UNIVERSIDADE DO VALE DO TAQUARI - UNIVATES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU DOUTORADO EM ENSINO ARTE E POTENCIALIZAÇÃO DE SENTIDOS: ATRAVESSAMENTOS NO ENSINO Fabrício Agostinho Bagatini Lajeado/RS, outubro de 2020 Fabrício Agostinho Bagatini ARTE E POTENCIALIZAÇÃO DE SENTIDOS: ATRAVESSAMENTOS NO ENSINO Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino, na linha de pesquisa Ciência, Sociedade e Ensino, da Universidade do Vale do Taquari - Univates, como parte da exigência para a obtenção do título de Doutor em Ensino. Orientador: Prof. Dr. Rogério José Schuck Lajeado/RS, outubro de 2020 Fabrício Agostinho Bagatini ARTE E POTENCIALIZAÇÃO DE SENTIDOS: ATRAVESSAMENTOS NO ENSINO A Banca examinadora abaixo aprova a Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino, na linha de pesquisa Ciência, Sociedade e Ensino, da Universidade do Vale do Taquari - Univates, como parte da exigência para a obtenção do título de Doutor em Ensino. Prof. Dr. Prof. Dr. Rogério José Schuck Universidade do Vale do Taquari – Univates Prof. Dr. Paulo Rudi Schneider Universidade Regional do Noroeste do Estado do RS - UNIJUI Prof. Dr. Cezar Luis Seibt Universidade Federal do Pará Profa. Dra. Silvana Neumann Martins Universidade do Vale do Taquari - Univates Profa. Dra. Suzana Feldens Schwertner Universidade do Vale do Taquari - Univates Lajeado/RS, 09 de novembro de 2020 AVISO AOS DESAVISADOS Figura 1 – Na roca do fiar, o tecer desta escrita Artista: As fiandeiras – Diego Velasquez – Museu do Prado – Madri/Espanha Fonte:https://www.pinterest.co.uk/pin/238409374006723089/ É necessário avisar. Este não é um roteiro de escrita científica normal. Segue linhas outras. Na arte do escrever, não há um certo e um errado, há o escrever. Há um fio de sentido – desde o que se refere ao significado até o que perpassa o sentir. Escrever é a materialização, o desenhar dos pensamentos em forma de palavras. Origina-se do latim ‘scribere’, riscar. É a agulha da roca riscando e tecendo, entrelaçando e tramando a justaposição dos fios. E, a forma de uma escrita “não só expressa diferentes modos de pensamento, mas também proporciona diferentes formas de leitura. É preciso ler na forma do escrito para sentir seu tom e estilo” (KOHAN, 2015, p. 67). Portanto, caro leitor, só siga adiante se você realmente for capaz de ser a fiandeira a compreender o tom e o som desta escrita ou se for curioso o bastante para querer saber o que acontece no final. Se é que vai haver um fim. AVISO AOS INSISTENTES Figura 2 – (Des)calce seus pés, pois a liberdade está nas asas Artista: Desconhecido Fonte: https://www.pinterest.se/pin/728738783430519762/ Se você chegou aqui, é porque é, de fato, corajoso. Ou seria audacioso? Curioso? Ou, simplesmente, compreende o tom e o som desta escrita. Não importa, se chegou aqui, é hora de seguir adiante. Sem temer, (des)calce seus pés e aceite a liberdade de suas asas. CONVITE Figura 3 – Caminho ou caminhos? Artista: Desconhecido Fonte: https://www.elo7.com.br/quadro-o-caminho/dp/D91D7D Eis o começo. O princípio. O prelúdio de um anúncio que, mansamente, quer se fazer presença. Permita, a si mesmo, lançar-se numa nova viagem. Por páginas e caminhos ainda desconhecidos. Há um caminho por onde passo E outro que passa por mim. Um anda por meus passos E não tem fim. O outro é onde meus passos Perderam-se de mim (NETO, 2010, p. 17). Sim, há os receios, as angústias, as tentativas que dão certo e as que frustram o caminhar. Não, não tenha medo, também não tive. Desafie-se, seja ousado, assim como eu fui. Siga... Cuide para não se perder, ou se permita perder-se na imensidão territorial que está a percorrer. Se quiser, trace seu próprio rumo. Crie e recrie vias, sendas, atalhos, rotas de fuga. Deixe pegadas ou as apague a fim de que outros possam por aí passar, com seus próprios itinerários e ritmos andantes, suas próprias pisadas. Há muitos modos de percorrer um caminho, tantos quantos caminhos há. Acreditar em um desenvolvimento ordenado do caminhar, em um procedimento de caráter central e exato, é acreditar que existe o caminho e, como indicou Zaratrusta, o caminho não existe; existem, sim, muitos caminhos e meios de transpô-los (FERNANDES; OLIVEIRA, 2012, p. 221). Invente mapas, cartas-guia e, depois, jogue-as fora, queime-as ou largue-as aos quatro ventos para que possam perpassar horizontes. Não se deixe aprisionar. Liberte-se de suas próprias andanças para conseguir desbravar as vicissitudes dos percursos. Ouça a canticidade das palavras e suas transfigurações poéticas. Deguste, saboreie; se quiser, antropofagicamente, usurpe. Leia o oculto, o oco das palavras, seus efeitos de cores e sonoridades. Vasculhe, em seus interstícios, o pulsar da vida. Procure transpor suas barreiras em busca de significados e significâncias outras. Leia as entranhas do escrevinhar. Remexa seus vazios prenhes em busca de sentidos outros, de um olhar diferente daquele existente. Olhe para o já posto ou para o que vem a se constituir como se fosse a primeira vez. Desfaça as soldas do olhar a fim de que possa compreender a versatilidade dos olhos a contemplar. Leia os silêncios ou, até mesmo, como poetiza Lenz (2019), aquilo que não se escreve. Participe. Compreenda a intenção. As referências trazidas. As coisas que afetam e que levam a criar. Entregue-se de corpo e alma para que movimentos internos provoquem desassossegos e façam brotar novos sentimentos. A jornada nunca é certa e segura. É preciso ser audacioso e olhar além. Deseje e se deixe habitar pela visibilidade do ver (CARBONE, 2019). Ver o invisível, pois o olhar ultrapassa os olhos de quem aprende. É preciso ver para conhecer e conhecer para ver. É necessário esquecer os trajetos que insistimos em fazer e que sempre nos levam aos mesmos lugares. “É tempo da travessia; e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos” (ANDRADE, texto digital1). Portanto, você, leitor, é artista convidado. Sinta o vento tocar seu rosto. Ouça o barulho das folhas. Encha os pulmões com novos ares. Mas, lembre-se: nunca mais somos os mesmos após darmos o primeiro passo. Tentar voltar, até se pode. Mas, “os caminhos de volta são exatamente aqueles que nos levam além” (LENZ, 2019, p. 9). Seja bem-vindo! 1https://www.pensador.com/e_preciso_mudar_as_roupas/. Último acesso dia 22 de janeiro de 2020. DEDICATÓRIA Figura 4 – Quem te fez rio na busca pelo oceano? Artista: Sebastião Salgado - Coleção Gênesis Fonte: http://www.snpcultura.org/genesis_exposicao_ sebastiao_ salgado.html. http://www.snpcultura.org/genesis_exposicao_%20sebastiao_%20salgado.html Não se consegue expressar, através da escrita, tudo o que se sente, pois as palavras fogem do sentir. São incapazes de traduzir todos os perceptos do viver. Às vezes, se não na maioria das vezes, as palavras comportam em si um sentir diferente daquele que as escolheu ou daquele que as recebeu. Gostaria de, nesta dedicatória, deixar as palavras mais ternas, as mais amorosas para aqueles a quem sou tão grato. Gostaria de dizer o quanto são importantes e caros para mim. Mas talvez as palavras que aqui escrevo não sejam suficientes para exprimir tudo o que sinto. Os gregos antigos acreditavam nas Parcas, velhas senhoras a tecerem o fino fio da vida. No fluxo do cerzir, linhas são cruzadas e planos são traçados. Na colcha da vida, pedaços coloridos vão sendo costurados. Nem todos são iguais. São diferentes cores, texturas, traçados, belezas, mas são esses pedaços que constituem o ser. São eles que me fazem ser quem eu sou. De retalho em retalho, vou me constituindo, vou crescendo ao sabor das chegadas, pois sempre haverá um retalho novo para adicionar à alma. Sim, há perdas também... Mas dessas ficam os ensinamentos e a saudade a comporem os remendos. Uma colcha de retalhos é um mapa de caminhos a sugerir “passos e descompassos de andarilhos de diferentes tribos” (SARDI, 2005, p. 8). Na colcha de retalhos, o desenho de um rio. Um rio e suas redes fluviais. Inúmeras. Artérias plenas de vida a pulsar. Algumas se encontram, formam lagos. Outras se perdem, em meio à imensidão. Criam labirintos. Caminhos em meio à floresta. O reflexo na água a formar desenhos outros: “Na contínua transformação, uma coisa passa a ser outra” (SALLES, 2014, p. 37). Nuvens condensadas pelo vento, rastejantes, firmes, crianceiras. Um céu que anuncia o início ou o fim de uma tempestade. A dispersão de uma névoa. Um rio e sua nascente. Meus pais: Neocir e Maria. Princípio cristalino de meu bebedouro. Mas um rio que se preze tem mais de uma nascente: minha nona Celestina e minha tia Miria, águas límpidas e incentivadoras. Os demais rios, confluências nascedouras: meus irmãos, Aline e Hernandez, e minha cunhada Juliana. Seus afluentes, joias raras da bacia hidrográfica: meus afilhados Lorenzo e Pietra. Esses, pequenos riachos a borbulhar vitalidade. Jorram aos borbotões a esperança a sorrir. Um misto de enxurradas a transbordarem as margens e calmaria de marés dançantes. O rio segue seu percurso, cria rumos outros, diferentes daquele que lhe foi imposto. Alarga as margens e assoreia o leito. Torna-se profundo ou rende-se à superfície. Deixa-se navegar ou proíbe que por ele passem. Mas, um rio só é o que é devido ao abastecimento de outras águas que nele deságuam. As águas fluentes e intensas de sabedoria de meu orientador professor Dr. Rogério José Schuck. Um amigo que indicou mundos possíveis e impregnou meu universo de possibilidades. Que trouxe, com suas águas, um espaço-tempo distinto. Apontou rumos em direção ao oceano, destino de todos os rios. Fez-me compreender que, na imensidão do mar, cada gotícula/rio faz a diferença. Obrigado por potencializar minhas águas turvas, por torná-las nítidas e brilhantes. Os amigos. Afluentes preciosos. Trazem consigo correntezas de outras paragens. Transbordam o rio; tornam-no denso em sua perenidade. Fluem e confluem com ele. Tornam- no caudaloso e potente. “Um amigo é o desconhecido que vem como o vento e a noite – impalpável, hipnotizante” (FERNANDES; OLIVEIRA, 2012, p. 224). No encontro das águas, há trocas, metamorfoses, perdas e ganhos; um constante ir e vir, ondas e macaréus. Um encontro não é igual ao outro. Cada rio tem a sua identidade e seu percurso. Minha “Merma” Vanessa. Que suas águas continuem sendo potentes, a percorrer junto às minhas margens. Que possamos continuar nos afogando na mesma sanga, cabeceira ou olho-d’água. Que suas águas transpassem o infinito do próprio oceano. Continue vertendo vida e dando sentido à vida que em você nada. Alessandra, fonte imorredoura de outros tempos diluvianos. Cataclismo torrencial a alegrar os dias. Rio portador de águas criadoras onde banhar-se é sair diferente do que se é. “Saiba que um amigo é uma pessoa com quem se tem prazer em compartilhar ideias de forma tranquila e mansa” (ALVES, 2008, p. 59). É sempre bom gastar o tempo conversando com você. Mais do que isso, agradeço por suas ideias, pois você é capaz de levar o ser a uma Experimentação esquizo de si, uma experimentação de si por meio do que outrem secreta, mas emite silenciosamente, de maneira tão cotidiana, que sequer sente que emite. O amigo capta o que outrem secreta. E se capta é porque é capaz daquelas forças, daquele grau de potência. O amigo tem em si a capacidade sensível para notar os signos que são perceptíveis para outrem, recebê-los e decifrá-los (FERNANDES; OLIVEIRA, 2012, p. 225). Aos demais amigos afluentes, Simone, Samai, Carliria, Aline, Mariângela, Giovana, Romildo, Cláudia, Omena, Ana Claúdia, Francisca, Inauã, José, Patrícia, Adriano, a secretária do PPGEnsino, Fernanda, peço que, mesmo que nossas águas um dia possam se separar continuem alagando incomensuravelmente meu leito, lembrando-se sempre de que “em uma amizade, cada um expande especialmente a si mesmo” (FERNANDES; OLIVEIRA, 2012, p. 226). Que nossas águas continuem serpenteando ribanceiras, várzeas, cortando paisagens, transpassando montanhas, pedras, pontes, limites