UNIVERSIDADE DO VALE DO TAQUARI - UNIVATES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM ENSINO CANTO CORAL ESCOLAR: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SOCIAL Francisco Paulo Rodrigues Mestre Lajeado, março de 2018 2 Francisco Paulo Rodrigues Mestre CANTO CORAL ESCOLAR: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SOCIAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação, Mestrado em Ensino, da Universidade do Vale do Taquari - UNIVATES, como parte da exigência para a obtenção do grau de Mestre em Ensino, na área de concentração de Ciência, Sociedade e Ensino. Orientadora: Profª. Drª. Angélica Vier Munhoz Lajeado, março de 2018 Francisco Paulo Rodrigues Mestre 3 CANTO CORAL ESCOLAR: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SOCIAL A Banca examinadora abaixo aprova a dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ensino, da Universidade do Vale do Taquari - UNIVATES, como parte da exigência para a obtenção do grau de Mestre em Ensino: _____________________________________ Profª. Drª. Angélica Vier Munhoz (orientadora) – UNIVATES – RS _____________________________________ Prof. Dr. Claudio Antônio Esteves – UFSM – RS _____________________________________ Profª. Drª. Jacqueline Silva da Silva _____________________________________ Profª. Drª. Morgana Domenica Hattge Lajeado, de março de 2018 4 DEDICATÓRIA À Débora, minha esposa, companheira, amiga, alento no meu cansaço, porto seguro em minhas incertezas. Aos meus filhos, Lucas e Miguel, sempre presentes em minhas orações e que, pelos homens de bem que se tornaram, fazem-me um pai orgulhoso, feliz, realizado. Aos meus alunos de ontem, hoje e aos que virão, por terem me ensinado muito do que hoje sou. 5 AGRADECIMENTOS A cada amanhecer, agradeço a Deus por estar vivo e ter forças para seguir em frente, sem esquecer o amparo a todos que tornaram possível esta caminhada. Em especial, à minha orientadora, Angélica Vier Munhoz, pela paciência e puxões de orelha na hora certa, pela seriedade dialética como impulso ao pensar. Aos professores Rogério Schuck, Marli Teresinha Quartieri, Suzana Feldens Schwertner, Miriam Ines Marchi, José Claudio Del Pino, Ieda Giongo, Neli Galarce Machado, Andreia Aparecida Guimarães Strohschoen, Jacqueline S. da Silva, Silvana Martins, Márcia Rehfeldt, cada um, à sua maneira, instigando o melhor em nós alunos. Aos professores doutores Jacqueline Silva da Silva, Claudio Antônio Esteves, Integrantes da Banca de Qualificação. Somados a esses, à Profª Draª Morgana Hattge da Banca de Defesa, pela disponibilidade e por apontar caminhos coerentes à pesquisa. Ao Grupo de Pesquisa CEM, pelas leituras e discussões que se tornaram aprendizado. A todos os colegas, em especial, à turma do Mestrado em Ensino regular 2016-A: Alissara, Maurício, Katiele, Elisângela, Michele, pela parceria e generosidade em compartilhar suas ideias e encorajamento coletivo de superar as dificuldades. À Secretaria de Pós-Graduação, em especial à Fernanda, por ser nosso anjo da guarda, sempre presente e solícita. À Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES, pelas organização e estrutura postas sempre à disposição. Aos meus queridos alunos, pais, corpo diretivo e docente da E.M.E.F, Dr., Jairo Brum, por acreditarem e tornarem possível este estudo que mexeu no íntimo de cada participante do coral escolar como experiência ímpar para a vida. 6 “Canção Amiga Eu preparo uma canção Em que minha mãe se reconheça Todas as mães se reconheçam E que fale como dois olhos Caminho por uma rua Que passa em muitos países Se não me veem, eu vejo E saúdo velhos amigos Eu distribuo um segredo Como quem ama ou sorri No jeito mais natural Dois carinhos se procuram Minha vida, nossas vidas Formam um só diamante Aprendi novas palavras E tornei outras mais belas Eu preparo uma canção Que faça acordar os homens E adormecer as crianças” (ANDRADE, 1962, p. 145) 7 RESUMO A presente dissertação de Mestrado tem por objetivo investigar o canto coral enquanto uma experiência estética e social. Desse modo, busca acompanhar uma oficina de canto coral escolar desde a sua formação, atentando para os processos de aprender e ensinar, resultantes de tal experiência, assim como a relevância da atividade no meio escolar. O problema de pesquisa aborda as seguintes questões: De que maneira a participação no coral escolar pode contribuir para o processo de experiência estética e social? Essa experiência pode resultar em rupturas na maneira de pensar, agir e se relacionar dos jovens cantores? Para tanto, parte-se de um breve percurso histórico da música no Brasil desde 1500 até sua efetivação na escola nos dias atuais. Toma como referenciais teóricos as obras que se aproximam do percurso da música brasileira, tais como as de Bruno Kiefer (1997), Marisa Trench de Oliveira Fonterrada (2008), Heitor Villa-Lobos (2009), Juzamara Souza (2004, 2014), Vera Lúcia Passagno Bréscia (2011), além de autores que ajudam a pensar as propostas e legislação que inseriram, retiraram, modificaram e retomaram o ensino de música na escola. Para a investigação, utilizou-se a metodologia de abordagem qualitativa, através de um grupo focal, com oito alunos entre os componentes do coral escolar da E.M.E.F. Dr. Jairo Brum na cidade de Guaporé, além da análise de materiais coletados em meio às entrevistas, anotações em diário de campo, fotos, áudios e vídeos. Ao final, foi possível perceber que a participação no coral escolar permitiu o empoderamento de alunos, no que diz respeito às habilidades auditivas e no cantar ou cantares como prova de capacidade outrora negada ou simplesmente ignorada. Palavras-chave: Educação musical, Canto coral, Escola, Ensino. 8 ABSTRACT This dissertation aims to investigate choral singing as an aesthetic and social experience. In this way, it seeks to accompany a choral singing workshop since its formation, paying attention to the processes of learning and teaching, resulting from such experience, as well as the relevance of the activity in the school environment. The research problem addresses the following questions: How can participation in school choir contribute to the process of aesthetic and social experience? Can this experience lead to ruptures in the way young people think, act, and relate? To do so, we start with a brief history of music in Brazil from 1500 until its implementation in the school today. It takes as theoretical references works that approach the path of Brazilian music, such as Bruno Kiefer (1997), Marisa Trench de Oliveira Fonterrada (2008), Heitor Villa-Lobos (2009), Juzamara Souza (2004, 2014), Vera Lúcia Passagno Brescia (2011), in addition to authors who help to think about the proposals and legislation that inserted, removed, modified and resumed the teaching of music in school. For the investigation, the methodology of qualitative approach was used, through a focus group, with eight students among the components of E.M.E.F school choir. Dr. Jairo Brum in the city of Guaporé, besides the analysis of materials collected through the interviews, notes in field diary, photos, audios and videos. In the end, it was possible to perceive that the participation in the school choir allowed the empowerment of students of the hearing abilities and of singing or singing as evidence of capacity once denied or simply ignored. Key words: Musical education, Choral singing, School, Teaching. 9 ILUSTRAÇÕES LISTA DE FIGURAS Figura 1 Dança de Negros, aquarela de Herman Hudolf Wendroth do século XIX. 15 Figura 2 Notação da música Tupinambá................................................................... 22 Figura 3 Charamela................................................................................................... 26 Figura 4 Word cloud................................................................................................. 50 Figura 5 Ensaio no Salão Comunitário..................................................................... 53 Figura 6 Ensaio na sala de música.......................................................................... 53 Figura 7 Camiseta da oficina de canto coral............................................................ 71 Figura 8 Trança embutida........................................................................................ 71 Figura 9 Primeira apresentação................................................................................ 72 10 LISTA DE ABREVIATURAS ABEM Associação Brasileira de Educação Musical EJA Educação de Jovens e Adultos FECORS Federação de Coros do Rio Grande do Sul FUNARTE Fundação Nacional de Artes GF Grupo Focal LDB Lei de Diretrizes e Bases LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 11 SUMÁRIO 1 DA CAPO............................................................................................... 13 2 ABERTURA............................................................................................ 21 3 A MÚSICA E O NACIONALISMO..................................................... 29 4 A MÚSICA NA ESCOLA...................................................................... 32 4.1 O retorno da música na escola ............................................................. 37 5 A MÍDIA E O CANTO CORAL........................................................... 