CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO TERRA INDÍGENA ARAÇÁ/RORAIMA: CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES ENVOLVENDO COLETIVIDADES MACUXI Dielci Maria Oliveira Bortolon Lajeado-RS, junho de 2014 Dielci Maria Oliveira Bortolon TERRA INDÍGENA ARAÇÁ/RORAIMA: CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES ENVOLVENDO COLETIVIDADES MACUXI Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento, do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para a obtenção do grau de Mestre em Ambiente e Desenvolvimento. Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando da Silva Laroque Lajeado - RS, junho de 2014 Isto sabemos Todas as coisas estão ligadas Como o sangue Que une uma família... Tudo o que acontece com a Terra, Acontece com os filhos da Terra. O homem não tece a teia da vida; Ele é apenas um fio. Tudo o que faz à teia, Ele faz a si mesmo. TED PERRY, inspirado no Chefe Seattle CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado: TERRA INDÍGENA ARAÇÁ/RORAIMA: CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES ENVOLVENDO COLETIVIDADES MACUXI Elaborada por Dielci Maria Oliveira Bortolon Como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Ambiente e Desenvolvimento COMISSÃO EXAMINADORA: __________________________________________________ Prof. Dr. Luís Fernando da Silva Laroque (Orientador – Centro Universitário Univates) __________________________________________________ Prof.a Dr.a Cíntia Régia Rodrigues (IFP – Instituto Federal do Paraná) __________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz (Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS) __________________________________________________ Prof.a Dr.a Neli Teresinha Galarce Machado (Centro Universitário Univates) Lajeado - RS, junho de 2014 AGRADECIMENTOS * Primeiramente, a Deus por ter me dado sustentação espiritual nos momentos difíceis. * Ao meu companheiro Cesar Loureto, que me apoiou em todos os momentos da pesquisa de campo, pelo amor, carinho e compreensão por esse meu momento acadêmico. * Ao Centro Universitário UNIVATES, ao Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento; especialmente, aos professores, à coordenação e às secretárias pelo apoio enquanto estudante desta Instituição. Por sua vez, aos colegas de curso pelo companheirismo durante todo o mestrado. * Ao meu orientador, Doutor Luís Fernando da Silva Laroque, pelas orientações, pela paciência e dedicação na elaboração desta Dissertação. * Ao Professor Doutor Carlos Alberto Borges da Silva por ter me recomendado ao Programa de Mestrado da UNIVATES. * Em especial, à minha filha, Êmili de Oliveira Bortolon Cardoso, pelo amor e carinho, e ao meu genro, Wilson Reginaldo Cardoso, por ter me orientado no inglês, na correção do projeto de qualificação e na formatação da apresentação de defesa. * Às pessoas que constituem as Comunidades Três Corações, Mangueira, Mutamba, Araçá e Guariba, pelo carinho e aceitação com que fui recebida; aos Tuxauas dessas comunidades pela confiança, que permitiu a realização da pesquisa; em especial, ao Professor Elton Tenente pelas informações que me forneceu. * À professora Doutora Maristela Bortolon de Matos, que sanou dúvidas e me subsidiou com vários acervos bibliográficos sobre o tema. * Em especial, à professora Ana Hilda, que gentilmente me ajudou com as transcrições das entrevistas, e à Francilene Muniz pelas correções e formatação da Dissertação. * Aos meus familiares, principalmente à Elizabeth de Oliveira Lima, à Divania Maria Oliveira Lima, ao Ricardo de Oliveira Bortolon e aos amigos que me acompanharam nesta caminhada; em especial, à Edna Odilair Alves, à Keila Cinara Tomé, à Liliana e Thays Oliveira pela amizade e pelo compartilhamento, em momentos de angústias, de realizações pessoais e acadêmicas. RESUMO Roraima é um dos estados brasileiros com maior quantidade de indígenas, os quais estão distribuídos em diversas etnias. Uma dessas etnias é a Macuxi da Terra Indígena Araçá, objeto deste estudo, localizada no município de Amajari, que está composta pela Comunidade Três Corações, Comunidade Mangueira, Comunidade Mutamba, Comunidade Araçá e Comunidade Guariba. Na Terra Indígena Araçá, vivem Macuxi, Wapixana e Taurepang, bem como não indígenas provenientes de várias regiões brasileiras que estabelecem relações matrimoniais e comerciais com os indígenas. O trabalho tem o objetivo de estudar aspectos históricos culturais, concepções de territorialidade e as relações interétnicas da etnia Macuxi na Terra Indígena Araçá. A pesquisa caracteriza-se por uma abordagem qualitativa, com a utilização de diários de campo, entrevistas semiestruturadas, fontes documentais e bibliográficas, as quais foram analisadas com base em estudos culturais. É relevante destacar que os aspectos históricos envolvendo a Bacia Hidrográfica de Rio Branco incidiram sobre as concepções territoriais Macuxi do século XVIII ao século XXI, acarretando processos de reterritorializações e demarcações de áreas indígenas. Tomando por base a Terra Indígena Araçá e as cinco comunidades que a constituem e recorrendo a categorias como territorialidade, identidade, etnicidade e cultura, o estudo analisa as relações dessas comunidades com a natureza, o manejo dos seus recursos, os contatos interétnicos dos Macuxi com os demais grupos indígenas e a sociedade envolvente, além das reatualizações culturais que ocorrem no espaço da Terra Indígena Araçá. Palavras-chave: Indígenas Macuxi. Territorialidade. Relações interétnicas. Cultura. Terra Indígena Araçá. ABSTRACT Roraima is one of the Brazilian states that have the biggest quantity of indegenous, which are distributed in many ethnicities. One of those ethnicities is the Macuxi from the Indegenous Land Araça, object of this study, located in the Amajari municipality, which is composed by the communities Três Corações, Mangueira, Mutamba, Araçá e Guariba. In the indigenous land Araçá live the Macuxi, Wapixana, Taurepang, and the no indigenous from various Brazilian regions which establishes matrimonial and commercial relations with the indigenous. This work has the aim to study historical and cultural aspects, conceptions of territoriality and the interethinitc relations from the ethnicity Macuxi in the Indigenous Land Araçá. The research was characterized by a qualitative aproach, using a field journal, semistructured interviews, documental and bibliographic sources, analised with base on the cultural studies. It is relevant highlight that these historical aspects involving the Rio Branco watershed, focused on the Macuxi territorial conceptions from the XVIII to XXI century, causing processes of reterritorializations and the demarcation of indigenous areas. Taking the Indigenous Land Araça and the five communities that compose it, the study analises the relations of those communities with the nature, the manegement of their resources, the interethinic contact of the Macuxi with other indigenous groups, the surrounding society and the cultural reactualization that happens on the space of Indigenous Land Araçá. Key-words: Macuxi Indigenous. Territoriality. Interethinic Relations. Culture. Indigenous Land Araçá. LISTA DE ILUSTRAÇÕES LISTA DE FIGURAS Figura 01: Mapa com a divisão política do estado de Roraima.................................17 Figura 02: Mapa com a localização do Forte São Joaquim e Aldeamentos na Bacia do Rio Branco, século XVIII.......................................................................................48 Figura 03: Mapa de Roraima mostrando as Etnorregiões.........................................66 Figura 04: Vegetação da região.................................................................................67 Figura 05: Etnomapa da Terra Indígena Araçá..........................................................70 Figura 06: Etnomapa da Comunidade Três Corações ..............................................80 Figura 07: Comunidade Três Corações.....................................................................81 Figura 08: Comidas e bebidas típicas........................................................................85 Figura 09: Etnomapa da Comunidade Mangueira.....................................................86 Figura 10: Centro Regional de Educação Indígena do Amajari Noêmia Peres.........88 Figura 11: Etnomapa da Comunidade Mutamba.......................................................91 Figura 12: Vista panorâmica da Comunidade Mutamba............................................92 Figura 13: Etnomapa Comunidade Araçá..................................................................96 Figura 14: Barracão, onde ocorrem as assembleias e residências dos Indígenas....................................................................................................................97 Figura 15: Estradas de acesso à Comunidade Guariba...........................................100 Figura 16: Etnomapa da Comunidade Guariba........................................................103 Figura 17: Área de mata queimada para o plantio de roça corte-queima ou roça de coivara......................................................................................................................117 Figura 18: Objetos de palha de buriti e de outras plantas........................................126 Figura 19: Lixeira pública na Comunidade de Três Corações.................................134 Figura 20: Casa no padrão tradicional e casa de alvenaria.....................................136 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Quadro de demarcação de Aldeias Indígenas...........................................72 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS APIRR - Associação dos Povos Indígenas de Roraima CEDI - Centro Ecumênico de Documentação e Informação CIDR - Centro de Informações da Diocese de Roraima CIR - Conselho Indígena de Roraima CREIAMP - Centro Regional de Educação Indígena do Amajari Noêmia Peres FUNAI - Fundação Nacional do Índio FUNASA - Fundação Nacional de Saúde IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INPA - Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia ISA - Instituto Sócio-Ambiental OMIR - Organização das Mulheres Indígenas de Roraima OPIR - Organização dos Professores Indígenas de Roraima PPTAL - Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal PIN - Programa de Integração Nacional SPI - Serviço de Proteção ao Índio SPILTN - Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais SESAI - Secretaria Especial de Saúde Indígena TCLE - Termo de Consentimento Livre Esclarecido TI - Terra Indígena TWM – Sociedade para o Desenvolvimento Comunitário e Qualidade Ambiental (Taurepang, Wapixana, Macuxi) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................16 2 REFERENCIAIS TEÓRICOS E MÉTODO..............................................................24 2.1 Territorialidades Indígenas................................................................................24 2.1.2 Revisitando conceitos de Cultura e Identidade............................................26 2.1.3 Indígenas e Natureza.......................................................................................30 2.2 Método e procedimentos metodológicos........................................................34 2.2.1 Coleta de informações....................................................................................35 2.2.2 Análise dos dados...........................................................................................37 3 TERRITORIALIDADES MACUXI DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI...............39 3.1 Os Macuxi no cenário das frentes expansionistas em territórios da Bacia do RioBranco............................................................................................................39 