CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE DIREITO A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DO CONSENTIMENTO DO CÔNJUGE NA ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA Solange Munsio Compagnoni Lajeado, junho de 2017 Solange Munsio Compagnoni A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DO CONSENTIMENTO DO CÔNJUGE NA ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA Monografia apresentada no Curso de Direito, do Centro Universitário UNIVATES, como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharela em Direito. Orientadora: Profa. Ma. Loredana Gragnani Magalhães Lajeado, junho de 2017 Solange Munsio Compagnoni A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DO CONSENTIMENTO DO CÔNJUGE NA ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA A Banca examinadora abaixo aprova a monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Curso II – Monografia/Artigo Acadêmico, do curso de graduação em Direito, do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para a obtenção do grau de Bacharela em Direito: Profa. Ma. Loredana Gragnani Magalhães – orientadora Centro Universitário UNIVATES e Advogada Profa. Bianca Bertani Corbellini Centro Universitário UNIVATES e Advogada Profa. Elisabete Cristina Barreto Müller Centro Universitário UNIVATES Lajeado, 27 de junho de 2017 AGRADECIMENTOS À minha família, toda a gratidão pela abnegação em prol da minha subsistência digna e pela influência basilar na minha formação moral. Primeiramente aos meus pais, pelo incentivo e por todos os esforços em prover minha subsistência digna e pela construção do sentimento de confiança inabalável em nosso seio familiar. Ao meu irmão Vanderlei Munsio Compagnoni, e cunhada Enilse agradeço pelo voto de confiança. Aos meus amados sobrinhos, Lara e Weslei, a certeza de que sempre me terão ao seu lado. Aos meus avós, Werno (in memoriam) e Anilda (in memoriam), personalidades basilares em minha formação moral, toda a gratidão pela oportunidade do convívio zeloso e de amor inigualável. Ao meu companheiro Marcos, pela compreensão em virtude de minhas ausências e pelo encorajamento aos desafios apresentados durante toda a vida acadêmica. À minha orientadora, Profa. Ma. Loredana Gragnani Magalhães, meu profundo agradecimento pelo estímulo e suporte na execução deste estudo, cujo fascínio pelo seu notável saber constituiu fator determinante para o pedido de orientação. “Ninguém perde ninguém, porque ninguém possui ninguém. Essa é a verdadeira experiência da liberdade: ter a coisa mais importante do mundo, sem possuí-la.” Paulo Coelho LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Art. Artigo CF/1988 Constituição Federal de 1988 CC/2002 Código Civil de 2002 CC/1916 Código Civil de 1916 IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística CNJ Conselho Nacional de Justiça STF Supremo Tribunal Federal PAISM Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher ADCF Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade ANADEP Associação Nacional dos Defensores Públicos BEMFAM Bem-Estar Familiar no Brasil CFM Conselho Federal de Medicina CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNDM Conselho Nacional dos Direitos da Mulher IBCCRIM Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBDFAM Instituto Brasileiro de Direito de Família NUDEM Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher OMS Organização Mundial da Saúde PCBR Partido Comunista Brasileiro Revolucionário PDT/PE Partido Democrático Trabalhista de Pernambuco PL Projeto de Lei PPS/SC Partido Popular Socialista de Santa Catarina PT/SP Partido dos Trabalhadores de São Paulo SUS Sistema Único de Saúde RESUMO A esterilização voluntária e demais métodos de regulação da fertilidade foram regulamentados pela Lei nº 9.263/96, com o propósito de preencher lacunas da legislação legal e garantir ao indivíduo o exercício pleno dos seus direitos reprodutivos. Sendo assim, esta monografia tem como objetivo geral analisar a constitucionalidade da exigência do consentimento do cônjuge para perfectibilizar a esterilização voluntária, quando na constância de sociedade conjugal. Trata-se de pesquisa qualitativa, realizada por meio de método dedutivo e de procedimento técnico bibliográfico e documental. Nesse sentido, inicia- se uma contextualização histórica da família no mundo ocidental, mais especificamente no Brasil, seguido de uma observação sobre o instituto do planejamento familiar no País. Em seguida, passa-se a uma exposição pormenorizada acerca dos principais direitos da personalidade e a teoria de transmutação dessas garantias, ao mesmo nível dos direitos fundamentais, devido ao seu conteúdo igualmente relevante. Na mesma oportunidade, imperiosa se faz a discussão acerca da concretização dos direitos fundamentais como garantia efetiva do princípio da dignidade humana. Por fim, procede- se a uma análise técnico-jurídica da Lei nº 9.263/96, bem como uma observação sobre a vivência conjugal e a hipótese de conflitos, principalmente no tocante à exigência do consentimento, culminando com a apreciação da ADI 5097/2014, que objetiva a declaração de inconstitucionalidade ao dispositivo que prevê o consentimento conjugal na esterilização cirúrgica. Conclui-se que a previsão de consentimento do cônjuge é inconstitucional, colidindo com o art. 226 da Constituição Federal, bem como afrontando os direitos à liberdade e disponibilidade física do corpo (ou autonomia ao próprio corpo), o que culmina com a violação do princípio da dignidade humana, princípio-luz e norteador do ordenamento jurídico pátrio. Palavras-chave: esterilização voluntária. Consentimento do cônjuge. Dignidade humana. (In) constitucionalidade. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9 2 INSTITUTO DO PLANEJAMENTO FAMILIAR E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA NO BRASIL ..................................................................................................................... 12 2.1 Origem da família e sua evolução histórica no mundo.................................. 12 2.1.1 Família na Grécia ............................................................................................ 13 2.1.2 Família no Império Romano .......................................................................... 15 2.1.3 Família na Idade Média .................................................................................. 17 2.1.4 Família na Modernidade ................................................................................. 18 2.2 Evolução histórica da família no Brasil ........................................................... 19 2.2.1 Família no período do Brasil Colonial e Imperial ........................................ 20 2.2.2 Família moderna no Brasil ............................................................................. 24 2.2.3 Outras formas de família ............................................................................... 28 2.3 O planejamento familiar no Brasil ................................................................... 32 3 A OBSERVÂNCIA E CUMPRIMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PARA A EFETIVAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA ............................................................... 35 3.1 Direitos de personalidade ................................................................................. 35 3.2 Fundamentalidade dos direitos da personalidade ......................................... 46 3.3 A concretização dos direitos fundamentais como garantia da efetividade da dignidade da pessoa humana ................................................................................ 49 4 ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA: LEI FEDERAL Nº 9.263/1996. ........................ 56 4.1 Análise técnico-jurídica da Lei Federal nº 9.263/1996 e suas especificidades ........................................................................................................................... 56 4.2 Consentimento do cônjuge como limite jurídico para a esterilização voluntária: aspectos psicológicos da vivência conjugal e seus conflitos ......... 66 4.3 Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5097/2014 .................................. 72 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 78 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 81 9 INTRODUÇÃO Até a metade do século XX, a média de filhos na família brasileira excedia a cinco, posto que o grupo familiar iniciava sua concepção desde muito cedo, logo após a união do casamento. Tal fato devia-se ao conceito dos genitores de que, quanto mais mãos disponíveis para trabalhar, maior era a chance de sobrevivência àquela época, em um Brasil em que boa parte da população vivia no campo, em um estilo de agricultura primitiva. Há quatro ou cinco décadas, conceitos como “controle da natalidade”, “bem- estar da família”, “direitos reprodutivos” e “planejamento familiar” tornaram-se uma preocupação da sociedade, e, a partir disso, vieram a integrar a pauta política brasileira. Com o decorrer do tempo, o instituto do planejamento familiar tornou-se fundamental para uma elevação do bem-estar e para uma maior mobilidade social. Assim, pode-se conceituar planejamento familiar como o direito do indivíduo de ter acesso à informação, à assistência especializada e aos vastos recursos que permitem optar livre e conscientemente por ter ou não filhos, bem como a quantidade, o espaçamento temporal entre a sua concepção e a escolha do método contraceptivo adequado a cada um, sem coação. No ordenamento jurídico brasileiro, o planejamento familiar é direito fundamental previsto legalmente no art. 1.565, § 2º, do Código Civil (CC) e pelo art. 226, § 7º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, (CF), sendo que 10 a Lei Federal nº 9.263/1996 foi sancionada justamente para regulamentar tal previsão constitucional. Assim, a preocupação central deste trabalho é verificar se a exigência do consentimento do cônjuge para proceder à esterilização voluntária é constitucional. Com este propósito, o trabalho a seguir será desenvolvido em quatro capítulos, estruturados em uma conjuntura que permita uma análise acerca dessa condição, imposta pela Lei Federal que regula o planejamento familiar. No segundo capítulo, inicia-se uma narrativa acerca da evolução histórica da família, mais precisamente no mundo ocidental, seguido das transformações do núcleo familiar que ocorreram e as que surgiram no cenário nacional, culminando com uma breve discussão sobre o instituto do planejamento familiar no País. Em seguida, serão trazidos à baila os principais direitos da personalidade, mais especificamente os constantes do capítulo II do CC, e uma discussão sobre sua fundamentalidade, ou seja, a possível equiparação aos preceitos fundamentais, finalizando com uma análise de como ocorre, contemporaneamente, a concretização dos direitos fundamentais, considerando-se a atuação do Poder Judiciário em relação ao tema. Por fim, o quarto capítulo propõe-se a analisar tecnicamente as especificidades da Lei nº 9.263/1996, especialmente sobre a exigência do consentimento do cônjuge na esterilização. Em seguida, será feita análise acerca do convívio conjugal e as hipóteses de conflitos entre cônjuges, a fim de contextualizar o leitor sobre o ambiente hostil ao qual o consentimento pode estar atrelado. Ao fecho, proceder-se-á a um exame da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5097/2014 (ADIN), que ainda se encontra em trâmite no Superior Tribunal Federal (STF) e que contesta a constitucionalidade do dispositivo que trata da exigência de terceiro para a realização da esterilização cirúrgica. O método utilizado na elaboração do estudo será o qualitativo, técnica pela qual a compreensão de informações é feita de forma global, inter-relacionando fatores que variam entre si e privilegiando textos. O conteúdo será altamente descritivo e, mesmo incorporando dados quantitativos, o que irá preponderar será o exame da natureza e 11 das interpretações possíveis para o fenômeno analisado. Ao final, será feita a interpretação do resultado de acordo com as hipóteses estabelecidas de forma estratégica - neste caso, a possível (in) constitucionalidade da vedação legal que obsta a esterilização voluntária. A presente monografia pretende discutir a Lei nº 9.263/1996, que remete à discussão central deste estudo, no tocante à constitucionalidade da exigência de autorização do cônjuge na esterilização voluntária, à luz dos direitos da personalidade e do princípio da dignidade da pessoa humana, este como princípio norteador da Carta Magna. 