41 5.1 O cinema e o canto................................................................................. 41 5.2 A TV e o canto........................................................................................ 43 6 O CANTO CORAL E A ESCOLA....................................................... 45 6.1 Muda vocal ............................................................................................. 46 7 CONTEXTUALIZANDO A ESCOLA E O GRUPO......................... 49 8 MÃOS (CORPO E ALMA) À OBRA................................................... 53 9 SOBRE O GRUPO FOCAL.................................................................. 56 9.1 Dos encontros ......................................................................................... 56 9.1.1 Primeiro encontro .................................................................................... 57 9.1.2 Segundo encontro .................................................................................... 58 9.1.3 Terceiro encontro..................................................................................... 59 9.1.4 Quarto encontro........................................................................................ 60 9.1.5 Quinto encontro........................................................................................ 61 9.1.6 Sexto encontro.......................................................................................... 63 9.1.7 Sétimo encontro....................................................................................... 64 9.1.8 Oitavo encontro........................................................................................ 66 10 SOBRE OS ENSAIOS E OBSERVAÇÕES......................................... 68 10.1 Outro idioma........................................................................................... 70 10.2 Com que roupa? .................................................................................... 71 11 FINE........................................................................................................ 74 REFERÊNCIAS..................................................................................... 76 12 GLOSSÁRIO.......................................................................................... 82 APÊNDICES.......................................................................................... 85 Apêndice A - Termo de Consentimento Informado para os Responsáveis pelos Alunos ..................................................................... 85 Apêndice B – Ciranda..................................................................................... 86 Apêndice C - Duas Cirandas........................................................................... 87 Apêndice D - Questionário inicial para os participantes da oficina de canto coral................................................................................................ 88 Apêndice E - Ficha de avaliação vocal............................................................ 89 Apêndice F - Letra da música “Reza a Lenda” do grupo D’naipes........ 90 Apêndice G - - Letra da música “Trevo” da dupla Anavitória................ 91 Apêndice H - Letra da música “Ciranda da Bailarina” de Chico Buarque de Holanda................................................................................. 92 Apêndice I - Letra da música Beautiful de Cristina Aguilera................ 93 Apêndice J - Letra da música “A Thousand Years” de Cristina Perri... 96 Apêndice K -Letra da música “True Collors” de Cyndi Lauper............. 99 Apêndice L - Letra da música “Amavolovolo” de Rudolf de Beer ....... 103 Apêncide M - Letra da música “O som da pessoa’ de Gilberto Gil e Bene Fonteles.......................................................................................... 104 13 1 DA CAPO1 Meus primeiros contatos formais com a música ocorreram ainda na infância quando estudei no Colégio Maria Imaculada em Porto Alegre – RS, instituição particular administrada por uma congregação religiosa da ordem Franciscana. Em 1968, a música já fazia parte do currículo escolar desde as séries iniciais, dispondo de três pianos espalhados pelos ambientes da escola e um órgão de tubos na capela com capacidade para trezentas pessoas. A professora de canto explanava a história da música e sua teoria: a escrita formal de uma partitura, as figuras que representavam os sons e o silêncio, bem como a duração de cada uma dessas figuras. Ela ensinava canções para os eventos específicos do calendário escolar (Páscoa, Dia das Mães, Festas Juninas, Dia dos Pais, Dia das Crianças, Natal). Ao completar 8ª série2 e ser submetido a “testes de aptidão” ou ‘testes vocacionais”, fui encaminhado à Escola Técnica Parobé, também em Porto Alegre, onde passei a cursar o Ensino Médio Técnico em Eletrônica. Porém, vislumbrei a banda marcial da escola que realizava seus ensaios no intervalo entre os turnos da tarde e noite. Após assistir muitas vezes aos ensaios e apresentações, fui convidado a participar do projeto, inicialmente tocando instrumentos de percussão e, mais tarde, de sopro. Paralelamente, integrei-me aos grupos de jovens da Igreja Católica onde fazia parte da equipe de animação, responsável pelos cantos dos encontros e celebrações que, de alguma maneira, ajudaram a moldar meu senso de responsabilidade, fraternidade, compaixão. Essa inserção me conduziu a um estado de fluxo, hoje determinado como flow,3 em que o ego some, e o 1(Italiano) Do princípio. Em partituras musicais, aparece com frequência através da abreviatura D.C. 2 Na época, a divisão do Primeiro Grau (Hoje, Ensino Fundamental) era dividido da 1ª série à 8ª série. Daí, partíamos para o Segundo Grau (Hoje, Ensino Médio). 3 Estado Flow (ou estado de Fluxo), é um estado emocional positivo, caracterizado por uma atenção total em determinada atividade a que nos submetemos, na qual, nada mais importa, mantendo um grau de concentração 14 envolvimento é total em uma atividade específica, como se a dura realidade do cotidiano fosse esquecida. E, assim, consegui desenvolver habilidades no mais alto nível possível, resultando em prazer, alegria, paz, sensação de êxtase. Antes da conclusão do Ensino Médio Técnico, fui convocado para o serviço militar obrigatório, o que me levou a interromper os estudos por não conseguir conciliar as duas atividades de maneira satisfatória. Ao concluí-lo, deixei o exército e tentei conciliar meus estudos com trabalho bancário e, mais tarde, como músico profissional. Das apresentações em bares noturnos ao trabalho com o teatro com os diretores Nestor Monastério4 e Juan Carlos Sosa5, passei a compor trilhas musicais para peças teatrais e participar de shows ao lado de artistas importantes da Música Popular Gaúcha, como Giba-Giba6, Nelson Coelho de Castro, Neto Fagundes, Gelson Oliveira, Bebeto Alves, entre outros. Com Giba-Giba, foram vinte e sete anos de parceria musical, contabilizando a presença em diversos festivais nacionais e internacionais de música, Fórum Social Mundial em Porto Alegre, gravação de LP, CDs, participação no longa-metragem E Neto Perde Sua Alma7 e projetos culturais, como “CABOBU”8, que reuniu, durante uma semana, músicos e percussionistas de todo o Brasil e do exterior na cidade de Pelotas – RS, programas de rádio e televisão, clip Cem Anos da Abolição da RBS TV. O projeto teve por finalidade o resgate e a construção do tambor denominada “Sopapo”, de origem afro-gaúcha, tocado por Giba-Giba. Trata-se de um tambor de grandes dimensões, recriado no Rio Grande do Sul a partir de 1725 absoluta, emanando uma sensação enorme de prazer e controle. 4Nascido em Buenos Aires, estudou engenharia. Ao mesmo tempo em que se interessava por teatro, começou a militar politicamente. Tornou-se um líder de esquerda e foi perseguido pelo regime militar de 1976. Após passar um tempo na clandestinidade, fugiu para o Brasil. Em 1984, a ditadura argentina havia acabado, vários exilados voltaram à Argentina, mas ele decidiu ficar e se tornar diretor de teatro. Seus trabalhos foram reconhecidos em todo o país, o que lhe renderam diversos prêmios. Hoje, procura fazer teatro para o grande público e com um modo de trabalho peculiar. Primeiramente, reúne um grupo, em seguida, aproveita o que surge e, então, monta seus espetáculos: Marat Sade (1982), A verdadeira história de Édipo Rei (1985), Bella Ciao (1989), Orquestra de Senhoritas (1990), O Rei do Brasil (1992), O último tango em Porto Alegre (1994), entre outros. 5 Chega do Uruguai em 1980, convidado pelo Irmão José Otão, fundador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com o objetivo de contribuir para os cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda e Relações Públicas. Na PUC, cria o projeto e realiza a Vídeo-PUC; na época, a produtora de televisão universitária mais importante da América Latina. Ademais, trabalha como professor e assessor na construção da estrutura de televisão e teatro na Unisinos e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 6Gilberto Amaro do Nascimento (06/12/1940 – 03/02/2014), cantor, compositor, percussionista e ativista cultural brasileiro. 