territoriais. Um rio não tem fronteira. Quando, dali adiante, desaparece, como que engolido pelas entranhas da terra, reaparece logo mais acima, farto e vivaz. Bons amigos são urdidura De férteis vinhedos Armados em significância e epifanias Trazendo familiaridade De aconchego e largas cercanias (REICHERT, 2019, p. 69). Aos participantes desta pesquisa, pequenos igarapés subafluentes, muito obrigado por doarem um pouco de suas águas, por permitirem conhecer suas encostas, enseadas, meandros, baías, canais - os estreitos e os navegáveis. Por permitirem adentrar seus mistérios, suas montantes e jusantes; conhecer o que habita em vocês; passear por seus golfos e penínsulas; descansar meu leito cansado em seus cabos, fiordes e falésias; e me encantar com seus recifes multicoloridos. Aos professores da banca, Dra. Silvana Neumann Martins, Dra. Suzana Feldens Schwertner, Dr. Cezar Luís Seibt e Dr. Paulo Rudi Schneider e demais professores do PPGEnsino, muito obrigado por propiciarem que, a cada imersão em suas águas, fosse um conhecimento diferente e que, a cada emergir, eu fosse outro. Por demonstrarem que um rio nunca é o mesmo, que um rio comporta em si outros rios a correrem mansamente ou vorazmente em um eterno fluir. Que um rio se transforma em outras coisas, um devir lago, mar, oceano. Um devir morte e vida. Que um rio é novo, mas traz consigo tudo o que encontra pelo caminho; que sua travessia é longa e que nada continua, nada é eterno; e o que existe é o recomeço. À Capes, por ter-me oportunizado a concretização de mais uma etapa, mediante uma bolsa de estudos visando à minha participação no Programa de Pós-Graduação em Ensino, da Univates - Universidade do Vale do Taquari. E o rio um dia chega ao oceano e se encanta hipnoticamente com a imensidão. Perante ele, a inquietação. A temeridade. Perante o oceano, o rio treme de medo. Olha para trás, para toda a jornada, os cumes, as montanhas, o longo caminho sinuoso através das florestas, através dos povoados, e vê à sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre. Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. Você pode apenas ir em frente. O rio precisa se arriscar e entrar no oceano. E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece. Porque apenas então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas torna-se oceano. Por um lado é desaparecimento e por outro lado é renascimento (OSHO https://www.pensador.com/frase/NTE2MDM1/). O rio, feliz, segue sem saber aonde chegar. Que todos os que acompanharam esse rio no qual me transformei, ou que viajaram por ele, continuem ajudando a ver e a contemplar o além do horizonte. E que todos que passem por mim permitam que eu me embebede em suas águas límpidas a fim de saciar a minha sede. POEMA INICIAL Figura 5 – Um sopro de vida: a arte e seus encantos Artista: Banksy - "Menina com Balão". Obra triturada após leilão na Sotheby's Fonte:https://entretenimento.uol.com.br/noticias/afp/2019/02/05/tela-autodestruida-de-banksy-e-exposta-na- alemanha.htm https://entretenimento.uol.com.br/noticias/afp/2019/02/05/tela-autodestruida-de-banksy-e-exposta- Súbito No jogo do ator A dor do poeta No quadro do pintor A janela da alma aberta Nas mãos do escultor O barro na medida certa Na voz do cantor A letra que aviva o sentimento E se aloja no coração No compasso da dança O feitiço que atrai Na imagem da tela A cena que retrai No foco da lente A captura da luz Que ao disparo do botão Eterniza a imagem Dilata a pupila, cativa e seduz Na batuta do maestro O mapa da sinfonia No conjunto da obra O retrato da harmonia No registro do escritor O convite da palavra Que flerta com a realidade Cria asas e escapole Buscando a liberdade E num repente A aprendizagem prenhe No recôndito da alma A potência da vida... O susto, A fuga, À luz! Criador e criatura. Súbito, nasce a ARTE! (ALESSANDRA AMES)2 2 Por solicitação do autor desta tese, essa poesia foi escrita especialmente para este espaço (2020). A mesma autora criou diversos poemas que estarão presentes ao longo do texto da tese. RESUMO É necessário avisar. Este não é um roteiro de escrita científica normal. Segue linhas outras. Na arte do escrever, não há um certo e um errado; há o escrever. Há um fio de sentido – desde o que se refere ao significado, até o que perpassa o sentir. A escrita desta tese dá-se em forma de peça teatral. É no espaço teatral que ocorre o encontro do artista, da tese e do expect-actor (aquele que observa e age ao mesmo tempo). É no espaço entre o palco e a plateia que ocorre o diálogo, a fusão de horizontes e a compreensão do que está sendo dito. Mas, o que é encenado nos diferentes atos que compõem esta tese? Neles, falamos sobre a arte e a potencialização de sentidos no ensino. E, para contemplar tal temática, partimos de dois questionamentos: Como a arte vem contribuindo nos processos de ensino? Como a arte potencializa sentidos no ensino? Para responder a essas questões, definimos, como objetivo geral, investigar como a arte potencializa sentidos no ensinar. Cabe mencionar que desenvolvemos uma pesquisa qualitativa que teve, como metodologia principal, a Hermenêutica (GADAMER, 2015). Como primeiros objetivos específicos, buscamos investigar o conceito de arte na contemporaneidade e conceituar a arte a partir da perspectiva hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica centrada nesse filósofo alemão. Constatamos, a partir das leituras realizadas, que a arte está na vida do homem desde os seus primórdios, através de diferentes expressões: desenho, música, pintura, teatro, dança, comédia, drama. E que é da alçada da subjetividade, pois cada um possui uma percepção e uma compreensão a respeito do que é arte e da importância que ela tem para a humanidade. Além disso, constatamos que não somos nós que interpretamos a arte à luz de nossos interesses; é ela que se dá a interpretar na medida em que nos questiona. No seu constante movimento autopoiético, nunca é a mesma para quem diante dela se coloca. Aliás, mesmo que a contemplemos inúmeras vezes, sempre teremos um olhar diferente, e, a cada olhar, ela nos abrirá um ou múltiplos sentidos. Para compreender o que a obra de arte tem a nos dizer, temos de estar abertos ao diálogo que trava conosco, pois é por meio dele que constatamos a sua verdade, o seu jogo e movimento. Outro objetivo proposto foi averiguar as concepções prévias acerca de arte dos professores e alunos de uma escola da rede pública estadual de Capitão/RS, para verificar como as diferentes expressões artísticas vêm contribuindo na potencialização de sentidos no ensino. Para tanto, aplicamos um questionário dissertativo e aberto com 52 alunos do Ensino Médio (1º ao 3º ano) e nove professores da referida escola. Analisamos as respostas com base na Análise Textual Discursiva (MORAES; GALIAZZE, 2016) e a partir de quatro categorias, a saber: No Vale da Saudade, perceptos da arte; No Vale da Procura, a arte como presença na vida e no espaço escolar; No Vale do 18 Amor, a arte auxiliana compreensão dos conteúdos e instauraçãodesentidos; e No Vale do Conhecimento, a potencialização de sentidos. Mediante essas categorias, percebemos que a arte está presente na vida dos alunos e professores, auxiliando na formação da subjetividade, seja a partir do sentir ou das singelezas do cotidiano e do ser. Além disso, entramos em contato com as diferentes percepções de alunos e professores sobre o que é a arte, sobre sua importância e sua presença na vida e no espaço escolar. Também observamos como a arte auxilia na compreensão dos conteúdos e na instauração e potencialização de sentidos. Ainda buscamos desenvolver oficinas de arte com professores da rede pública estadual do município de Capitão/RS, denominadas Olhicriarte, uma junção dos termos olhar+criar+arte. Realizamos duas oficinas - uma de teatro e outra de escrita enquanto arte - por meio das quais os professores puderam experienciar a arte e buscar o autoconhecimento. As percepções dessas vivências foram relatadas, pelos participantes, em diários denominados “Diários Vivenciais”. Mediante a leitura de um total de 10 diários, verificamos que o experienciar não é algo objetivo ou que possa ser (re)produzido; ao contrário, é uma vivência que perpassa o corpo de cada um, de forma única e inexplicável. Constatamos que, quando o professor olha e cria a partir da arte, ele se torna artista, e, sendo professor artista, é capaz de lidar com os problemas que ocorrem na sua prática pedagógica e está em constante processo de aprendência (ASSMANN, 1998). Por último, procuramos realizar uma análise da práxis pedagógica no que tange à presença das artes numa atividade interdisciplinar entre as áreas das Ciências Humanas e das Linguagens. Para tanto, levamos em consideração um trabalho desenvolvido a partir do filme “Minha querida Anne Frank”, em que desafiamos os alunos do 2º e 3º Anos do Ensino Médio a escreverem, em duplas, um diário contendo relatos, poesias e desenhos relativos a temas do filme. Ao todo, foram escritos 24 diários, os quais demonstraram que trabalhar com arte nos processos de ensino propicia, ao aluno, outra compreensão sobre o que está sendo trabalhado, bem como possibilita que ele exercite a empatia e vivencie o contexto histórico, na medida em que horizontes são fundidos e tradições são compreendidas, mas, acima de tudo, serve de fuga e de rompimento do cotidiano. Ao contemplar a arte na sua práxis pedagógica, o professor demonstra saber que uma aula não precisa ser idêntica à outra e que cada uma contém, em si, a multiplicidade, os devires, as variáveis e variantes do próprio existir. Por fim, considerando os resultados alcançados, é possível afirmar que esta tese comprovou que a arte pode e deve se fazer presente na práxis pedagógica, pois potencializa sentidos e permite olhares outros, diferentes dos existentes até então. A arte nos leva a pensares inexistentes, à compreensão de quem somos e do meio no qual estamos inseridos. Ela permite que sejamos críticos, questionadores. Ela nos desafia a enfrentar nossos medos, a demonstrar os sentimentos que mantemos, muitas vezes, guardados em nosso ser. Enfim, no momento em que há uma experienciação com a arte e a partir dela, há o processo criativo, há a possibilidade de olhicriar, há apropriação e potencialização de sentidos. Palavras-chave: Artes. Sentidos. Processos de ensino. Hermenêutica. Experiência. RESUMEN Es necesario advertir que este escrito no es un guión de escritura científica usual; sigue otras líneas. En el arte de escribir no hay buena o mala escritura; hay un hilo conductor de sentido, pasando por lo que se refiere al significado, hasta rozar el sentir. Esta tesis está escrita en forma de obra teatral. Es en el espacio teatral donde se encuentran artista, tesis y expect-actor (quien observa y actúa al mismo tiempo). Es en el espacio entre el escenario y el público donde se desarrolla el diálogo, la fusión de horizontes y la comprensión de lo que se está diciendo. Empero, ¿qué está articulado en los diferentes actos que componen esta tesis? En ellos, hablamos de arte y de potenciar sentidos en la docencia. Así, para contemplar ésta temática, abrimos el telón con dos preguntas: ¿Cómo el arte viene contribuyendo en los procesos de enseñanza? ¿Cómo el arte potencia sentidos en la enseñanza? Para responder a estas preguntas, definimos, como objetivo general, investigar de qué modo el arte potencia sentidos en la enseñanza. Cabe mencionar que desarrollamos una investigación cualitativa que toma la Hermenéutica como su principal metodología (GADAMER, 2015). Como primeros objetivos específicos, buscamos investigar el concepto de arte en la época contemporánea y conceptualizar el arte desde la perspectiva hermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Para ello, realizamos una búsqueda bibliográfica centrada en éste filósofo alemán. Comprobamos, a partir de las lecturas realizadas, que el arte ha estado en la vida