12 2 INSTITUTO DO PLANEJAMENTO FAMILIAR E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA NO BRASIL Atualmente, o planejamento familiar surge em forma de debate no cotidiano midiático, através de abordagens que remetem às questões referentes ao aborto, mortalidade materna, reprodução assistida, esterilização, entre outros. Em seu aspecto material, é garantido juridicamente, através do art. 226, § 7º, da CF/19881, porém, ao efetivar essa pretensão constitucional, o cidadão depara-se com vedações legais que detêm o condão de regular esse processo, qual seja, a Lei nº 9.263/1996. Neste capítulo será feita a contextualização da família no âmbito mundial, ao longo da história ocidental, além da descrição histórica da família brasileira nas suas modalidades mais populares. Ainda se fará a discussão acerca do conceito e finalidade do planejamento familiar no País. 2.1 Origem da família e sua evolução histórica no mundo A presente monografia pretende sugerir reflexões sobre o planejamento familiar. Entretanto, para que se possa discutir o tema central, é fundamental que primeiramente se conheça o histórico da família no mundo, perpassando os vários 1 CF/1988, “Art. 226 [...] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. 13 períodos em que o instituto esteve presente e se transmutou devido à efemeridade da sociedade que, por sua vez, é construída tendo a família como alicerce. 2.1.1 Família na Grécia A presença humana na região da península balcânica é um dos primeiros registros do início da civilização ocidental, remontando ao período paleolítico médio, há aproximadamente 100.000 anos (TURKENICZ, 2013). O historiador faz alusão às primeiras comunidades que falavam grego, com data de 2.000 a.C., e também cita que essa mesma civilização acreditava que, após a morte, os antepassados não repousavam, porém viviam em seus túmulos. Na mesma linha, segue afirmando que os gregos não consideravam a morte um encerramento da vida, mas que corpo e alma seguiam vivendo outra existência. O autor afirma que todo lar grego tinha em seu interior um altar, no qual permanentemente ardiam algumas brasas, atribuição sagrada que era atribuída ao dono da casa como primeira tarefa ao despertar. Caso o fogo se debelasse, a desgraça sobre a família seria inevitável, pela crença de que o fogo extinto do altar era sinônimo de família extinta. Tal demonstração de zelo era para com o deus Lar que, representado através do fogo que cozia os alimentos, possuía também um espírito. Os deuses Lares eram representados pelos antepassados mortos, esclarece o escritor. Os cultos e funerais eram exclusividade dos parentes mais próximos, conforme instituía a lei de Sólon (640-558 a.C.), proibindo de acompanhar o enterro qualquer pessoa que não fosse parente do morto, cujo espírito só recebia oferendas dos seus descendentes. De forma semelhante, somente os patriarcas eram homenageados, e a falta de oblação acarretava falta grave, resumindo esse forte vínculo com a máxima: “Nem o vivo podia passar sem o morto, nem o morto sem o vivo” (TURKENICZ, 2013, p.36). Diante do altar, a família era reunida pela manhã e à noite, para proceder com as orações, sendo que os túmulos dos ascendentes ficavam a poucos passos da residência: 14 [...] se reuniam os vivos, em certos dias, trazendo a refeição fúnebre. Não era o afeto recíproco entre os vivos que dava a sustentação à família, nem na Grécia e nem, mais tarde, em Roma. Também não eram o nascimento nem o sentimento que originavam a associação familiar. A família era sobretudo uma associação religiosa: tratava-se daqueles que cultuavam os mesmos deuses Lares. A religião não criou a família mas lhe forneceu as suas normas (TURKENICZ, 2013, p.36) Após o casamento, a mulher mudava-se da casa do pai para a do marido. Consequentemente, era impossibilitada de continuar seguindo sua religião, devendo conhecer outras orações e praticar rituais distintos daqueles que desenvolveu na sua infância. Descreve o autor que a cerimônia ocorria no próprio lar e, entre os gregos, era composta de três momentos, sendo o primeiro na casa paterna em que a mulher, na presença do marido, era desligada do lar em que sempre viveu. Num segundo momento, em um contexto festivo, a mulher era conduzida ao seu novo lar, vestindo roupas brancas, uma coroa na cabeça e com o rosto coberto. Um hino religioso, o himeneu era entoado, enquanto seu marido a tomava em seus braços, tomando o cuidado para que os pés da esposa não tocassem na soleira, evitando assim o mau agouro. Finalmente, o terceiro momento é apontado pelo autor: [...] a esposa era colocada diante da divindade doméstica de seu novo lar, tocava o fogo sagrado, eram feitas as orações e eles compartilhavam um bolo e alguns frutos. ‘Esta espécie de ligeira refeição, começando e acabando por uma libação e uma oração, esta partilha de alimento em frente do lar, coloca os dois esposos em comunhão religiosa entre si e em comunhão com os deuses domésticos’ (Fustel de Coulanges, p.41). Só bem depois, os deuses do céu (Júpiter, Juno, etc.) também seriam invocados, mas numa cerimônia chamada de prelúdio do casamento (TURKENICZ, 2013, p.37). O casamento na Grécia tinha por escopo a união de dois seres capazes de originar um terceiro, a fim de continuar esse culto. Não existem referências de simpatia entre marido e mulher, nem à felicidade ou ao prazer, pois o objetivo principal era a concepção de um filho varão que, por si só, não o instituía como perpetuador. O ato oficial de pertencimento à família ocorria após o décimo dia de vida do nascituro, por meio de um ritual religioso comandado pelo pai na presença do restante da família. Acredita-se que esse período era instituído a fim de se assegurarem de que a prole sobrevivesse. Além do laço sanguíneo, o vínculo do culto era exigido para que o filho fosse assim reconhecido pelo pai e, mesmo assim, este tinha a liberdade de reconhecer ou não um filho tido com a esposa (TURKENICZ, 2013). 15 O modelo de família monogâmica grega tinha por fundamento apenas a procriação, para que mais tarde a prole herdasse os bens do pai somente, pois a mãe nada tinha direito a nada, posto que a estrutura familiar baseava-se no predomínio do homem como chefe supremo (SILVA, 2005). Nese modelo monogâmico de estrutura familiar, o autor alega que somente o chefe de família poderia romper o conceito de monogamia e repelir sua mulher, possuindo semelhante prerrogativa para recorrer à infidelidade conjugal: “À mulher legítima exige-se que tolere tudo isso e, por sua vez, que guarde uma castidade e uma fidelidade conjugal rigorosa” (SILVA, 2005, p. 23). Em virtude do inexistente direito materno, o escritor cita que a direção da casa também ficou sob o comando do homem, tendo sido a mulher convertida em serviçal, meio de reprodução e cativa da luxúria. Esse pode ser apontado como o surgimento da exclusividade do poder do homem, dando origem à família conceituada como patriarcal. Analisando o contexto daquela época, chega-se à conclusão de que, o que definia a família como patriarcal não era o direito do pater à poligamia, mas a organização de pessoas livres, bem como de cativos, sob seu indiscutível poder paterno. Partir-se-á agora ao estudo da família durante o Império Romano. 2.1.2 Família no Império Romano Em um lapso temporal de quatro séculos, sendo dois deles antes de Cristo e dois depois, houve gradativamente uma valorização bem maior do vínculo marital. Durante esse período, o contexto da mulher no casamento e na sociedade melhorou significativamente. Além de desfrutar de seus bens, a união entre marido e mulher era definida como um acordo entre duas partes, podendo a mulher, inclusive, contestar o marido (TURKENICZ, 2013). No mesmo período, Sampaio e Venturini (2007) citam que a cultura da família numerosa era amplamente incentivada porém, devido à grande mortandade de mães e recém-nascidos devido às condições precárias em que ocorria o nascimento, esse 16 ideal de família profusa nem sempre se concretizava. Apontam as autoras que era hábito comum na Roma Antiga o abandono ou sacrifício de crianças nascidas com alguma deficiência. Tais rituais, nessas circunstâncias, eram tidos como indispensáveis para garantir que a criança pudesse futuramente seguir os passos do pai, no caso dos meninos, ou obter um bom casamento, no das meninas. Turkenicz (2013), menciona que o homem, quando esposo, além de ser pai de família, também era senhor de escravos e dono do patrimônio. Denominado como pater familias, possuía a posição mais elevada do estatuto familiar romano e decidia monocraticamente as questões sobre todos os membros da família. Um filho somente tomava o posto de pater familias após a morte do pai que, antes disso, poderia deserdar ou até mesmo condenar seu rebento à morte. Em relação às filhas, o autor explica: [...] os filhos tornavam-se adultos e podiam dispor da herança. Não existia direito de primogenitura. Caso as filhas ainda fossem solteiras por ocasião da morte do pai, elas também herdavam. Nessas circunstâncias, elas passavam a ser livres para casarem com alguém da sua escolha (TURKENICZ, 2013, p.85). A mulher romana era merecedora do respeito do marido, muitas vezes em virtude da nobreza do pai ou pelo dote que trazia consigo àquela união, porém há de se salientar que o poder do pater ainda vigia fortemente entre a família. A infidelidade da esposa não consistia numa ofensa, mas era tida como um grande infortúnio, comumente comparado a um escravo que não cumpria com seus deveres. À mulher, na pior das hipóteses, cabia o exílio. O autor exemplifica que o mesmo ocorreu com as filhas do imperador Augusto, fundador do Império Romano, sendo que uma delas só era infiel quando estava grávida, para não correr o risco de dar filhos ilegítimos a seu marido. A respeito da extinção da união conjugal, o autor comenta: Na classe alta romana, o divórcio era frequente. Não causava rechaço casar com mulher divorciada. Considerado um dever cívico, esperava-se do casamento que os esposos gerassem filhos e cuidassem da casa. O vínculo amoroso era uma possibilidade adicional, nem fundamento nem condição para o casal (TURKENICZ, 2013, p. 81). O autor averba que a omissão perante a infidelidade da mulher não era considerada atitude de alguém que poderia vir a ser um bom chefe militar nem bom cidadão. 17 A partir deste período, percebe-se um maior destaque da mulher na relação, comparado a outras épocas. A figura feminina, no Império Romano, possuía voz em meio ao núcleo familiar, o que se perpetuou durante a Idade Média. 