7 Filme de 2001 dirigido por Tabajara Ruas e Beto Souza. No Festival de Recife, ganhou o troféu Gilberto Freyre de melhor ator coadjuvante para Simar Antunes, melhor roteiro e melhor direção em 2002; No Festival de Gramado: quatro Kikitos de Ouro, nas categorias de melhor filme - júri popular, melhor montagem, melhor trilha sonora e prêmio especial do júri; Festival de Brasília: venceu na categoria de melhor ator (Werner Schünemann) e, no Grande Prêmio Cinema Brasil, recebeu duas indicações, nas categorias de melhor ator (Werner Schünemann) e melhor roteiro adaptado. 8O Nome CABOBU, dado ao projeto em referência, é uma homenagem aos músicos de apelido Cacalo, Boto e Bucha, primeiros mestres na arte de confecção do instrumento musical Sopapo. 15 com a chegada dos negros para trabalho escravo na lida com animais, extração de couro e charqueadas. O registro visual mais antigo desse instrumento vem do século XIX através de uma aquarela9 de Herman Hudolf Wendroth (Figura 1). Figura 1: Dança de Negros de Herman Hudolf Wendroth Fonte: ZUBARAN (2002, p. 64) Em 1989, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, tendo à frente Esther Pilar Grossi, participei do projeto de descentralização da cultura ao lado de artistas, músicos, poetas, bailarinos gaúchos. Nesse projeto, éramos convidados a apresentar nossas performances em escolas públicas de bairros periféricos do município. Esse foi o meu primeiro contato formal com a educação, fato que mudaria minha vida nos anos que se seguiram. Na mesma gestão pública municipal de Porto Alegre, iniciou-se a implantação do construtivismo nas escolas municipais a partir de uma dimensão filosófica. Como fundamentos da educação, esta buscava a humanização do homem, entendido como corpo, espírito, tendo como premissa o ser no mundo, ser com os outros e ser histórico (GROSSI, 1993). E, para alcançar tais fundamentos, não bastava ensinar ao aluno somente questões cognitivas em sala de aula, pois ele “[...] é um ser social e desejante e deve ser visto em sua 9Disponível em http://images.slideplayer.com.br/33/10366040/slides/slide_9.jpg acessado em 19/09/2017. 16 totalidade” (GROSSI, 2007, p.20). A implantação se deu através de uma série de conferências e debates com Madalena Freire, Paulo Freire, Emília Ferreiro e profissionais da corrente construtivista e sociointeracionista. Contudo, meu nível de escolaridade e a cultura construída até então não me permitiam a compreensão clara do momento, sobretudo ao que dizia respeito às discussões e estudos relativos aos processos de ensinar e aprender, embora os fatos e as vivências experienciadas, colaborassem para que, paulatinamente, eu direcionasse o meu trabalho para a educação com forte tendência à sua importância social. Assim, a perspectiva do canto coral como uma experiência estética e social, tema desta dissertação, nos meus estudos e práticas, vem de longa data. É importante destacar que a ideia de experiência estética é tomada, por mim, como um encontro “desinteressado”, que não visa assimilar ou integrar a noção do belo, mas que adentra em nosso corpo físico, intelectual, espiritual, afetivo, permitindo a nossa inserção no mundo. Essa experiência estética é extremamente subjetiva; logo, produtora de subjetividades, criando perspectivas diversas às coisas do mundo através dos sentidos vivenciados. Para Villela, [...] já não se trata de perseguirmos alguma ideia de beleza como parâmetro. Também o elo, ao longo da história do pensamento, foi deslocado dos cânones que, pretensiosos e reducionistas, buscaram fixar seu significado. No começo, belo era o que imitava a realidade visível, era o que correspondia à repetição do paradigma naturalista e realista de representação. Depois, ele passou a ser tomado como sublimação, como efeito tangível do sentimento oriundo da relação que nossa razão pura estabelecia com o mundo. Mais tarde, passou a ser um valor subjetivo, um sentimento singular proveniente de uma experiência única e individual que o sujeito tinha do mundo. Ou seja, assim como se passa com a arte, o belo foi deslocado do campo de possíveis estabelecido pelas formas tradicionais ou universais de racionalidade (PEREIRA, 2012, p. 184). Seguindo a mesma linha, Duarte (2001) afirma que a experiência estética diz respeito a uma educação dos sentidos, com a “capacidade do ser humano de sentir a si próprio e ao mundo num todo integrado” (p.13). Quanto à experiência social, parto da noção do aluno como um sujeito social que, como tal, constrói um determinado modo de ser, de se relacionar com seus pares e com o mundo, com o outro e consigo mesmo. E o conhecimento a respeito de tais processos só é possível através da aproximação das realidades cotidianas nas quais transitam os alunos, “a forma como constroem o estilo, os significados que lhe atribuem e o que expressam no contexto de uma sociedade cada vez mais globalizada” (DAYRELL, 2003, p.40). 17 Nesse sentido, a minha aproximação com o canto coral se deu na década de 90, quando passei a atuar como educador musical. Antes disso, mais precisamente em 1979, atuava como músico, compositor e arranjador no cenário musical do Estado do Rio Grande do Sul. Certamente, não possuía a experiência e a formação acadêmica que carrego hoje, motivo pelo qual enfrentava certa dificuldade ao realizar meu trabalho, advinda também da resistência, por parte dos jovens, ao termo “coral”, decorrente de um desconhecimento ou da associação a cultos e doutrinas religiosas. Em 1997, ano do falecimento de Paulo Freire, parti para o interior do Estado, na serra italiana e, no intervalo de três anos, dirigi o primeiro coral e banda marcial na cidade de Nova Alvorada – RS. Inicialmente, trabalhei de forma empírica: um músico instrumentista lançando-se na atividade de regência. Com pouco tempo de trabalho, senti a necessidade de buscar mais conhecimentos específicos na área de canto coral. Nos encontros de corais, conheci a maestrina Maura Helena de Carli, por quem fui motivado a me aproximar da FECORS - Federação de Coros do Rio Grande do Sul -, atualmente com sede em Nova Petrópolis (RS), entidade responsável por realizar encontros anuais com maestros e coralistas de todo o país e do exterior. O propósito dessas reuniões é proporcionar uma reciclagem de metodologias, repertório para os profissionais do canto coral, além de possibilitar discussões com maestros de atuações nacionais e internacionais. Ao iniciar minha participação em painéis de regência da FECORS e em outros cursos específicos de música voltada ao canto, pude vislumbrar as possibilidades do canto coral, principalmente juvenil, da expressão cênica, da percussão corporal e da poesia, capazes de potencializar as capacidades e permitir a construção de novas aprendizagens. Durante os encontros, convivi com maestros que eram minhas referências na literatura, vídeos, documentários, sendo deveras enriquecedor. Em 2002, assumi o cargo de músico concursado na cidade de Serafina Correa, primeiramente para reativar a Banda Municipal que se encontrava desativada havia mais de oito anos. Em seguida, criei o Coral Municipal e Orquestra Os Serafins10 com a finalidade de oportunizar aos alunos de toda a rede escolar do município contato com a música. Em função da proximidade geográfica entre os municípios da região, também iniciei os trabalhos com corais e escolas de outras cidades da serra gaúcha. Nessa época, conciliava o Curso de 10Artigo de conclusão da especialização em Música e Musicalidade através da FSG – Faculdade da Serra Gaúcha: “Orquestra Os Serafins: A flauta doce e suas possibilidades” disponível em: http://www.academia.edu/4879240/O_Projeto_Os_Serafins_A_flauta_doce_e_suas_possibilidades 18 Pedagogia na modalidade EAD11- concluindo-o em 2009 - e, em 2013, uma especialização em Música e Musicalidade12. Desse modo, ao longo de minha experiência com atividades musicais, em especial o canto coral, além de circular, venho vivenciando e apreciando coros escolares de diversas regiões do Estado do Rio Grande do Sul e do país. Aliado a isso, tenho acompanhado o trabalho de profissionais referenciados na área e estudos contemporâneos publicados principalmente no campo da Educação Musical. Essa imersão levou-me a vislumbrar ainda mais, não com a função técnica do canto coral escolar, mas percebê-lo como ferramenta de transformação, formação e produção de subjetividades mediante experiências estéticas e sociais na medida em que ele está vinculado às relações dos alunos com o mundo em suas vivências sociais historicamente construídas. De fato, junto aos corais da Região da Serra Gaúcha, busco investigar o canto coral juvenil e suas possibilidades cênicas, rítmicas e inventivas. A esses grupos, frequentemente, proponho a participação de encontros e festivais regionais, nacionais e internacionais de coros, intercâmbio de corais, o que corroborou, de maneira importante, a pesquisa, ora apresentada. Entretanto, constatei que minha formação se tornara insuficiente e, influenciado por colegas maestros e professores, além da necessidade de ir além do lugar comum, decidi continuar meus estudos, seguindo a carreira acadêmica, principalmente na área de ensino. Consequentemente, poderia aprofundar meus conhecimentos e contribuir, através de minha pesquisa, para discussões a respeito da importância de atividades musicais estruturadas, em especial a coral, no ambiente escolar, como oportunizadora de experiência estética e social. Assim, em 2014, candidatei-me ao Mestrado em Etnomusicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas não fui selecionado. Sem esmorecer, tentei, no ano seguinte, o Mestrado em Educação da Universidade de Passo Fundo, ficando na segunda suplência. Como não houve desistências, não consegui a vaga. Em 2015, assumi as disciplinas de Artes e Música em uma escola municipal da cidade de Guaporé, na qual, com turmas de 5ºs anos, conquistei o 3º Prêmio RBS de Educação13 na 11ULBRA – Universidade Luterana do Brasil – Canoas - RS; 12FSG – Faculdade da Serra Gaúcha – Caxias do Sul – RS. 13O Prêmio RBS de Educação – Para Entender o Mundo é uma iniciativa do Grupo RBS e da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho (FMSS) que visa contribuir de forma efetiva para a melhoria da qualidade da Educação Básica do Brasil. Disponível em http://www.premiorbsdeeducacao.com.br/curso/introducao-ao-premio-2/ acessado em 29/10/2017. 