3.2. Indígenas Macuxi do Vale do Rio Branco em tempos de SPI e FUNAI........56 4 CARACTERIZAÇÃO DAS COMUNIDADES DA TERRA INDÍGENAARAÇÁ.......65 4.1 As Terras Indígenas no Estado de Roraima....................................................65 4.2 Comunidade Três Corações..............................................................................79 4.3 Comunidade Mangueira.....................................................................................85 4.4 Comunidade Mutamba.......................................................................................90 4.5 Comunidade Araçá.............................................................................................95 4.6 Comunidade Guariba.......................................................................................100 5 MITOLOGIA, NATUREZA, MANEJO DE RECURSOS, CONTATOS INTERÉTNICOS E REATUALIZAÇÕES CULTURAIS NA TERRA INDÍGENA ARAÇÁ.....................................................................................................................107 5.1 Mitologia Macuxi e relações com a Natureza................................................107 5.2 Manejo dos recursos naturais pelos Macuxi.................................................115 5.3 Contatos interétnicos dos Macuxi com os demais Indígenas e a comunidade envolvente.........................................................................................127 5.4 Reatualizações culturais na Terra Indígena Araçá........................................131 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................140 REFERÊNCIAS........................................................................................................147 APÊNDICES.............................................................................................................157 ANEXOS..................................................................................................................163 16 1 INTRODUÇÃO No Brasil, os povos indígenas estão expostos aos impactos do Estado Brasileiro que só recentemente passou a adotar políticas que contemplem a diversidade cultural. Nesse sentido, estudos pontuais realizados em comunidades indígenas revelam a fragilidade frente às consequências da destruição de seus territórios, mas também fortalecimentos em decorrência das organizações que passaram a existir e dos processos de lutas em que estão inseridos. Portanto, entender como os povos indígenas se relacionam com o território e a natureza é fundamental para sua sobrevivência e continuidade cultural. De acordo com Silva (2008), Roraima é o Estado brasileiro que tem como características uma das maiores populações indígenas do Brasil. Há, pelo menos, nove povos indígenas e uma população estimada em 41.578 indígenas e distintas etnias espalhadas pelo território. De acordo com a FUNAI (2009), em seu site oficial, as etnias são compostas por: Ingaricô, Macuxi (a maioria), Patamona, Taurepang, Waimiri-Atroari, Wapixana, Wai-Waí, Yanomami e Ye’kuana. Cada uma desenvolveu formas específicas de relacionamento com o meio natural. O Estado de Roraima está dividido politicamente em 15 municípios (Boa Vista, Mucajaí, Caracaraí, Rorainópolis, São João da Baliza, Caroebe, São Luiz do Anauá, Bonfim, Normandia, Alto alegre, Amajari, Pacaraima, Cantá, Iracema e Uiramutã) e, em todos esses municípios, as etnias indígenas se fazem presentes, com maior ou menor incidência (Figura 1). 17 Figura 1 - Mapa Político do Estado de Roraima, 2010. Fonte: Roraima (2010). Esta pesquisa foi realizada, mais precisamente, com a etnia Macuxi, da Terra Indígena Araçá, no município do Amajari, em Roraima, entre as coordenadas 03º 31`06º 57` 52” W; 03º 44`12” N e 61º 15` 20” W. Apresenta uma área de 50.018 hectares em plena savana ou “lavrado”, como é conhecida regionalmente. A referida Terra Indígena é composta por cinco comunidades indígenas: Comunidade Três Corações, Comunidade Mangueira, Comunidade Mutamba, Comunidade Araçá e Comunidade Guariba, que abrigam uma população de 1.847 habitantes, sendo que, em todas elas, há indígenas das etnias Macuxi, Wapixana, Taurepang e também não indígenas que migraram de várias regiões brasileiras e se relacionam 18 etnicamente com os indígenas, principalmente por meio de matrimônio e relações comerciais. A opção pelo termo “indígena”, utilizado neste estudo, foi para designar a diversidade de grupos étnicos que habitam a Terra Indígena Araçá, em detrimento da classificação “índio” que, segundo Paula Caleffi (2003 p. 176), é um termo homogeneizante, pois engloba, em uma única categoria, culturas muito diferentes. Os não indígenas são todos aqueles que não se autoidentificam como índios ou indígenas, independentemente da sua descendência e da identificação deles por terceiros. Portanto, podemos afirmar que a Terra Indígena Araçá se caracteriza por um cenário de relações interétnicas. A Terra Indígena Araçá (BARBOSA; MIRANDA, 2005) está localizada na região de campos, com predominância da vegetação de savanas ou “lavrado”, como é chamada regionalmente. Essa área tem características bem marcantes, com revestimento de gramíneas, ciperáceas e árvores espaças, como o murici, o caimbé, a paricarana. Além dessa vegetação, a região é entrecortada por buritizais, que acompanham os igarapés e pequenos trechos de matas chamadas de “ilhas”, que servem de nicho ecológico para a reprodução de vários animais. O lavrado faz parte do Bioma Amazônico e é considerado um dos ecossistemas que abriga uma imensa biodiversidade, porém encontra-se bastante laterizado, devido às constantes queimadas aplicadas pelo “manejo primitivo”, processo usado pelos indígenas para plantio de roças de subsistência, e pelos fazendeiros para criação extensiva de gado (FREITAS, 1997; BARBOSA et al., 2005; PINHO et al., 2010). Dessa forma, a problemática estudada busca tratar da concepção de territorialidade dos indígenas Macuxi, principalmente na Terra Araçá, e investigar quais são as continuidades e transformações existentes nas coletividades Macuxi. Na tentativa de contemplar a problemática proposta, a hipótese levantada é de que os indígenas da etnia Macuxi, na Terra Indígena Araçá, embora apresentem transformações culturais devido às relações de contato com as outras etnias e sociedades envolventes, mantiveram significativos elementos da cultura. 19 Para tanto, o objetivo geral deste trabalho é estudar aspectos históricos culturais, concepções de territorialidade e as relações interétnicas da etnia Macuxi na Terra Indígena Araçá. Para responder às questões norteadoras desta pesquisa, os objetivos específicos formulados são: a) Buscar informações sobre o processo de ocupação da etnia Macuxi em territórios da Bacia Hidrográfica do Rio Branco; b) Identificar aspectos culturais e as relações interétnicas dos Macuxi com indígenas e não indígenas no decorrer do processo histórico do Vale do Rio Branco; c) Analisar as relações socioculturais Macuxi e as dos demais indígenas na Comunidade Três Corações, Comunidade Mangueira, Comunidade Mutamba, Comunidade Araçá e Comunidade Guariba da Terra Indígena Araçá; d) Compreender a ocupação territorial das Comunidades Macuxi da Terra Indígena Araçá, contatos interétnicos, relações com a natureza e as transformações e continuidades culturais. As justificativas para a realização deste trabalho devem-se, inicialmente, às experiências vividas com os indígenas Macuxi e demais grupos étnicos indígenas ou não durante os quatro anos como gestora pública na área educacional do município de Amajari, bem como da Terra Indígena Araçá. Durante nossas idas e vindas percorrendo as comunidades, observando a paisagem natural com seus diferentes ecossistemas, ora lavrado, ora ilhas de matas, estas muitas vezes sendo tragadas pelo fogo, chamou nossa atenção a necessidade de melhor compreender as vivências dos indígenas que ocupam o território, suas práticas culturais e as relações que estabelecem com a natureza, por exemplo. As questões de conflitos entre indígenas e não indígenas no Estado de Roraima sempre estiveram ligadas à posse de terra e controle do território. Nesse sentido, nos apoiamos nos estudos de Rafestin (1993), Andrade (1995), Martins (1997), Little (2002) e Souza (2005), que concebem o território como um espaço construído e onde ocorrem as relações de poder. Essas relações sociais entre si e com a natureza, expressas em dimensões econômicas, políticas e culturais, provocam a interação entre os distintos grupos étnicos e se caracterizam no produto 20 da territorialidade. Vale reforçar, segundo os autores mencionados, que as concepções de territorialidade indígena tendem a ser dinâmicas, pois os elementos e suas significações passam por mudanças no decorrer do tempo. Salienta-se ainda que, ao abordarmos territorialidades indígenas, estamos também tratando de diferentes sistemas culturais e identitários. Há estudos culturais de diversos autores nas últimas décadas contemplando identidade, etnicidade, cultura, fronteiras étnicas, cosmologia indígena e tradição. A título de ilustração, apontamos autores como Fredrik Barth ([1969] 2000), Oliveira (1976), Seeger e Castro (1979), Carneiro da Cunha (1986), Ramos (1986), Paul Elliot Little (1994), Martins (1997), Laraia (2009), entre outros. As relações da etnia Macuxi com a natureza, neste trabalho, são analisadas considerando-se o perspectivismo ameríndio proposto por Eduardo Viveiros de Castro (2007, texto digital), isto é, como estes agentes sociais veem o lócus onde vivem e como o percebem do ponto de vista das dimensões de exterioridade. Nesse sentido sobre a percepção indígena em relação à natureza, temos o seguinte: [...] Se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado originário de co-acessibilidade entre os humanos e animais. As narrativas míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextricavelmente atributos humanos e não- humanos, em um contexto comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual. (CASTRO, 2007, texto digital). Nas cosmologias indígenas, os mitos perpassam a cultura e a natureza, sendo que a fronteira entre o mundo humano e não humano é muito tênue. Os animais, por exemplo, muitas vezes são espécies que perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Para muitas sociedades indígenas, os animais são ex-humanos e não os humanos são ex-animais, o que dá ideia de múltiplas posições subjetivas, que Viveiros de Castro denomina como relativismo cultural ameríndio. Portanto, as relações com a natureza da etnia Macuxi que vive na Terra Indígena Araçá é de reciprocidade. Além deste, temos outros autores como Nádia Farage (1986), com sua tese de doutorado intitulada “As Muralhas dos Sertões”, que trata dos povos indígenas no Rio Branco e sua Colonização. Nesse trabalho, a autora traz todo um referencial sobre a mitologia dos povos indígenas Macuxi, Wapixana, Taurepang, entre outros, com base nos relatos de viajantes e missionários que estiveram nesse território. Theodor Koch-Grünberg ([1911-1913] 21 2006) trata dos indígenas Macuxi e demais etnias, bem como colheu informações sobre os mitos dos povos indígenas do Rio Branco. Paulo Santilli (2001) escreveu a obra “Pemogon Patá: Território Macuxi, rotas de conflito”. Nesse trabalho, o autor dá ênfase aos ancestrais mitológicos Macunaima e Exikiráng e o monte Roraima, que fala da origem do cultivo que marca a humanidade e sua diferenciação étnica. Salienta-se também que autores como Henrique Leff (2002, 2004), José Augusto Pádua (2010) e Darrell A. Posey (1986) contribuíram com seus estudos sobre meio ambiente e natureza para analisarmos como isto acontece com os povos indígenas em geral e os Macuxi em particular. Especificamente sobre a Terra Indígena Araçá, temos as dissertações de mestrado de Rachel Camargo de Pinho, “Quintais Agroflorestais Indígenas em área de Savana (Lavrado) na Terra