de la humanidad desde sus inicios, a través de distintas expresiones: dibujo, música, pintura, teatro, danza, comedia, drama, entre otras. Y, que ésta, es del orden de la subjetividad, pues, cada uno tiene una percepción y un entendimiento de lo que es el arte; así como de la importancia que tiene para la humanidad. De igual forma, corroboramos que no somos nosotros quienes interpretamos el arte a la luz de nuestros intereses; es ella que se da a interpretar, al mismo tiempo que nos interroga. En su constante movimiento autopoiético, nunca es la misma para quienes se debruzan con ella. De facto, aunque la contemplemos innumerables ocasiones, siempre tendremos una mirada diferente, y con cada mirada se abren uno o múltiples sentidos. Para comprender lo que la obra de arte quiere comunicarnos, tenemos que estar abiertos al diálogo que nos convida, porque es a través de ella que constatamos su verdad, su juego y su movimiento. Otro objetivo propuesto fue indagar las concepciones previas de arte, de profesores y alumnos, pertenecientes a una escuela pública departamental (provincial) ubicada en el municipio de Capitão/RS/Brasil, para verificar cómo las diferentes expresiones artísticas han contribuido a la potenciación de sentidos en la enseñanza. Para ello, se aplicó una encuesta abierta a 52 estudiantes de los últimos años de secundaria, y a nueve docentes de la escuela en cuestión. Analizamos las respuestas a partir del Análisis Textual Discursivo 20 (MORAES; GALIAZZE, 2016), en base a cuatro categorías, a saber: En el Valle de la Nostalgia: perceptos del arte; En el Valle de la Procura: Arte como presencia en la vida y en el espacio escolar; En el Valle del Amor: el arte ayuda a comprender los contenidos y establecer sentidos; y En el Valle del conocimiento: la potenciación de los sentidos. Gracias a estas categorías percibimos que el arte está presente en la vida de estudiantes y docentes, a la vez que ayuda en la formación de la subjetividad, ya sea desde el sentir, o desde la simpleza de la cotidianidad y del ser. Del mismo modo, entramos en contacto con las distintas percepciones de alumnos y profesores sobre qué es arte, sobre su importancia, su presencia en la vida y en el espacio escolar. También, observamos cómo el arte ayuda a comprender los contenidos, a instaurar y potenciar sentidos. Todavía, buscamos desarrollar talleres de arte con maestros de la escuela pública departamental (provincial) en Capitão/RS/Brasil, llamados Micrearte (Olhicriarte en portugués), una combinación de los términos mirar + crear + arte (Micrearte). Realizamos dos talleres, uno sobre teatro y otro sobre escritura literaria, en los cuales los profesores pudieron vivenciar el arte y buscar el autoconocimiento. Las percepciones de estas experiencias fueron informadas por los participantes en diarios denominados “Diarios vivenciales”. Al leer un total de 10 diarios, encontramos que vivenciar no es algo objetivo ni que se puede (re)producir; al contrario, es una experiencia que va más allá del cuerpo, de manera única e inexplicable. Verificamos que cuando el docente mira y crea a partir del arte, se convierte en artista y, siendo un maestro artista, es avezado para lidiar con los problemas que se presentan en su práctica pedagógica, y está en un proceso de aprendencia(ASSMANN, 1998). Finalmente, buscamos realizar un análisis de la praxis pedagógica en torno a la presencia de las artes en una actividad interdisciplinar entre las áreas de Humanidades e Idiomas. Para eso, tuvimos en cuenta un trabajo desarrollado a partir de la película “Memorias de Anne Frank”, en la que desafiamos a los alumnos de 10º y 11º de bachillerato a escribir, en parejas, un diario que incluyese reportajes, poesías y dibujos relacionados con la temática de la película. En total se redactaron 24 diarios, que demostraron que laborar con arte en los procesos de enseñanza proporciona al alumno una nueva comprensión de lo que se está trabajando. Además, le permite ejercitar empatía y vivenciar los contextos históricos, en la medida que se fusionan horizontes temporales y tradiciones son comprendidas; pero, sobre todo, sirve como fuga y ruptura de la cotidianidad. Al contemplar el arte en su praxis pedagógica, el docente demuestra saber que cada clase que imparte no necesita ser idéntica a otra, y que cada una contiene en sí la multiplicidad, los devenires, las variables y variantes de la propia existencia. Finalmente, considerando los resultados alcanzados, es posible afirmar que esta tesis comprobó que el arte puede y debe estar presente en la praxis pedagógica ya que potencia sentidos, y permite una forma de mirar diferente a las habituales. El arte nos lleva a pensar lo impensado, a comprender quiénes somos y el entorno cotidiano; de igual forma, nos permite ser críticos, cuestionadores. Adicionalmente, nos desafía a enfrentar nuestros miedos, a manifestar los sentimientos que a menudo guardamos en nuestro ser. Por fin, en el momento en que existe una vivencia con el arte y a partir de ella, se dá un proceso creativo, se dá la posibilidad de Micrearte (Olhicriarte en portugués), se dá apropiación y potenciación de sentidos. Palabras clave: Artes. Sentidos. Procesos de enseñanza. Hermenéutica. Experiencia. ABSTRACT One has to be warned. This is not an ordinary scientific writing script. It follows distinct guidelines. In the art of writing, there is no right or wrong; there is only writing. There is a line of thought – beginning with what regards meanings to what encompasses feelings. The writing of this dissertation is done as that of a theater play. In the theater venue, the encounter of the artist, the dissertation, and the spect-actor (the one who watches and plays at the same time) takes place. In this venue between the stage and the audience is where the interlocution occurs, as well as a merge of the horizons, and the understanding of what is being said. But then, what is staged in the several acts that constitute this dissertation? The art and the potentializing of the meaning/senses in teaching. To complement this theme, we base ourselves on two questions: how has art been contributing to the teaching processes and how does it potentialize the meanings/senses in teaching? To answer these questions we established, as a general purpose, the investigation of how art potentializes meanings/senses in teaching. To do so, we developed a qualitative research whose main methodology was the Hermeneutics (GADAMER, 2015). As specific purposes, we aimed to investigate the concepts of art within contemporaneity based on Hans-Georg Gadamer’s hermeneutic perspective. For that purpose, a bibliographical research based on this German philosopher was carried out. Based on the readings, we concluded that art has been in human life since its very beginning, through diverse expressions: drawing, music, painting, theater, dance, comedy, drama. Subjectivity encompasses it, once each one has a perception and understanding of what art is, and of its relevance to humankind. Furthermore, we concluded that it is not up to us to interpret art in light of our interests, but rather, art enables interpretations as it questions us. In its self-poetical unceasing movement, it is never the same before the one who stands to see it. Moreover, even if we contemplate it several times, we will always have a different look at it, and in each look, it will offer us one or multiple meanings. To be able to understand what works of art have to tell us, we have to be open to the interlocution that they hold with us, once it is through it that we verify their truth, their game, and movement. Another purpose established was verifying the previous concepts about art the teachers and students of a state public school in Capitão/RS/Brazil had to verify how the diverse artistic expressions have been contributing to the potentializing of meanings/senses in teaching. To that end, an open/dissertation questionnaire was applied to 52 students of the Secondary School (1st to 3rd year) and 9 teachers of the said school. The answers were analyzed through the Discursive Textual Analysis (MORAES; GALIAZZE, 2016) based on four categories: in the Valley of Longing, perceptions of art; in the Valley of 22 Quest, art as a presence in life and in the school venue; in the Valley of Love, art assists in the understanding of contents and establishment of meanings; and in the Valley of Knowledge, the potentializing of meanings/senses. By using these categories, we realize that art is present in the life of students and teachers, assisting in building subjectivity, whether from the feelings or the subtleties of daily life and the beings. Furthermore, we get in touch with students’ and teachers’ different perceptions of art, with its relevance and presence in their life and in the school venue. We also observed how art assists in understanding contents and in potentializing meanings/senses. Additionally, art workshops were developed with teachers of the state public schools of the municipality of Capitão/RS; they were called Olhicriarte, a merge of the words Olhar (look)+ criar (create)+ arte (art). Two workshops were offered, one of drama and the other of writing as art – through which the teachers could experience art and search for self-knowledge. The perceptions of these experiences were reported by the participants in journals called “Experience Journals”. Upon reading a total of 10 journals, we verified that experiencing is not an objective act, or one that may be (re)produced; on the contrary, an experience is felt by each individual’s body, in a unique and inexplicable way. We conclude that, when teachers look at and create based on art, they become artists, and as teachers-artists they are capable of dealing with the problems that occur in their pedagogical practice, and are in a constant process of learning (ASSMANN, 1998). Finally, we attempted to analyze the pedagogical praxis regarding the presence of arts in an interdisciplinary activity involving the Human Sciences and Languages. To do so, we took into consideration a work based on the Movie “Dear Anne Frank”, in which we challenged the 2nd and 3rd-year students of the Secondary School to write, in pairs, a journal with accounts, poetry, and drawings related to elements in the movie. Twenty-four journals were written, and they showed that working with art in the teaching process stimulates students to have a diverse understanding of what is being worked, as well as it enables them to develop empathy and experience the historical context, as horizons become merged and traditions are understood, but above all, it is an escape from and a disruption to the daily life. Upon observing art in their pedagogical praxis, teachers show that they know that one class does not need to be identical to others, and each of them contains in itself, the multiplicity, the becoming, the variables and varying of existing itself. Finally, when considering the outcomes, one can state that this thesis has proved that art may be and has to be present in the pedagogical praxis, once it potentializes meanings/senses and allows other looks, unlike the ones existing until then. Art leads us to inexistent thoughts, to the understanding of who we are and of the environment we belong to. It enables us to be critical and questioning. It challenges us to face our fears, and to show feelings that quite often we keep within ourselves. Ultimately, whenever there is experiencing of art or with it as a basis, there is the creative process, there is the possibility of olhicriar, there is an allocation and potentializing of meanings/senses. Keywords: Arts. Meanings/Senses. Teaching processes. Hermeneutics. Experience. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Na roca do fiar, o tecer desta escrita ......................................................................... 