19 categoria Júri Popular. No mesmo ano, soube do Mestrado em Ensino da Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES, para o qual me candidatei, sendo chamado a fazer parte da turma regular de 2016. No caminho trilhado até então, em meio a leituras, diálogos, desconstruções, ressignificações e reconstruções, tomei como objetivo percorrer caminhos que me levassem à compreensão da atividade coral no ambiente escolar. Assim, aproximando-me da trajetória musical brasileira, tentei compreender de que maneira a música tem adentrado o espaço da escola, resultando nos meus problemas de pesquisa: De que maneira a participação no coral escolar pode contribuir para o processo de experiência estética e social? Essa experiência pode resultar em rupturas na maneira de pensar, agir e se relacionar dos jovens cantores? A referida investigação foi realizada por meio de leituras e estudos de referenciais teóricos que me ajudaram a compreender o percurso da música brasileira, tais como Kiefer (1982), Fonterrada (2008), Villa-Lobos (2009)14, Penna (2010), Moraes e Saliba (2010), Bréscia (2011), juntamente com as propostas e legislação que inseriram, retiraram, modificaram e retomaram o ensino de música na escola a partir de Nunes (1992), Brasil (1997), Souza (2000) (2014), Loureiro (2003), Schaeffer (1990, 2011) Por outra via, busquei investigar o grupo de canto coral escolar, coordenado e regido por mim, através da metodologia de grupo focal. Assim, a presente dissertação está organizada da seguinte forma: no Capítulo 1, exponho minha trajetória profissional até a busca pelo Mestrado em Ensino da UNIVATES. No segundo, procuro compreender a trajetória da música no Brasil desde a chegada dos portugueses, as intervenções jesuíticas da Ordem da Companhia de Jesus até a vinda da corte portuguesa com o príncipe regente D. João. No terceiro, traço um olhar sobre o movimento nacionalista a partir da década de 1920, no qual discuto a respeito de referências por uma identidade nacional no campo das artes. No quarto, tento percorrer o processo de inserção da música na escola, através de referências, propostas, projetos e legislações até à Lei 11.769 de agosto de 2008, que prevê a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas públicas brasileiras. No quinto, avalio o papel da mídia na formação dos grupos de canto corais cênicos. No sexto, discorro sobre a presença da música coral na escola desde a década de 30 com o canto orfeônico e as preocupações de tal trabalho com um público em processo de 14Edição comemorativa do Guia Prático de Educação Musical de Heitor Villa-Lobos comentado a partir do trabalho de pesquisa de Vasco Mariz, Edino Krieger, Turíbio Santos, Jocy de Oliveira, Ernani Aguiar, Flávio Silva, Henrique Gandelman. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2009. 20 mudanças física, cognitiva e emocional. No capítulo 7, faço a contextualização da escola e do grupo que forma o início da oficina de canto coral. No oitavo, discuto a metodologia empregada na pesquisa e a escolha do trabalho com Grupo Focal, explanado de uma forma mais ampla no capítulo seguinte com a indicação dos componentes do GF, o planejamento dos encontros e a descrição de cada deles com seus objetivos e considerações dos alunos de forma escrita, falada e transcrita de gravações. Por fim, no décimo, transcrevo as impressões acerca da observação dos ensaios e do GF. 21 2 ABERTURA15 Ao nos referirmos à música, bem como à educação musical, constatamos que seu valor e sentidos têm sofrido modificações ao longo dos tempos em função da cultura, dos períodos históricos, políticos e social geograficamente construídos, além do contato com outras culturas e regiões. Partindo dessa premissa, aponto alguns pensamentos e reflexões relevantes em diversos momentos, do descobrimento do Brasil aos tempos atuais, para que se possa vislumbrar, mesmo que brevemente, a trajetória musical brasileira, assim como seu ingresso, declínio e regresso no meio escolar. O período do Brasil Colonial abarca muito do que foi coligido e produzido musicalmente no país desde seu descobrimento em 1500 até o ano de 1822, independentemente da origem indígena, africana ou europeia. A descrição desse tempo se encontra na “antiga historiografia da música brasileira que adotava como períodos, as próprias etapas de nossa evolução política: Colônia, Reino Unido, Império, República” (MORAES; SALIBA, 2010, p. 37). Assim, para iniciar essa trajetória, é imprescindível referenciar a música indígena aqui existente no período do descobrimento, apesar de, praticamente, ela não ter deixado vestígios na nossa música atual. As fontes relativas a esse período são relatos de portugueses e estrangeiros que por aqui passaram ou se radicaram (KIEFER, 1977). A mais antiga dessas referências, [...] sumaríssima, é encontrada na famosa Carta a El Rey Dom Manuel, de Pero Vaz de Caminha, escrita ‘Deste Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500’. Diz aí o missivista, em certa altura, referindo-se aos índios: e olhando-nos, assentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à 15Peça instrumental que pode introduzir uma obra de grande desenvolvimento, como uma ópera, cantata ou oratório, ou ser uma obra autônoma. 22 pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço16 (KIEFER, 1977, p.9). Entretanto, foi do pastor calvinista francês Jean de Léry (1536-1613), em 1557, o primeiro manuscrito com notação musical referenciando uma música indígena da etnia Tupinambá na baía de Guanabara, Rio de Janeiro. O registro está em seu relato “Viagem à terra do Brasil’ após dois anos de convivência no país. O canto e a dança da referida etnia (Tupinambá) causaram tamanho espanto que mereceram a seguinte descrição de Léry: Essas cerimônias duraram cerca de duas horas e durante esse tempo os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão harmonioso que ninguém diria não conhecerem música. Se, como disse, no início dessa algazarra, me assustei, já agora me mantinha absorto em coro ouvindo os acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilho repetido a cada copla: Hê, he ayre, heyrá, heyrayre, heyra, uêh. E ainda hoje quando recordo essa cena sinto palpitar o coração e parece-me estar ouvindo (LÉRY. 1972, p. 164). Léry também se mostrou conhecedor de melodia e solfejo musical, o que lhe permitiu a precisão suficiente para ditar a partitura do canto acima referido para um copista de música (Figuras 2 e 3). Cumpre também destacar não haver clara explicação sobre o tipo de ritmo ou padrão utilizado pelos músicos que tocavam o maracá para acompanhar essas músicas registradas por meio de partituras. Figura 2 - Notação da música Tupinambá Fonte: LÈRY (1585 in LÈRY 1972) 16CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rey Dom Manuel. Sabiá: Rio de Janeiro. 1968, p. 43. 23 No Brasil dos anos que se seguiram ao descobrimento, os Jesuítas da Companhia de Jesus conquistaram a confiança dos brutos17 mediante a música tocada e cantada nas primeiras missas aqui celebradas. Fundada oficialmente em 1534 por Inácio de Loyola, essa Ordem tinha a finalidade de disseminar a doutrina cristã entre os pagãos, levando-os a peregrinar por outros continentes. Ampliando sua atuação, principalmente no campo do ensino de jovens, seus membros buscaram a estruturação e uniformização das ações pedagógicas para as diversas escolas da companhia espalhadas pela província. Esse trabalho se deu por intermédio de diversos projetos, tais como [...] o de Anibal de Coudret, em Messina, em 1551, que Polanco18 denomina de ‘Plano de Estudos de Messina’ (De Ratione Studiorum Messanae) e três de Nadal. O primeiro foi datado de 1548 e intitulado ‘As Constituições do Colégio de Messina’ (Constitutiones Collegii Messanensis); o segundo, de 1552, é conhecido como ‘Disposição e Ordem para os Estudos Gerais’ (De Studii Generalis Dispositione et Ordine); e o terceiro, de 1553, chamava-se ‘Regra para os Estudos dos Colégios’ (Ordo Studiorum) (SOUZA, 2003, p. 10). Após meio século de acertos, adaptações e correções, os princípios dessas ações educativas foram consignados no documento definitivo em 1599 (SOUZA, 2003): a Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (Plano e Organização de Estudos da Companhia de Jesus), abreviadamente como Ratio Studiorum, cujas principais características eram