Indígena Araçá” (2008); de Inayé Uilana Perez (2010), “Uso dos recursos naturais vegetais na comunidade Indígena Araçá, Roraima”, dando ênfase à variedade de recursos florestais vegetais coletados nas ilhas de matas e seu uso na alimentação; além da Tese de Doutorado de Maristela Bortolon de Matos, “As Culturas Indígenas e a Gestão das Escolas da comunidade Guariba, RR: Uma Etnografia” (2013). É importante informar que o Programa de Pós-Graduação Ambiente e Desenvolvimento, por meio da linha de Pesquisa Espaço e Problemas Socioambientais, busca analisar relações entre homem e meio ambiente. Dessa forma, partindo da realidade dos indígenas Macuxi da Terra Indígena Araçá, esta pesquisa tem o intuito de contribuir com informações para a academia, para a sociedade indígena e a sociedade em geral, por ter contemplado questões envolvendo processos históricos e culturais, territorialidades indígenas, relações das coletividades Macuxi com a natureza e manejo dos seus recursos, bem como relações interétnicas e reatualizações culturais. A pesquisa teve uma abordagem qualitativa e de conteúdo com a utilização de diários de campo, entrevistas semiestruturadas, fontes documentais e bibliográficas, as quais foram analisadas com base em estudos culturais, e se propôs compreender e analisar aspectos históricos, culturais, territoriais e interétnicos da etnia Macuxi na Terra Indígena Araçá. Sendo assim, mediante uma abordagem fenomenológica, investigamos os elementos internos e externos que constituem o dia a dia dos indígenas nas cinco comunidades que compõem a 22 referida terra indígena. A Dissertação está dividida em cinco capítulos. Inicialmente, no capítulo um, temos a introdução, que apresenta a caracterização da temática, a problemática e hipótese da pesquisa, os objetivos e a justificativa para o trabalho. O capítulo dois divide-se em dois itens. O primeiro apresenta o marco teórico, contendo os principais autores e obras consultadas que serviram de base para a análise e discussão dos dados coletados. Trata também uma compreensão dos conceitos de territorialidade como espaço de vivência indígena, bem como o conceito de cultura e identidade. É nesse espaço que ocorrem as relações sociais entre os diferentes grupos étnicos. É também o espaço em que conflitos de natureza políticos, econômicos e socioculturais acontecem reforçando as identidades. O segundo item apresenta o tipo de pesquisa, o método, a amostra do público-alvo, os instrumentos utilizados, bem como a análise das informações colhidas por meio dos instrumentos. O capítulo três igualmente encontra-se dividido em dois itens. O primeiro deles contém uma síntese histórica do processo de povoamento da região hoje chamada Estado de Roraima pela etnia Macuxi, dando ênfase às diferentes relações de contatos com outros grupos étnicos e a sociedade nacional. O segundo item integra uma abordagem sobre as políticas indigenistas do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), demonstrando como essas agências atuaram em relação aos Indígenas Macuxi do vale do Rio Branco. Essa síntese compreende o período que vai, mais ou menos, do Século XVIII até os dias atuais. O capítulo quatro encontra-se divido em seis itens, caracterizando inicialmente, de forma geral, a Terra Indígena Araçá e, logo a seguir, apresentando a geografia, os recursos naturais, a economia, a cultura e as relações interétnicas no que se refere aos Macuxi, bem como os demais grupos indígenas ou não indígenas na Comunidade Três Corações, Comunidade Mangueira, Comunidade Mutamba, Comunidade Araçá e Comunidade Guariba. O capitulo cinco divide-se em quatro itens. O primeiro apresenta e analisa as tradições cultuais, as crenças e mitos que ainda se fazem presentes e suas relações com a natureza, bem como as transformações e continuidades na Terra Indígena 23 Araçá. O segundo item aborda as práticas de manejo dos recursos naturais pelos indígenas Macuxi, bem como a reciprocidade com os elementos da natureza. No terceiro item, apresentam-se os contatos interétnicos dos indígenas Macuxi com os demais indígenas e a comunidade envolvente. No quarto item do capítulo, enfatizam-se as reatualizações culturais na Terra Indígena Araçá, demonstrando, por um lado, se existem transformações, por outro, continuidade de elementos da cultura Macuxi, em que, mesmo em situações de intenso contato, as identidades são reafirmadas. Por último, encontram-se as Considerações Finais, que apontam os resultados obtidos na pesquisa e as transformações e permanências de elementos culturais nas comunidades da Terra Indígena Araçá. 24 2 REFERENCIAL TEÓRICO E MÉTODO Este capítulo subdivide-se em duas partes: na primeira apresentamos os aportes teóricos sobre territorialidades indígenas, cultura e identidade, bem como relações entre sociedades indígenas e natureza. Na segunda parte, tratamos da metodologia utilizada na busca de alcançar os objetivos, a coleta de informações e a maneira como foram analisados os dados. 2.1 Territorialidades Indígenas A respeito de territorialidade, a partir da perspectiva indígena, iniciamos com Paulo E. Little (1994) e Claude Raffestin (1993), que utilizam os termos espaço, memória e migração para caracterizar o espaço de vivência de determinados grupos tradicionais. Os referidos autores dão ênfase à “memória coletiva”. O primeiro deles, por exemplo, salienta que essa memória “é, sem dúvida, uma das maneiras mais importantes pelas quais os povos se localizam num espaço geográfico”, onde também são incorporadas dimensões simbólicas e indentitárias na relação do grupo com seu espaço de vivência, dando profundidade e consistência temporal ao território (LITTLE, 1994, p. 6). Nesse sentido, Território pode ser compreendido como o lugar onde as relações sociais acontecem, o espaço gerador de raízes e identidade entre os indivíduos. Ao referir-se a uma população primitiva, Pierre Clastres (1976, p. 199) afirma “que esta estar constituída por um conjunto de indivíduos y cada uno reconoce y reivindica, precisamente, su pertinência al conjunto [...] la gente que 25 pertence a la misma comunidade vive junta em el mismo sitie”. Portanto, é nesse lugar que o grupo se autoafirma, que passa a ser compreendido em seu território, base de sua história, cultura e sustentação. Compartilhando da mesma ideia, Alcida Rita Ramos (1986, p. 19-20) afirma: Para as sociedades indígenas, por exemplo, o território grupal está ligado a uma história cultural na qual cada sítio de aldeia está historicamente vinculado a seus habitantes, de modo que o passar do tempo não apaga o conhecimento dos movimentos do grupo, desde que se mantenha viva a memória dos ancestrais. Isso significa que o modo como cada grupo constrói sua memória coletiva dependeria, em parte, da história de migrações que o grupo realizou no passado. Essas migrações, sejam elas por escolhas ou por processos traumáticos de expulsão, vão sempre se referir à memória espacial que caracteriza um lugar que nem sempre vai ser o lugar de origem do grupo, mas que pode se modificar para atender as novas circunstâncias de adaptação e movimento. Tais situações aplicam- se às migrações da etnia Macuxi. Nesse sentido, o direito à terra é condição essencial a essa sobrevivência, tanto no aspecto físico quanto no étnico-cultural (OLIVEIRA FILHO, 1983; ALMEIDA, 1984; SEEGER, CASTRO, 1979). Para esses autores, a relação que os povos indígenas têm com a terra e os recursos naturais existentes vão além da subsistência. Para eles, existe um valor simbólico fundamental no uso da matéria prima, que se diferencia de acordo com cada grupo. Os autores apontam como exemplo os caramujos utilizados pelos grupos do Alto Xingu na confecção de colares; o buriti, substância básica dos cerimoniais Gê; assim como a palha do buriti utilizada na cobertura da moradia dos grupos Macuxi. De acordo ainda com Anthony Seeger e Eduardo Viveiros de Castro (1979), se existem diferenças no uso da terra; também haverá uma percepção desses grupos com relação ao território tribal. “Para uns a delimitação das fronteiras geográficas do território era algo muito importante, já para outros essas mesmas fronteiras significavam movimento” (SEEGER; CATRO, 1979, p. 104-105). Dessa forma, a terra para os grupos indígenas não era pensada como mercadoria, como propriedade individual, mas como objeto de uso coletivo. No entanto, os autores chamam a atenção para os conceitos de terra e território que passam a 26 homogeneizar-se a partir da situação de contato e da dominação de outra cultura. Esse fato acontece devido ao processo de pressão das frentes de expansão neobrasileira, que expulsaram e ainda expulsam os grupos indígenas de suas terras, assentando-os em outros espaços improdutivos e fazendo com que esses se adaptem a novas formas de subsistência (SEEGER; CASTRO, 1979; MARTINS, 1997). Sobre a limitação dos territórios indígenas, Seeger e Castro destacam dois efeitos gerais, conforme seguem: 1 - Decadência das formas econômico-sociais muito apoiadas na caça e na coleta, em favor da pesca e da agricultura. Isto deriva da limitação das áreas exploráveis pelos grupos; da menor capacidade de auto-regeneração da caça terrestre em áreas cercadas de pastagens e superpovoadas; da dispersão característica das espécies animais e vegetais da floresta amazônica. [...]. 2 - Produção “espontânea” de uma concepção indígena da terra como espaço geométrico homogêneo, fechado por fronteiras definidas pelo direito nacional, e que distingue duas identidades étnicas em oposição: os brancos (fora) e os índios (dentro). [...]. (SEEGER; CASTRO, 1979, p. 106). Essa realidade foi constatada no território onde se localiza a Terra Indígena Araçá, objeto de estudo desta pesquisa. A referida área foi demarcada em ilhas (pequenas porções de matas) que servem para delimitar o território de cada comunidade, e esta em relação às áreas de fazendas que se encontram em seu entorno. Isso vem corroborar os dois “efeitos gerais” de limites expostos por Seeger e Castro (1979). 2.1.2 Revisitando conceitos de Cultura e Identidade Desde a chegada dos primeiros colonizadores europeus ao Brasil, já existiam povos indígenas no território com distintas características culturais. Apesar de vários desses povos terem sido dizimados, muitos grupos indígenas sobreviveram, e seus descendentes encontram-se espalhados pelo território brasileiro, dentre os quais podemos apontar o grupo Indígena da etnia Macuxi, “tribo das mais numerosas”, que habitam os campos, as florestas e savanas de Roraima (EGGERATH, 1924 p. 32). Nesse contexto, independentemente das relações que esses grupos estabelecem com a sociedade envolvente, é de grande importância a preservação 27 da cultura e da identidade como pré-requisito de constituição e sobrevivência desses povos. Para tanto, faz-se necessário que os conhecimentos, as tradições e a história continuem a ser repassados aos seus descendentes como forma de perpetuação para que os povos indígenas continuem com a manutenção da vida e do meio natural em que vivem (FERNANDES NETO, 2003). No que se refere à concepção de cultura, utilizando-nos do conceito elaborado por Edward Tylor (1832-1917), apud Roque de Barros Laraia (2009), temos: Cultura tomada em seu amplo sentido etnográfico é um todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade (LARAIA, 2009, p. 25). Ainda sobre cultura, Laraia (2009, p. 19-20) reforça afirmando que “o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos de endoculturação”. Nesse caso, a aprendizagem depende do processo de comunicação entre os indivíduos, sem o qual seria impossível a transmissão cultural. Sendo assim, a cultura é um processo de acúmulo de experiências diversas transmitidas pela comunicação. É possível salientar que a diversidade cultural pode ser vital para a sobrevivência em longo prazo da humanidade e que a preservação das culturas é de grande importância para a sobrevivência e a conservação das espécies e dos ecossistemas, tanto humanos como não humanos, para a vida em geral. Relacionados à identidade étnica, nos apoiamos em estudos de Fredrik Barth ([1969] 2000), que considera que a identidade étnica não pode ter uma concepção estática, mas, sim, uma concepção dinâmica que pode ser construída a partir das interações dos grupos sociais, estabelecendo limites e definindo os grupos que se integram ou não. No entanto, Barth afirma que a interação dentro desses sistemas não leva à sua destruição pela mudança ou pela dita aculturação, ou seja, “as diferenças culturais podem persistir apesar do contato interétnico e da interdependência entre etnias” (BARTH, [1969] 2000, p. 26). 