3 Artista: As fiandeiras – Diego Velasquez – Museu do Prado – Madri/Espanha ........................ 3 Figura 2 – (Des)calce seus pés, pois a liberdade está nas asas ................................................... 5 Artista: Desconhecido................................................................................................................. 5 Figura 3 – Caminho ou caminhos? ............................................................................................. 6 Artista: Desconhecido................................................................................................................. 6 Figura 4 – Quem te fez rio na busca pelo oceano? ..................................................................... 9 Artista: Sebastião Salgado - Coleção Gênesis ............................................................................ 9 Figura 5 – Um sopro de vida: a arte e seus encantos ................................................................ 14 Artista: Banksy - "Menina com Balão". Obra triturada após leilão na Sotheby's ................... 14 Figura 6 – À sombra do mandacaru, li meu primeiro livro ...................................................... 28 Artista: Sebastião Salgado ........................................................................................................ 28 Figura 7 – Transformei-me em vários, inclusive em mim ....................................................... 43 Artista: Octavio Ocampo - Tribunal de Quixote ...................................................................... 43 Figura 8 – No abrir das cortinas, a vida e a arte ....................................................................... 47 Artista: Foto de Michael Dantas – palco do teatro Amazonas/BR ........................................... 47 Figura 9 – Na palma de minha mão, (h)a vida ......................................................................... 49 Artista: Albrecht Durer – “Mãos” ou “Mãos que oram” .......................................................... 49 Figura 10 – O menino lê. Que(m) lê o menino? ....................................................................... 71 Artista: Eduard Swoboda (1814 – 1902) .................................................................................. 71 Figura 11 – Nas janelas do corpo (ou da alma), a arte do olhar ............................................... 85 Artista: Margaret Keane - The First Grail ................................................................................ 85 Figura 12 – Nas cartas da mão, o destino a sorrir................................................................... 106 Artista: Paul Cézzane - Os Jogadores de Carta. 1890. Metropolitan Museum of Art ............ 106 Figura 13 – Frida: conte-me teus segredos e te direi o que é a arte....................................... 130 Artista: Frida KAHLO - Autorretrato com colar de espinhos e beija-flor/1940 Harry Ranson Humanities Research Center Art Collections Texas, Estados Unidos ................................... 130 Figura 14 – Um duelo de vida e morte: a bailarina/cisne e o cisne/bailarina ......................... 163 Artista: Desconhecido............................................................................................................. 163 Figura 15 – Na “Ode à Alegria”, o “Pensador” a sentipensar ................................................ 192 Artista: O pensador - François - Auguste-René Rodin -1902 - Museu Rodin - Paris ............ 192 Figura 16 – À beira do bosque, desfiz-me ao vento ............................................................... 216 Artista: Desconhecido............................................................................................................. 216 Figura 17 – No cachimbo de Magritte, um pensar hermenêutico ......................................... 228 Artista: René Magritte - La trahison des imagens – 1928 ...................................................... 228 Artista: René Magritte - Les deux mystères – 1966 ............................................................... 228 Figura18 – No abraço, a lembraça amiga ............................................................................... 262 Figura 19 – No peito, o convite do pássaro pela liberdade..................................................... 266 Artista: René Magritte - O terapeuta ...................................................................................... 266 Figura 20 – No violentar metamórfico, o nascer do conhecimento........................................ 276 Figura 21 – “No voo lírico do pincel”: a aura da obra de arte ................................................ 319 Artista: “O estúdio do artista” de Johanes Vermeer - Kunsthistorisches Museum de Viena, na Áustria........ ............................................................................................................................ 319 Figura 22 – O que vê o pintor/professor na arte do ensino? .................................................. 360 Artista: Waltercio Caldas – Los Velásquez/1993 ................................................................... 360 Figura 23 – Uma aula pode ser muitas coisas, desde que proporcione a experiência para o pensar.......... ............................................................................................................................ 364 Figura 24 – Dämon/Demone/Demonio/Démon/Demon – Demônio, independente da língua.............. ........................................................................................................................ 373 Figura 25 – Na porta do inferno o dizer maldito ................................................................... 376 Figura 26 – Anne Frank: a menina que cantava e encantava ................................................. 379 Figura 27 – “As estrelas são os olhos de quem morreu de amor” (COUTO, 2012, p. 35).... 381 Figura 28 – Muitos caminhos e um só destino ..................................................................... 391 Figura 29 – O que meus olhos veem na melodia da dor? ....................................................... 394 Figura 30 – No lugar do amor, suspiros mortais .................................................................... 396 Figura 31 – “A lágrima é águae só a água lava a tristeza” (COUTO, 2012, p. 34) ................ 397 Figura 32 – No “ vigiar e punir”, a escrita da dor .................................................................. 398 Figura 33 – Um símbolo, uma história: a impossibilidade do esquecer ................................. 408 Figura 34 – Em cada escrita uma história............................................................................... 411 Figura 35 – Você nem imagina o que contigo aprendi ........................................................... 414 Figura 36 – Escrevo minhas últimas palavras numa carta (in)finita ...................................... 418 Artista: Johannes Wermeer - Senhora escrevendo uma carta e sua criada ............................. 418 Figura 37 – Curiosa e artisticamente, libertei-me das amaras do existir ................................ 434 Artista: Zenos Frudakis - Freedom ......................................................................................... 434 Figura 38 – Só tu és capaz de sentir a potência de tuas asas .................................................. 441 Artista: Rene Magritte – O Grande Família – 1963 ............................................................... 441 Figura 39 – No fechar das cortinas, a (in)certeza de um fim.................................................. 442 Artista: Desconhecido............................................................................................................. 442 SUMÁRIO 1 PRELÚDIO – UMA EXPLICAÇÃO (DES)NECESSÁRIA ........................................... 28 2 UM PRÓLOGO FORA DE LUGAR, MAS NÃO MENOS IMPORTANTE ................ 43 3 O ABRIR DAS CORTINAS ............................................................................................... 47 4 UMA CANTATA EM VERSO E PROSA DO QUE ESTÁ POR VIR ....................................... 49 5 CINCO ATOS: O ENREDO TEÓRICO .......................................................................... 71 6 1º ATO – VI E NÃO ENXERGUEI: OLHEI E FUI ALÉM ........................................... 85 7 2º ATO – NO MOVIMENTO DO IR E VIR, O JOGO E A ARTE ............................. 106 8 3º ATO – A AUTOPOIESE DA ARTE ........................................................................... 130 9 4º ATO – NA PONTA DO PÉ: A ARTE E A POTENCIALIZAÇÃO DE SENTIDOS....... ..................................................................................................................... 163 10 5º ATO – É NECESSÁRIO PENSAR: A ARTE NOS PROCESSOS DE ENSINO . 192 11 QUATRO ATOS: A METODOLOGIA, A PRODUÇÃO E A ANÁLISE DOS DADOS...... ............................................................................................................................ 216 12 6º ATO – NO MÉTODO HERMENÊUTICO, A COMPREENSÃO DO VER ARTÍSTICO .......................................................................................................................... 228 13 7º ATO – NAS ASAS DO PÁSSARO, A ARTE E A INSTAURAÇÃO DE SENTIDOS NOS PROCESSOS DE ENSINO......... ............................................................................... 266 13.1 Os preparativos para a jornada .................................................................................. 277 13.2 No Vale da Saudade, perceptos da arte ...................................................................... 279 13.3 No Vale da Procura, a arte como presença na vida e no espaço escolar ................. 289 13.4 No Vale do Amor, a arte auxilia na compreensão dos conteúdos e na instauração de sentidos .......... ....................................................................................................................... 293 13.5 No Vale do Conhecimento, a arte potencializa sentidos ........................................... 302 14 8º ATO – OLHICRIARTE: O EXPERIENCIAR ARTÍSTICO ................................ 319 15 9º ATO – A ARTE A PERPASSAR OS PROCESSOS DE ENSINO ......................... 360 15.1 O contexto histórico ...................................................................................................... 372 15.2 O Diário de Anne Frank .............................................................................................. 377 15.3 O porquê da escrita de um diário ............................................................................... 384 15.4 Cada diário, uma personagem. Cada personagem, uma história ............................ 386 15.5 Eles vieram e nos levaram: os soldados e a captura de judeus ................................ 387 15.6 Trilhos da morte: para onde vão todos esses caminhos? .......................................... 390 15.7 O Inferno: a chegada no campo de concentração ...................................................... 393 15.8 Purgatório: o cotidiano nos campos de concentração ............................................... 399 15.9 A morte veste-se de anjo .............................................................................................. 401 15.10 Paraíso: as lembranças, a confiança em Deus e a esperança .................................. 402 15.11 O paraíso é alcançado: a libertação .......................................................................... 405 15.12 O encontro com Anne Frank ..................................................................................... 406 15.13 O que esse trabalho demonstrou: percepções do professor e dos alunos .............. 407 16 DESFECHO - OU SERIA UM GESTO (IN)ACABADO? .......................................... 418 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................444 APÊNDICES..... .................................................................................................................... 