a disciplina (vigilância constante, obediência e conceito de sanção uniformizada), a didática (repetição, memorização, emulação, premiação, academias estudantis) e o conteúdo (humanista, com ênfase nos clássicos gregos e latinos). Tudo pensado para ordenar as instituições de ensino de uma única maneira, visando permitir uma formação uniforme de todos que viessem a frequentar os colégios da Companhia de Jesus ao redor do mundo. Todavia, alicerçaram a Ratio Studiorum aos costumes europeus, objetivando formar o bom súdito do Rei e o cristão devoto e temente à Igreja (BACHA FILHO, 2008). O rigor metodológico na imposição da cultura europeia desconsiderava por completo o conhecimento e os valores locais. Esse documento, que estabelecia o modo de administração, currículo e metodologia do sistema de educação da Companhia de Jesus, apresentava as opções de três Cursos: o Secundário, com duração de sete anos para estudos inferiores; de Teologia e 17COSTA (2009, p.10), citando Couto (1998, p. 316), afirma que aconteceram muitas discussões sobre a natureza dos índios, isto é, se eram brutos animais destituídos da razão que comiam gente, ou eram humanos dignos de receber a boa nova da fé e conclui que, conforme pronunciamento de Roma por um documento de 1537 “, o Papa Paulo III (1534-1549) confirmou solenemente que os Ameríndios eram verdadeiros homens capazes de receber a doutrina da nossa fé”. 18Juan Alfonso de Polanco (1517 – 1576) foi um sacerdote jesuíta, secretário e assessor mais próximo de Ignácio de Loyola. 24 Filosofia, para estudos superiores com duração de quatro e três anos de duração, respectivamente (NEGRÃO, 2000). Na declaração, não havia menção ao ensino de música (MARTINEZ e PEDERIVA, 2013). Porém, não há dúvidas de que a música fazia parte da rotina dos Jesuítas, principalmente nas pregações embora o padre Inácio de Loyola tentasse evitar que essa prática ocorresse entre os membros da Ordem. (MARTINEZ; PEDERIVA. 2013). O fato é que a Companhia de Jesus foi criada com o intuito de tratar assuntos religiosos, como catequese, pregação, confissão, comunhão, administração de sacramentos e a atuação junto ao povo através da educação e obras assistenciais (HOLLER, 2007). Os registros das práticas musicais jesuíticas se concentravam mais nas aldeias indígenas e não nos colégios das áreas urbanas. Em alguns momentos, isso até acontecia, sendo realizada por externos à Companhia de Jesus, como religiosos de outras ordens – sobretudo mercedários e carmelitas –, músicos contratados, seminaristas e estudantes dos colégios (MARTINEZ; PEDERIVA. 2013). Em 1549, com a chegada do padre Manoel de Nóbrega, intensificou-se o trabalho jesuíta no Brasil com a catequização dos índios, inicialmente para combater os hábitos “pecaminosos”, como a poligamia, a nudez e a antropofagia. O padre João de Azpilcueta Navarro19, ao perceber logo o interesse indígena pela música, utilizou-a com a finalidade de “domesticar” os nativos brasileiros, conseguindo, assim, o salvo-conduto para as suas missões. Em seus relatos, a música vocal e instrumental não aparecia apenas em cerimônias religiosas, mas, outrossim, com extrema frequência, em eventos seculares. Os Jesuítas constatavam que, apesar de simples, as músicas das celebrações tocavam no âmago, emocionavam, moviam os sentimentos e chegavam a comover os indígenas. “Havia uma influência indefinível e instintiva que atuava sobre a sensibilidade grosseira dos índios naqueles hinos que lhes pareciam vozes celestiais, alguma coisa de extático e sobrenatural” (ALMEIDA, 1942, p. 285). Podemos até pensar que foram os Jesuítas os primeiros professores de música europeia no Brasil; entretanto, corremos o risco de termos uma visão um tanto quanto distorcida a respeito da intervenção desses religiosos na música brasileira. Ou seja, essa compreensão pode nos levar à ideia de que essa congregação foi a responsável pelo desenvolvimento da base musical entre nós, o que não ocorreu de fato. Segundo Kiefer (1977), a música tinha uma função 19Historicamente, foi o primeiro padre a pregar no idioma brasílico e a transcrever em música polifônica (canto de órgão) as orações em forma de cantigas dos índios. 25 eminentemente catequética e visava, sobretudo, aos indígenas, brutos selvagens, e seus atos pecaminosos20. Com esse intuito, a colonização portuguesa no Brasil simplesmente ignorou a cultura dos povos que aqui se encontravam, impondo a sua própria, bem como hábitos e costumes, visando, dessa forma, transformar os indígenas em fiéis tementes a Deus e bons súditos da coroa portuguesa. Neste sentido, a função do ensino de música era impor aos nativos a cultura europeia, desconsiderando a dos colonizados. Como consequência, causaram a aculturação do índio de forma tão radical que, praticamente, não restaram vestígios da música brasileira do período do descobrimento. Para Fonterrada (2008), [...] o ensino de música se dava pela prática musical e pelo canto. Não havia o conceito de educação musical tal como compreendemos hoje e, nesse sentido, esta estava ligada ao mesmo modo europeu de promover a educação e a prática musical nas igrejas, conventos e colégios” (p. 209). Além da catequização, os jesuítas também se ocuparam em espalhar às novas gerações a mesma doutrina religiosa, bem como os costumes e o idioma. O olhar da Ordem também se voltou às comunidades urbanas que, aos poucos, formavam-se, iniciando ainda um trabalho em colégios e seminários dotados de acervos bibliográficos, únicos na época. A congregação desenvolveu no Brasil duas categorias de ensino: a instrução simples primária, escolas de primeiras letras para os filhos de portugueses e de índios; a educação média, colégios destinados aos meninos brancos que formavam mestres em artes e bacharéis em letras (OLINDA, 2003). Os referidos missionários logo perceberam na música um meio eficaz de sedução e convencimento dos indígenas (HOLLER, 2006), que, certamente, influenciou nossa cultura nos tempos que se seguiram. As primeiras gerações de brasileiros eram embaladas por acalantos portugueses em seu talião ou em tupi21 e cresciam ouvindo romances cantados e tocados pelos pais. Alguns desses textos seculares eram considerados lascivos, motivo pelo qual indignavam os jesuítas, que tratavam de reescrever versões mais brandas e/ou voltadas à doutrina católica, responsável por traduzir orações e hinos católicos para o idioma tupi (BUDASZ, 2006). 20Grifo nosso referindo-se aos hábitos indígenas indesejáveis pela igreja católica e pela corte na época. 21Os povos tupi e guarani lutavam pelo domínio do litoral e, no início do século XVI, os primeiros ocupavam boa parte da costa, localizada entre o Ceará e a Cananéia (São Paulo) enquanto os segundos dominavam a “faixa litorânea situada entre a ilha de Cananéia e a lagoa dos Patos (Rio Grande do Sul), além de importantes regiões do interior desse espaço” (COUTO, 1998, p. 56). 26 Segundo Holler (2010), aos poucos, as melodias e instrumentos europeus foram inseridos entre os índios, pardos e negros libertos. Assim, a música europeia acabou, gradualmente, impondo-se à nativa, em mais um exemplo de preponderância da Metrópole sobre a Colônia, contribuindo para que a cultura indígena quase sucumbisse (FUCCI-AMATO, 2012). Trata-se, portanto, da perda gradual da identidade musical indígena daquele período. Este era o interesse da Coroa portuguesa: concretizar a colonização da nova terra e de seus habitantes por meio da inserção da cultura europeia (MARTINEZ e PEDERIVA, 2013). Como em todo projeto de dominação, o dominador deve destruir a cultura do dominado, acabando com suas crenças, costumes, hábitos, língua e, obviamente, sua música. Longe dos centros urbanos, a atividade econômica que se sobressaía era o engenho em função do qual se aglomeravam pequenos povoamentos. Esses engenhos eram administrados pela Casa Grande22, que também se tornara o local de convivência social, religiosa e educacional, onde [...] a música era cultivada como auxiliar no fluir das atividades sociais, como passatempo na intimidade do lar, acompanhando momentos de devoção religiosa ou como demonstração de civilidade e poder para os olhos e ouvidos externos. E era por isso que a prática musical também fazia parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas diferentes, teriam os músicos escravos — cantores e charameleiros23 — que participariam do aparato de propaganda e demonstração de poder do senhor de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas (BUDASZ. 2006, p.17). Figura 3 – Exemplo de Charamela Fonte: http://terramater.pt/dulcaina/ Como símbolo de distinção, era comum ter negros escravos músicos no inventário das famílias de posses para os quais eram providenciadas roupas especiais e acesso a um vasto repertório de música. Tratava-se da música europeia erudita que, para tal desenvoltura, faziam-se necessários conhecimentos profundos de teoria musical, solfejo e a prática disciplinada de cada instrumentista. Para Kiefer, 22A casa-grande foi casa de morada, vivenda ou residência do senhorio nas propriedades rurais do Brasil colônia a partir do século XVI. Tudo no engenho girava em torno da casa-grande, sendo ela uma espécie de centro de organização social, política e econômica local (Disponível em: http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/ acessado em 26/01/2016). 