28 Nesse contexto, Fredrik Barth ([1969] 2000, p. 27), utilizando-se dos estudos antropológicos, define os grupos étnicos em quatro pontos, a saber: 1) em grande medida, se autoperpetua do ponto de vista biológico; 2) compartilha valores culturais fundamentais, realizados de modo patentemente unitário em determinadas formas culturais; 3) constitui um campo de comunicação e interação; 4) tem um conjunto de membros que se identificam e são identificados por outros, como constituindo uma categoria que pode ser distinguida de outras categorias da mesma ordem. No entanto, o autor faz uma ressalva sobre essa definição antropológica, dizendo que “a forma como esta foi formulada impede a compreensão dos fenômenos dos grupos étnicos e seu lugar na sociedade e na cultura humana” (BARTH, [1969] 2000, p. 28). Alega que a antropologia se utiliza de modelos prontos, como base empírica, que determinam quais fatores são importantes para classificar a origem, a organização e a função de qualquer grupo social. Fredrik Barth, bem como outros autores posteriores a ele que estudam a etnicidade enfatizam não existirem grupos étnicos com uma tradição cultural homogênea e vivendo em completo isolamento. Essa ideia corrobora a maioria das pesquisas na área das ciências sociais sobre os povos indígenas, os quais, até algum tempo atrás, eram estudados apenas nos aspectos socioculturais, como se fossem isolados e independentes. As reflexões feitas levavam em consideração as relações mantidas com o ambiente social e econômico em seu entorno. Pouca atenção foi dada nas formas como os povos indígenas se percebem, bem como percebem os outros. Barth ([1969] 2000) salienta que é preciso atentar para os laços de pertencimento étnico. Se um grupo mantém sua identidade quando seus membros interagem com outros, disso decorre a existência de critérios para determinação do pertencimento, assim como as maneiras de assinalar este pertencimento ou exclusão. [...] A identificação de outra pessoa como membro de um mesmo grupo étnico implica compartilhamento de critérios de avaliação e julgamento. Ou seja, é pressuposto que ambos estejam basicamente “jogando o mesmo jogo”, e isso significa que há entre eles um potencial para diversificação e expansão de suas relações sociais, de modo a eventualmente cobrir todos os diferentes setores e domínio de atividades. (BARTH, [1969] 2000, p. 34). 29 Quando o referido autor trata do pertencimento ao grupo, podemos exemplificar os indígenas que habitam a terra indígena Araçá, que têm forte identidade étnica quando se denominam Macuxi, Wapixana ou Taurepang, mesmo havendo uma relação de convivência permanente entre eles. Isso se percebe nas assembleias, nas quais presenciamos os indígenas se apresentando a outros com linguagem de sua etnia, fluentes ou não na língua. Nos discursos desses grupos indígenas da Terra Indígena Araçá, são bem visíveis as “fronteiras étnicas”, mostrando que estas não desaparecem apesar da movimentação de pessoas que as atravessam (BARTH, [1969] 2000). De acordo com o referido autor, quando um grupo social adota elementos culturais de outro grupo, como é o caso da língua, ou mesmo, da religião, estes constituem aspectos que devem ser pensados em termos de atualização cultural, pois os significados não são os mesmos. Adotar alguns desses elementos não significa que o grupo em contato, no caso os Macuxi, estão deixando de perceber ou de ser eles mesmos. As diferenças culturais continuam a existir, mesmo depois do contato e da convivência entre esses grupos. O contato interétnico serve de base para redefinir a identidade do grupo, o que ele define como fronteiras sociais e culturais. Essas fronteiras, conforme Barth ([1969] 2000), são processos estabelecidos na interação dos grupos e servem para atualizar e revalorizar os conceitos, as crenças e representações culturais. Barth ancora suas noções de identidade nas dimensões de grupo, interação, organização social e na dimensão processual. Nesse contexto, a cultura e a identidade de um grupo são definidas pelas representações simbólicas, interesses comuns, sentimentos de pertencer, nacionalidade, padrões comportamentais, preservação da língua e reivindicações sociais, políticas, religiosas e econômicas. Esses elementos dão legitimidade à cultura e à identidade de um grupo. Ao tratarmos sobre os aspectos culturais e sociais, particularmente sobre os Macuxi, pretendemos compreender as especificidades que os diferenciam dos não índios, para, a partir disso, entender como se constitui a identidade étnica em relação às outras etnias e a uma parcela da sociedade envolvente que habitam no mesmo território. 30 Segundo Paulo Santilli (2001), os indígenas Macuxi têm como habitat a área chamada Circum-Roraima, que compreende as vertentes meridionais do Monte Roraima, as savanas e campos, indo até a cabeceira dos rios Branco e Rupununi, na Guiana Inglesa. Segundo Luiz Aimberé Soares de Freitas (2009), se classificam em: Macuxi do lavrado (Romoko) e Macuxi das serras (Vi‘rikó). Falam a mesma língua, porém alguns autores como Nádia Farage (1991) e Paulo Santilli (2001) relatam que, a partir do século XX, a língua do povo Macuxi vem sofrendo reatualizações em função do contato com outras etnias e a sociedade envolvente. Como foram relatados no início desse trabalho, os Macuxi são indígenas originários da bacia do Orinoco, que migraram para Roraima devido aos conflitos intertribais e, depois, devido ao contato com europeus (espanhóis, portugueses e ingleses) que adentraram nos territórios indígenas visando escravizar esses povos (AMODIA, PIRA, 1985; OLIVEIRA, 2003; DESTRO, 2006). No entanto, os indígenas Macuxi eram considerados “hostis” por outras etnias, pois, conforme iam avançando pela Bacia do Orinoco, expulsavam e matavam outros povos com o objetivo de se fixarem no território. Nessas guerras intertribais, algumas etnias foram dizimadas e, dentre elas, estão os Purucotó, Sapará e Paravilhana. Os poucos que sobraram dessas etnias foram aceitos e passaram a viver com etnia Macuxi. Já os Wapixana foram os que mais sobreviveram aos ataques dos Macuxi (SAMPAIO, 1872; CIDR, 1990). Nesse movimento migratório e de guerras, os indígenas Macuxi foram se fortalecendo com a ajuda dos Taurepang, que lutaram lado a lado e, posteriormente, se separaram. Estes últimos se firmaram como povo indígena e, nessa relação de contato com diferentes povos, os Macuxi foram atualizando alguns de seus elementos culturais e recebendo novos elementos, os quais acabaram dando nova face ao ethos tribal, mas os significados a estes elementos continuaram a ser Macuxi. 2.1.3 Indígenas e Natureza As relações sociais entre sociedade e natureza, na origem cosmológica indígena, estão na forma como os indígenas pensam as coisas da natureza e o que a difere da forma ocidental (CASTRO, 2007). 31 Portanto, a relação que os indígenas Macuxi - que vivem na terra Indígena Araçá - têm com o ambiente se baseia na agricultura de subsistência e no mundo natural; sempre se colocaram dependentes das condições ambientais, tendo o meio ambiente na sua cosmovisão (SILVA, 2005). Para esses povos, a natureza e seus elementos são místicos e sagrados, pois desenvolveram modelos de sistemas de conhecimentos que interpretam a natureza e definem as regras sociais de uso e apropriação de seus recursos (LEFF, 2009). Na cosmovisão Macuxi, o universo é composto de três planos sobrepostos no espaço, que se encontram na linha do horizonte (SANTILI, 2002). O plano superior, denominado Kapragon, é habitado por diversos tipos de seres (corpos celestes e animais alados), que vivem iguais aos humanos: da caça, da agricultura e da pesca. O plano intermediário se caracteriza como sendo a superfície terrestre onde vivemos. Abaixo da superfície há um plano subterrâneo, habitado pelos Wanabaricon, seres semelhantes aos humanos, porém de pequena estatura, que plantam roças, caçam, pescam e constroem aldeias. No plano intermediário habitam os humanos e animais, porém, nesse plano, habitam também mais duas classes de seres: os Omá:kon e os Makoi1. A distinção entre essas duas classes parece ter como critério básico o lugar habitado por cada uma delas. Assim, a categoria Omá:kon habita as serras e as matas. Já os seres Makoi habitam o meio aquático (cachoeiras e poços profundos). (FUNAI, 2009, texto digital). A visão mítica dos indígenas Macuxi pode ser explicada por meio do “perspectivismo cosmológico” de Eduardo Viveiros de Castro (2007), que conceitua como sendo a noção de que o mundo é povoado de um número indefinidamente grande de espécies de seres dotados de consciência e cultura. Para os Xamãs, significa a forma de como se vê a partir de perspectivas diversas de determinado ser na sua forma humana e animal. Diante do perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro, podemos destacar, como exemplo, as diferentes formas (de animais) dadas pelos indígenas Macuxi ao “canaimé”2 (figura mitológica dos povos do rio Branco 1 Omá:kon – seres de aparência diversa, marcadamente selvagem ou anti-social. Sua aparência se define a de animal de caça, embora sejam eles os caçadores. Makói – se manifestam sobre uma gama de variedades de cobras aquáticas. São considerados os seres mais nefastos aos homens, atraindo-os e devorando-os (SANTILLI, 2004). 2 Canaimé ou Kanaimé são espíritos opressores e violentos que fazem parte da mitologia dos índios do nordeste de Roraima (FARAGE, 1991; SILVA, 1996; SOUZA, 1998; KOCHE GRÜNBERG, 2006). 