2.1.3 Família na Idade Média A Idade Média compreende um período aproximado de 10 séculos da história europeia. Alguns historiadores, segundo Turkenicz (2013), definem o ano de 395 como o ano-marco do início da Idade das Trevas, expressão utilizada pelos renascentistas da época para descrever o declínio das artes e das ciências, em comparação à Antiguidade. Dando continuidade ao modelo patriarcal, a família na sociedade feudal era comandada pelo homem, que exigia obediência de sua esposa. Os casamentos dos nobres tinham um ponto de vista exclusivamente econômico, em virtude das competições por território para fins de expansão, relata o autor. A Igreja Romana, que representava o Cristianismo com exclusividade, instituiu a família como sendo uma entidade religiosa e a converteu em célula-mãe da Igreja, organizada a partir da figura masculina como ponto central. A procriação, nesse período, era considerada fundamental para constituir uma família, praticando fielmente o preceito bíblico “Crescei e multiplicai-vos. Ide e enchei a terra”. Instituída como entidade legítima, o casamento marcava o início da família, que deveria necessariamente procriar, eis que o casal sem filhos era considerado inferior perante a sociedade (SIQUEIRA, 2010). O pesquisador relata que o sexo, na constância do casamento, tinha apenas dois propósitos: proporcionar prazer ao homem – uma vez que à mulher não era atribuída a capacidade de sentir prazer – e procriar, motivo pelo qual as famílias da época eram tão numerosas. Com o intuito de evitar a infindável divisão de terras na transmissão do feudo, somente o primogênito sucedia ao pai na condição de legítimo herdeiro. Os demais filhos, que não possuíam o dever de continuação do feudo, tinham a liberdade de vincular-se a ordens religiosas ou compor uniões menos aristocráticas ou duradouras, 18 como o concubinato ou a prostituição. A relação de lealdade entre pai e filhos era sobretudo preciosa, considerando-se o ambiente de incessantes guerras e, consequentemente, de inúmeros inimigos (TURKENICZ, 2013). Segundo o autor, o concubinato e suas consequências eram assim definidos: O que os cronistas medievais chamavam de concubina referia-se a uma companheira reconhecida, que não se confundia nem com prostituta, nem com amante passageira, nem com esposa legítima. Essas relações não requeriam uma ação de divórcio para se desfazerem e nem seus filhos tinham direito à herança. Não havia uma cerimônia oficial: ocorria através de um acordo entre companheiros ou por rapto da moça (TURKENICZ, 2013, p. 124). Naquele período, o patrimônio fixo associado a um sobrenome determinava a linhagem, que prevalecia profusamente sobre a conjugalidade, sendo que as uniões tidas como oficiais possuíam essência e objetivo econômicos, e igualmente influenciadas fortemente pela Igreja Católica, descreve o escritor. A seguir, será contextualizada a família no período da Idade Moderna. 2.1.4 Família na Modernidade Nesse período, o sistema de sociedade feudal passou pela transição da ideia de autotutela para a proteção estatal, visto a implementação do sistema de Estado Nacional. Em virtude da Revolução Industrial, cada membro da família que anteriormente fazia parte de uma unidade de produção sob o comando do chefe – dito sistema patriarcal – agora passa a trabalhar em fábricas, desempenhando uma função econômica (SIQUEIRA, 2010). Muitos paradigmas transmutaram-se a partir da Revolução Francesa, com a introdução dos preceitos da igualdade, liberdade e fraternidade, fazendo com que novos modelos de família surgissem a partir de então, assevera o autor. Houve revolução também no âmbito familiar. O casal em união não era declarado casado perante Deus, mas perante a lei, desobrigando a esposa a obedecer incondicionalmente seu marido. A vida íntima passou a ser regulada, como segue: 19 Se, depois de sete anos de casado, marido e mulher não tivessem filhos, deviam separar-se. Devia haver uma declaração pública das amizades. Mas o amor, grande ameaçador das regras, era inimigo da revolução. O Estado também passou a definir impedimentos ao casamento, regulamentou os procedimentos de adoção, estabeleceu o divórcio (lei de 20.10.1972) e criou os tribunais de família. [...] Tanto o homem quanto a mulher podiam pedir o divórcio (TURKENICZ, 2013, p. 247). A ausência do cônjuge ou o seu abandono eram as principais justificativas para os casais se divorciarem. Também a religião passou a vigorar apenas na vida privada, em vista da ampliação dos espaços do Estado, que deveria proteger a população da opressão da Igreja bem como da própria família, quando esta não agia de acordo com os novos preceitos instituídos pela Revolução Francesa. Assim, o conceito de casamento transmutava-se de um acordo indissolúvel entre famílias e diante de Deus, para um contrato livremente estabelecido entre homem e mulher, descreve o autor. Uma mudança relevante com o advento da modernidade foi no tocante à infância, como explicitado a seguir: [...] a infância passa a ser definida como um período de ingenuidade e fragilidade do ser humano, que deve receber todos os incentivos possíveis para sua felicidade. O casal conjugal passa a se organizar em torno dela e se voltar para sua promoção nos aspectos afetivo, educacional e de saúde. O filho passa a ocupar um outro lugar na família, distanciando-se do lugar de assujeitamento, ‘a coisa dos pais, como um objeto inteiramente submisso à vontade deles’ (Roudinesco, 2003:99), para um lugar de filho- sujeito, merecedor de cuidado e afeição. Também vai desaparecer o favorecimento de filhos privilegiados (direito de progenitura), e se instalar a preocupação com a igualdade entre irmãos. O novo interesse pela infância seria, conseqüentemente, uma expressão do sentimento de família (FAMÍLIA..., [200 -?], p. 19, grifo nosso). Esse emergente interesse pela infância, segundo o autor, seria uma consequência do novo sentimento de família, que nasceu por volta dos séculos XVI e XVII. Esse período do processo de industrialização inseriu as mulheres em um mundo predominantemente masculino até então. Além de expandir o labor mediante proventos, novidade para a figura feminina, induziu a melhoria nas condições de vida da família e também levou as crianças para a escola. 2.2 Evolução histórica da família no Brasil Tanto a família como a sociedade em geral possuem características muito efêmeras e que evoluem constantemente. Adiante, será apresentada suscintamente 20 a evolução histórica e as principais características da família brasileira em diferentes momentos. 2.2.1 A família no período do Brasil Colonial e Imperial A família brasileira, em sua origem, foi constituída pela miscigenação influente de três culturas: indígena, africana e europeia, resultando na formação de uma sociedade multicultural e diferenciada (FAMÍLIA..., [20--]). Até a metade do século XVIII, vigeu a política dos casais, método adotado pela Coroa portuguesa para povoar o território brasileiro, além de estimular os casamentos inter-raciais, a fim de garantir a mão-de-obra indígena. Somente no ano de 1747, nas ilhas dos Açores, 7.817 pessoas se alistaram para serem trazidas ao Brasil (TURKENICZ, 2013). No período de colonização, o povo português e espanhol instituiu diversos valores e características culturais próprias, como por exemplo a família patriarcal e conservadora. A família era tida como uma instituição basilar da vida social, de valor indissolúvel, sendo que o indivíduo que não a tivesse era tido como renegado ou simplesmente ignorado. O conceito de bem-estar social àquela época se baseava no fato de, antes de mais nada, pertencer a algum grupo familiar (FAMÍLIA..., [20--]). O modelo de família patriarcal brasileira pode ser descrito da seguinte forma: um grupo extenso tendo como base o núcleo formado pelo casal e seus filhos legítimos. Nesse grupo, incorporavam-se parentes, afilhados, escravos e por vezes até as concubinas e os bastardos, todos sob o domínio do patriarca, da casa-grande à senzala. Nesse período ocorre a intensificação do poder patriarcal, em função do governo português não conseguir se fazer representar mais solidamente no Brasil Colônia (TERUYA, 2014). A autora menciona que o proprietário de terras tomou o controle do poder local, e o sistema de parentesco entre os indivíduos era a forma pela qual os mesmos se identificavam e reconheciam em sociedade. Logo, ser filho, compadre ou parente do senhor proprietário proporcionava as oportunidades e os limites para cada indivíduo. 21 O patriarca imperava com autoridade incontestável e absoluta, de caráter econômico e político, concebendo todas as esferas da sociedade. À mulher casada cabia o papel de assumir as funções domésticas e os filhos, todavia, a mulher possuía uma categoria singular enquanto mãe ou esposa-mãe, responsabilizando-se pelo caráter de se relacionar com a sociedade brasileira. Ao homem era necessário conceber esposa, ou seja, ter lar e filhos dignos a fim de alcançar prestígio social, porém há de se salientar que o papel central e de destaque ainda era do homem enquanto marido. O modelo patriarcal enquanto relação familiar iria perdurar até a atualidade, mas com ênfase em sua vigência até o século XIX (FAMÍLIA..., [20--]). Durante os dois primeiros séculos de colonização o abandono de crianças era muito frequente e ocorria por diversos motivos, entre eles, quando a mulher branca de elite concebia o filho fora do casamento e, por causa disto, era condenada moralmente, e as mulheres da classe trabalhadora em função do adoecimento ou morte dos pais (MEIRA e CENTA, 2003). Em termos conceituais de família, Faria (1998) aponta que a Inglaterra e a França determinavam-na como sendo família nuclear, composta por pai, mãe e filhos que viviam sob o mesmo teto, tendo em vista ser raro que outras pessoas vivessem na mesma residência. No Brasil, entretanto, o conceito de família englobava criados, parentes e agregados, sendo que a autora envolve mais uma acepção no conceito: parentes e aliados, esses últimos sugerindo relações de compadrio ou alianças políticas. Os vínculos era numerosos e variados, e se davam de forma que hoje surpreende. Estudos aprofundados sobre as características familiares da época carecem de fontes, devido às limitações documentais daquele período; contudo, linhas gerais podem ser tratadas sobre o tema. Turkenicz (2013), menciona que a transferência do eixo econômico para Minas Gerais influenciou a formação de novas configurações familiares no início do século XVIII, afetando assim o padrão de família patriarcal que, menos frequente, verificava- se somente nas esferas mais ricas da sociedade. Estima-se que nesse século mais de 600.000 pessoas foram atraídas para a região das minas em função da descoberta de ouro e metais preciosos e, 22 consequentemente, houve uma mistura de raças de diversas origens. Ainda sobre o modelo patriarcal e suas fontes históricas, Faria (1998, p.45) relata: Gilberto Freyre, declaradamente, considerava os relatos de viajantes e cronistas estrangeiros a fonte de informação mais segura sobre a sociedade brasileira, discriminando-se autores viciados por preconceitos ou superficiais. Parece que a utilização sistemática deste tipo de fonte colocava-se, na época, como grande novidade ao se fazer história. Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido de Carvalho e outros de menor divulgação e do mesmo período, também estavam entre os que, amplamente, utilizaram os relatos dos viajantes como comprovações seguras de suas ideias. A posição da mulher na família, na visão de precursores do patriarcalismo, definiam-na como enclausurada e dominada, porém entre os grupos mais pobres da sociedade a mulher presidia o âmbito doméstico e gozava de certa liberdade de movimentos no espaço público, que teoricamente era exclusivo dos homens. Contudo, pesquisas posteriores apontam que havia uma diversidade de padrões familiares divergentes do modelo patriarcal idealizado somente entre a população mais rica da época, os moradores da casa-grande. A partir da análise da família paulista no início do século XIX, concluiu-se que família do tipo patriarcal representava menos de 26% dos domicílios, sendo que nos outros 74% das casa, outras formas de composição predominavam, discorre a estudiosa. O século XIX, durante o Brasil Imperial, transcorreu trazendo muitas transformações à sociedade brasileira, como a consolidação do capitalismo, um cotidiano urbano que permitia novas alternativas de convívio social e o avanço da burguesia. Com esta última, desenvolveram-se novas formas de organizações familiares e suas vivências domésticas (D’INCAO, 2001). A mulher elitista daquela época, segundo a autora, era submetida à avaliação e opinião alheias, passando a se fazer presente em eventos sociais como teatros, bailes e cafés. A partir de então, além do pai e do marido, outros olhares da sociedade ficavam atentos à sua conduta social. O casamento entre famílias burguesas era tido como uma forma de manter o status e garantir a ascensão social, estabelecendo à mulher o cargo de anfitriã, boa mãe e esposa. Em outro sentido, a escritora menciona que o homem dependia da imagem da esposa para ser bem visto dentre seus pares, sendo papel das esposas, 23 filhas, tias, irmãs e sobrinhas zelar pela imagem pública do chefe de família. Apesar da sua aparente autonomia nas questões políticas e econômicas, o homem na verdade era rodeado por mulheres incumbidas de ajudá-lo a manter seu posto social. As relações concubinas eram muito comuns na São Paulo do século XIX, o que originava muitos filhos tidos como ilegítimos, principalmente nas classes mais pobres da sociedade. Esses filhos, intitulados bastardos, por vezes eram lembrados nos testamentos, o que originou disputas ferrenhas pela herança, principalmente quando o patrimônio era substancialmente grande. Nos setores mais desprovidos da sociedade, muitos lares eram chefiados pelas mulheres que, por vezes, tinham o apoio de outros adultos ou agregados para complementar a renda familiar (TURKENICZ, 2013). No final do século XIX, a família passou a modificar suas relações com a criança, à medida em que entendeu a necessidade de educar e preparar o infante para a vida futura. A criança passou a frequentar a escola e permanecer em seus lares, ao mesmo tempo em que a família distanciou-se da sociedade e valorizou a intimidade da vida privada. Embora os casos de mortalidade infantil ainda fossem recorrentes, a preocupação com a infância fez com que a família voltasse os cuidados aos filhos, submetendo-os a uma rotina de higienização e vacinando-os contra a varíola, o que acabou por colaborar para a redução da mortalidade infantil (MEIRA e CENTA, 2003). O sentimento das famílias em relação às suas crianças, segundo as autoras, passou de um estágio em que se enviavam bebês para amas de aluguel ou para viver e trabalhar na casa de outras famílias, para uma fase em que a educação passou a ser atribuída à própria família e à escola, o que denota uma preocupação dos pais em manter seus filhos por perto para protegê-los. As famílias, a partir de então, concebiam uma nova visão sobre a infância e sua importância. No final desse período, o núcleo familiar passou a exprimir sentimentos entre seus membros. Desenvolveram-se também outros tipos de relações entre familiares, valorizando-se a independência dos indivíduos, não mais submetidos ao poder majoritário do homem. 24 2.2.2 Família moderna no Brasil A família iniciou o século XX com algumas transformações advindas do final do século anterior. Os filhos, por exemplo, não eram tão dependentes do poder patriarcal, buscando carreiras autônomas ou vinculadas à política: A preservação parcial da economia latifundiária explicaria a manutenção das enormes desigualdades sociais no país, juntamente com as relações semi- patriarcais, principalmente nos estados do Norte. Por outro lado, o desenvolvimento da economia industrial no Sudeste é que transformará a família. Ela se nucleariza para atender melhor as demandas da sociedade moderna, e ao perder a sua função produtiva, o grupo tende a se relacionar única e exclusivamente a partir dos laços de afeto mútuo (TERUYA, 2014, p. 10). Como bem destacado no subcapítulo anterior, a mulher elitista entre o final do século XIX e início do século XX era constantemente avaliada pela sociedade, fazendo-se presente, a partir daquela época, em bailes, teatros e cafés (D’INCAO, 2001). No entanto, as mulheres das classes populares não conseguiam atender essas condições, por terem a responsabilidade de trabalhar para o próprio sustento e de sua família. Cabe ressaltar que as famílias das classes menos privilegiadas revelavam uma pluralidade de formas de organização, sendo numerosas aquelas chefiadas por mulheres. Porém, a implementação do modelo familiar burguês nas famílias da camada pobre da sociedade era vista como necessária mediante o novo regime capitalista que adveio após a abolição da escravatura. Os argumentos sustentavam a ideia de que, em vista dos custos de reprodução da força de trabalho, a contribuição do trabalho doméstico e não remunerado da mulher era imprescindível (TENO e SALLES, 2011). Além disso, as autoras destacam que o ideal de honra e casamento em meio às mulheres pobres era considerado temerário frente à moralidade de uma nova sociedade. De fato, à mulher eram reservados o recato e a subordinação, desde a sexualidade até a aptidão maternal. O sexo só lhe era permitido após o casamento, e somente no âmbito da união conjugal. Em contrapartida, ao homem cabia externar a sexualidade desenfreada, manifestada por uma força física sobressalente e uma natureza empreendedora, racional e autoritária. 25 Sob o olhar jurídico, o Código Civil de 1916 trazia em seu texto que a família se constituía somente mediante o casamento e não passível de dissolução. Ao homem cabia o comando da família, restando à mulher a capacidade civil relativa, e somente os filhos tidos como legítimos gozavam de legitimidade. Em sua forma original, no Código o casamento não era passível de dissolução nem de desquite. Este surge logo após, mas apenas contemplando as hipóteses em que um cônjuge injuriava gravemente o outro, praticava adultério, abandonava voluntariamente o lar ou atentasse contra a vida do outro. O culpado pela separação era punido pela privação da guarda de seus filhos (ESCOLA ..., 2013). As décadas supervenientes, de 30 a 60, foram consideradas de relevante importância para as mudanças ocorridas no casamento. A industrialização e a consequente urbanização foram responsáveis por desfazer os métodos antigos de sociabilidade, tornando as relações de homens e mulheres mais democráticas. O beijo surge nos filmes e nos relacionamentos entre namorados como demonstração de afeto e contato físico mais latente entre homem e mulher (TENO e SALLES, 2011). Entretanto, as autoras comentam que a mulher permaneceu em desvantagem social e trabalhista durante muitos anos. Aquelas que estavam no mercado de trabalho permaneciam somente até o casamento pois, após o mesmo, o sistema trabalhista se encarregava de dispensá-las por causa do seu estado civil Em 1962 foi criado o Estatuto da Mulher Casada, instituído pela Lei nº 4.121/62 que, embora continuasse deixando o homem em posição de gerência no âmbito familiar, a mulher passou a ser vista como colaboradora, podendo recorrer à tutela jurisdicional quando discordasse de alguma questão referente ao relacionamento conjugal (ESCOLA..., 2013). Teno e Salles (2011, texto digital, grifo nosso) afirmam que esse modelo familiar perdurou até o final dos anos 60, quando houve significativas mudanças no casamento: Esse modelo persistiu até a o final da década de 60 quando a independência feminina, diante do trabalho, o início da liberação sexual decorrente do surgimento da pílula anticoncepcional e a invasão da mídia (novelas, filmes e outros), que mostravam o amor e a paixão como temas principais, fez com que lentamente o sexo antes do casamento fosse visto não apenas como tema de novela, mas também da vida real, desvinculando-se assim da procriação e do próprio casamento. […] foi nesta mesma época que as 26 fronteiras sexuais foram “borradas”. Ao mesmo tempo em que se assistia uma transição social e as décadas de 60 e 70 passavam um momento revolucionário em termos políticos, sociais, culturais e ideológicos, a censura ainda estava presente em meios de comunicação, principalmente quando os temas se referiam ao aborto, a contracepção, o divórcio, etc. […] a nova facilidade de contracepção levou à uma diminuição significativa dos casamentos formais. Assistiu-se então, uma Revolução Sexual inserida na Revolução dos costumes. As mulheres passaram a se vestir de maneira mais liberal e reivindicar por igualdade salarial, de direitos e de decisões. Aos poucos, a noção de “atentado” aos bons costumes desaparece, a informação e educação sexual deixam de ser um tabu e proclama-se o direito ao prazer sexual. Teruya (2014) destaca que a entrada da mulher no mercado de trabalho, a impessoalidade nas relações sociais, o enfraquecimento dos laços de parentesco e o controle de natalidade foram as grandes transformações atribuídas à família moderna brasileira. Em 1977 o direito ao divórcio passou a ser positivado, através da Lei nº 6.515, mediante protestos da Igreja. O cônjuge só tinha direito ao divórcio se estivesse separado de fato há no mínimo 5 (cinco) anos, ou 3 (três) anos após separação judicial, porém o divórcio só era possível uma única vez. Tal mudança teve grande significado e impactou diretamente no direito de liberdade, uma vez que o indivíduo não tinha mais a obrigação de permanecer na sociedade conjugal (ESCOLA..., 2013). A Constituição Federal de 1988 (CF) reconheceu a igualdade de gêneros, e o casamento deixou de ser a única modalidade de união, passando a ser mais um dos institutos reconhecidos a fim de promover a dignidade humana. Os filhos, havidos ou não no casamento, passaram a ser reconhecidos igualmente perante a legislação. Valorizou-se o princípio da liberdade individual como uma forma de direito do indivíduo ao exercício da vida privada e de intimidade. Liberdade, a partir de então, passou a significar a realização de escolhas de acordo com a própria vontade, sem interferências de qualquer sorte (ESCOLA..., 2013). Os estudos de gênero em diferentes regiões do país são financiados pelos programas das Fundações MacArthur e Ford e um tema se torna muito evidente durante estes trabalhos: Os direitos reprodutivos (SCOTT, 2011). A partir do final dos anos 90, ocorreu uma sucessão de inovações legislativas: 27 Quadro 1 – Mudanças na legislação a partir dos anos 90 LEGISLAÇÃO EFEITOS GERADOS Lei n º 7.811/89 Permissão para divórcios sucessivos. Lei nº 8.069/90 A criança passou a ser vista como sujeito de direitos e não mais como objeto de disputa entre os pais. Em questões relacionadas à sua guarda e visitação, deveria prevalecer o seu melhor interesse. Lei nº 8.560/92 A investigação de paternidade abre as portas para o reconhecimento de filhos tidos até a Constituição de 1988, como adulterinos e ilegítimos. Lei nº 8.971/94 Lei nº 9.278/96 Ainda que com denominações e requisitos diversos, reconhecem as relações concubinárias e de convivência. Lei nº 10.406/02 (Código Civil) Originado das matrizes do pensamento jurídico dos inaugurais anos da segunda metade do século XX, foi fortemente afrontado pelos ditames da nova ordem social que já se redesenhava desde a promulgação da Lei do Divórcio, em 1977. Lei 11.441/07 O divórcio e a separação sem filhos menores passa a ser realizada extrajudicialmente e sem a intervenção do Estado- Juiz. Emenda Constitucional 66/2010 No ano de 2010, advém a Emenda Constitucional nº 66, que permite o divórcio direto sem a prévia separação de fato e elimina, de modo definitivo, a discussão de culpa nas demandas de dissolução do vínculo conjugal. Fonte: ESCOLA..., 2011, p. 129-130. Foi somente através do reconhecimento estatal e a consequente evolução legislativa, os quais buscaram legitimar as transformações ocorridas no âmbito familiar, que houve efetiva proteção jurídica das relações familiares. Sabe-se que o fato sempre antecede o direito; por esse motivo, é imperioso que se tutele a matéria incontinenti ao surgimento de novos modelos familiares para garantir a proteção efetiva pelo sistema jurisdicional. A seguir, serão estudadas as outras formas possíveis de família. 