23Músicos que tocavam o instrumento musical de sopro denominado charamela (Figura3), construído em madeira e utilizando uma ou duas palhetas para produzir o som. 27 [...] o conhecimento da literatura musical erudita chegava facilmente aos ouvidos do povo por uma classe que representava a ponte. Igualmente aos povos indígenas, a cultura do povo negro também sucumbiu ainda que parcialmente pelo desrespeito e imposição da cultura que aqui aportou (1977, p. 15). A convivência e a miscigenação entre europeus, índios e africanos desenvolveram um cenário musical rico e profícuo com estilos variados de ritmos, textos, instrumentos melódicos, harmônicos e rítmicos. Essa riqueza musical prossegue até os dias atuais com características regionais e a ecumenia de povos que fizeram do Brasil o seu lar. Em 1808, no Brasil, teve início o período chamado Classicismo, quando o Príncipe Regente, Dom João de Bragança, aportou com sua corte no Rio de Janeiro fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte. A família real trouxe consigo o acervo da biblioteca musical dos Bragança; na época, uma das melhores da Europa. Ademais, acompanhava-a uma comitiva superior a quinze mil pessoas de diversas áreas de atuação, fato que possibilitou o surgimento de algumas instituições culturais, cursos superiores, academias militares e teatros (LOUREIRO, 2003). Com a intenção de difundir a música erudita europeia, a Corte tratou de incluir no séquito músicos renomados de Lisboa e da Itália por seu virtuosismo e prestigiada qualidade musical. Nesse meio europeu da época, vimos desenvolver o trabalho do primeiro compositor de renome nascido no Brasil, o padre José Maurício Nunes Garcia, que deixou um acervo de composições sacras para orquestra e coro à capela. Garcia nasceu no Rio de Janeiro em 22 de setembro de 1767 e [...] foi o primeiro grande expoente musical brasileiro a ter reconhecimento internacional por sua obra. Apesar do desenvolvimento musical da colônia ter possibilitado o aparecimento de bons músicos (como em Minas Gerais, Bahia e São Paulo) nenhum brasileiro, até aquela época, recebera reconhecimento maior, tanto de seus conterrâneos quanto de eventuais viajantes que testemunharam sua arte e habilidades (ESTEVES, 2000, p. 1). Apesar da chegada desses importantes músicos e da inovação cultural, no que se referia aos instrumentos e concertos orquestrais, no Brasil, ainda não havia o ensino de música nas escolas. Todavia, o status atingido pela categoria musical erudita e o consequente interesse da burguesia provocaram a proliferação de professores particulares dessa arte (LOUREIRO, 2003). Cumpre destacar que não apenas a erudita conquistou espaço, mas toda a forma de expressão musical que aqui se fazia presente em todas as camadas sociais. 28 Convém ressaltar que, apesar da imposição da música erudita pelos nossos colonizadores, houve a convivência de duas categorias musicais distintas, separadas apenas pelas suas funções. Uma produzida pelos povos indígenas que aqui viviam antes da chegada dos portugueses e que se aculturou à música de origem africana; outra, europeia, dos que para cá vieram. Dessa mistura, surgiram ritmos, melodias e harmonias diversas, que continuam em transformação até os nossos dias, conservando, porém, uma parcela significativa de suas funções (MORAES e SALIBA, 2010), sendo atribuídos os conceitos de música folclórica ou popular a partir do final do século XIX. A música europeia, produzida por [...] músicos profissionais principalmente para cortes, teatros e instituições religiosas e que, a partir de inícios do século XX, começou a ser chamada de ‘erudita’ ou ‘artística’. [...] mais sujeita às regras, mais dependente de relações econômicas e normalmente criada pelo auxílio da escrita musical, teve no Brasil, um desenvolvimento esteticamente dependente de sua evolução na Europa, mas funcionalmente, capaz de se adaptar às circunstâncias sociais e econômicas observadas no período colonial (p. 38). No período do século XX, houve, de um lado, uma alternância entre as referências europeias e a produção de uma linha própria; de outro, uma dicotomia que perpassava o erudito e o popular. Essa alternância fomentou uma tomada de consciência no meio artístico, intelectual e da crítica musical, resultando em uma dinâmica cultural que, paulatinamente, foi ressignificando e modificando os movimentos artísticos. Ressignificação que influenciou não apenas o Modernismo, mas o avanço da Vanguarda Dodecafônica, da Bossa-Nova, do Tropicalismo e tantos outros movimentos que se seguiram no século seguinte (TRAVASSOS, 2000). Mas, no Brasil, as rupturas com as referências europeias nas artes se fortaleceram com os movimentos nacionalistas quando artistas buscaram uma identidade artística nacional e uma maior liberdade de expressão, aproveitando a tendência do final do século XIX justamente na Europa. 29 3 A MÚSICA E O NACIONALISMO Um fenômeno mundial importante na música foi o sentimento de patriotismo e amor à língua. Como exemplos do século XIX, citam-se os músicos Wilhelm Richard Wagner24 e Giuseppe Verdi25, dando início a um movimento nacionalista que, no Brasil, foi seguido também por Mário de Andrade a partir de 1920. O autor de Pauliceia Desvairada defendia a reflexão por meio da pesquisa sobre a música popular (folclórica), ocorrendo, assim, a [...] efetivação do movimento nacionalista brasileiro [...] em 1928, quando Mário de Andrade (1893-1945) propôs o desenvolvimento de um projeto nacional-erudito popular para o país, colocando a intenção nacionalista e o uso sistemático da música folclórica como condição indispensável para o ingresso e a permanência do artista na república musical (FUCHI-AMATO. 2007b, p. 211). O sentimento de orgulho e a paixão pela língua materna, sua literatura, cultura, terra, entre outros, são alguns ingredientes que fizeram aflorar o nacionalismo, tornando-o um movimento complexo pelo mundo. No Brasil, ele teve início no período colonial e [...] processa-se de forma linear, desde os compositores coloniais que produzem na Metrópole, passando pela emoção brasileira que já se manifesta no internacionalismo de Carlos Gomes26 e pela busca incipiente de motivos brasileiros (Itiberê, Nazareth, Levy, Nepomuceno), até chegar ao aproveitamento e pesquisa do folclore na elaboração de uma música brasileira (Gallet e Mário de Andrade) (FREITAG, 1972, p.48). Nas artes plásticas, a pintora Anita Malfatti realizou a primeira exposição de trabalhos em 1917 apresentando influências do Cubismo, Expressionismo e Futurismo. A artista, na 24Wilhelm Richard Wagner (1813-1883), músico alemão, nascido em Leipzig. 25 Giuseppe Fortunino Francesco Verdi (1813 – 1901), foi um compositor de óperas do período romântico italiano, sendo na época considerado o maior compositor nacionalista da Itália. 26Antônio Carlos Gomes (1836 – 1896) foi o mais importante compositor de ópera brasileiro. Destacou-se pelo estilo romântico por meio do qual obteve carreira de destaque na Europa. Foi o primeiro compositor brasileiro a ter suas obras apresentadas no Teatro Alla Scala de Milão - Itália. 30 ocasião, recebeu duras críticas, principalmente de Monteiro Lobato, relatadas, em seu artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 20 de dezembro de 1917: Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas [...] A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. [...] embora eles se deem como novos precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação. [...] essas considerações são provocadas pela exposição da senhora Malfatti onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia (LOBATO, 1917, p. 7). Entretanto, essas críticas incentivaram os demais artistas que lutavam pela ruptura dos padrões europeus a buscarem uma identidade nacional e liberdade de expressão, culminando com a realização da Semana de Arte Moderna, que teve início em 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Aberta com o poema ‘Os sapos”, de Manoel Bandeira, ironizou o discurso parnasiano, o qual primava pela forma, valorizava a ciência e o positivismo, ignorando o subjetivismo e as emoções. Logo, foi na década de 1920 que a ideologia nacionalista ganhou força, introduzindo as modificações exigidas por diversos fatores, como a Primeira Guerra Mundial, o primeiro grande surto industrial interno, os processos de urbanização, as conturbações do processo eleitoral da sucessão de Epitácio Pessoa, a Semana de Arte Moderna, o surgimento do Partido Comunista (LIMA, 2008). Dessa maneira, o sentimento nacionalista se fortaleceu com as mais diversas colorações, formas e correntes políticas, econômicas e culturais, envolvendo todas as linguagens artísticas. A partir de 1920, Mário de Andrade iniciou suas críticas à música modernista erudita, carregada de referências europeias, visando a um “discurso sobre a identidade cultural fundamentando-se numa ideia de brasilidade e seus possíveis diálogos com algumas técnicas das linguagens contemporâneas europeias” (CONTIER, 2013, p. 106). Esse discurso se fez presente também em outras expressões artísticas, como na pintura e literatura. Na música, o movimento nacionalista brasileiro se intensificou em 1928, quando Mário de Andrade fomentou um projeto nacional-erudito-popular (FUCCI AMATO, 2007), tendo como condição fundamental a utilização sistemática da música folclórica nacional (música popular) como fontes de inspiração e reflexão. O músico, então, deveria imergir na música folclórica, imitando suas formas, estilizando-as e agregando-as às suas técnicas instrumentais. Segundo o autor, “toda arte brasileira de agora que não se organizar diretamente do princípio da 31 utilidade, mesmo a tal valores eternos: será vã, será diletante, será pedante e idealista” (ANDRADE, 1977, p. 130). Mário de Andrade, em 1936, atuando como diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, patrocinou a Missão de Pesquisas Folclóricas. Esta, dois anos depois, gerou um levantamento voltado à etnografia nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil, registrada em [...] 