467 APÊNDICE A – Questionário para os Alunos ................................................................... 468 APÊNDICE B – Questionário para os Professores ........................................................... 469 APÊNDICE C – Termo de consentimento livre e esclarecido professores ..................... 470 APÊNDICE D – Termo de consentimento livre e esclarecido responsáveis pelos discentes.... ............................................................................................................................. 472 APÊNDICE E – Termo de assentimento alunos menores de idade ................................. 474 APÊNDICE F – Declaração de anuência ........................................................................... 476 APÊNDICE G – Declaração de anuência ........................................................................... 477 APÊNDICE H – Termo de consentimento livre e esclarecidoprofessores participantes na oficina “olhicriarte” ........................................................................................................ 478 APÊNDICE I – Termo de consentimento livre e esclarecido .......................................... 480 APÊNDICE J – Termo de consentimento livre e esclarecido pais ou responsáveis ...... 482 APÊNDICE L – Termo de assentimento alunos menores de idade ................................. 484 ANEXOS ......... ..................................................................................................................... 486 ANEXO A – Palavras ........................................................................................................... 487 ANEXO B – Me ajuda a olhar ............................................................................................. 488 ANEXO C – Versos soltos 1 ................................................................................................. 489 ANEXO D – Versos soltos 2 ................................................................................................. 490 ANEXO E – Escrevo porque... ............................................................................................ 491 ANEXO F – Versos soltos 3 ................................................................................................. 492 ANEXO G – Samba da Utopia ........................................................................................... 493 ANEXO H – Na língua do "F" a possibilidade do comunicar e do escrever .................. 494 ANEXO I – Na língua do "F" a possibilidade do comunicar e do escrever .................... 495 ANEXO J – O lixo ................................................................................................................ 496 28 1 PRELÚDIO – UMA EXPLICAÇÃO (DES)NECESSÁRIA Figura 6 – À sombra do mandacaru, li meu primeiro livro Artista: Sebastião Salgado Fonte: https://www.ilpost.it/2015/06/20/salgado-altre-americhe/salgado-altre-americhe-6/ 29 O que se passa na mente das pessoas? O que se passa em nossa própria mente? Quais são os meus e os seus pensares? Sr. Rabuja, o que procura? Todas as manhãs, bem cedinho, ele sai de sua casa em direção às vielas do povoado. Com sua estatura encurvada e roupas esfarrapadas, mochila amarrotada presa às costas, procura não se sabe o quê e “movimenta-se como alguém que não sabe o que é pressa” (FETH, 1996, s/p). Sempre pontual, nunca se atrasa, a ponto de permitir que os relógios da cidade, inclusive o da velha torre da igreja, sejam acertados conforme o compasso rítmico de seus anosos passos. Conforme o Sr. Rabuja, assim são as pessoas velhas - carregam o tempo no bolso de suas vestimentas. Cautelosamente, como se joias raras fossem, guardam cada minuto, cada hora e cada dia de sua existência. Mas, o Sr. Rabuja guarda algo mais. Ele é um colecionador de pensamentos. Desde os mais dantescos até os mais ínfimos. Os mais pesados e os leves, como plumas ao vento. Assim que ouve algum, ele abre a mochila, assobia suavemente, e aquele pensamento logo chega voando, entra na mochila e se junta aos outros que já se encontravam lá dentro. Alguns vêm voando suavemente, outros se aproximam tão depressa que quase derrubam o Sr. Rabuja. Uns acham logo a entrada da mochila, outros demoram um tempo. Alguns são tão inquietos e desajeitados que escorregam e caem na calçada. Cada pensamento tem seu comportamento próprio. Pensamentos são coisas imprevisíveis (FETH, 1996, s/p.). O Sr. Rabuja que, ao longo de sua vida, já viu de tudo um pouco, já se espantou e deixou de se espantar, às vezes para e se questiona como os pensamentos podem ser tão diferentes uns dos outros. Na solidão de sua casa, organiza-os em uma vasta prateleira: Na prateleira da Letra A, por exemplo, encontramos os pensamentos acanhados, aflitivos, agressivos, amalucados, amáveis, arrojados... Na prateleira da letra B encontramos os pensamentos belos, blasfemos, bobos, bonachões, bondosos, brilhantes, burlescos... Na prateleira do C temos os pensamentos caóticos, corajosos, criteriosos, curiosos (FETH, 1996, s/p.). E assim, continuamente, a prateleira alfabética vai se enchendo de pensamentos. Cada qual em seu lugar. Mas o Sr. Rabuja tem de estar bem atento, pois os pensamentos são quase transparentes e é muito fácil confundi-los pela miopia do olhar. Às vezes, os pensamentos mais brincalhões resolvem se esconder. Fogem e desaparecem a seu bel-prazer. E lá se vai o Sr. Rabuja, pacientemente, procurá-los. Então, ele procura aquele pensamento de joelhos por todo o quarto, por todos os cantos escuros. Mas isso não é muito frequente e só acontece com os pensamentos atrevidos, com os animados, com os marotos e com os vulgares. E como o Sr. Rabuja é um homem pacífico, basta ele ter um pensamento especialmente bonito nas mãos para se esquecer de tudo o mais (FETH, 1996, s/p.). 30 Após terminar a classificação, o Sr. Rabuja deixa os pensamentos a descansar, a maturar. Em seguida, deposita-os cuidadosamente na terra fértil, no imenso jardim de sua casa. Não demora muito - talvez entre o despertar da noite e o alvorecer do novo dia - nos canteiros úmidos de orvalho, brilham, as flores mais magníficas e raras que se pode imaginar. E, sem que o Sr. Rabuja se aperceba, a alomorfia acontece. “Pouco a pouco, com grande delicadeza, as flores se dissolvem. Elas se desfazem em inúmeras partículas que parecem floquinhos de poeira dançando ao sol. Ao primeiro ventinho, se dispersam, colorindo todo o céu” (FETH, 1996, s/p.). Em meio a uma melodia suave, os pensamentos, um a um, modificados em si e transformados pelo árduo trabalho do Sr. Rabuja, novamente voltam a se dissipar à procura de alguém. *** Fecha o livro. Olha para o pequeno grupo a esconder-se sob a sombra do velho mandacaru espinhento. No seu entorno, a terra árida do sertão. Na singeleza das vestes, o encanto pelas palavras. Na tempestade dessas, suas próprias fragilidades (KETZER, 2017). Foi o primeiro livro que leu sozinho em público, pois há pouco descobriu as palavras, seus códigos e signos. Mas, já sabe, de própria vivência, que A palavra não escolhe apenas um signo para uma significação já definida, como se vai procurar um martelo para pregar um prego ou um alicate para arrancá-lo. Tateia em torno de uma intenção de significar que não se guia por um texto, o qual justamente está em vias de escrever. Se quisermos lhe fazer justiça, teremos de evocar algumas daquelas que poderiam estar em seu lugar, e foram rejeitadas, sentir como teriam atingido e agitado de outro modo a cadeia da linguagem, a que ponto esta palavra era realmente a única possível, se essa significação devia vir ao mundo (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 69). Está feliz, pois descobriu que a palavra é portadora de múltiplos signos e que cabe ao leitor ler o seu sentido, ou seja, que é “o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo” (MANGUEL, 1997, p. 21). Não só está feliz, como repete a si mesmo que se trata de uma emoção sem fim. Sente-se o próprio Sr. Rabuja, com suas vestes maltrapilhas e dignas, a recolher pensamentos e a dissipá-los para aqueles que, atentamente ou distantes, os ouvem. Suas mãos calejadas pelo trabalho árduo tornam-se sedosas ao folhearem o livro. Seus olhos cansados tornam-se firmes, ao decifrarem as letras, e vivazes ao perderem a cegueira analfabética do olhar. Seu corpo toma outra postura. Tem a nítida impressão de que, ao se 31 deixar possuir pelo texto, a beleza acontece. Mais do que isso, alimenta-se dela, sacia sua fome de curiosidade. E, ao ler, torna-se um artista das palavras. “É através das palavras, entre as palavras, que se vê e se ouve” (DELEUZE, 2011, p. 9). Ousadamente, explica às crianças, ali presentes, que é pela palavra que dialogamos, nos expressamos, dizemos quem somos e quem nos habita. Mas adverte: as palavras, por si sós, são incapazes de dizer todo um pensar. As palavras são objetos magros incapazes de conter o mundo. Usamo-las por pura ilusão. Deixámo-nos iludir assim para não perecermos de imediato conscientes da impossibilidade de comunicar e, por isso, a impossibilidade da beleza. Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça. Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa. A esperança na humanidade, talvez por ingênua convicção, está na crença de que o indivíduo a quem se pede que ouça o faça por confiança. É o que todos almejamos. Que acreditem em nós. Dizermos algo que se toma como verdadeiro porque o dizemos simplesmente (MÃE, 2017, p. 40). “Todas as lagoas do mundo dependem de ao menos sermos dois” (MÃE, 2017, p. 40). De fato, dialogar é da alçada do duo, um que vê e outro que ouve. Duas pessoas, dois seres. Mas o diálogo também pode ser entre o ser e as palavras. A leitura é uma conversa. Os lunáticos respondem a diálogos imaginários que ouvem ecoar em algum lugar de suas mentes; os leitores respondem a um diálogo similar provocado silenciosamente por palavras escritas numa página. Em geral a resposta do leitor não é registrada, mas em muitos momentos ele sentirá a necessidade de pegar um lápis e escrever as respostas nas margens de um texto. Esse comentário, essa glosa, essa sombra que às vezes acompanha nossos livros favoritos, estende e transporta o texto para o interior de um outro tempo e de uma outra experiência; empresta realidade à ilusão de que um livro fala a nós (seus leitores) e nos faz viver (MANGUEL, 2005, p. 10). Sim, desde o momento em que aprendeu a decifrar as palavras, passou a dialogar com elas. Passou a viver uma vida que não a sua, mas que, ao mesmo tempo, não estava dissociada de sua realidade e de seu viver. Aprendeu os limites da palavra. Sim, Alguns pensam que os seus argumentos, por sua clareza e lógica, são capazes de convencer. Levou tempo para que compreendesse que o que convence não é a ‘letra’ do que falamos; é a ‘música’ que se ouve nos interstícios de nossa fala. A razão só entende a letra. Mas a alma só ouve a música. O segredo da comunicação é a poesia. Porque poesia é precisamente isso: o uso das palavras para produzir música. Pianista usa piano, violeiro usa viola, flautista usa flauta – o poeta usa a palavra (ALVES, 2008, p. 97). Por isso aprendeu que, para dialogar com as palavras, é necessário auscultar seus ruídos, pois, no oculto de seus ocos, existe o germinar de cores e sons. É necessário vasculhar, em seus interstícios, o pulsar da vida e procurar transpor suas barreiras em busca de significados e significâncias outras. É necessário “considerar a palavra antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de rodeá-la, sem o qual ela nada diria, ou 32 ainda pôr a nu os fios de silêncio que nela se entremeiam” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 69). Para descobrir o silêncio contido na palavra, para dissecá-la, retirar sua pele, a necessidade cirúrgica de “fazer um corte até a medula, seguir cada artéria e cada veia e depois dar vida a um novo ser sensível” (MANGUEL, 