32 que encarna em si a maioria dos medos culturais) e como esse mito influencia o imaginário desses povos (FARAGE, 1991; SILVA, 1996; SOUZA, 1998; KOCHE GRÜNBERG, 2006). Por meio de observações feitas e registradas no diário de campo, foi constatado que o mito do canaimé está muito presente no imaginário dos indígenas Macuxi e das outras etnias que habitam a Terra Indígena Araçá. Como afirma Jean Pierre Vernant (1992, p. 204), o mito tem a função de “coesão social, de unidade funcional do grupo”, de forma que este é transmitido de geração em geração. Ao tratar dos saberes dos povos indígenas sobre a natureza, Eduardo Viveiros de Castro (2007, texto digital) diz que estes são “naturalmente ou culturalmente ecológicos como estar no ceio da ecologia moderna”. No entanto, o autor chama a atenção para o fato de que a noção de “ambiente supõe sempre um ambiente e que todo ambiente é ambiente de um organismo”. Em vista disto, o ecossistema é uma abstração relativa onde coabitam diversos sujeitos nos múltiplos sujeitos, ou seja, coexistem diferentes ecossistemas em superposição. Sendo assim, a situação de contato permanente com o não indígena e o crescimento da população são fatores que vêm trazendo transformações ao meio natural da região (BARBOSA et al., 2004; PINHO et al., 2010; PEREZ, 2010). Este fato foi observado nas cinco comunidades que compõem a Terra Indígena Araçá com relação à preservação do ambiente. Nas três comunidades (Mutamba, Araçá e Guariba), por estarem mais afastadas das principais vias de acesso à BR 174 e RR 203, observa-se que o espaço natural é de livre acesso de todos; não se veem delimitações entre as casas, e os espaços são abertos. Quando um espaço é cercado, geralmente com arame farpado, que serve apenas para barrar a entrada do gado, pois, nesses lugares, sempre há algum tipo de planta cultivada. Paulo Santilli (2001, p. 117-118) reforça a afirmação, dizendo que “tais extensões de terrenos entre as aldeias, com efeito, não são objeto de apropriação, quer individual, familiar ou comunal, mas sim territórios passíveis de exploração e coletiva por parte de todas as comunidades indígenas”. Por sua vez, nas 33 comunidades Três Corações e Mangueira, já existem delimitações nos quintais com cercas de arame, demonstrando modalidades de propriedade privada. Das cinco Comunidades indígenas, a Comunidade Três Corações é a que mais sofre com o processo de degradação ambiental em função do contato com a sociedade envolvente. Para explicar as transformações do meio natural que vêm ocorrendo na Terra Indígena Araçá, nos apoiaremos nos estudos da etnobiologia, a qual tem a finalidade de estudar o papel da natureza no sistema de crenças e de adaptações desses grupos a determinados ambientes (POSEY, 1987). No entanto, este mesmo autor explica que nem todas as crenças e conhecimentos de fenômenos naturais em estudo coincidirão com o pensamento dos não indígenas, por isso a necessidade de que os dados devam ser registrados em sua totalidade, com maior cuidado. Segundo Darrell A. Posey (1987), três fatores deverão ser observados: Alguns conceitos indígenas podem gerar novas hipóteses a serem testadas; Algumas ideias, não possíveis de serem analisadas, devem ser arquivadas; Algumas crenças, entretanto, por mais ilógicas e absurdas que possam parecer, podem vir a demonstrar seu papel de mecanismos sociais para regular o consumo de alimentos ou para a manutenção do equilíbrio ecológico. (POSEY, 1987, p. 16). Aqui cabe enfatizar, contudo, que a etnobiologia não é tão somente uma metodologia, mas, sim, igualmente uma filosofia. O princípio motivador desta é estabelecer uma ponte de compreensão cultural entre distintas culturas. Sendo assim, o ser humano, como os demais seres vivos, mantém com o meio no qual está inserido uma relação interativa condicionada pela necessidade de sobrevivência e permanência enquanto espécie, de modo que a particularidade que o torna diferente das demais é a sua capacidade de ação "consciente", por conseguinte cultural, no processo de intervenção ambiental. (REIGOTA, 2001). Portanto, compreender a cultura de um povo (grupo, etnia...) permite alcançar a construção do conhecimento ambiental como forma de expressar a percepção coletiva do meio natural, sem, entretanto, menosprezar suas particularidades. 34 2.2 Método e procedimentos metodológicos O trabalho foi desenvolvido com a utilização de pesquisa bibliográfica, documental e pesquisa de campo, visto que a realidade social inerente à relação dos Indígenas Macuxi com sua continuidade e transformações culturais deve ser deslindada, considerando-se as vivências do próprio grupo, isto é, pela observação sobre as dinâmicas indígenas em sua fluidez cotidiana. Entende-se que é fundamental trabalhar a partir das informações obtidas mediante a pesquisa de campo, pois cada comunidade indígena Macuxi que utiliza uma determinada área territorial poderá ou não ter uma visão diferenciada do significado do termo natureza, ou mesmo, suas percepções em relação a este. Segundo Antonio Carlos Gil (2002), a pesquisa de campo apresenta algumas vantagens como: (a) realizar-se no lugar onde ocorre o fenômeno, o que pressupõe resultados mais fidedignos; (b) não exige equipamentos especiais para a coleta de dados; portanto, exige todo um empenho do pesquisador em relação ao objeto pesquisado; (c) sendo maior o nível de participação do pesquisador, maior será a probabilidade de os sujeitos darem respostas mais confiáveis. Nesse sentido, a partir de instrumentos, como entrevistas semiestruturadas, interpretação das falas e observações dos hábitos e culturas nas comunidades Macuxi, registrados no diário de campo, o intento será estudar as transformações e a continuidade relacionadas a elementos culturais da Terra Indígena Araçá. A intenção é tratar a temática em estudo de forma a ser contextualizada no tempo e no espaço, valorizando as coletividades indígenas no que se refere ao universo humano e não humano nas comunidades. O ideal seria o emprego de “métodos” e não “um método” em particular de análise, de forma a ampliar os horizontes na obtenção de respostas. Portanto, daremos preferência ao método fenomenológico, por se caracterizar em estudos que priorizam exclusivamente a descrição e interpretação do fenômeno (TRIVIÑOS, 2001). Devido à sua natureza “neutra”, não sendo nem dedutivo nem indutivo, direcionaremos nosso foco à descrição direta da experiência tal como descrita pelo ator (GIL, 1991). Sendo a realidade construída socialmente, os atores aqui se tornam reconhecidamente importantes no processo de construção e interpretação do conhecimento e de suas 35 realidades. Como afirma Augusto Nibaldo S. Triviños (2001, p. 95), “a fenomenologia, entretanto, observa e interpreta o fenômeno à luz dos significados [...] considerando os aspectos culturais e os valores que as pessoas destacam na percepção do fenômeno em estudo”. Para a explicação do problema investigado, também foi utilizada a pesquisa bibliográfica e documental, a qual certamente teve importância na colaboração da busca de respostas ao problema da pesquisa. Nesse sentido, José Carlos Köche (1997, p. 122) reforça que o objetivo da pesquisa bibliográfica é “conhecer e analisar as principais contribuições teóricas existentes sobre um determinado tema ou problema, tornando-se instrumento indispensável a qualquer tipo de pesquisa”. Nesse tipo de pesquisa, a principal vantagem é permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos mais amplo, caso se fizesse uma pesquisa direta. Dado ao seu caráter, o estudo utiliza-se de uma metodologia qualitativa, pressupondo o entendimento da dinâmica dos imaginários dos agentes sociais aqui destacados, pois entendemos que existe uma relação dinâmica entre a realidade social construída e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo subjetivo e o objetivo, assim como a subjetividade do ator social, que não poderia ser traduzida em números (TRIVIÑO, 2001). Nesse sentido, a investigação qualitativa da interpretação dos fenômenos é a mais apropriada como caminho para se chegar aos resultados. Ouvir, refletir e escrever são recursos metodológicos importantes para esta pesquisa, uma vez que as palavras ditas permitirão desvelar o conhecimento sobre o meio natural a partir dos indígenas Macuxi e como estes se relacionam com o território e a natureza. Trata-se de uma postura científica para perceber as singularidades que se escondem nos comportamentos dos agentes sociais na relação homem / natureza. 2.2.1 Coleta das informações Por se tratar de uma pesquisa qualitativa e por não necessitar se apoiar na estatística para determinar o tamanho da amostra, no caso desta pesquisa, a amostra foi fixada, de certo modo, arbitrariamente e levando-se em consideração indivíduos com diferentes características (idade, posição, sexo). (TRIVIÑOS, 2001). A coleta de dados ocorreu nas cinco comunidades que compõem a Terra Indígena 36 Araçá (Três Corações, Araçá, Mutamba, Mangueira e Guariba), localizada no município de Amajari, ao Norte do Estado de Roraima. Segundo dados da FUNASA (2012), a referida terra indígena tem um quantitativo populacional de 1.847 habitantes, dos quais 1.069 são da etnia Macuxi e o restante está distribuído entre as etnias Wapixanas e Taurepang (ANEXOS B, C, D, E, F). Sendo a etnia Macuxi em maior número na região, a elegemos como população-alvo desta pesquisa. Porém, em alguns casos, participaram também indígenas da etnia Wapixana, principalmente as lideranças políticas (Tuxauas) e lideranças espirituais (pajés), embora, em algumas comunidades, essas funções são exercidas pela mesma pessoa. Para tanto, definimos como amostragem 20 indivíduos, sendo 18 indígenas e 2 não indígenas, distribuídos entre as cinco comunidades, compondo a seguinte estrutura: 05 Lideranças Políticas (Tuxaua), 03 lideranças espirituais, 05 anciães (tanto homem como mulher), 02 professores, 02 adultos ou jovens e 01 Agente de Saúde da FUNASA (indígena). Foram envolvidos na coleta de dados pessoas não indígenas: 01 Gestor Público Municipal e 01 Agente de Saúde Municipal. Quanto aos instrumentos empregados para a coleta de dados, foram utilizados diários de campo, imagens fotográficas e entrevistas recorrendo a um roteiro semiestruturado de questões que foram aplicadas com os indígenas (APÊNDICE A) e entrevista aplicada com os não indígenas (APÊNDICE B). Apesar de os roteiros serem individuais, alguns temas são comuns a todos os entrevistados e dão suporte para a compreensão de aspectos gerais do problema de pesquisa. As entrevistas foram realizadas com autorização prévia das lideranças (Tuxauas) dessas comunidades e, após todas as entrevistas realizadas, estas foram degravadas na íntegra. Como afirma Laurence Bardin (2010, p. 89) sobre a fidelidade da transcrição de entrevistas: “seja qual for o caso, devem ser registradas e integralmente transcritas (incluindo hesitações, risos, silêncios, bem como estímulos do entrevistador)”. Antes de se aplicar as entrevistas e atendendo às recomendações da Resolução CNS n.º 196/96 sobre os critérios éticos, foi fornecido o TCLE (APÊNDICE C) a todos que participaram da pesquisa, em duas vias assinadas (uma ao participante e outra que ficou de posse do pesquisador). Este 37 instrumento tem como finalidade assegurar o sigilo das identidades e da integridade dos participantes. Além das entrevistas semiestruturadas, também foram utilizadas as anotações registradas nos diários de campo. As informações contidas no diário foram muito importantes como complementação às informações adquiridas mediante as entrevistas. Nesse sentido, Triviños (2001, p. 90) afirma que “estas devem ser elaboradas no momento do contato com os sujeitos ou situações e, mais tarde, cuidadosamente redigidas e ordenadas”. Os registros fotográficos foram utilizados para ilustração dos aspectos cotidianos dos indígenas Macuxi e de como estes utilizam os recursos naturais no seu dia a dia. Além disso, são recursos imprescindíveis para descrever e interpretar aspectos dos fenômenos investigados (TRIVIÑOS, 2001). As atividades da pesquisa de campo com os indígenas ocorreram entre fevereiro de 2014 e maio de 2014, após recebimento da autorização da FUNAI (ANEXO G). 2.2.2 Análise dos dados Para análise dos resultados obtidos no trabalho de campo, utilizou-se a metodologia qualitativa e a análise de conteúdo. Ao se analisar e interpretar as informações levantadas nas entrevistas, a partir de um roteiro semiestruturado das anotações do diário de campo e das fotografias, notou-se um confronto de informações contidas no levantamento bibliográfico e documental a respeito das populações indígenas em Roraima. Visando proteger os depoentes e garantir o sigilo de sua identidade, os 20 entrevistados foram designados de EA1, EA2, EA3, EA4, EA5, EA6, EA7, EA8, EA9, E10, EA11, EA12, EA13, EA14, EA15, EA16, EA17, EA18, EA19, EA20. O mesmo cuidado foi atribuído aos 25 Diários de Campo, que passaram a ser designados de Diário de Campo 1, Diário de Campo 2, Diário de Campo 3, Diário de Campo 4, Diário de Campo 5, Diário de Campo 6, Diário de Campo 7, Diário de Campo 8, Diário de Campo 9, Diário de Campo 10, Diário de Campo 11, Diário de Campo 12, Diário de Campo 13, Diário de Campo 14, Diário de Campo 15, Diário de Campo 16, 38 Diário de Campo 17, Diário de Campo 18, Diário de Campo de 19, Diário de Campo 20, Diário de Campo 21, Diário de Campo 22, Diário de Campo 23, Diário de Campo 24, Diário de campo 25. Salienta-se que, em algumas situações, também foram indicadas a função e a comunidade à qual o depoente pertence. A utilização dos recursos da fotografia serviu para auxiliar no registro de detalhes que sejam considerados relevantes no momento da coleta por meio da observação. Tanto as gravações como as fotografias autorizadas pelas pessoas são muito valiosas, pois ajudam na interpretação do fenômeno pesquisado (TRIVIÑOS, 2001). Nesta pesquisa, buscamos a integração de saberes de várias áreas de conhecimentos no tratamento do objeto de estudo, tais como Geografia, Pedagogia, História, Antropologia, Sociologia, Linguística e Etnobiologia. Essa integração de áreas proporcionou um caráter interdisciplinar à análise do objeto de estudo. Durante a realização da pesquisa, mantive contato direto com as pessoas que participaram das entrevistas. Esse contato me serviu para desconstruir alguns conceitos e preconceitos sobre o modo de viver dessas pessoas na comunidade e, a partir daí, construir outros conceitos e alcançar os objetivos propostos. 