa-se de uma legislação redigida de forma casuística para uma legislação em que se misturam técnicas casuísticas e técnica aberta”. Desta forma, segundo Mitidiero (2014, p. 16): No Estado Constitucional, o legislador redige as suas proposições ora prevendo exatamente os casos que quer disciplinar, particularizando ao máximo os termos, as condutas e as consequências legais (técnica casuística), ora empregando termos indeterminados, com ou sem previsão de consequências jurídicas na própria proposição (técnica aberta). A terceira mudança faz referencia ao significado da interpretação jurídica: Parte-se do pressuposto de que a atividade jurisdicional constitui uma atividade de reconstrução do sentido normativo das proposições e dos enunciados fático-jurídicos às vistas do caráter não cognitivista e lógico- argumentativo do Direito. Como observa a doutrina, “o essencial é que o Direito não é meramente descrito ou revelado, mas reconstruído a partir de núcleos de significado de dispositivos normativos que, por sua vez, precisam ser conectados com elementos factuais no processo de aplicação. O material normativo, assim, não é totalmente, mas apenas parcialmente dado” (MITIDIERO, 2014, p.16-17). Assim sendo, assume-se a separação do texto e da norma, pois o legislador outorga textos e não normas. “As normas são frutos de uma outorga de sentido aos textos pelos destinatários”. Assim, “o direito deixa de ser um objeto total e previamente dado que o jurista tem de simplesmente conhecer para ser uma harmoniosa composição entre atividades semânticas e argumentativas” (MITIDIERO, 2014, p. 17). O processo civil, de acordo com Mitidiero (2014), a partir dessa fase, passa a responder além da simples resolução de casos concretos mediante a declaração de decisões justas as partes, para também promover a unidade do direito através da formação de precedentes. Conforme Mitidiero (2014, p. 18): O processo civil no Estado Constitucional tem por função dar tutela aos direitos mediante a prolação de decisão de decisão justa para o caso concreto e a formação de precedentes para a promoção da unidade do direito para a sociedade em geral. 42 A finalidade do caráter processual civil tratado acima responde a dois fundamentos evidentes no Estado Constitucional: o da dignidade da pessoa humana e o da segurança jurídica, caracterizados como princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro. Os princípios da dignidade da pessoa humana e o da segurança jurídica promovem juntos, segundo Mitidiero (2014, p. 19), a viabilização das conquistas de liberdade e de igualdade, que são, “verdadeiros fins do Estado Constitucional”, e ainda, “fundamentam a organização de um processo destinado à tutela dos direitos mediante a prolação de uma decisão justa e a formação de precedentes judiciais”. Desta forma cabe analise desses dois princípios inerentes a um processo justo e basilar ao ordenamento jurídico pátrio. 3.1.2.1 Dignidade da pessoa humana O ordenamento jurídico pátrio, especificamente na Constituição Federal de 1988, no artigo 1º, inciso III, estabelece que a República Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana. Deste modo, estabelece-se em um Estado Constitucional, sendo seus dois núcleos: o Estado de Direito e o Estado Democrático (MITIDIERO, 2014). Desta forma, de acordo com Mitidiero (2015, p.19): A dignidade da pessoa humana impõe a necessidade de considerarmos a tutela dos direitos como fim do processo. A juridicidade pela qual se pauta o Estado Constitucional – isto é, o seu parâmetro jurídico de atuação e a efetiva atuabilidade dos direitos – assegura imediatamente a necessidade de uma decisão justa como meio particular para a obtenção da tutela dos direitos. Considera ainda Mitidiero (2014, p. 20) que: A dignidade da pessoa humana constitui uma “qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana” e funciona ao mesmo tempo como “valor-fonte do ordenamento jurídico”, fundamento e medida do Estado de Direito e de inúmeros direitos fundamentais. Segundo Sarlet (2012, p. 113) a dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca da pessoa humana, sendo algo que simplesmente existe, desta forma: 43 [...] irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como elemento integrante e irrenunciável da natureza da pessoa humana, é algo que se reconhece, respeita e protege, mas não que possa ser criado ou lhe possa ser retirado, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. A dignidade da pessoa humana, segundo Sarlet (2012, p. 113), é independente das “circunstâncias concretas, sendo algo inerente a toda e qualquer pessoa humana, de tal sorte que todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade”. Assim também estabelecido no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito e fraternidade”. A alocação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Constitucional remete, segundo Mitidiero (2014, p. 20-21), a necessidade de “teorização do direito a partir da pessoa humana e não a partir do Estado”. Assim conclui o autor: O reconhecimento da pessoa humana como fundamento da ordem jurídica revela que o Estado “é uma organização política que seve o homem” e que, portanto, “não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios”. Daí que, “consagrando expressamente, no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito (art. 1.