28 2.2.3 Outras formas de família O ordenamento jurídico brasileiro, bem como a maioria das outras legislações alienígenas, considerava que a família era constituída através do casamento, até o advento da Constituição Federal de 1988. Mesmo não recebendo a proteção estatal, sempre existiram e existirão outras formas de organização familiar. O Estado almejava regular as relações sexuais, tornando legítimas somente aquelas que ocorressem na constância do casamento. Como não há possibilidade de normatização da sexualidade, pois ela pertence à ordem do desejo, tornou-se infactível ao Estado controlar a constituição de novas organizações familiares PEREIRA (2012). Dentre as mais recentes formas de agrupamentos familiares, pode-se destacar, além do casamento, aquelas formadas por pessoas intersexuais e também por indivíduos homossexuais (MALUF, 2010). Pereira (2012), ainda introduz a união estável como forma jurídica de estabelecimento familiar, além dos grupos familiares monoparentais. Maluf (2010) menciona que o Estado, em sua função legislativa deve regular e não controlar a família conforme seja conveniente, mas sim almejando a função social determinada pela Carta Magna. Para a autora, o que define um casamento é a formação de uma relação estável que traz na sua estruturação a afetividade, intimidade, cumplicidade, mútua proteção e uma eventual reprodução. A família formada pelo casamento sempre foi uma organização familiar que fruiu de proteção constitucional, sendo inclusive a única modalidade reconhecida no Código Civil de 1916. De certa forma há uma garantia intrínseca no ordenamento jurídico brasileiro, eis que existe uma presunção de paternidade (SENA, 2016). Cabe ressaltar que dados atualizados até o ano de 2009 foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), onde se conclui que o número de casamentos teve sua primeira queda em 2002, como segue: O total de casamentos ocorridos e registrados em 2009 caiu 2,3%, em relação a 2008 na população de 15 ou mais anos de idade, causando queda de 0,2 pontos na taxa de nupcialidade (casamentos por mil habitantes nessa faixa etária), a primeira retração desde 2002. O Acre ficou com a maior taxa de nupcialidade (11,2‰, quase o dobro da taxa nacional de 6,5‰), e também teve maior percentual de divórcios do tipo direto (98,3%). As mulheres estão casando cada vez mais tarde e o percentual de casamentos em que a mulher 29 é mais velha do que o homem está aumentando gradativamente (de 19,3% em 1999 para 23,0% em 2009). Os casamentos em que um dos cônjuges é divorciado ou viúvo passaram de 10,6% em 1999 para 17,6% em 2009 (NÚMERO..., 2010, texto digital). Pereira (2012) reforça que essa queda significativa nos registros de casamentos não remete a uma possível decadência das instituições familiares; ao contrário, significa que o casamento não caracteriza a única hipótese pela qual os indivíduos formam as comunidades familiares, permitindo-lhes mais autonomia em suas escolhas para se agruparem almejando uma vida em comum. O modelo familiar clássico do casal com filhos deixou de ser maioria, cedendo o lugar aos mais diversos arranjos familiares, alguns dos quais serão vistos a seguir. A família homoafetiva ou união homoafetiva detém reconhecimento jurídico, fundando-se na dignidade da pessoa humana e encontrando amparo no afeto e na busca pela felicidade da família, e foi justamente essa busca que propiciou o surgimento de novas organizações familiares. Em 2013, a Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que os cartórios de todo o País procedam ao registro do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. O mesmo dispositivo trouxe a garantia de conversão em casamento das uniões estáveis homoafetivas registradas anteriormente, cuja desobediência passa a ser penalizada: Caso algum cartório não cumpra a Resolução do CNJ, o casal interessado poderá levar o caso ao conhecimento do juiz corregedor competente para que ele determine o cumprimento da medida. Além disso, poderá ser aberto processo administrativo contra a autoridade que se negar a celebrar ou converter a união estável homoafetiva em casamento (RESOLUÇÃO..., 2013). A homossexualidade sempre existiu ao longo de toda a história da civilização, variando nos níveis de aceitação entre a sociedade, o que determinava a publicização ou não do relacionamento. Assim, adaptações legislativas devem ocorrer para assegurar a integridade e o patrimônio da família, bem como a escolha da sexualidade daquele que se reconhece como homossexual. Em seguida, pode-se citar a família formada por intersexuais como uma nova modalidade que surgiu concomitantemente às mudanças culturais de aceitação à diversidade. Denomina-se como intersexual o indivíduo que porta uma diferenciação sexual anômala podendo, nos casos mais extremos, verificar-se a coexistência de 30 ambos os sexos, conforme relata Sutter apud Maluf (2010, p. 442): “[...] os fatores determinantes do sexo apresentam-se de forma sequencial [...] do sexo genético deriva o sexo gonadal, deste configura-se o corpóreo, que pode ser por sua vez subdividido em estruturas internas, externas e caracteres sexuais secundários”. Quando adequado o sexo do indivíduo (redesignação sexual) em consonância com sua estrutura somática e, consequentemente, inserido no mundo jurídico, não há presunção desonrosa em imputar-lhe a paternidade ou maternidade. Frente à incapacidade de reprodução, a adoção é o recurso cabível para efetivar seu direito de continuar a família (MALUF, 2010). A CF, em seu art. 226, § 4º, trouxe previsão sobre a comunidade formada pelos ascendentes e seu descendentes. Salienta-se que o legislador contemplou como grupo familiar aquele formado por um só dos genitores (SENA, 2016). A monoparentalidade é fato social de grande incidência e pode-se caracterizá- la como o pai ou a mãe que cria sozinho seu filho, sem a presença do outro genitor, seja por questões de viuvez, divórcio, adoção por pessoa solteira ou por fertilização com acompanhamento médico, cita a autora. A família monoparental, na maioria das vezes, possui estrutura mais delicada, visto as causas de sua formação serem comumente advindas do desfazimento de laços conjugais ou morte. A filiação socioafetiva, prevista na Carta Magna, bem como no art. 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no art. 1.596 do CC, determina que os filhos não havidos da relação conjugal ou até mesmo aqueles reconhecidos pela adoção terão os mesmos direitos e qualificações dos filhos biológicos, sendo vedada qualquer tipo de discriminação no tocante à filiação; portanto, o dispositivo abarca tanto a adoção quanto outras relações de parentesco. A doutrina e a jurisprudência vêm no mesmo sentido reforçando os laços da filiação socioafetiva, que se constitui uma relação de fato e merece ser reconhecida juridicamente para surtir os efeitos legais decorrente dessa relação, relata a escritora. Pereira (2012) reitera que a consolidação desse modelo de filiação é uma garantia de salvaguardar esse direito que constitui um meio fundamental para a formação da identidade do indivíduo, sendo uma extensão dos direitos de personalidade da criança ou do adolescente. 31 A partir de 1988, com a promulgação da atual Constituição, a união estável foi introduzida no ordenamento jurídico pelo art. 226, § 3º, desse dispositivo legal. Com isso, o casamento deixou de ser a única forma legítima de união, mas foi somente a partir das Leis nº 8.971/94 e 9.278/96 que a união estável foi regulamentada, sendo conceituada como uma convivência duradoura, pública e contínua entre um homem e uma mulher, estabelecida com o intuito de constituir uma família (SENA, 2016). O STF, através dos julgamentos da ADIN 4.277 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 (ADPF) reconheceu em 2011 a união estável para casais do mesmo sexo (PEREIRA, 2012). Recentemente, em 10 de maio de 2017, o Tribunal julgou institucional o art. 1.790 do CC, que estabelece diferenças quanto aos direitos do cônjuge e do companheiro na sucessão de bens, equiparando a união estável ao casamento civil, inclusive no tocante aos casamentos e uniões homoafetivas. Para fins de repercussão geral, foi aprovada a tese de que é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime previsto no art. 1829 do CC2. Esse rol de exemplos não é exaustivo, uma vez que a dinâmica social permite o surgimento de novas modalidades de famílias. Diante disso, esse subcapítulo pretendeu apresentar as principais formações familiares e com a maior incidência. 2.3 O planejamento familiar no Brasil O instituto do planejamento familiar surgiu em um cenário onde estudos previam um grande impacto no desenvolvimento econômico dos países tidos então como subdesenvolvidos, sendo que o significativo aumento populacional estava diretamente interligado com o aumento da carência e com os seus efeitos (SANTOS; FREITAS, 2011). 2 Superior Tribunal Federal. Julgamento afasta diferença entre cônjuge e companheiro para fim sucessório. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=342 982>. Acesso em: 03 jun. 2017. 32 A sociedade brasileira iniciou sua organização no Brasil Colônia, quando as famílias necessitavam ser numerosas para contribuir com mão-de-obra no setor agrícola, a fim de aumentar a produção. No início do século XIX, os índices de mortalidade populacional eram considerados altos, fazendo com que o então Presidente Rodrigues Alves atentasse ao saneamento básico, lançando um programa para construção de obras para tal fim. Oswaldo Cruz, em 1903, também iniciou uma campanha combatendo a febre amarela e desencadeando ações também no combate à malária e quanto à obrigatoriedade de vacinação contra a varíola (COELHO; LUCENA; SILVA, 2000). A Igreja, à época, elaborou a imagem ideal da feminilidade, devidamente adequada aos seus interesses, posto que almejava uma população portuguesa e cristã, com o fim de aperfeiçoar e melhorar a sociedade brasileira. Assim, a sexualidade deveria servir somente à procriação, e as provações do casamento, bem como os sofrimentos decorrentes do parto eram oportunidades consideradas purificadoras do espírito (COSTA, 1996). Foi somente a partir dos anos 30, no governo Vargas, que se instituiu o auxílio- maternidade e o salário-família, em um período de desenvolvimento pós-guerra em que se verificava uma tendência governamental pró-natalidade, segundo a autora. Também no cenário internacional, as teses do Reverendo Thomas Robert Malthus foram retomadas. Economista e considerado o pai da demografia, Malthus alertava para os perigos da superpopulação e a correspondente escassez de alimentos, explica a escritora. No início dos anos 60, os países desenvolvidos, principalmente os Estados Unidos da América, pressionaram o Brasil para que adotasse uma política demográfica como requisito para empréstimos financeiros. Os movimentos sociais argumentaram que eram as conquistas sociais das mulheres e o desenvolvimento econômico das potências mundiais que controlavam a natalidade e não o processo inverso (COELHO; LUCENA; SILVA, 2000). Os autores supracitados afirmam que, com a queda do governo de João Goulart e a consequente ditadura militar, o Estado reprimiu as organizações populares e reduziu os salários dos trabalhadores, explorando a mão-de-obra e aumentando as 33 horas de trabalho, o que possibilitou o chamado “Milagre Econômico Brasileiro”. Durante esse período, a medicina se especializou, expandindo as faculdades particulares, e o governo implantou o Sistema Nacional de Saúde, estabelecendo ações voltadas ao atendimento do interesse coletivo. Contudo, os baixos investimentos na saúde pública combinados com a capitalização da medicina, fazendo com que valores exorbitantes fossem cobrados para a cobertura de serviços da rede privada, culminaram com uma forte crise que originou a decadência do padrão de vida e da saúde da população carente. O governo militar, devido às pressões dos movimentos sociais que ressurgiram exigindo soluções para os graves problemas sociais e dependente do capital internacional, rendeu-se às exigências americanas no tocante ao planejamento familiar, segundo Coelho, Lucena e Silva (2000). Os autores complementam que, em 1965, mediante uma crise política e econômica, foi criada a BEMFAM (Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil), financiada por entidades internacionais, visando o controle de natalidade, facilitando assim, o acesso das mulheres aos métodos contraceptivos, mais precisamente a pílula, sem qualquer garantia de acompanhamento médico. Nos anos 80, enquanto o País se mobilizava em torno de campanhas para eleições diretas, o movimento de mulheres interveio em um debate nacional sobre o planejamento familiar e instituiu-se a noção de que a assistência à contracepção deveria compor uma política ampla de saúde reprodutiva, passando a questão a ser vista tanto como uma decisão ética individual quanto um direito social. Essa ampla mobilização de mulheres, demógrafos, cientistas sociais, sanitaristas e militantes de partidos políticos resultou na criação do PAISM (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher) em 1983 (COELHO; LUCENA; SILVA, 2000). O PAISM assumiu uma postura neutra frente aos ideais natalistas e controlistas das políticas macroeconômicas do País. O programa representou um grande avanço nesse contexto, caracterizando o compromisso do poder público com questões reprodutivas, porém à figura masculina não foram atribuídas muitas responsabilidades quanto à regulação da fecundidade (ALVES, 2006). 