169 discos27 com as mais diversas formas de cantigas do folclore brasileiro; registrou também, em 6 rolos cinematográficos silenciosos de 16 mm, 12 manifestações folclórico-musicais, além de 1.060 fotografias (arquitetura popular e religiosa), e de anotações, contidas em 7.000 páginas, sobre o material coletado, que inclui 689 objetos, entre outros documentos (CONTIER, 2013, p. 107). As colorações musicais nacionalistas ecoaram também na música de Heitor Villa-Lobos (1887- 1959)28, que buscou no folclore a sua fonte de inspiração (FUCCI AMATO, 2007, p.211). O músico fundiu estilos musicais, como as Bachianas, remetendo o folclore brasileiro ao estilo de Johann Sebastian Bach29, orquestração de peças de nosso folclore, choros, poemas sinfônicos e fantasias. A fruição e a qualidade de suas obras chamaram logo a atenção dos críticos musicais, pois, segundo Fernando de Azevedo, expressavam “uma tal riqueza de ideias, uma tão prodigiosa espontaneidade, tão grande exuberância e vitalidade de ritmos, que não tardaram a colocá-lo, no juízo dos críticos de mais autoridade, entre os primeiros compositores das duas Américas” (1971, p. 488). O Nacionalismo, porém, consolidou-se com uma camada social bastante organizada e que exercia significativa influência sobre a história nacional mais recente, articulando um período de repressão à liberdade: os militares, que promoveram uma “arrumação” nas ideias nacionalistas adaptadas aos seus interesses. Esse período, que durou de 1964 a 1984, concedeu contornos positivistas e autoritários ao nacionalismo brasileiro (LIMA, 2008). Cabe relembrar que, como instituição, além de 1964, o exército também assumiu o poder séculos antes, participando dos interesses políticos da nação durante a guerra do Paraguai. 27As gravações e reproduções desses discos eram feitas em 78 rpm (rotações por minuto). 28 Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Considerado, ainda em vida, o maior compositor das Américas, com cerca de 1.000 obras, sua importância reside, entre outros aspectos, no fato de ter reformulado o conceito brasileiro de nacionalismo musical, tornando-se seu maior expoente. Foi também, através dele que a música brasileira se fez representar em outros países, culminando por se universalizar. 29Johann Sebastian Bach (1685 – 1750) foi compositor, cantor, cravista, maestro, organista, professor, violinista, oriundo do Sacro Império Romano-Germânico, atual Alemanha. Foi um dos mais profícuos compositores do ocidente. O número exato de suas obras é desconhecido, mas o catálogo assina mais de mil composições, entre elas, inúmeras peças com vários movimentos para extenso conjunto de executantes. 32 4 A MÚSICA NA ESCOLA Para entender o respaldo legal da educação musical no Brasil, dispus-me a resgatar as Cartas Constituintes e demais Leis e projetos relacionados à educação. Inicialmente, dediquei- me à leitura da primeira Constituição Brasileira, outorgada por D. Pedro I, em 25 de março de 1824. Cumpre frisar que o referido documento faz menção à educação apenas em seu último artigo (Art. 179), estabelecendo, em seu Inciso XXXII, que “a Instrução primária é gratuita a todos os Cidadãos” (CAMPANHOLE e CAMPANHOLE, 1983, p.63). Essa Carta Constitucional criou os primeiros direitos e deveres em relação à educação brasileira. Apesar de o único princípio oferecido à educação pela Constituição de 1824 ter sido o da gratuidade, para a época, era algo considerado ideal, desejável e que, para atingi-lo, demandaria organização e articulação de políticas públicas, enfrentando as limitações e entraves que poderiam os acometer no período (SAVIANI, 2013). O mesmo se repetiu na Segunda Constituição, em 24 de fevereiro de 1891, a primeira do regime Republicano. Até então, não havia referência à educação musical. No século XX, houve um impacto profundo ocasionado por mudanças reflexas em todos os aspectos da humanidade. Segundo Goulart (2000), [...] Karl Marx de certa forma tirou o destino humano das mãos dos indivíduos e entregou-o às engrenagens da História. Sigmund Freud acabou com a linha divisória que, acreditávamos, separava a loucura da sanidade mental: com a Interpretação dos Sonhos ele mostra que o doente mental não é, afinal de contas, tão diferente de nós. Albert Einstein e sua Teoria da Relatividade fizeram o mundo saber que o tempo podia transcorrer mais depressa ou mais devagar. E que o espaço podia se curvar. A partir de então ficou muito difícil manter a ideia de que o mundo era um lugar simples, regulado por valores universais e imutáveis (GOULART, 2000, p. 3). Nesse efervescente cenário do século XX, surgiram novas correntes pedagógicas, como as de John Dewey, questionando a problematização em sala de aula e o respeito pelo 33 conhecimento dos alunos; Jerome Bruner, identificando a educação como um processo ativo no qual o professor é o responsável por criar as dúvidas e problematizar os conteúdos; Jean Piaget esclarecendo que a criança aprende de maneira diferente do adulto. Ademais, Jean- Jacques Rousseau, Johan Heinrich Pestalozzi, Henri Bergson foram precursores das escolas novista e construtivista. Essa movimentação se fez presente também no ensino de música, destacando-se educadores musicais pelo mundo, que se valeram de práticas pedagógicas inovadoras para lançar as sementes para discussões sobre as bases da educação musical moderna. Entre eles, estavam Zoltán Kodály30 (1882-1967); Shinichi Suzuki31 (1898-1998); Carl Orff32 (1895 – 1982) e Émile Jaques-Dalcroze33 (1865 -1950). Seus métodos, utilizando desde a rítmica, o movimento do corpo, a escala pentatônica, a improvisação e o fazer musical do aluno, avançaram mundo afora, atravessaram e se incorporaram à educação musical brasileira. Na Hungria, Zoltán Kodály atentava no folclore húngaro através do canto coletivo como uma forma de desenvolver o intelecto e a fruição musical, além de ser uma fonte de prazer atuando fortemente nas emoções. No Brasil, Villa-Lobos, em sua expressão como educador e compositor de inúmeras obras voltadas exclusivamente ao canto orfeônico, pode ser compreendido em sua intenção de desenvolver socialmente os brasileiros, bem como suas potencialidades musicais. Se pretendemos avaliar o cenário da educação musical brasileira, [...] vemos que nele se verifica uma tensão entre alternativas metodológico- ideológicas cujo sentido não pode ser desvinculado do processo histórico relativo à evolução das ideias pedagógicas entre nós. Trata-se de um processo no qual a década de 30 se oferece como momento de institucionalização de duas matrizes educacionais que, tanto no que respeita a seus métodos quanto aos seus fundamentos ideológicos, marcaram significantemente a evolução da nossa pedagogia musical. O Canto Orfeônico de Heitor Villa-Lobos e a Iniciação Musical de Antônio Leal de Sá Pereira e Liddy Mignone constituem, portanto, as sistemáticas que foram formadas e, ao mesmo tempo, que somaram na formação da base sobre a qual puderam vir descansando as muitas e muitas outras iniciativas que hoje colocamos como parte da história do nosso ensino musical (MENEZES, 1995, p. 8). 30 Zoltán Kodály (1882-1967), estudioso do folclore húngaro (1905) e criador do método ativo de ensino musical que leva seu nome, afirmava que o canto, obrigatoriamente, deveria anteceder ao ensino de qualquer instrumento musical. 31 Shinichi Suzuki, (1898 - 1998) nasceu em Nagoya – Japão. Foi um músico, filósofo e educador japonês e o inventor do método internacional Suzuki de educação musical e desenvolveu uma filosofia para educar pessoas de todas as idades e habilidades. 32 Carl Orff (1895 – 1982), músico alemão, nascido em Munique, um dos mais destacados do século XX, famoso sobretudo por sua cantata Carmina Burana, tem, no entanto, a sua maior contribuição situada na área da pedagogia musical, com o Método Orff de ensino musical, baseado na percussão e no canto. 33 Émile Jaques-Dalcroze33 (1865 -1950), nascido em Genebra, desenvolveu um sistema de ensino de música baseado no movimento. Foi um dos precursores dos chamados “Métodos Ativos”. 