39 3 TERRITORIALIDADES MACUXI DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI Este capítulo apresenta aspectos sobre o processo de ocupação do território do vale do Rio Branco pelos povos indígenas, principalmente da etnia Macuxi, no período que compreende do século XVIII até o século XXI. O processo de colonização desse território foi marcado por migrações e guerras intertribais e, posteriormente, entre os indígenas e as frentes expansionistas europeias. Além disso, discorre-se, neste capítulo, sobre a atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) como órgãos de proteção aos Indígenas Macuxi no vale do Rio Branco. 3.1 Os Macuxi no cenário das frentes expansionistas em territórios da bacia do Rio Branco Tratando-se do processo de territorialidade do vale do Rio Branco (atual Estado de Roraima), no que se refere aos povos indígenas, principalmente da etnia Macuxi, é preciso contextualizá-los historicamente desde os séculos XVI e XVII. Foi o período que intensificou os contatos com representantes, principalmente das coroas ibéricas, os quais são relatados em documentos produzidos por missionários, naturalistas, militares, entre outros. Esses europeus percorreram o vale do Rio Branco e registraram suas impressões a respeito da natureza, contemplando plantas, animais, rios, montanhas, vales e dos vários grupos indígenas que encontraram. 40 Tanto a etnia Macuxi como outros grupos indígenas, antes de as frentes expansionistas europeias chegarem, viviam em tradicionais territórios localizados a nordeste do atual Estado de Roraima. Neste espaço, as fronteiras geográficas se definem por envolverem relações interétnicas e culturais e por serem um lugar onde viviam distintos povos indígenas com seu modo próprio de viver, de falar e se relacionar. Nessa perspectiva, o território para a etnia Macuxi, desde os primórdios, se define por situações envolvendo migrações e guerras, tanto pelas condições de sobrevivência como por relações de poder (RAFFESTIN, 1993). Em vista disso, constata-se que os territórios são espaços construídos e desconstruídos por meio das relações sociais, sujeitos a transformações históricas produzidas por diferentes grupos humanos. Apoiando-nos em Andrade (1995, p. 20), temos que “a formação de um território dá às pessoas que nele habitam a consciência de sua participação, provocando o sentido da territorialidade que de forma subjetiva, cria uma consciência de confraternização entre elas”. E essa territorialidade deve ser observada a partir dos diversos atores sociais envolvidos, levando-se em conta não só os aspectos da dominação e da exploração, mas, principalmente, de pertencimento e de redefinições de territórios, como também os de relações interétnicas realizadas por esses atores. Tomando-se Paul E. Little (2002) para questões como esta, temos: No intuito de entender a relação particular que um grupo social mantém com seu respectivo território, utilizo o conceito de cosmografia (Little 2001), definido como os saberes ambientais, ideologias e identidades − coletivamente criados e historicamente situados − que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território. A cosmografia de um grupo de território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele (LITTLE, 2002, p. 4). Na concepção dos autores mencionados anteriormente, o território e a territorialidade são concebidos como um espaço de alteridade, por serem locais de conflitos étnicos e, ao mesmo tempo, de contatos e acomodações. Nesse sentido, não basta um conceito puramente espacial ou geográfico para definir território e territorialidade na visão das populações indígenas, pois as lutas sociais propagadas por esses grupos sempre estiveram associadas a reivindicações de demarcação de seus territórios, justificadas por questões de sobrevivência e da afirmação e reafirmação de suas identidades (SEEGER; CASTRO, 1979). 41 Nessa lógica, a territorialidade para os Macuxi de Roraima não foge à regra, pois, durante muito tempo, viveram em um cenário de inúmeros conflitos e guerras com outros grupos indígenas que viviam nos mesmos espaços e, posteriormente, com os não indígenas que aqui chegaram. Com os primeiros, as guerras existiram com o objetivo de garantir que áreas territoriais de atividades, como caça, pesca e coleta, ficariam sob domínio de cada etnia, assegurando, assim, a todos os grupos, permanência em sua respectiva área, podendo nela transitar livremente. Todavia, na relação com os segundos, a guerra acontecia para resguardar a presença indígena no território, bem como para manter suas relações com este no que se refere a crenças e elementos culturais vinculados ao território, que são transmitidos de geração em geração. A concepção indígena, no que diz respeito à territorialidade, tem relação com a organização espacial dos diferentes atores e da interação entre eles (RAFFESTIN, 1993). De acordo com Jorge Manuel Costa e Souza (2005, p. 45), os “territórios ancestrais dos povos Macuxi apontam para a Bacia do Orinoco (na Venezuela)”. As jornadas migratórias desse povo tiveram início na metade do século XVI e, de forma progressiva, alcançaram a Bacia do Rio Branco e avançaram até territórios do Rupununi, na Guiana. Durante o percurso feito pelos indígenas Macuxi e outros do mesmo tronco linguístico Caribe, como os Cariponá, Uaicá, Securi, Carapi, Sepuru, Umaiana Taurepang e Ianomâmi, houve intensa atividade comercial (trocas), bem como dominação de outros grupos tribais de tronco linguístico Aruak, como, por exemplo, os Wapixana, Paravilhana, Sapará, Aturaiú, Tapicari, Uaiumurá, Amaripá e Pauxanaque, que guerreavam entre si pela disputa do território entrecortado por rios (SAMPAIO, [1777] 1872). Dos grupos atualmente presentes no território do vale do Rio Branco, apenas os Macuxi, Taurepang, Ianomâmi, Ingaricó, Patamona e Wapixana sobreviveram. Algumas etnias diluíram-se entre os Macuxi, e outras foram exterminadas por conta das conquistas portuguesas, espanholas e holandesas (AMODIA, PIRA, 1985). Para compreendermos tal questão, o contato entre índios e brancos acirrou a luta pela posse dessa terra. Conforme salienta Reginaldo Gomes de Oliveira, temos: No processo das relações inter-tribais, os “Caribes” transformaram em território de seu domínio as vastas regiões pertencentes às bacias dos rios Orinoco (Venezuela), Essequibo (Guiana) e Branco (Brasil), dentro de um processo ecossistêmico distinto do modo de apropriação do mundo natural 42 pelo branco, de modelo econômico e interesse individualista na relação com a terra (OLIVEIRA, 2003, p. 43). De acordo com a literatura histórica, arqueológica e antropológica existente, consta que os Macuxi, Taurepang, Ingarikó e Patamona (tronco linguístico Caribe) se desenvolveram culturalmente no extenso território em volta do Monte Roraima, acidente geográfico que se apresenta como o mundo físico e cosmológico da história de criação desses povos. Tanto o lavrado3 como as serras localizadas na porção nordeste de Roraima formam o espaço onde o padrão cultural das etnias Macuxi, Taurepang, Ingarikó e Patamona do tronco linguístico Caribe foi criado. As referidas etnias são muito próximas social e culturalmente. Formam um complexo étnico e linguístico que abrange também os povos Pemom, os Akawaio e Patamona (Kapom), os quais, por sua vez, utilizam-se dos mesmos divisores hidrográficos do Monte Roraima (SANTILLI, 2001). Portanto, a territorialidade indígena significa o espaço construído por meio de esforços coletivos de determinados grupos organizados socialmente para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente natural (LITTLE, 2002). Dessa forma, o território passa a se constituir em elemento imprescindível à sobrevivência, afirmação e reconfiguração de identidades, imprimindo uma especificidade em cada grupo, refletindo-se em marcas deixadas pelos antepassados. A noção de pertencimento a um lugar agrupa tanto os povos indígenas de uma área imemorial quanto os grupos que surgiram historicamente numa área através de processos de etnogênese e, portanto, contam que esse lugar representa seu verdadeiro e único homeland (LITTLE, 2002, p. 10). Sendo assim, para analisar o território da origem dos povos indígenas Macuxi, faz-se necessária uma abordagem histórica das circunstâncias específicas de como se originou e em que contexto foi defendido e reafirmado. Iniciaremos apresentando alguns fatos ocorridos a partir do século XVII, considerando que esse território foi um dos últimos a ser penetrado por exploradores espanhóis, holandeses, ingleses e portugueses. 3 O termo “lavrado” é usado regionalmente para designar as áreas de savanas em Roraima (PINHO et al., 2010). 43 Segundo Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, ouvidor da capitania de São José do Rio Negro ([1777] 1872, p. 202), “somente na primeira metade do século XVII foi registrada a existência do Rio Branco, como consta nos escritos do Padre Cristóvão de Acuña em seu livro “Nuevo Descubrimiento Del Rio de Las Amazonas”, escrito em 1641 durante a expedição exploratória iniciada pelo lusitano Pedro Teixeira”. Portanto, os portugueses só tomaram conhecimento das terras mais ao norte do Brasil, por meio dos relatos desse cronista oficial da coroa portuguesa (BARBOSA, 1994). Marcio Antonio Destro faz um breve relato sobre a viagem de Pedro Teixeira pelo Rio Amazonas, onde se refere à existência do Rio Branco: Os portugueses não poderiam ficar para trás na corrida para estabelecer a conquista da Amazônia, partindo da cidade de São Luís, no dia 5 de fevereiro de 1637, o português Pedro Teixeira, com a finalidade de reconhecer, explorar e colocar marcos de ocupação portuguesa, utilizando- se para isso do conhecimento e da adaptação à selva dos índios. Em 16 de Fevereiro de 1639, chegou a Quito, na América Hispânica em uma empreitada que durou cerca de dois anos, retornando a Belém no dia 12 de dezembro de 1639. O descobrimento do rio Branco foi citado na exploração empreendida por Pedro Teixeira, não indicando necessariamente que rio teria sido explorado, mas sim que o mesmo existia. Conforme o historiador João Pandiá Calógeras, datam do ano 1671 as primeiras explorações do rio Branco, relatadas na Relação histórico-geographica do Rio Branco da América portuguesa e no Diário da Viagem do ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio (DESTRO, 2006, p. 14). Considerando a pesquisa de Destro (2006), a viagem expedicionária de Pedro Teixeira pelo Amazonas levou a acreditar que o descobrimento do Rio Branco e o primeiro contato com as populações indígenas da região não foi intencional. Isto é, com desejo de encontrar algo de valor no retorno a Quito, os integrantes da expedição adentraram no território do Rio Branco e aprisionaram vários indígenas para vender como escravos na Capitania