2009, p. 33). E, nada de ser um taxidermista - não se trata de um empalhamento de palavras; ao contrário, é preciso respeitar a palavra e compreender cada vida que ela comporta e liberta. Depois que aprendeu a ler, passou a se sensibilizar consigo e com o outro. Modificou- se e modificou seu entorno, pois “todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender” (MANGUEL, 1997, p. 20). E, nesse ler o entorno e o mundo, “já se soma um esforço de decifrar as coisas sem sentido” (KETZER, 2017, p. 39). Vislumbrou que, na profundidade do que se apresenta nas páginas do livro - que necessita ser lido fora de suas fronteiras (JABÉS, 2014) -, existe um caminho sem fim. E que se deixar sumir na história, que porventura o enreda, é a garantia de que as coisas não assombrem mais. Que os fantasmas apenas guardam o sono ou até mesmo libertam os sonhos. E que, ao libertar-se das correntes que o oprimiam, a vida passou a existir sem problemas. Ao ler, concorda com Proust e ousa parafraseá-lo: Pelos [livros] podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as que porventura existem na Lua. Graças à [leitura], em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e dispomos de tantos mundos quantos artistas originais existem, mais diversos entre si do que os que rolam no infinito (apud DELEUZE, 2010, p. 40).3 Passou a “ad-mirar” (ZANELLA, 2013) as coisas com outro olhar. Aliás, seus olhos tornaram-se tão pequenos perante a imensidão, que não cabiam mais em si. Foi necessário compartilhar outros olhos para conseguir ver a vastidão. Compreendeu que ler é caminhar para dentro de si. “Eu disse que ler é como caminhar dentro de mim mesmo. E é verdade. Quando lemos estamos a percorrer nosso próprio interior” (MÃE, 2018, p. 59). Entendeu que, ao ler, os pensamentos se (trans)formam e transforma-se o próprio leitor, seus pensamentos, suas emoções e sua condição axiológica (ZANELLA, 2013). Descobriu-se um ser em devir e tornou-se dono de si. E, pela primeira vez na vida, sentiu a sensação de ser livre. 3 No original, no lugar de livros e leitura, lê-se arte. 33 *** Palavras. Sempre no plural. Existem aos milhões. São como os pensamentos que o Sr. Rabuja coleciona. Necessitam serem caçadas, plantadas, cultivadas, para que, de um instante ao outro, possam florescer e se dispersar novamente ao ar. Cada palavra contém Um viajante que acata A procura de itinerários Que desvelem caminhos Ou rotas de fuga num mapa Cada palavra é um poço Em relação conjugal Marcas e diagramas Entonações e entranhas De consoantes e vogais [...] Às vezes se agrupam Pouco confiáveis Em estranho solipsismo Ou se enrolam em estrofes E as de estribilho... Que do sofrer Fazem estoque Tem as que se aproximam As que desatam As que nascem As que se desfolham No momento exato [...] Mas não faz mal... A toda hora Outras virão Com seus postulados Afinal são muitas Espalhadas Por tudo que é lado (REICHERT, 2019, p. 74-6). É difícil encontrar as palavras certas na hora de nos expressarmos. E, mesmo escolhidas, uma a uma, a fim de serem meticulosamente expostas nas prateleiras/linhas do escrevinhar, podem dizer algo diferente daquilo que gostaríamos de ter dito. “A palavra escrita está pela palavra oral, mas se caracteriza como realidade outra, a possibilitar a quem a lê experiências diversas de quem as ouve” (ZANELLA, 2013, p. 36). Destarte, pensar em uma escrita, em seu formato e nas palavras que a compõem, não é nada fácil. Qual estrutura iremos seguir? A científica? A romancista? A poética? A filosófica? 34 Depois de escolhida, a dúvida - será esta estrutura capaz de dizer tudo aquilo que pretendemos? Pensar em uma escrita e em suas palavras demanda demora, dedicação, deixar que o tempo presente nos bolsos do vestir dite as regras do transcurso temporal. Escolher palavras é fazer tal qual o Sr. Rabuja - depois de pescadas no vocabulário pessoal e alheio, é necessário deixá-las descansar. É preciso niná-las, acalentá-las, olhá-las de vez em quando. Trocá-las de lugar, caso seja necessário. Deixá-las em silêncio, pois é no silenciamento das palavras, ou de quem as escolhe, que ocorre o movimento do (re)(des)fazer da escrita (ZANELLA, 2013). Deixá-las maturar a fim de encorparem, ganharem tom e sabor para, só então, semeá-las na folha em branco. “Num turbilhão de encantamento, o tilintar dos dedos nas teclas vão registrá-las a fim de preencherem a tela supostamente vazia do computador. Deleite, por certo, arrebatamento, sem dúvida” (ZANELLA, 2013, p. 123). Uma escrita é da alçada do inacabamento. Assim anuncia Deleuze: “escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vívida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido” (2011, p. 11). Pensar em uma escrita e em suas palavras não é somente uma questão de colocar engrenagens escreventes para funcionar. Também demanda ousadia e sensatez de fabricá-las para a escritura: “[...] tampouco sabia como se daria [...] não se tratava só de inventar uma forma que atendesse ao que precisava ser dito, senão, inventar uma forma de dizer que encarnasse um sentido, enquanto ele se produzia de escrita” (FARINA,1999, p. 18). É preciso lembrar que, ao se escrever, a palavra escrita vai além do aprisionamento da folha em branco. Ela ganha vida. Ela percorre, galopa, voa para muito além da imaginação. Escrita é, nesse sentido, palavra dirigida a um ou muitos outros, reais ou imaginários, com o(s) qual(is) o autor se comunica, dialoga. Outro(s) que pode(m) ou não compartilhar conhecimentos vários, pode(m) ou não participar do contexto extraverbal pressuposto e cuja condição, em relação ao não dito, inaugura a própria escrita e a orienta. Outro(s) que pode(m) vir a responder a essa palavra, em tempos, espaços e intensidades variadas, a depender do que é dito e dos muitos contraditos que a partir deste podem vir a ser produzidos (ZANELLA, 2013, p. 120). Para o formato da escrita desta tese, escolhemos o enredo teatral e suas variações e, no que tange às palavras, as poéticas e filosóficas, pois são essas que oportunizam “sons cientificamente musicais que favorecem um mergulhar na leitura. O pulsar nas entrelinhas” (ZANELLA, 2013, p. 11). Sim, ousadamente quebramos a cientificidade do escrever acadêmico, mas sem deixar de alcançar e apresentar o resultado de uma pesquisa científica. 35 Mais do que isso, trazemos, na escrita, as marcas leitoras do pesquisador mediante uma narrativa teatral “do movimento constitutivo de olhares, ouvires e sentires, e das escolhas teóricas e metodológicas objetivadas em textos disponíveis a olhares de muitos outros que possam ressignificá-los, reinventá-los” (ZANELLA, 2013, p. 25). Dessa forma, todas as palavras presentes nestes escritos tornam-se sinfonias abertas cujos acordes estão “à espera de outras notas que possam vir a dialogar com o que aqui se apresenta” (ZANELLA, 2013, p. 25). *** O desenrolar da tese passa-se em um teatro. Por teatro, compreendemos a junção dos verbos gregos “ver, enxergar”, ou seja, é o lugar de ver, “ver o mundo, se ver no mundo, se perceber, perceber o outro e sua relação com o outro” (ARCOVERDE, texto digital, p. 601). E, mais do que isso, perceber que “só o outro transforma o eu em sujeito” (ZANELLA, 2013, p. 15). O teatro é a arte da coletividade, da dependência, devido à necessidade da existência de um público e “essa carência é a motivadora direta da influência que cada elemento de uma apresentação pode causar em relação aos outros. Essa mistura nada mais é do que a interatividade” (BARROS, 2002, p. 9). Uma interatividade que se faz presente entre ator e expect-actor4 e onde tudo o mais são questões suplementar es (PAVIS, 2008). É no espaço teatral que ocorre o encontro do artista, da tese e do expect-actor. E aqui cabe uma ressalva explicativa - o expect-actor é um outro que, ao se relacionar com o que se passa no palco, com os artistas que aí se encontram e com o enredo em si, o reinventa e já se apropria dele. É um outro que observa (expect) e age (actor) ao mesmo tempo, Sob o prisma de sua história, seus interesses, suas motivações, afecções e vontades. Falo de expect-actor em vez de expectador, justamente para demarcar sua condição ativa, o lugar que assume perante a(s) realidade (s) como alguém que não somente assiste ao mundo, mas que o reinventa continuamente, ainda que essa sua condição inventiva não venha a ser reconhecida. Expect-actor como um ou vários outros possíveis, em diferentes tempos e espaços, que podem vir a estabelecer relações estéticas com a obra criada e engendrar, como o olhar/ouvir/sentir transfigurados nesse encontro, outras obras, para si, para tantos outros (ZANELLA, 2013, p. 43). No encontro, há troca(s). Um diálogo constante, uma fusão de horizontes hermenêuticos. Ao longo do espetáculo, o jogo acontece. E, como tal, “os atores representam seus papéis, e assim o jogo torna-se representação, mas o próprio jogo é conjunto de atores 4 Termo cunhado pelo diretor de teatro brasileiro, Augusto Boal. 36 (spielern) e expect-actores. De fato, é aquele que não participa do jogo mas assiste quem faz a experiência mais autêntica e que percebe a ‘intenção do jogo’” (GADAMER, 2015, p. 164).5 É na representação que ocorre no palco que o jogo “eleva-se a sua idealidade própria” (GADAMER, 2015, p. 164). Ainda, conforme o autor, “a encenação de um espetáculo teatral não pode ser separada dele como algo que não pertence ao seu ser essencial, já que é tão subjetivo e fugidio como as vivências estéticas nas quais é experimentado” (GADAMER, 2015, p. 172). Por último, O palco teatral é uma instituição política de natureza única, porque somente na execução faz transparecer aquilo tudo que há no jogo, a que está aludindo, os ecos que desperta. Ninguém sabe de antemão qual será o ‘resultado’ e o que irá se perder no vazio. Cada execução é um acontecimento, mas não um acontecimento que se oponha ou posicione ao lado da obra poética como algo autônomo; o que acontece no acontecimento da encenação é a própria obra (GADAMER, 2015, p. 209). No palco, os artistas deixam-se levar pelo seu representar e, como intérpretes mediadores, “representam o jogo da arte na medida em que, pela sua aplicação, situam-se diante de um conteúdo rico em significados e, compreendendo-o, buscam interpretar o sentido do que realizam” (VASCONCELOS, 2013, p. 70). O artista necessita compreender sua própria importância e precisa entender o que está falando (GADAMER, 2015). No jogo da representação, “o intérprete mediador abdica de sua subjetividade, para recriar-se através da própria orientação da obra por ele apresentada. [...] O jogo se consuma com o assistir do expect-actor” (VASCONCELOS, 2013, p. 66). O artista entrega seu corpo ao outro, àquele que nasce de si mesmo e ganha outra vida que não a sua, mas não necessariamente dissociada dela. Ao mesmo tempo em que se deixa levar, convence a plateia, expect-actriz, a acompanhá-lo. Destarte, os expect-actores, por sua vez, acompanham e seguem seu próprio fluxo e o movimento do artista. Nem este nem aqueles sabem o final. Os artistas, embora conheçam o enredo, não sabem como ele será recebido pelo expect-actor, cuja reação é sempre uma surpresa. Conseguir sua aprovação é muito difícil, uma vez que a plateia é a grande juíza e só ela é responsável pelos aplausos - demonstrados com palmas e bravos - ou pelos apupos, em meio a assovios e gritos de desagrado. Já os expect-actores, por não conhecerem o enredo, acompanham o desenrolar da trama sem se darem conta da sua própria importância e da sua participação no espetáculo. Isso porque, no jogo teatral, não há um “fazer para”, mas sim um “fazer com”, ou seja, sem um público, a peça teatral deixa de acontecer. 5 No original, lê-se espectadores. 