34 Na ocasião da Assembleia Constituinte, três grandes entidades participaram dos debates sobre o planejamento familiar: a Igreja Católica, representada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), as organizações privadas, representadas pela BENFAM, e as feministas, representadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), relata o autor. Os três movimentos fizeram contribuições ao texto constitucional, em que a CNBB, ao falar sobre planejamento familiar, refere-se aos métodos naturais de regular a fecundidade e também sobre o dever de paternidade responsável, em que os pais têm obrigações para com os filhos. A CNDM assegurou a livre decisão do casal em se tratando de planejar sua família, e também garantir que o Estado propicie os recursos científicos e educacionais para proceder ao planejamento familiar e a BENFAM garantiu a participação dos setores privados no tocante aos serviços relacionados ao planejamento. O artigo 226 e seu parágrafo 7º foram inclusos no texto da CF a seguinte redação: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Atualmente, o planejamento familiar é um dos principais focos na área da saúde da família. A criação do Programa Saúde da Família (PSF) em 1994 demonstra que a saúde familiar é uma questão importante a ser tratada pelo governo e é uma das suas áreas prioritárias. Em se tratando de planejamento familiar, todavia, essa demanda não alcança as mulheres pobres, e as causas dessa limitação podem ser atribuídas às falhas do processo informativo, eis que a informação tem um papel fundamental nesse sentido, além do o acesso aos métodos contraceptivos (SANTOS e FREITAS, 2011). Ao cabo, conclui-se que a informação é requisito essencial para capacitar os indivíduos a tomarem decisões sobre o planejamento familiar, decidindo assim a estrutura que desejam para sua família. A seguir, será feita uma discussão voltada aos direitos inerentes à pessoa humana, suas características e a forma de concretização. 35 3 A OBSERVÂNCIA E CUMPRIMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PARA A EFETIVAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA Os direitos da personalidade constituem um ponto de convergência entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, não mais havendo distinção rígida entre Direito Público e Direito Privado, nesse caso. Para que se obtenha tutela pública, os direitos de personalidade devem ser reconhecidos como direitos fundamentais a serem tutelados pela Carta Magna (BORCAT e ALVES, 2013). Neste tópico, o estudo se propõe a analisar os direitos de personalidade em sua totalidade, seguido de uma análise mais específica sobre sua fundamentalidade, prevista no CC. Por fim, far-se-á um exame sobre a concretização dos direitos fundamentais como garantia da efetividade da dignidade da pessoa humana. 3.1 Direitos da personalidade A pessoa humana, além de ter seu patrimônio protegido, também deve ter sua essência resguardada. A legislação civil modificou-se axiologicamente, deixando de possuir um caráter totalmente patrimonialista e adequando-se ao estilo da CF, que se preocupou com o ser humano enquanto indivíduo, através da instituição do princípio norteador de toda legislação: a dignidade da pessoa humana (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002). 36 O Código Civil de 2002, diferentemente do Código de 1916, empregou um capítulo inteiro aos direitos da personalidade. Como não há uma definição taxativa no CC atual sobre o conceito e sobre seus objetos, cabe à doutrina apresentar essa variável infindável de concepções (ZANINI, 2011). De acordo com Amaral (2000) os direitos da personalidade são os subjetivos, que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, abrangendo seu aspecto físico, moral e intelectual. O falto jurista Miranda (2000), todos os direitos necessários que sirvam à realização da personalidade e à sua inserção nas relações jurídicas devem ser considerados direitos da personalidade. Igualmente, são os direitos atinentes à tutela da pessoa humana e por isso considerados essenciais à sua dignidade e integridade, define Tepedino apud ZANINI (2011). Por fim, Gagliano e Pamplona Filho (2002) resumem que se pode conceituá- los como aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa, tanto em si mesma quanto em suas projeções sociais. A pessoa natural figura como principal titular dos direitos da personalidade, porém, o art. 52 do CC traz a máxima de que se aplica às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade, o que não quer dizer que esses direitos sejam estendidos indiscriminadamente tanto às pessoas jurídicas como às humanas (GOMES, 2006). Segundo o autor, há alguns aspectos particulares atribuídos aos direitos da personalidade, que podem ser caracterizados como: inatos, extrapatrimoniais, imprescritíveis, impenhoráveis, típicos e atípicos, de dupla inerência, vitalícios, absolutos, personalíssimos, intransmissíveis e indisponíveis. Inatos porque, segundo o art. 2º do Código, a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, porém, o mesmo artigo assegura os direitos do nascituro, quais sejam a proteção da dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade do direito à vida, já a partir da nidação3, esclarece o autor. 3 “A fecundação do óvulo pelo gameta masculino dá origem ao ovo, que – em regra – instala-se na membrana interna do útero (nidação) (GOMES, 2006, p. 143).” 37 Seu caráter absoluto decorre da oponibilidade erga omnes4 e irradia efeitos em todos os campos, impondo à sociedade a incumbência de respeitá-los, segundo a visão de Gagliano e Pamplona Filho (2002). Por outro lado, Gomes (2006) posiciona- se em sentido contrário, alegando que a oponibilidade erga omnes, nesse caso, deve ser vista com cautela. Para o autor, não se sustenta a ideia de haver na contemporaneidade direitos de caráter absoluto, eis que o direito é histórico, relativo e temporal, tendo características efêmeras para se adaptar à evolução da sociedade. A extrapatrimonialidade normalmente é definida pela não possibilidade de valorar economicamente determinado direito. Os doutrinadores brasileiros posicionam-se no sentido de que não é possível atribuir um valor econômico aos direitos da personalidade (ZANINI, 2011). Porém, isso não quer dizer que os efeitos, em caso da violação desses direitos, não possam ser mensurados economicamente. Os direitos intelectuais, por exemplo, dividem-se em autorais, que são um dos objetos dos direitos da personalidade, e patrimoniais, que são o direito de utilizar, dispor e fruir da obra do autor (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2002). Em caso de ofensa, segundo Pinto apud ZANINI (2011), esses prejuízos não são mensuráveis economicamente, pelo que a atribuição de uma soma pecuniária correspondente legitima-se apenas como compensação, e não pela ideia de indenização ou reconstituição. Para o autor, é primordial que não se confunda um direito extrapatrimonial com a responsabilidade civil resultante de sua violação. A indisponibilidade simboliza a não comercialização dos direitos da personalidade. Bens como a vida, por exemplo, são indisponíveis, contudo o direito à imagem ou ao nome não. A própria lei, através do art. 14 do CC, prevê a disponibilidade através da doação de órgãos ou partes do corpo, lembrando que essa transmissão deve ser feita de forma gratuita para gozar de legitimidade (GOMES, 2006). Usa-se o termo “indisponibilidade” de forma genérica, pois este incorpora a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade. Esta traz a ideia de que não se pode 4 Erga Omnes é um termo jurídico, em latim, que significa que a norma vale para todos. 38 abdicar dos direitos personalíssimos, enquanto que aquela é entendida como limitação da possibilidade de alteração do sujeito nas relações jurídicas no direito privado, ou seja, impossibilita a modificação subjetiva, onerosa ou gratuitamente (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2002), porém ess característica não é indiscutível: Nesse sentido é o ensinamento de Josaphat Marinho ‘Verifica-se que certos direitos, como os autorais e o relativo à imagem ‘por interesse negocial e da expansão tecnológica’, entram na ‘circulação jurídica’ e experimentam ‘temperamentos’, sem perder seus caracteres intrínsecos. É o que se apura na adaptação de obra para novela ou no uso da imagem para a promoção de empresas. Também é semelhante o fenômeno, sem interesse pecuniário, na cessão de órgãos do corpo para fins científicos ou humanitários. [...] se a intransferibilidade aparece como o caráter essencial dos direitos da personalidade, também se submete a certos abrandamentos (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2002, p. 155, grifo dos autores). Quanto à imprescritibilidade, os autores comentam que essa propriedade significa não existir um prazo para exercer os direitos da personalidade, posto que não se extinguem pelo não uso. Todavia, Gomes (2006) aponta que esse vocábulo não está corretamente empregado, uma vez que o termo prescrição refere-se à existência de alguma pretensão que decorre da transgressão de algum direito subjetivo. Contudo, salienta que a pretensão que surge mediante a pretensão de ver reparado algum dano contra os direitos da personalidade está sujeita à prescrição. São vitalícios os direitos da personalidade, uma vez que acompanham a pessoa enquanto ela existir, ou seja, até sua morte Gomes (2006). Contudo, o autor considera que o art. 12, parágrafo único do CC traz a hipótese de que, quando os direitos da personalidade da pessoa falecida forem violados, a família, ou seja, os parentes em linha reta ou colateral até o quarto grau, são parte legítima para fazer cessar essa agressão. Portanto, a proteção post mortem existe para resguardar alguns direitos da personalidade, como o direito ao cadáver, à honra, à vida privada, ao bom nome, às partes destacadas do corpo, à identidade, entre outros (ZANINI, 2011). A tipicidade ou atipicidade refere-se aos direitos da personalidade quanto à sua previsão legal específica. Um exemplo de direitos típicos encontra-se nos art. 17 e 21 do CC, os quais visam proteger o nome e a vida privada, respectivamente (GOMES, 2006). O autor esclarece que a dupla inerência é a característica onde os direitos da personalidade se ligam à pessoa e ao seu objeto e são personalíssimos porque incidem na pessoa humana. 