do Grão Pará e Maranhão. Isso mostra que os indígenas eram tratados como objeto de troca pelos colonizadores (BARBOSA, 1994). O que facilitou o avanço dos portugueses em terras do norte brasileiro no século XVII, em decorrência da União Ibérica, foi a divisão administrativa na colônia, que culminou na criação da Capitania do Maranhão e Grão-Pará. Além disso, outro ponto favorável aos portugueses foi o fácil acesso à Bacia do Rio Amazonas, 44 situação contra a qual a coroa espanhola não podia mais protestar por causa da união das duas coroas. Apesar de um intenso movimento militar, civil e religioso no final do século XVII, somente na segunda metade do século XVIII os portugueses conseguiram a soberania lusitana sobre essas terras em relação às pretensões de outros Estados Nacionais europeus (BARBOSA, 1994). Os objetivos da coroa portuguesa eram: assegurar o domínio do território e defendê-lo de tentativas de aproximação das nações europeias (ingleses, franceses, espanhóis), que também tinham um grande interesse no comércio de escravos, índios, extração de óleos vegetais e animais, resinas, couros e peles de animais, canela, cravo, urucum e cacau, conhecidas como drogas do sertão (FARAGE, 1991; SAMPAIO, [1777] 1872). Nota-se que o interesse de conquista das nações europeias era puramente comercial. Não bastou a usurpação das riquezas naturais do vale do Rio Branco; também massacraram e escravizaram as populações indígenas que viviam no território. No tocante a essa situação, José de Sousa Martins salienta: “O que poderia ter sido um momento fascinante de descoberta do homem, foi um momento trágico de destruição e morte” (MARTINS, 1997, p.169). A respeito de Roraima a partir do século VXIII, sabemos que “[...] era constituída inicialmente de nativos” (FREITAS, 1997, p. 36), ou seja, estes nativos (indígenas) vieram do Caribe, daí a denominação do tronco linguístico Caribe (Macuxi, Taurepang, Ianomâmi etc). Para chegarem ao território, esses indígenas tiveram que subir o rio Orinoco (Venezuela), alcançando os rios Caruá e Paraguá e, a partir deste, penetraram nos rios Uraricuera e Branco, localizados em território brasileiro. Os indígenas do Tronco Linguístico Caribe foram perseguidos por incursões europeias que vinham em busca de riquezas (drogas do sertão) e com a finalidade de escravizar as populações indígenas do vale do Rio Branco. Freitas (1997) afirma que as etnias do Tronco Linguístico “Caribes”, também chamadas de canibais, eram exímios navegadores. A partir do ano de 1727, devido à liberação de Alvará pela Junta das Missões, expedições foram autorizadas para atuarem no resgate dos indígenas apresados pelos traficantes. As Missões eram compostas por missionários que tinham como 45 atribuição catequizar os indígenas nos aldeamentos e evitar que fossem escravizados e/ou que tivessem seu direito à liberdade e ao trabalho remunerado desrespeitados (Núcleo de Estudos e Assuntos Indígenas, texto digital). Entretanto, a motivação dessas missões foi de capturar os indígenas para realizar os serviços gerais dos próprios missionários e dos colonos. As notícias que se tem, segundo relato de Ribeiro de Sampaio ([1777] 1872), é que, até 1736, o capitão paraense Francisco Ferreira (conhecido como traficante) e que vivia na aldeia de Caburi, no rio Negro, teria percorrido a margem direita do rio Uraricoera em busca dos Macuxi e Wapixana. Nove anos depois, ocorreu a entrada da primeira tropa oficial portuguesa de resgate de indígenas no vale do Rio Branco, sobre as ordens de Cristovam Ayres Botelho. São desse período também os registros de produtos naturais levados para a Capitania do Grão-Pará, como a salsaparrilha, o cacau, o cravo e, principalmente, escravos índios (FARAGE, 1991). Já no ano de 1740, foram organizadas outras expedições comandadas pelos portugueses. Nesse mesmo período, foram realizadas as expedições de Lourenço Belfort e Xavier de Andrade, com a permissão das autoridades lusitanas. Em 1748, há registros de uma última dessas expedições, liderada por José Miguel Ayres. As expedições, conhecidas como tropas de resgate, tinham duas finalidades: (1) capturar índios para o trabalho escravo; e (2) contribuir com o expansionismo da coroa portuguesa. (AMODIO, PIRA, 1985; DINIZ, 1972). Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio ([1777] 1872), em seus registros de viagem, confirma o tratamento dado aos indígenas do vale do Rio Branco, conforme segue: A política, que empregaram os portugueses no descobrimento das vastas regiões d’esta parte da América, foi conhecer as nações e propor-lhes logo a sujeição portuguesa e a religião catholica. Para este fim formaram aldêas, que entregaram aos missionários, quando estes não foram os autores das mesmas. [...] com este motivo, pois entraram os portugueses a navegar mais adiantamente o Rio Branco, conduzido dos mesmos índios para nossas povoações do Rio Negro. Ao nosso rio subiam a comprar escravos n’aquele tempo em que foi licito este comercio infame (SAMPAIO, [1777] 1872, p. 207). A exploração da mão de obra dos indígenas era prática recorrente nos próprios aldeamentos religiosos, embora os missionários, na sua maioria, se posicionassem contrários à escravidão dos nativos. 46 Com o fim das expedições de resgate ao índio, em 1757 surge uma nova política escravista, o “Diretório Pombalino”, implementado por Marquês de Pombal. O Governador do Grão-Pará, Mendonça Furtado, com base na Reforma Indigenista de Marquês de Pombal, normatizou medidas relativas à vida do índio, criando o Regimento do Diretório. Tal regularização tornava o índio “livre” sob a proteção do Estado, sendo encaminhado para diferentes serviços do Estado e dos moradores do povoado. Porém, a própria legislação indigenista aplicada por Pombal não evidencia com clareza a função do indígena aldeado. Ele é “livre” e usufrui do exercício de cidadania, mas, ao mesmo tempo, não tem direito de propriedade; ao contrário, ele é propriedade do Estado (OLIVEIRA, 2003). Na realidade, essa Reforma foi mais uma estratégia criada pelos portugueses para que o indígena deixasse sua condição de índio e entrasse nos moldes europeus (REIS, 1989). Dessa forma, pensavam os colonizadores que os índios poderiam ser úteis à sociedade que deveriam integrar. Visando concretizar o projeto português no vale do Rio Branco, foi levado adiante um plano de instalação de uma fortificação denominada Forte São Joaquim do Rio Branco (BRAGA, 2002). Esse Forte, segundo Barbosa (1994), foi iniciado pelo engenheiro alemão Philippi Stum, enviado pela coroa portuguesa em 1775. A construção do mesmo deu-se em uma área bastante estratégica, entre o rio Branco e o rio Tacutu, precisamente na margem esquerda da foz do último. Nesse mesmo período, foram estabelecidas as primeiras feitorias de criação de gado que, depois, se transformaram nas fazendas nacionais de São Bento, fundada pelo Coronel Manoel da Gama Lobo de Almada, a Fazenda de São José pertencente ao capitão José Antônio Évora, rico morador do rio Negro, e também a Fazenda de São Marcos, fundada pelo comandante do Forte, Sá Sarmento, que, inclusive, ainda existe no território (REIS, 1989; BRAGA, 2002). Essas fazendas, mais tarde, se tornaram os primeiros núcleos onde se deu a introdução de gado no vale do Rio Branco (AMODIO, PIRA, 1985). Os produtos naturais encontrados no vale do Rio Branco motivaram muitas outras expedições, dentre elas, a de Lobo de Almada, que percorreu territórios dos rios Uraricoera e Branco, chegando até a confluência com o rio Uraricapará, em 1787. Durante essa viagem, Manoel da Gama Lobo de Almada elaborou um relatório descrevendo, além das populações indígenas, as riquezas do ambiente, como plantas, animais e minerais, conforme segue: 47 Passando a tratar dos produtos naturais deste rio e seu território, me refiro aos que alcanço que podem involver utilidade de comercio, ou que pode servir às necessidades [...]. No que pertence aos vegetais, há o cacáo, a salça parrilha, algumas baunilhas, a semauma branca, e da amarela a que também chamam monguba, o óleo de cupauba, a castanha vulgarmente chamada do Maranhão, a madeira de côr laranjada, que é uma madeira entrefina muito leve própria para moveis de casa; há o páo roixo, bom para o mesmo uso, páo d’arco, madeira bem conhecida; differentes cascas com que se costuma cortir sóla, e couros: e com relação a tinturaria, as plantas da caápiranga para tinta roixa, do carajurú para tinta encarnada; para os vernizes a resina de jutaycica: e todos sem contar as diversas fructas que se encontram creadas sem cultura como são, o caju, abiorana, cupuahi, e muitas outras de excelente gosto, e cheiro [...]. [...] as campinas que correm de uma e outra parte do rio até as cabeceiras dos rios Mahú, Surumú, e Majari, estas férteis campinas, são cobertas de excelentes pastos para o gado, semeadas de ilhas de matto [...], regadas de igarapés que as fertilisma com inumeráveis lagos, de que se tira quantidade de sal montanum, próprio a fazer mais saborosos os pastos [...]. Passando aos produtos naturaes do reino animal: o rio tem peixe bastante, e de grandeza: tais são os peixes Bois, as Perauibas, as Pirararas; principalmente de Tartarugas é abundantíssimo, e nisto bem comparável ao rio Solimões. O paiz abunda em caça: das aves, principalmente os Mutuns, e Patos são inumeráveis. Dos quadrupedes, há bastantes Porcos, Cutias, Antas; porém nada chega à prodigiosa quantidade de Veados; [...] No que toca aos mineraes: há o sal gemma ou sal motanum, [...]. Encontram-se bastante pedras atacadas de ferro, o que persuade haver deste bastante deste mineral. Há quantidade de perdeneiras de diversas cores, [...] e há essa espécie de crystaes [...] (ALMADA, [1787] 1861, p. 660- 662). De acordo com as descrições feitas por Lobo de Almada, o território rio- branquense proporcionava aos colonizadores uma terra rica e com imensuráveis recursos naturais a serem explorados à custa da mão de obra escrava dos indígenas aprisionados. Isso mostra por que tanta cobiça dos espanhóis, holandeses e ingleses em se apossar dessa parte do Brasil. Muitos desses elementos da natureza, observados por Manoel da Gama Lobo de Almada, ainda encontram-se presentes no vale rio-branquense. As tropas portuguesas enviadas para ocupar territórios do vale do Rio Branco tinham a missão de expulsar os espanhóis e criar, nas proximidades do Forte São Joaquim, os aldeamentos indígenas (FARAGE, 1991). Todavia, a presença de indígenas da etnia Macuxi, nos referidos aldeamentos, somente veio a ocorrer entre os anos 1788 e 1789. Tratando-se dos Wapixana, estes foram aldeados desde o início da construção do Forte, tanto por causa do efetivo povoamento como pelo fato de se utilizar a mão de obra indígena Wapixna, bem como de outras etnias para o transporte da madeira para sua utilização em construções e com outras finalidades (AMODIO, PIRA, 1985). 