37 Entre o limiar do palco e a primeira fila de poltrona, um espaço. Um limite fronteiriço entre o mundo do artista e o mundo dos expect-actores presentes na plateia. Ambos os lados projetam e contemplam horizontes. Ambos procuram compreender melhor a si mesmos. Cada um procura compreender quem é o outro que o interpela. É nesse espaço que ocorre a troca de energias, de influências, a tentativa de fazer ver e perceber e, acima de tudo, ocorre a fusão de horizontes. Todos eles juntos formam esse grande horizonte que se move a partir de dentro e que abarca a profundidade histórica de nossa autoconsciência para além das fronteiras do presente. Na realidade, trata-se de um único horizonte que engloba tudo quanto a consciência histórica contém em si (GADAMER, 2015, p. 402). Nesse espaço, olhares são tecidos e se abre a possiblidade de compreender que o que se viu não é suficiente e que o olhar permite ir além. É nesse espaço que artistas e expect- actores, dão a sua contribuição para a compreensão desta tese, pois é nele que as imagens poéticas são sentidas, recebem um valor intersubjetivo e serão repetidas a fim de comunicar o entusiasmo (BACHELARD, 2008). Certamente, haverá encontros, estranhamentos, não aceitação, repulsa, reconhecimento, empatia, acolhimento, busca por um sentido, uma incompreensão compreensível, apontamentos. Haverá olhares sobre o que se passa e sobre o que escapou ao próprio olhar, pois o teatro “convida para a experiência da intensidade” (SCHNEIDER, 2015, p. 13). Os artistas, em palco, representam seus papéis para o outro, seja o expect-actor, na plateia, ou aquele que, porventura, venha a ler o que se passa no jogo como um todo. A participação dos artistas no jogo “não é mais determinada pelo fato de serem totalmente absorvidos e se perderem nele, mas por jogarem (representarem) seu papel por referência, tendo em vista o conjunto do espetáculo no qual não eles, mas os expect-actores devem ser totalmente absorvidos” (GADAMER, 2015, p. 164). Na intensidade do representar, os artistas deixam de ser quem são e passam a ser um outro a transmitir algo a alguém. Ou seja, “a identidade daquele que joga não continua existindo para ninguém” (GADAMER, 2015, p. 167). Pelo palco desta tese irão passar a menina de olhos grandes, Frida Kahlo, jogadores de cartas, um inventor e um escultor. Também um maestro e sua orquestra, acompanhada de um coral. Um pintor e uma bailarina. Irão passar a poupa/menina e a passarada a sobrevoarem os vales em busca do pássaro encantado; o artista a ser julgado; e o professor a experienciar um processo de olhicriarte. Enfim, um eu escritor, orientador e leitor. E muitos mais que por aqui 38 desejarem passar. E irá passar todo aquele que se deixar levar pelo jogo da representação. Que se permitir esquecer sua identidade, sua subjetividade, para dar vida, corpo e voz ao outro que, por ora, está a representar. Portanto, trata-se de uma tese divertissement. Em suas apresentações, intercalam-se o espetáculo teatral, a dança e o canto e suas temáticas alternam a ficção e a utilidade pública e social no que tange ao ensino. E, diante do palco, sentado em sua poltrona, os expect-actor. Há que se ter ciência de que o teatro lhe proporciona acessar universos múltiplos que existem apenas na sua imaginação. Ao se abrir para a obra, ele “é convidado a transportar-se para outro tempo, para um lugar diferente, e vive as emoções como se ele próprio fizesse parte dessa cena que acontece no palco” (SCHNEIDER, 2015, p. 13). Mais do que isso, o teatro Coloca o expect-actor no lugar do jogador (ator). É ele, e não o jogador (ator), para quem e em quem se joga (representa) o jogo (espetáculo). É claro que isso não quer dizer também que o jogador (ator) não poderá experimentar o sentido do todo em que ele, representando, desempenha seu papel. O expect-actor tem somente uma primazia metodológica: pelo fato de o jogo ser realizado para ele, torna-se patente que possui um conteúdo de sentido que deve ser entendido, podendo por isso ser separado do comportamento do jogador (ator). No fundo, aqui se anula a distinção entre jogador (ator) e expect-actor. A exigência de se visar o jogo mesmo, no seu conteúdo de sentido, é igual para ambos (GADAMER, 2015, p. 164). Muitas vezes, no desenrolar da tese, o expect-actor tornar-se-á ser ativo no fluir da discussão. Tecerá diálogos diversos não só com as personagens e o arauto, mas com os demais membros da plateia. A esse movimento damos o nome de happening, ou seja, há uma participação do público no desenrolar do espetáculo “através de uma participação voluntária ou de ações de provocação que o levem a reagir” (TEIXEIRA, 2005, p. 147). Torna-se o expect-actor uma espécie de coautor e coator, pois, mesmo não sabendo do enredo em si, demonstra seu potencial criativo e sua capacidade para improvisar. Em cena, anunciando o roteiro da escrita e o desenrolar da história, bem como os rumos a serem percorridos, o arauto. Figura importante no contexto medieval, tinha a função de realizar as proclamações solenes, verificar os títulos de nobreza e proclamar as guerras e os acordos de paz. Em meio ao rufar dos tambores, o arauto pronuncia a temática deste escrito, sua problematização, seus objetivos, sua justificativa, seu referencial teórico. A tese está dividida em atos, os quais percorrem o olhar, a arte, a autopoiese, o jogo, o sentido, a potência, a arte no ensino. O arauto proclama também a metodologia, qualitativa e Hermenêutica, além da análise da produção de dados que, por sua vez, também está dividida em três atos. O primeiro deles 39 corresponde às entrevistas com alunos do Ensino Médio e professores de uma escola da rede estadual de Capitão/RS, cujas respostas são analisadas sob a perspectiva da Análise Textual Discursiva (MORAES; GALIAZZI, 2016) e estão divididas em quatro categorias. O segundo está relacionado às duas oficinas realizadas com os professores - uma sobre o teatro e a outra sobre a escrita enquanto arte - por meio das quais eles puderam passar por experiências artísticas e escrever esse experienciar em Diários Vivenciais. Por último, no terceiro ato, a arte a perpassar a práxis pedagógica, em que se faz presente uma atividade interdisciplinar realizada entre as áreas das Ciências Humanas e das Linguagens a partir do filme “Minha Querida Anne Frank” e da criação de um diário com relatos, poesias e desenhos por parte dos alunos do 2º e 3º Anos do Ensino Médio. Vale ressaltar que as oficinas e a prática pedagógica foram igualmente desenvolvidas em uma escola da rede estadual de Capitão/RS. O arauto, muitas vezes, faz com que os jogadores (atores), por algum momento, desapareçam, congelem em cena, tornando-se ele o jogador (ator) a comandar o espetáculo. Destarte, “nenhum deles tem um ser-para-si próprio, um ser que ele manteria no sentido de que seu jogo significaria que ‘está apenas jogando” (GADAMER, 2015, p. 166). O arauto toma formas diferentes. Ora é ele mesmo apenas a anunciar, ora é o juiz de uma partida de cartas. Outras vezes é o espelho auxiliar do maestro, o inventor de máquinas da memória, o homem em dúvida na porta. Há momentos em que o arauto se transforma no pesquisador, no expect-actor e, até mesmo, no leitor. Ele mesmo anuncia: “quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações?” (CALVINO, 1990, p. 138). Ainda, na busca da compreensão de si mesmo, acaba por declamar um poema da poetiza croata Wislawa Szymborska: A vida na hora Cena sem ensaio. Corpo sem medida. Cabeça sem reflexão. Não sei o papel que desempenho. Só sei que é meu, imperturbável. De que trata a peça Devo adivinhar em cena. Despreparado para a honra de viver, Mal posso manter o ritmo que a peça impõe. Improviso embora me repugne a improvisação. Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas. Meu jeito de ser cheira à província. Meus instintos são amadorismos. O pavor do palco, me explicando, é tanto humilhante. As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis. 40 Não dá para retirar as palavras e os reflexos Inacabada a contagem das estrelas, O caráter como o casaco às pressas abotoado Eis os efeitos deploráveis desta urgência. Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes Ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez! Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço. Isso é justo – pergunto (com a voz rouca porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores). É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida Feita em acomodações provisórias. Não. De pé em meio à cena vejo como é sólida. Me impressiona a precisão de cada acessório. O palco giratório já opera há muito tempo. Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas. Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia. E que quer que eu faça, Vai se transformar para sempre naquilo que fiz (SZYMBORSKA, 2011, p. 30). Na busca de sua identidade, o arauto é muitos e não é ninguém. Uma multiplicidade em si mesmo - a compreensão de si está no palco e na vida. Do seu ponto de vista de jogador, “o que vem a ser o seu jogo, [...] não se trata de transformação mas de disfarce” (GADAMER, 2015, p. 166). E, no jogo de disfarces, Quem está disfarçado não quer ser reconhecido, mas quer aparecer como se fosse um outro e ser considerado como se fosse o outro. Aos olhos do outro gostaria de não ser mais ele mesmo; gostaria de ser tomado por alguém. Não quer pois que o adivinhemos ou reconheçamos. Faz o papel de outro, mas ele joga da mesma forma que nós jogamos de alguma coisa na lida prática, isto é, meramente fingindo, simulando e aparentando. Aparentemente, quem joga o jogo dessa forma nega, de certo, a continuidade consigo mesmo. Mas na verdade isso significa que ele reserva para si essa continuidade consigo mesmo e só a sonega aos outros, para os quais representa (GADAMER, 2015, p. 166). O cenário, não menos importante que o jogo, é o espaço onde esse acontece, pois “todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea” (HUIZINGA, 2004, p. 13). No palco, a presença dos atores e dos objetos que compõem o cenário - diferentes obras de arte: fotografias, pinturas, partituras, escultura, trechos de obras literárias. No palco, histórias são encenadas e narradas; teorias são descritas e fundamentadas; a metodologia vai sendo questionada e colocada em prática mediante a produção de dados. O palco, “lugar proibido, isolado, fechado, sagrado, em cujo interior se respeitam determinadas regras. [O que se passa nele] são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial” (HUIZINGA, 2004, p. 13). É no palco e através do palco que se sensibilizam os expect-actores presentes na plateia, os quais 41 são desafiados, constantemente, a cada ato, a correrem para dentro de si, a descobrirem seus olhares, seus sentidos, sua potência criativa. É pelo palco, e através dele, que descobrem seu corpo e sua alma. Seu ser e estar no mundo. No palco, espaço mágico, tudo pode acontecer. É nele que a vida se confronta com a morte, que amizades inusitadas surgem, que molduras vazadas aprisionam e libertam. É no palco que a obra se (re)cria autopoieticamente inúmeras vezes, bailarinas se transformam em constelações, penas microscopicamente tatuadas se transfiguram em obras de arte, máquinas inventivas surgem a fim de resgatar memórias individuais e coletivas. No palco projetam-se imagens de um tempo muito distante e próximo. É onde o inusitado confronta o já posto e o incerto leva ao delírio, às certezas. É onde se diz o que se quis dizer, na intenção de se dizer outra coisa. Onde se vê e se confronta o próprio olhar, Na plateia, os expect-actores compreendem que, aos poucos, as tessituras artísticas vão sendo tecidas e a proposta desta tese vai sendo apresentada. Mas sabem que, para que o jogo aconteça e todos possam, cada qual à sua maneira, participar da jogada, é necessário seguir a regra, pois o “jogo exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta ‘estraga o jogo’, privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor” (HUIZINGA, 2004, p. 13). Cada expect-actor sentirá de uma forma única e peculiar o que se passa. As sensações serão únicas e intransferíveis. Somente cada um será capaz de dizer se aprendeu, o