39 A intransmissibilidade dos direitos da personalidade consta no art. 11 do CC, mas traz a possibilidade de exceções à previsão legal. A título de exemplo, pode-se citar as partes do corpo humano que, apesar de serem direitos da personalidade, há possibilidade de transmiti-los à outra pessoa, como traz o art. 14 do Código. Sendo a impenhorabilidade uma extensão da instransmissibilidade, é lógico não se admitir a transmissão dos direitos da personalidade do titular para outra pessoa através da penhora, como preleciona Zanini (2011). Todavia, o autor comenta que o crédito dos efeitos patrimoniais decorrentes desses direitos, uma vez que os mesmos se manifestam no âmbito econômico, podem ser suscetíveis à penhora. Após breve explanação sobre as características desses direitos, é necessário apontar a classificação, pela doutrina quanto aos direitos da personalidade. Bittar (2000) comenta que, após inúmeros estudos sobre o tema, pode-se classificá-los em três categorias: direitos físicos, psíquicos e morais. Nos direitos físicos enquadra-se a composição corpórea do indivíduo, com destaque aos recursos físicos, denominados componentes extrínsecos da personalidade. Os direitos psíquicos voltam-se para o interior do indivíduo, abrangendo os atributos da inteligência ou dos sentimentos. Por fim, os direitos morais consideram a pessoa como indivíduo integrado no meio social atendendo seu valor na sociedade, levando em conta as emanações ou projeções no contexto do meio social, esclarece o autor. Essa classificação também é adotada por Gagliano e Pamplona Filho (2002), que reforçam ser baseada na tricotomia corpo/mente/espírito. Os mesmos autores referem-se ao fato de que o direito físico abrange a proteção ao corpo vivo, ao cadáver, à voz, etc. Os direitos psíquicos são compostos pelo direito à liberdade, às criações individuais, à privacidade, ao segredo, entre outros. Por fim, os direitos morais são constituídos pela proteção à honra, imagem, identidade pessoal e assim por diante. Determinam que os direitos acima expostos são os principais pontos a serem ressaltados no tocante aos direitos da personalidade, eis que o rol não é exaustivo, uma vez que há uma constante evolução quanto à proteção dos valores fundamentais do ser humano. 40 O direito à vida posiciona-se com supremacia entre os demais, uma vez que dele emanam todos os restantes, e extingue-se com a morte: [...] da pessoa, apurável consoantes critérios definidos pela medicina legal e aparatos que a técnica põe à disposição do setor, mas caracterizada, de fato, com a exaltação do último suspiro5 (morte natural; admitindo-se, no entanto, no plano jurídico, a morte presumida, em circunstâncias especiais, sob a égide do instituto protetivo da ausência: Código Civil, arts. 463 e segs.) (BITTAR, 2000, p. 66). Não há qualquer distinção quanto à forma em que dá início à vida, seja ela natural ou artificial, in vitro ou inseminação artificial. É um direito indisponível, uma vez que se deve analisá-lo sob a ótica de um direito à vida e não sobre ela. Também resta ineficaz qualquer declaração de vontade do seu titular no sentido de cerceamento desse direito, eis que a vida, mesmo com o consentimento é inextinguível, seja por si6 ou por outrem. O indivíduo não vive apenas para si, mas para cumprir função própria da sociedade (BITTAR, 2000). Ao reconhecer o direito à vida, cabe ao poder estatal combater qualquer ameaça à sua qualidade, seja no âmbito individual ou coletivo. Por essa razão, o direito penal brasileiro criminaliza o aborto nas hipóteses dos arts. 124 a 127 do Código Penal, excetuando-se a ilicitude da prática nos casos em que não há outro meio de salvar a vida da gestante7, quando a gravidez for resultante de estupro8 ou ainda quando o feto for anencéfalo9, o que impossibilita suas chances de sobrevida (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002). Os autores reforçam que a eutanásia, que configura a antecipação da morte por piedade a pedido do doente terminal, também é conduta penalizada pela 5 Fica a cargo da medicina determinar quando ocorre a morte, e os critérios da sua ocorrência estão determinadas na Resolução nº 1.480/1997 do Conselho Federal de Medicina (CFM, 1997). A lei determina, com base na resolução supracitada, a morte encefálica como determinante do fim da personalidade da pessoa natural, a exemplo do art. 3º da Lei 9.434/1997 que dispõe sobre a possibilidade de remoção de órgãos para fins de transplante e tratamento (BRASIL, 1997). 6 A autolesão não é punível no direito brasileiro. 7 Art. 128, I, do Código Penal (BRASIL, 1940). 8 Art. 128, II, do Código Penal (BRASIL, 1940). 9 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (BRASIL, 2012). 41 legislação brasileira, sob a forma de homicídio privilegiado10, quando há destruição da vida alheia cometido por relevante valor social ou moral. O direito ao próprio corpo ou à integridade física existe atrelado ao direito à vida, segundo os escritores, consistindo na garantia da incolumidade intelectual e corpórea, repudiando qualquer lesão que cause funcionamento anormal do corpo. Essa garantia encontra obstáculo ao se analisar as necessidades de intervenções médicas, inclusive cirúrgicas. O CC/2002 dispõe sobre o assunto em seu art. 15, que traz a garantia do ser humano de não ser constrangido a se submeter, mesmo com risco de vida, a qualquer tratamento ou intervenção cirúrgica. O indivíduo busca tratamento médico ou procedimentos cirúrgicas com o fito de evitar sucumbir mediante doenças que diminuam sua saúde ou até mesmo encerrem sua vida. É importante salientar que qualquer procedimento médico deve ser autorizado pelo paciente, informando-o sobre todas as circunstâncias presentes e futuras que representem algum perigo, o chamado consentimento-informado. Sobre essa prerrogativa, no entanto, cabem ponderações importantes (GOMES, 2006). O autor comenta que, nos casos em casos o paciente estiver incapacitado de manifestar sua vontade, esta deverá ser suprida pelos parentes próximos. Quando em situação de urgência e em não havendo tempo hábil para contatar a família, obtém- se a vontade presumida, que estabelece que o paciente concordaria com a intervenção, eis que somente é feita em seu próprio benefício. O profissional de medicina, submetido ao dever ético imposto pelo estatuto e usando de razoabilidade, deve proceder à intervenção, evitando assim o perecimento da vida do paciente. Agindo assim, não será responsabilizado em caso de lesões decorrentes dessa intervenção necessária, eis que consentida presumidamente, excetuando-se os casos em que houver culpa. O corpo humano é inalienável, admitindo-se a disposição de suas partes em vida ou para depois da morte, justificando-se o interesse público e desde que não implique mutilação e nem obtenção de lucros, prelecionado pelo art. 13 do CC/2002: 10 Art. 121, § 1º, Código Penal. Há diminuição de pena quando o homicídio é praticado por motivo de relevante valor social ou moral (BRASIL, 1940). 42 Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Também existe o direito da disposição às partes separadas do corpo, consideradas coisas submissas à propriedade do titular. Integram o rol exemplificativo os membros do corpo, bem como os elementos que o integram, como membros artificiais e os órgãos. A desvinculação do corpo pode ser voluntária ou acidental, sendo que naquela, poderá ocorrer em casos de transplante, sempre sob forma de doação, obedecendo às regras do procedimento e com o fim de preservar da vida do indivíduo, com o consentimento deste11. Voluntariamente, também pode ser procedida nas circunstâncias de doação de sangue, medula espinhal, leite materno, sêmen, entre outros (BITTAR, 2000). O direito ao cadáver é garantia estabelecida pelo art. 14 do Código, que cita que o ato de disposição gratuita do corpo humano ou suas partes é válida quando o objetivo for científico ou altruístico. Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2002), considerando-se que a personalidade jurídica finda com a morte, seria razoável dizer que qualquer direito sobre o cadáver deixaria de existir com a extinção da personalidade jurídica, porém Elimar Szaniawski apud Gagliano e Pamplona Filho (2002, p. 169) orienta: [...] aos parentes do morto, tratando-se de um direito familiar, [...]. O direito ao cadáver diz respeito ao próprio defunto, à sua memória, pois em certas ocasiões podem ocorrer atentados à memória do morto. Vamos encontrar situações em que são praticados atos contra o corpo do morto mesmo que o indivíduo nada tenha consentido em vida ou como ato de última vontade, e que não vêm a se constituir em violação ao respeito à memória do morto, nem injúria contra seus parentes que lhe sobreviveram. Enquadram-se, nesta espécie, as hipóteses em que necessário é o estudo e o exame de certos órgãos atingidos por doenças, buscando o legislador as causas que provocaram a degeneração e a morte do indivíduo. Não se constitui violação do cadáver em duas hipóteses: no direito à prova, quando em caso de morte violenta ou em suspeita daquela morte ser resultado da prática de crime, o exame necroscópico se mostra necessário; e em caso de 11Quando o consentimento não puder ser obtido por razões de incapacidade, a legitimidade para este fim pertence ao representante legal do paciente ou, quando aquele não puder ser localizado, se procede à prática quando a situação for de urgência para preservação da vida, constituindo uma obrigação legal do profissional de medicina sob pena de responsabilização. Quando há tempo hábil, recomenda-se submeter a questão à apreciação judicial. 43 necessidade, ou seja, para fins de transplantes ou em benefício da ciência, seguindo estritamente as disposições em lei. Neste último, somente poderá haver disposição do corpo ou das suas partes se o ato não tiver caráter lucrativo (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2002). Há tutela penal relacionada ao direito da personalidade em questão que penaliza os autores das seguintes práticas: impedimento ou perturbação de cerimônia funerária, inclusive enterro (art. 209), violação de sepultura (art. 210), destruição, subtração ou ocultação de cadáver (art. 211) e vilipêndio a cadáver (art. 212), todos do Código Penal (BITTAR, 2000). Dotado de grande notoriedade entre os direitos da personalidade está o direito à imagem, comentado pelo autor: Consiste no direito que a pessoa tem sobre a sua forma plástica e respectivos componentes distintos (rosto, olhos, perfil, busto) que a individualizam no seio da coletividade. Incide, pois, sobre a conformação física da pessoa, compreendendo esse direito um conjunto de caracteres que a identifica no meio social. Por outras palavras, é o vínculo que une pessoa à sua expressão externa, tomada no conjunto ou em partes significativas (como a boca, os olhos, as penas, quando individualizadoras da pessoa) (BITTAR, 2000, p. 90). Direito protegido constitucionalmente12 pelo Art. 5º, X, é também amparado pelo CC/2002, em que confere à pessoa, a faculdade de vedar a utilização de sua imagem, excetuados os casos em que sua divulgação for necessária à manutenção da ordem pública ou quando houver interesse da administração da justiça, segundo Gomes (2006). Também cita que, quando houver disposição do indivíduo no sentido de preservar sua imagem, não é necessário apresentar motivos para sua recusa, sendo que, a maculação deste preceito, enseja reparação civil por parte do agente violador. Continua referindo que a responsabilização no âmbito civil pode se dar nos campos patrimoniais e morais, separado ou concomitantemente, porém, na esfera penal, não há amparo específico ao direito de imagem, mas podemos encontrar tutela no crime de injúria, art. 140 daquele código, onde são protegidas a integridade moral, a dignidade ou o decoro da pessoa, protegendo assim sua honra objetiva ou subjetiva. 