48 Os seis primeiros aldeamentos criados pelos portugueses, juntamente com o Forte São Joaquim em 1777, conforme ilustra o mapa a seguir (Figura 2), foram Nossa Senhora do Carmo (atualmente Boa Vista), Santa Bárbara e Santa Isabel (margem direita do rio Branco). Na margem oriental do rio Tacutu, perto do Forte São Joaquim, encontram-se São Felipe, Nossa Senhora da Conceição, este o mais populoso e o mais distante dos povoamentos, e Santo Antônio (no rio Uraricuera) (FARAGE, 1991). Além dos povoamentos citados, novos aldeamentos foram criados em 1784, como o de Nossa Senhora da Conceição e Santa Maria (margem direita do Rio Branco), São Felipe e São Martinho (margem esquerda do Rio Branco). Figura 2 - Mapa com a localização do Forte São Joaquim e Aldeamentos na bacia do Rio Branco, século XVIII. Fonte: Farage (1991, p. 255). Deslocar os indígenas para esses aldeamentos foi uma forma que os lusitanos encontraram de expandir a colonização da coroa portuguesa e garantir o domínio do território, impedindo que as demais frentes de expansão europeia, como as espanholas e holandesas, também invadissem o território. Utilizando-nos de José 49 de Souza Martins a respeito dos impactos que as frentes de expansão causaram aos indígenas ao longo da história do Brasil, temos: Para o índio o avanço da frente de expansão não repercute apenas por colocá-lo diante de uma humanidade diferente, a dos civilizados. Repercute nos rearranjos espaciais de seus territórios e nas suas relações com outras tribos, sobretudo as inimigas. Essas mudanças resultam em muitas perdas, não só do território, mas também de vidas e de elementos culturais (MARTINS, 1997, p. 169). Os encontros ou desencontros com o outro aos quais se refere Martins (1997), neste caso envolvendo representantes do projeto colonial português e, posteriormente, do Estado Nacional Brasileiro, provocou impactos desiguais em relação aos povos indígenas que viviam em territórios da Bacia Hidrográfica do Rio Branco. Os grupos Macuxi, Cariponá, Uaicá, Securi, Carapi, Sepuru e Umaiana, encontrados por Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio em 1777, foram os mais difíceis de aldear por serem conhecidos como etnias arredias, que vieram do norte em decorrência de conflitos com os espanhóis, mas como contraíram alianças comerciais com os holandeses, guerrearam e dizimaram outras tribos. Nesse sentido, um exemplo foi a luta entre Makuxi e Wapixana, na qual os primeiros expulsaram os segundos de seu território que se estendia da Bacia do Rio Uraricuera até o rio Surumu, incluindo a ilha de Maracá, fazendo com que se direcionassem para o Sul, ficando mais próximos dos portugueses que ali fundaram suas vilas. O contato interétnico dos Macuxi com os Wapixana ocorreu desde o início do século XVIII, devido às guerras e alianças estabelecidas com os portugueses a partir do curso do Rio Branco. Essas duas etnias estabeleceram uma duradoura guerra entre si. Os Macuxi, recorrendo à guerra, tinham dois objetivos: o primeiro era de capturar o inimigo Wapixana e negociá-lo com os holandeses, em decorrência da aliança estabelecida com esses europeus, e o segundo era no sentido de conquistar e ocupar a área localizada ao norte do Rio Branco. A guerra entre os Macuxi e Wapixanas durou até a metade do século XIX (SAMPAIO, [1777] 1872). Referindo-se ainda às guerras Macuxi-Wapixana, o livro “Índios de Roraima” (1989), da Coleção Histórico-Antropológica n.º 1, do Centro de Informação Diocese de Roraima, informa o seguinte: [...] a guerra que mais durou e que foi, sem dúvida, decisiva para o futuro do Território, os macuxi travaram com os wapixana. Provenientes do Norte, os macuxi lutaram com os wapixana para a 50 conquista da região localizada ao norte do Rio Branco. Foram anos de hostilidades, através dos quais estes dois povos tiveram possibilidades de se conhecerem e, uma vez acabadas as guerras, de conviverem pacificamente até hoje (DIOCESE DE RORAIMA, 1989, p. 82). Tratando-se dos indígenas de filiação Aruak, os portugueses tiveram mais facilidade de estabelecer alianças, pois as etnias já haviam sofrido significativos desgastes devido às guerras contraídas com os espanhóis, ingleses e holandeses. A narrativa de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, que percorreu territórios do vale do Rio Branco em 1777, mesmo carregada de etnocentrismo, corrobora no sentido das alianças sinalizadas pelos indígenas ao informar: “Parece que suspiravam aqueles índios pela nossa sujeição” (SAMPAIO, [1777] 1872, p. 251). Sendo assim, o que se constata é que a maioria dos indígenas do tronco linguístico Aruak, que habitavam os aldeamentos nas proximidades do Forte São Joaquim, tais como os Paravilhana, Wapixana, Sapará, Aturaiú, Tapicari, Uaiumurá, Amaripá e Pauxana, estabeleceram alianças com os portugueses; portanto, não encontramos registro da utilização de armas e, sim, tentativas de manter uma “boa relação” com eles (SAMPAIO, [1777] 1872). Entretanto, não podemos esquecer que, no momento em que os europeus chegaram ao território da Bacia do Rio Branco, várias etnias viviam em intensos confrontos entre si, o que reforça a premissa da aliança que alguns grupos passaram a adotar com espanhóis, holandeses, franceses e ingleses. As guerras indígenas em territórios do vale do Rio Branco, independentemente da presença europeia encontrada na documentação, corroboram as reações indígenas às ocupações de seus territórios e independente de serem indígenas ou não indígenas. Longe de serem sujeitos passivos, somos levados a pensar que, em todo o seu processo histórico, atuaram com as mais diversas estratégias, moldando situações que faziam sobreviver sua identidade. Tratando-se das guerras entre etnias dos Grupos Linguísticos Caribes e Aruak, vale salientar que nem todas elas participaram das guerras. Portanto, alianças, guerras, diluição entre os grupos e dizimação constituíram um processo latente neste cenário. No entanto, muitas dessas guerras eram provocadas pelos portugueses, que incitavam as lutas entre os próprios índios do tronco Caribe (os Macuxi) e do tronco Aruak (os Wapixana), que já vinham guerreando por causa do 51 comércio com os holandeses. Também faziam parte desse grupo os Sapará, Paraviana e outros grupos menores, que foram atraídos pelo processo de aldeamento (SAMPAIO, [1777] 1872). Entretanto, a estratégia de aldear os indígenas não funcionou como era esperada pelos militares e religiosos, pois os nativos eram forçados a trabalhar, e com isso lhes faltava tempo para dedicar-se às suas roças. A farinha, que era distribuída pelos militares, não atendia suas necessidades alimentares; além disso, os indígenas eram acometidos por doenças como a tuberculose, e muitos morreram por falta de cuidados. Esses acontecimentos geraram rebeliões como, por exemplo, a de 1780, resultando no abandono em massa dos indígenas dos aldeamentos, pois os indígenas tinham muitas facilidades para sair e entrar nesses locais (DINIZ, 1972). Referente ainda a este episódio, Edson Soares Diniz (1972) faz referência ao comandante do Forte São Joaquim, que enviou uma carta ao governo do Pará, explicando os motivos da rebelião. Sobre isto temos: [...] O primeiro motivo é serem neste tempo puxado para os serviços não só de fora como das mesmas povoações; outra se lhes querer evitar ainda que brandamente os péssimos abusos com que sempre viveram, assim como queimaram dentro das próprias casas os corpos dos que alli morrem e mais o número das mulheres que cada um quer ter, e muitos casados com Christians, e que estranham muito a proibição de se untarem com urucu e outros muitos perversos abusos e costumes que muito sentem largar [...] (DINIZ, 1972, p. 29). Analisando a carta anterior, percebe-se claramente que os indígenas, mesmo aldeados, continuavam a viver de acordo com seus costumes e sua cultura (DINIZ, 1972). Por outro lado, percebe-se que os europeus tinham aversão em aceitar a forma de viver dos nativos e não percebiam nenhum sentido nos elementos culturais e simbólicos dos indígenas. Com a saída da maioria dos Wapixana e dos aldeados por causa das rebeliões, os portugueses tiveram que estabelecer alianças com os indígenas Macuxi, que até então eram muito hostis. Todavia, receberam bem os portugueses que lhes ofereceram presentes e os convidaram para se estabelecer no Forte São Joaquim. Os presentes foram aceitos pelos Macuxi, mas somente por volta de 1787 52 que aceitaram estabelecer-se no forte. Este evento coincidiu com a chegada de Lobo de Almada que, por ordem do governo do Grão-Pará, estabeleceu-se no vale do Rio Branco e percebeu o valor daquelas campinas verdejantes que se estendiam até os “contrafortes guiano”, propícios ao estabelecimento de fazendas nacionais para a criação de gado (REIS, 1989). Nesse período, os povoados do vale do Rio Branco já haviam sido reconstituídos e as “[...] três fazendas nacionais apontaram para um cenário que facilitaria o desenvolvimento da cultura do gado, contribuindo ainda para o fortalecimento do poderio do português” (OLIVEIRA, 2003, p. 103). Contudo, as dificuldades com a longa viagem fluvial que precisava ser feita para transportar o gado tornou sua rentabilidade desacreditada, afastando, assim, possíveis investidores. Apesar de o poder político ter proporcionado aos fazendeiros maior liberdade de troca, muito embora a dependência do mercado da Capitania do Rio Negro os impedisse de ter a autonomia financeira para isso, seria preciso ter um eficiente transporte fluvial e mão de obra indígena para executar diferentes serviços (OLIVEIRA, 2003). No entanto, não houve muito progresso quanto à introdução do gado e, mesmo com o surgimento das fazendas nacionais, sua evolução não foi expressiva. No final do século XVIII, por exemplo, as cabeças de gado não passavam de 1000 em toda a região (DINIZ, 1972). Nos relatos de viagem de Manuel da Gama Lobo de Almada ([1787] 1861), consta que foram trazidos colonos portugueses de outras partes para colonizar o vale do Rio Branco, bem como a introdução do gado com o intuito de atrair um maior número de índios. Os conselhos dados por Manuel da Gama Lobo de Almada foram os seguintes: Uma das maiores vantagens que se póde tirar do rio Branco é povoal-o, e coloniar toda esta fronteira com imensa gente que habita as montanhas do paiz. Mas para isto é necessário mudar o methodo que se pratica, que em outras circunstancias, e em outro tempo poderiam convir, mas que hoje deve alterar. Para descer estes tapuyas do mato, aonde eles a seu modo, viviem com mais comodidade do que entre nós, é necessário persuadil-os, vestil-os, não os fatigar querendo-se d`eles mais serviços do eles podem; e fazer-lhes pagar prontamente, e sem usura, o que se lhes promete, o que se lhes deve, o que eles tem ganho com suor do rosto, e às vezes com riscos da suas vidas. O sustento deve consistir em roças de mandioca adiantemente feitas, e já maduras, nos lugares que se lhe determinar para povoações. Estas roças ser repartidas por todas as famílias que descerem, de sorte que cada família ache entre nós o mesmo que tinha no mato; isto é, sua roça de propriedade 53 de que vão tirando o seu arbítrio mandioca que quiserem para as suas diferentes comidas e bebidas a que estão acostumados no mato [...]. Para que eles tomem amor às povoações [...], convém não puxar nunca a serviços algum estes primeiros homens descidos, para que eles tenham todo tempo de continuarem suas roças, de fazerem suas casas, e de se estabelecerem [...], os filhos que não fazerem falta às suas famílias, sejam [...] puxados aos serviços públicos [...] mas os pais de famílias, não os arranquem à suas mulheres, e a seus filhos, deixem-os gozar da tranquilidade que lhe permite a pia lei das liberdades [...]. Outro meio de coloniar o rio Branco seria incentivar os soldados casarem com as índias deste território, bem como excitál-os com donativos de algumas vacas, e agulmas égoas [...]. (ALMADA, [1787] 1861, p. 679- 680). Manuel da Gama Lobo de Almada considerava ser de fundamental importância a efetiva colonização no vale do Rio Branco e suas povoações. Dessa forma, nasceu o projeto colonizatório em que os fazendeiros utilizavam índios e não índios como mão de obra, acarretando muitas vezes vínculos familiares por meio de casamentos ou compadrio. Esse projeto foi facilitado pelas autoridades e tornou-se responsável pela elite social de fazendeiros que atualmente ainda são prestigiados em Roraima (BARROS, 1995). A tentativa dos portugueses de arregimentar mais indígenas que viviam na porção norte dos territórios da Bacia Hidrográfica do Rio Branco não parou, sendo que, nos anos 1788-1789, chegou e se estabeleceu próximo ao Forte São Joaquim uma leva de indígenas da etnia Macuxi. Esses indígenas envolveram-se em um sangrento levante em 1790, acarretando a morte de quatro so