quanto aprendeu e o que aprendeu, pois cada um deixará que o aprender perpasse seu corpo da forma que melhor lhe prouver. Cada um se sentirá mais ou menos à vontade para participar, se aventurar. Alguns irão participar do diálogo; outros apenas escutarão. Alguns irão se encantar; outros se espantarão. Uns acreditarão na magia; outros, nada de mágico irão ver. Haverá os que compreenderão e aqueles que dirão tratar-se de pura loucura. Mas, a estes últimos diremos: “em um instante de lucidez também pode ser necessária muita loucura. Isso é a nossa loucura necessária, talvez a suficiente para mostrar que, após adentrarmos nela, podemos ainda permanecer vivos” (KETZER, 2017, p. 38). Mas, uma coisa é certa. Ninguém que por aqui passar será o mesmo que entrou, nem mesmo aqueles que nada sentirem. E disso estavam cientes, pois o convite inicial foi claro: “nunca mais somos os mesmos após darmos o primeiro passo”. *** 42 Debaixo do mandacaru, o grupo contempla o leitor. Agradece cada palavra lida por ele. Consideram-no um rei. Veneram-no como tal, uma vez que é o único que sabe ler. Ler, em suas condições, é sinônimo de poder, de transformação da realidade. Antes de se dispersarem para dar continuidade à labuta diária, solicitam uma última leitura. Sentem como se ela tirasse o cansaço dos ossos, amaciasse a carne maltratada, apagasse as rugas do tempo impostas pelo sol escaldante, desfizesse os calos e sarasse as feridas. Como se erguesse a coluna torta do cabo da enxada e da foice, saciasse a sede da seca do sertão, matasse a fome insaciável a corroer as entranhas vazias e devolvesse o sonho aos olhos e a esperança ao coração. O homem os contempla. Sabe que o que pedem é pouco, muito pouco pelo tanto de que necessitam. Não é rei, não se considera um. Disso tem certeza. Distribui folhas aos demais, para que, ao ouvirem, imaginem ser sua a voz a proferir palavras belas. Em cada frase lida, a beleza e a poeticidade do acontecer. A descoberta da visão em meio às cegueiras da vida. Por isso, sob a sombra do velho mandacaru, ele lê “A cortesia dos cegos”. O poeta lê seus versos para os cegos. Não esperava que fosse tão difícil. Sua voz fraqueja. Suas mãos tremem. Ele sente que cada frase está submetida à prova da escuridão. Ele tem que se virar sozinho, sem cores e luzes. Uma aventura perigosa Para as estrelas da poesia, para as manhãs, o arco-íris, as nuvens, os neons, a lua, e o falcão tão alto e quieto no céu. Ele lê – pois já não pode parar – sobre o menino de casaco amarelo num campo verde, telhados vermelhos que contam no vale, números irrequietos na camisa dos jogadores e a desconhecida, nua, na fresta da porta. Ele gostaria de omitir – embora seja impossível – todos os santos no teto da catedral, a mão que acena do trem em partida, a lente do microscópio, o anel e seu brilho, as telas de cinema, os espelhos, os álbuns de fotografia. Mas é enorme a cortesia dos cegos, admirável a sua compreensão, a sua grandeza. Eles escutam, sorriem e aplaudem. Um deles até se aproxima com o livro de cabeça para baixo pedindo um autógrafo invisível (SZYMBORSKA, 2011, p. 40). 43 2 UM PRÓLOGO FORA DE LUGAR, MAS NÃO MENOS IMPORTANTE Figura 7 – Transformei-me em vários, inclusive em mim Artista: Octavio Ocampo - Tribunal de Quixote Fonte: http://www.scaryforkids.com/optical-illusion-art/. http://www.scaryforkids.com/optical-illusion-art/ 44 Quatro anos. O que são quatro anos diante de uma vida inteira? Quanto deixamos de fazer, quanto pôde ser feito ou, até mesmo, quanto de nós se modifica nesse tempo? Quatro anos podem parecer um tempo longínquo a se arrastar em horas letárgicas. Mas também pode passar rápido. Quase num piscar de olhos. E como corre o tempo. Quando se vê já se foram dez dias, dez horas, dez meses. O relógio íntimo de modo algum se parece com o relógio fixado na parede, sempre tão regular e previsível. [...] Um relógio que quisesse dar conta do tempo de um estudo deveria suportar toda uma variedade de velocidades. Uma pesquisa, um estudo, uma escrita se faz a golpes de velocidade ou lentidão. Às vezes, tudo é muito demorado, tardio; outras, infinitamente veloz. E, em certos momentos, à lentidão aparente do corpo subjaz uma velocidade louca, inédita. Um corpo, ainda que sentado, não está desprovido de velocidade, está, sim, às voltas com velocidades diante das quais se tem sempre a sensação de estar atrasado ou adiantado, de dar voltas desnecessárias. Os graus de velocidade ultrapassam os limites normais de percepção; mesmo imóvel um corpo é capaz de veicular uma louca produção de velocidades, desde as mais lentas às mais vertiginosas. Acontece, frequentemente, de não se escrever mais do que um parágrafo durante três ou quatro horas. E, no entanto, o estudante está trabalhando (FERNANDES; VIEIRA, 2013, p. 169). Quatro anos, um tempo diferente de todos os tempos, real e inconsciente. Um tempo a ser aproveitado intensamente, como se os relógios, a derreterem, apontassem seus ponteiros para outro lado, a brincarem feito crianças. Como se a própria vida fosse um pêndulo a demarcar a passagem das horas. Mas não podemos nos esquecer dos coelhos brancos e seus relógios de bolso a repetirem insistentemente: “É tarde! É tarde! É tarde, é muito tarde”6. É tarde, mas também não deixa de ser cedo. Quatro anos pode ser um ciclo com início e fim ou um simples recomeçar. Não importa Que dure o tempo Que o tempo se der Se for só rastilho Que também se faça referido Na lembrança que convier Mas já te digo... Tais momentos que trouxer Não serão futuro jazigo E sim festejos bem providos Na memória que enfim couber (REICHERT, 2019, p. 53). Quatro anos de uma jornada em que, muitas vezes, os pés estavam fincados no barro e “a cabeça ciscando nuvens” (REICHERT, 2019, p. 111). Em que foi necessário esvaziar a mente, colocar o dentro para fora e o fora para dentro (REICHERT, 2019). Mais eis que o tempo se finda. Não há mais o que protelar. Eis que os ensaios chegam ao fim. Os preparativos iniciais dão-se por encerrados. O convite foi lançado. A expectativa é grande. A espera, interminável. Há um frio na barriga e esse, talvez, seja um incentivo da coragem, a 6 Uma referência ao coelho da história “As aventuras de Alice no país das maravilhas” (CARROLL, 2002). 45 aplacar os temores. Há um arrepio que passa pela espinha dorsal e se irradia pelo corpo. Há a insegurança. A euforia e o tremor. Um leve espiar por entre as cortinas. Apenas o vazio, a imensidão solitária a se multiplicar. Nada ainda. Ao longe, barulho. Conversas. Risos a demonstrarem que o agito na bilheteria é grande. Serão muitos os expect-actores? Como irão receber a obra? Que críticas serão realizadas? Ou não haverá crítica alguma? As cortinas estão prestes a ser abertas. É hora de respirar fundo. Abandonar a segurança do camarim. Pisar com segurança no palco. Acreditar que tudo dará certo. Afinal, nos preparamos para isso. É hora de se lançar sem medo no infinito. ** Do lado de fora há o agito. De todos os lados, pessoas de diferentes idades, credos, etnias, gêneros vêm em busca da oportunidade de participar. A fila na bilheteria é imensa. É a primeira vez que muitos vêm ao teatro. Aceitaram o convite que lhes foi enviado. Não sabem o que as espera. É como se tateassem no escuro algo de que tanto necessitam. Todos procuram seus lugares. Pouco a pouco, o vazio se preenche. Alguns, até sem lugar ficam. A casa está lotada. Murmúrios cá e lá. Soa o primeiro sinal. Os expect-actores se ajeitam na poltrona. Soa o segundo sinal. As luzes se apagam. Por entre as frestas da cortina, eles percebem uma luminosidade. São pequenos fachos de luz a iluminarem o palco. No cenário a se revelar, apenas alguns objetos soltos, a esmo, no espaço. Há murmúrios de espanto e incompreensão. “Uma breve atenção ao mistério das coisas basta para dissolver o pensamento” (SARDI, 2007b, texto digitado). O silêncio é feito. No espaço ecoa o vazio que se faz pleno de sons. Os intérpretes mediadores distribuem-se. Um flash fotográfico ressoa. No elenco, fazem-se presentes os instrumentistas, bailarinos, cantores, atores, artistas criadores e o domínio técnico de sua arte. Tornam-se estáticos em meio a movimentos invisíveis. Apenas um personagem se move. Os olhos dos expect-actores tornam-se grandes em meio ao breu. A surpresa do acontecer aguça a curiosidade, querem descobrir o que se passa. Um sinal do arauto convida os atores para que tomem suas marcas. Reverenciam Dionísio, Euterpe e Terpsícore. Repassam mentalmente o roteiro. Pedem permissão a Mnemosine e rememorizam seus passos, suas falas, suas deixas e passagens. O convite inicial toma forma. Um facho de luz direciona-se para a tela em branco prenhe de signos à espera do artista pintor e sua paleta de 46 cores. Um livro é desfolhado na memória. Inicia-se o jogo. Uma festa, um símbolo. A potencialização de sentidos. Os musicistas aninham seus instrumentos. Notas em suspensão. O maestro eleva sua batuta com uma das mãos e acaricia a partitura com a outra. A bailarina põe-se na ponta do pé. Quase um flamingo. Barítonos, sopranos, tenores e contraltos preparam o diafragma e potencializam sua voz ao toque da primeira nota musical. Em paralelo, o artista escultor acaricia a matéria-prima, dando forma a ela: “A relação do artista [criador] com sua matéria-prima é estabelecida na tensão entre suas propriedades e sua potencialidade” (SALLES, 2014, p. 60). Um embate que reverte em conhecimento. Uma luz ampla toma conta do espaço cênico. E, com o primeiro movimento de todos os artistas, uma respiração faz-se profunda. Os olhos enchem-se e é quebrada a barreira. Dissipa-se o distanciamento. Artista criador, intérprete mediador e expect-actor dialogam e esticam seus horizontes. As luzes fundem-se, criando uma atmosfera de aurora boreal onde o tempo e o espaço deixam de existir. Uma interpretação hermenêutica e autopoiética. A busca pela compreensão. Um encontro, um sentido de mundo. Verdades? As experiências nutrem de sentido o próprio sentir. A troca. O afeto Que sugere a contemplação compreensiva de todo assistir, ou seja, o jogo ali festejado torna-se a porta de entrada para uma realidade orientada pelo sentido da arte, cabe ao expect-actor, ali sentado em sua própria solidão, ser ultrapassado pelo espetáculo e entregá-la, com o seu assistir, à solicitação do conteúdo anunciado pelo advento da festa (VASCONCELOS, 2013, p. 43). Fim da espera. Soa o terceiro sinal. Abre-se a cortina. 47 3 O ABRIR DAS CORTINAS Figura 8 – No abrir das cortinas, a vida e a arte Artista: Foto de Michael Dantas – palco do teatro Amazonas/BR Fonte: https://www.portalmarcossantos.com.br/2019/07/19/releituras-de-musicais-e-trilhas-sonoras-de-filmes- no-palco-do-teatro-amazonas/ 48 Lentamente, as cortinas se abrem. O palco, pouco a pouco, vai sendo iluminado. Nele, os artistas ocupam seus devidos lugares. A cortina aberta é uma simbologia do começo. Do esconder e mostrar o que deve, pode ou necessita ser visto. A cortina tem a função de ocultar temporariamente o cenário. É o signo material da separação entre a plateia e o palco, A barreira entre o que é olhado e quem o olha, a fronteira entre o que é semiotizável (pode tornar-se signo) e o que não o é (o público). Como a pálpebra para o olho, a cortina protege o palco do olhar; introduz por sua abertura, no mundo oculto, o qual se compõe ao mesmo tempo do que é concretamente visível na cena e do que pode ser imaginado, nos bastidores, com os ‘olhos do espírito’, como diz Hamlet, e portanto numa outra cena (a da fantasia). Toda cortina se abre, assim, para uma segunda cortina, que é ainda mais ‘inabrível’ (inconfessável) por ser invisível, se não como limite dos bastidores, como fronteira para o extracênico, logo para a outra cena (PAVIS, 2008, p. 77). A cortina, com sua presença, fala da própria ausência - “ausência esta constitutiva de todo desejo e de toda representação (teatral ou não). A cortina convoca e revoga o teatro, faz- se denegação: mostra o q