º, III, da CF/1988), o nosso Constituinte de 1988 – a exemplo do que ocorreu, entre outros países, na Alemanha –, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”. Vale dizer: constitui a pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado (MITIDIERO, 2014, P. 20-21). Cabe destacar que o Estado de Direito está também fundado sobre o princípio da segurança jurídica que, de acordo com Oliveira (2015, p.23), “constitui elemento conformador de uma ordem jurídica que se propõe a respeitar as necessidades mínimas de uma vida socialmente digna”. Ainda, segue o autor, a segurança jurídica está vinculada de forma íntima aos valores de liberdade. Passa-se assim, à necessária análise desse princípio inerente a garantia de previsibilidade e de manutenção da estabilidade das condutas jurídicas decisórias. 44 3.1.2.2 Segurança jurídica A segurança jurídica é fundamental para a sociedade moderna. A norma corretamente empregada ao fato concreto remete ao sentido da justiça, a qual a sociedade tanto busca. Porém, para Peixoto (2015, p.30-31), atualmente o sujeito de direito não consegue mais vislumbrar sequer a ilusão da possibilidade de calcular, com precisão, as consequências jurídicas dos seus atos, pois esses são quase infinitos, sendo que o direito não tem conseguido minorar esse campo de incertezas: “o direito, que, na sociedade moderna, deveria atuar como um ponto de partida na busca pela segurança, não tem conseguido oferecer elementos para tanto” (p. 31). Desta forma, Peixoto (2014, p. 37) conclui que: Mesmo com inflação na produção legislativa, o Estado não consegue acompanhar a dinamicidade da sociedade. A tecnologia e as relações sociais continuam a avançar rapidamente e os textos normativos já nascem desatualizados. Então, o legislador opta por criar pontos de oxigenação normativa. A legislação passa a se tornar cada vez mais fluida, mais aberta. O texto passa a ser redigido de forma propositadamente aberta e, nesse momento, surgem, com destaque, as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados. Para Oliveira (2015), a necessidade de segurança jurídica é avessa a um sistema ininteligível, o qual não proporciona confiança às pessoas, sobre o que já foi decidido e incorporado ao ordenamento jurídico. Ainda, a respeito da afirmativa do doutrinador, traz nossa Constituição Federal (CF) em seu artigo 5º, inciso XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, conferindo a garantia de que nenhum ato normativo do Estado atingirá situações consolidadas no passado, objetivando estabilidade jurídica. Segundo Mitidiero (2014, p. 19), “a segurança jurídica impõe imediatamente a imprescindibilidade de o direito ser cognoscível, estável, confiável e efetivo mediante a formação e o respeito aos precedentes como meio geral para obtenção da tutela dos direitos”. Em uma análise objetiva a proteção dada pela segurança jurídica presente no texto constitucional, ultrapassa a dimensão subjetiva, estabelece conteúdos normativos variados, voltados a “adequada tutela do valor de segurança, pretendida pelo constituinte”. Na dimensão objetiva o princípio da segurança jurídica deve 45 respeitar a três elementos conformadores, um ordenamento que possibilite o conhecimento do Direito vigente, a confiança de que as situações consolidadas tendo por base esse Direito sejam respeitadas e a possibilidade de poder planejar seus atos de uma maneira que futuramente não se surpreenda com um direito novo (OLIVEIRA, 2015, p. 28). Para se alcançar a finalidade de se proporcionar estabilidade, o Estado utiliza- se de determinadas técnicas jurídicas garantidoras de um ordenamento jurídico mais seguro. Um exemplo é o fato da proibição de retroatividade do direito, frente à tese nova, em prejuízo de alguma parte, se estabelecendo o direito adquirido; outro exemplo é a edição de súmulas de jurisprudência que demonstram o entendimento predominante dos tribunais (OLIVEIRA, 2015). A segurança jurídica é um principio que impõe em primeiro lugar a cognoscibilidade do Direito. É preciso viabilizar o conhecimento e a certeza do Direito, sem os quais não se pode saber exatamente o que é seguro ou não. É claro que o fato de o Direito ser vazado em linguagem – que é indiscutivelmente porosa e polissêmica – requer a compreensão da segurança mais como viabilização de conhecimento do que propriamente como determinação previa de sentido. A segurança jurídica exige, portanto, a controlabilidade intersubjetiva dos processos semântico-argumentativos que conduzem ao conhecimento e à certeza do Direito e a adoção de critérios racionais e coerentes para sua reconstrução. Em segundo lugar, exige confiabilidade do Direito. O Direito deve ser estável e não sofrer quebras abruptas e drásticas. Evidentemente, não é possível assegurar a sua imutabilidade, na, medida em que é inerente ao Direito o seu aspecto cultural e, portanto, a sua permanente abertura à mudança. Importa, no entanto, que a confiança depositada p