12 Art. 5º, X, CF/1988 – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. 44 Na hipótese de colisão entre o direito constitucional de liberdade de informação e expressão e o direito de imagem será importante analisar os elementos envolvidos, como segue: Para tanto, Barroso (2004: 105-143) aponta os seguintes critérios de ponderação: a veracidade do fato, a licitude do meio empregado na obtenção da informação, a personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia, o local do fato, a natureza do fato, a existência de interesse público na divulgação, especialmente quando o fato decorra da atuação de órgãos ou entidades públicas, e a preferência por medidas que não envolvam a proibição prévia da divulgação. [...]. Assim, não despontará a responsabilidade jurídica quando a imagem de alguém for relacionada a fato de interesse jornalístico. É que este se encontra acobertado pela liberdade constitucional de informação jornalística, conforme previsão constante do artigo 220, § 1º, da Constituição (GOMES, 2006, p. 211, grifo do autor). O mesmo artigo constitucional que protege a imagem, traz em seu conteúdo o direito de proteção à vida privada, assegurando as mesmas medidas de responsabilização daquele, quando da violação deste. O CC/2002, em seu art. 21, vem em mesmo sentido quando determina inviolável a vida privada da pessoa natural e prevê a possibilidade de requerimento ao judiciário para que faça cessar ato que contrarie esta norma. É mister apresentar duas dimensões em que ocorre o exercício deste direito, quais sejam: a esfera íntima e a esfera privada. Naquela, o indivíduo age para satisfazer suas necessidades e interesses existenciais, não ocorrendo qualquer repercussão da esfera da sociedade, enquanto nesta, a conduta da pessoa exterioriza-se nos domínios de outrem, por esta razão, é necessário limitar a ação individual a fim de evitar lesão à esfera alheia (GOMES, 2006, grifo nosso). Mediante o avanço frenético da tecnologia a transgressão à vida privada é muito frequente, e, como exemplo, pode-se citar empresas que procedem à sua publicidade mediante obtenção de dados pessoais e enviados por e-mail através dos spams, que no entendimento de Gagliano e Pamplona Filho (2002), constitui conduta ofensiva à vida privada, uma vez que o endereço de e-mail, diferentemente do endereço postal, pode ser mantido em sigilo, de acordo com a vontade do usuário. Outro importante direito da personalidade é o direito à liberdade, seja na concepção individual ou coletiva. Dentre eles, pode-se citar a liberdade religiosa, de pensamento, sexual, política, de culto, de locomoção, de trabalho, de exercício de atividade profissional, de comércio, de estipulação contratual, de organização sindical, de imprensa, dentre tantos outros previstos no rol do art. 5º da CF/1988. O exercício 45 desta liberdade transita entre caráteres lícitos e ilícitos, portanto, a liberdade em agir, deve ser mensurada de forma cuidadosa e não extremista, eis que a liberdade de um encontra os limites da esfera de liberdade de outro (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002). Sendo assim, o indivíduo tem capacidade plena de possibilitar a expansão das potencialidades físicas e negociais, obedecendo sempre às normas públicas. Os atos atentatórios a esses direitos são igualmente passíveis de reparação nos âmbitos patrimonial e moral, estando, à disposição da pessoa, diferentes mecanismos para fazer cessar o impedimento ou cerceamento por parte do Estado ou pelo particular. Há inúmeros instrumentos para este fim em nosso ordenamento jurídico, mas, como exemplo, podemos citar o habeas corpus e o mandado de segurança (BITTAR, 2000, grifo do autor). A fim de uma correta qualificação e identificação no âmbito social e familiar, é garantido à pessoa o direito ao nome, conferindo-lhe identidade e tornando a única em seu ambiente de relações. Figurando como um direito da personalidade, outrora o direito ao nome já foi discutido doutrinariamente como sendo um direito de propriedade, eis que tinha caráter absoluto e oponível erga omnes. Esta dúvida não mais existe, sendo um direito previsto no art. 16, do CC/2002, no rol dos direitos da personalidade. Duas nuances importantes decorrem deste direito, sendo a primeira uma questão de ordem pública, sendo regulamentada pela Lei de Registros Públicos, e a segunda de ordem particular, eis que todo indivíduo precisa de um nome, para manter o caráter ímpar entre a sociedade e também constituindo a forma pela qual ela realiza seus negócios cotidianamente (GOMES, 2006). O direito ao nome é compreendido por Bittar (2000) como sendo um direito à identidade, do qual também se beneficia a pessoa jurídica, para distingui-la do vasto âmbito empresarial. Aponta ainda que no campo pessoal, o nome compreende: [...] o patronímico, o apelido de família ou, ainda, o sobrenome (que designa o núcleo a que pertence o ser); o prenome (o nome propriamente dito da pessoa); o pseudônimo (nome convencional fictício, sob o qual oculta sua identidade o interessado, para fins artísticos, literários, políticos, desportivos); e a alcunha (ou, na linguagem comum, o apelido: designação dada por terceiro, que compreende algum aspecto ou faceta especial do ser). Também são protegidos os títulos de identificação e honoríficos (como os títulos acadêmicos, profissionais e de nobreza) e os sinais figurativos (como o 46 sinete, com as iniciais da pessoa, e o brasão, ou escudo, com os símbolos e as cores da família) (BITTAR, 2000, p.125). Esta prerrogativa garante ao indivíduo o uso de seu nome em qualquer circunstância, seja pública ou privativamente, e resta defeso ao terceiro fazer uso dele para fins de identificação alheia. A homonímia, que consiste na igualdade do nome com o de outra pessoa de má-fama, pode ser sanada, ou até mesmo a nomeação no assento de nascimento poderá ser alterado, mediante apreciação judicial quando esta identificação constituir atentado à honra objetiva ou subjetiva de seu titular (BITTAR, 2000). A doutrina é fonte inesgotável que aborda os mais diversos direitos da personalidade, porém, este trabalho se limitou a desenvolver aqueles denominados essenciais e que constam no capítulo II do Código Civil. Adiante, será feita uma abordagem direcionada à fundamentalidade dos direitos da personalidade, discussão doutrinária em voga há algum tempo e que merece destaque neste trabalho. 3.2 Fundamentalidade dos direitos da personalidade Os direitos da personalidade podem ser conceituados como uma manifestação do princípio supremo da dignidade da pessoa humana em nossas relações privadas e são tidos como uma das grandes inovações no Código Civil de 2002. Revela-se importante, antes de mais nada, um debate sobre os fundamentos teóricos dos direitos da personalidade inseridos em nosso ordenamento jurídico (ALMEIDA, 2011, grifo nosso). Gomes (2002, p. 150) alude que há dificuldades para a construção de um conceito absoluto, como segue: Perduram, não obstante, as hesitações da doutrina quanto ao seu [direitos da personalidade] conceito, natureza, conteúdo e extensão. Acirram-se debates na determinação dos seus caracteres, contribuindo a polêmica para as incertezas que se estamparam no perfil da nova categoria jurídica. Não é pacífica sequer sua identificação. [...] A diversidade de conceitos atesta a dificuldade de formulação, gravada pela circunstância de ser heterogênea a categoria dos direitos da personalidade e controvertida sua fundamentação. No mesmo sentido, Bittar (2000, p. 1-2), cita que: [...] o universo desses direitos [os direitos de personalidade] está eivado de dificuldades, que decorrem, principalmente: a) das divergências entre os doutrinadores com respeito à sua própria existência, à sua natureza, à sua extensão e à sua especificação; b) do caráter relativamente novo de sua construção teórica; c) da ausência de uma conceituação global definitiva; d) 47 de seu enfoque, sob ângulos diferentes, pelo direito positivo (público, de um lado, como liberdades públicas; privado, de outro, como direitos da personalidade), que lhe imprime feições e disciplinações distintas. Esta dificuldade mencionada pelos autores supracitados deve-se ao fato dos direitos da personalidade constituírem um tema novo em comparativo a outros institutos advindos do Código Civil de 1916. A personalidade em sua concepção jurídica obteve diferentes significados, conforme sua evolução histórica. Originariamente, era tida somente como a capacidade do indivíduo de possuir direitos e deveres, e não havia discussão quanto à dignidade do ser humano, sendo este somente considerado como polo de um vínculo previsto na legislação ao qual eram atribuídos, como já descrito, direitos e deveres (ALMEIDA, 2011). É a partir do Estado Liberal que a Assembleia Nacional Francesa instituiu a Declaração dos Direitos Fundamentais do Homem. Este é o primeiro documento que positivou os direitos fundamentais do qual se tem notícia, ainda que fundado tão somente nos ideários jusnaturalistas, porém configurou um grande passo para o que os direitos da personalidade, em sua concepção contemporânea, representam ao ser humano. Foi o Estado de Bem-Estar Social, organização político-econômica superveniente ao liberalismo que, em concomitante reconhecimento do indivíduo como sujeito de direito à vida, liberdade e propriedade, também trouxe à baila a ideia do ser humano como detentor de dignidade (SILVA, 2013). Os direitos fundamentais, por sua vez, foram criados e inseridos no ordenamento constitucional brasileiro em 1988, após 21 anos de regime autoritário, em que as prerrogativas eram aniquiladas reiteradamente. Além dos direitos expressamente previstos na Carta constitucional, esta não esgota as previsões quanto a possíveis direitos construídos ulteriormente, que derivam dos princípios do Estado Democrático de Direito e que devem ser reconhecidos com a mesma relevância, leitura do art. 5º, § 2º, da CF/1988 (KUNRATH, 2016). Neste enquadramento, pode- se inserir os direitos da personalidade: “[...] podem ser considerados como direitos deduzidos de uma cláusula geral de tutela da responsabilidade, ancorada no direito de liberdade e no princípio da dignidade da pessoa humana” (KUNRATH, 2016, texto digital). Na doutrina brasileira, a bipartição do direito em público e privado já não se sustenta quando o assunto em voga são os direitos fundamentais, em razão da 48 dinâmica crescente de constitucionalização do direito (SILVA, 2013). O autor traz o posicionamento de Nelson Rosenvald quando afirma que, quando integrados no ordenamento jurídico, os direitos da personalidade transmutam-se em direitos fundamentais de conteúdo igualmente relevante daqueles constitucionalmente previstos. Canotilho (2003, p. 396), declara, no mesmo sentido: “Em face da concepção de um direito geral da personalidade como ‘direito à pessoa ser e à pessoa devir’, cada vez mais os direitos fundamentais tendem a ser direitos da personalidade e vice-versa”. Em consonância ao aspecto da fundamentalidade dos direitos da personalidade, preconiza Bittar (2000, p. 22-23, grifo do autor): Divisam-se, assim, de um lado, os ‘direitos do homem’ ou ‘direitos fundamentais’ da pessoa natural, como objeto de relações de direito público, para efeito de proteção do indivíduo contra o Estado. Incluem-se, nessa categoria, normalmente, os direitos: à vida; à integridade física; às partes do corpo; à liberdade; o direito de ação. De outro lado, consideram-se ‘direitos da personalidade’ os mesmos direitos, mas sob o ângulo das relações entre particulares, ou seja, da proteção contra outros homens. Inserem-se, nesse passo, geralmente, os direitos: à honra; ao nome; à própria imagem; à liberdade de manifestação de pensamento; à liberdade de consciência e de religião; à reserva sobre a própria intimidade; ao segredo; e o direito moral de autor, a par de outros. Culmina comentando: “Por direit