34 No período 1920 – 1930, dois elementos, considerados fundamentais, uniram-se à circulação da música popular em nível nacional: o rádio e a indústria fonográfica. Os meios de comunicação de massa ampliaram a propagação, o conhecimento e o gosto pela arte musical. Com a difusão da música em âmbito nacional, nas décadas de 1930 a 1950, a relação se estreita também entre a educação musical e o nacionalismo, guiados pelo projeto educação musical de Heitor Villa-Lobos, tendo como ferramenta principal o canto coletivo, também chamado de canto orfeônico e, mais tarde, canto coral. Segundo Amato (2007), [...] para realizar uma análise mais precisa do momento da inserção de Villa-Lobos na vida educacional do país, nos ateremos à perspectiva historiográfica elaborada por Nunes (1992), que relata a Reforma da Instituição Pública no Distrito Federal, entre 1931 e 1935, a qual, liderada por Anísio Teixeira (1900-1971), àquela época secretário do Departamento de Educação da Prefeitura do Distrito Federal, contou com a colaboração de Villa-Lobos (AMATO, 2007, p. 215). Em meio a esse contexto, Anísio Teixeira criou uma rede de ensino que contou com o apoio de profissionais de diferentes áreas, intelectuais da época. Dentre estes, destacam-se Cecília Meireles, Roquete Pinto, Cândido Portinari e o próprio Villa-Lobos. Apoiado pelo educador Anísio Teixeira, Heitor Villa-Lobos desenvolveu um projeto de educação musical por meio do canto orfeônico, tornando-se disciplina obrigatória nos currículos escolares. Um dos objetivos desse projeto era auxiliar no desenvolvimento da estética, da moral e da ética, além dos ideais nacionalistas (AMATO, 2007). O processo oferecido na década de 1930 apresenta um momento de institucionalização de duas matrizes da educação musical que [...] tanto no que respeita a seus métodos quanto aos seus fundamentos ideológicos, marcaram significantemente a evolução da nossa pedagogia musical. O Canto Orfeônico de Heitor Villa-Lobos e a Iniciação Musical de Antônio Leal de Sá Pereira e Liddy Mignone constituem, portanto, as sistemáticas que foram formadas e, ao mesmo tempo, que somaram na formação da base sobre a qual puderam vir descansando as muitas e muitas outras iniciativas que hoje colocamos como parte da história do nosso ensino musical (MENEZES, 1995, p. 8). Com a Constituição de 1934, a nação brasileira é presenteada com um capítulo inteiro sobre o Direito Educacional. Entretanto, com a criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em 196134, a disciplina de Canto Orfeônico foi extinta oficialmente da Educação Básica, sendo substituída pelo ensino optativo de Música, Dez anos depois, gerada sob o regime militar, uma nova versão para a LDB35 de 1961, apresenta a obrigatoriedade do ensino de Educação Artística. Surgiu, então, a figura do professor polivalente, com conhecimentos pouco aprofundados sobre todas as expressões artísticas 34Lei n. 4024/1961 35Lei n. 5692/1971 35 oferecidas nos Cursos de Graduação, que deveriam dar conta do conteúdo de Artes. Tal movimento provocou o declínio da educação musical na escola, o que resultou em uma redução de educadores musicais. Em 1973, foram aprovados o Parecer CFE nº 1284/1973 e a Resolução CFE nº 23/1973, que normatizaram o Curso de Licenciatura em Educação Artística, combinando a habilitação geral com as específicas (BRASIL, 1982, p. 33-34). Com o fim da ditadura militar, na metade dos anos 80, a Assembleia Nacional Constituinte abriu discussões sobre a criação da nova Constituição Federal, finalizada e disponibilizada em 5 de outubro de 1988, regulando competências à educação nacional através da LDB. A construção dessa Lei trouxe, em seu bojo, a participação cidadã de diferentes segmentos da sociedade civil organizada. Para a área da educação, destaca-se o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública na LDB (TEIXEIRA, 2008). Na década de 1990, obstáculos dificultavam a efetivação de políticas púbicas sociais tamanha a descrença no Estado como agente “competente” na promoção dessas políticas” (LESSA, 2012, p.26) apesar do discurso governamental apontar a estabilidade e a retomada de crescimento. Em meio a esse cenário e almejando uma melhoria em seu status internacional e comercial, o governo “comprou” uma indicação internacional de reforma de Estado e suas instituições. Isso se efetivou a partir de diagnósticos negativos que evidenciavam uma crise na educação brasileira em todos os sentidos; entre eles, a péssima qualidade de trabalho nas escolas e a necessidade urgente de melhoria na qualidade da educação (LESSA, 2012). A produção de uma nova imagem dizia, principalmente, respeito à conversão da educação em mercadoria ao invés de direito social, usando para tanto os jargões empresariais, como “eficiência”, “competência”, “excelência” entre outros. De fato, a adoção de medidas necessárias às mudanças e a inserção do Brasil no mercado internacional tornaram perceptível a relação entre a imposição, as reformas e modelo de economia capitalista, não permitindo que [...] os Estados adotassem medidas autônomas de decisão, pois a economia encontra- se num tal grau de integração que deve ser orquestrada via uma perspectiva global e não local, daí o papel que cabe aos Estados, principalmente os da periferia do sistema, pois aumenta a dependência em relação aos interesses que estão fora de sua autonomia territorial, além de serem entendidos como estruturas que também competem economicamente nesse mercado internacional (...) Tendo isso como pressuposto, os Estados devem sofrer uma profunda reforma, reduzindo seus gastos e custos, ao mesmo tempo em que se facilitam as condições de exploração e acumulação capitalista, permitindo que as empresas atuem em todas as esferas de potencial de lucratividade. Nesse contexto é que entendemos as atuais reformas que permeiam ao Estado brasileiro [...]. (FERRAZ, 2002, p. 212) 36 Conforme Andrioli (2002), alguns educadores brasileiros rejeitaram a participação na formulação e implementação de tal sistema justamente pelo viés mercadológico atribuído à educação. O fato é que houve a participação do FMI e do Banco Mundial na formulação e implementação das reformas. No campo do ensino, as mudanças exigidas pelo novo projeto imposto pelo governo na forma de ações e proposições incluíam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.394/96). Ademais, criaram-se os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental e Médio, Diretrizes Curriculares para o Ensino Superior, além de Sistemas Nacionais de Avaliação expressos em provas para todos os níveis (FERRAZ, 2002). Os PCN, como instrumento normativo, tiveram sua justificação pela necessidade de cumprir o disposto no artigo 210 da Constituição Federal, ratificado pela LDB (1996), que determinava a fixação de “conteúdos mínimos para o Ensino Fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988, 1996). Por outro lado, em nenhum momento de sua efetivação, é mencionado o respeito às especificidades regionais, tampouco às culturas, economias, estilos de vida, linguagens e produção subjetiva de cada localidade de nosso país diverso e heterogêneo. Assim, em 1997, foram publicados os documentos de disseminação dos PCN para as quatro primeiras séries que, além de cobrirem áreas que compunham o ensino nessas séries — Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais, Arte e Educação Física —, trouxeram, entre as inovações, a proposta de sistematização do ensino de questões de ética, orientação sexual, meio ambiente, saúde e pluralidade cultural. São os chamados “temas transversais”, que não constituem disciplinas específicas de ensino, mas perpassam o conteúdo de cada matéria e todo o convívio social da escola. No processo de elaboração dos PCN, mobilizaram-se especialistas e professores das diversas áreas do conhecimento que compunham o currículo da 1ª à 4ª série. Submetidos, em versão preliminar, à avaliação de outros profissionais da educação (pareceiristas), os documentos foram revisados e modificados segundo as contribuições encaminhadas por esses últimos. A versão final constitui um conjunto de publicações contendo não apenas as diretrizes relativas aos conteúdos, mas também orientações metodológicas para a sua aplicação. Esse conjunto foi enviado a todos os professores que atuavam nessas séries do Ensino Fundamental no Brasil. Buscava-se, assim, naquele momento, beneficiar cerca de dezesseis milhões de crianças, com seus seiscentos e oitenta e dois mil professores. Em 1998, foram publicados os documentos relativos aos PCN de 5ª a 8ª série, que compreendiam os 37 conteúdos básicos das disciplinas e temas transversais, a reestruturação das políticas federais para o Ensino Fundamental. Nas artes, a justificativa da proposta foi propiciar o pensamento artístico, que “[...] caracteriza um modo particular de dar sentido às experiências das pessoas por meio dela” (BRASIL, 1997, p. 15). Ou seja, através da arte, a intenção era possibilitar aos alunos experiências estéticas e sociais que potencializassem sua sensibilidade, sua percepção a respeito de si e do mundo à sua volta, bem como sua reflexão, imaginação e criatividade. Os PCNs, que entraram em circulação no Brasil a partir de 1997, desdobraram a disciplina de Artes em quatro linguagens: Artes visuais, Dança, Música e Teatro. Dentro da linguagem “Música”, os PCNs atentam para a diversidade cultural dos alunos aliadas às novas tecnologias responsáveis pela modificação do que se entende por música, sua apreciação e seu fazer em cada cultura, região ou espaço temporal. A partir dessa diversidade, considerava-se ser necessário abrir espaço para o aluno trazer a sua música à sala de aula, “acolhendo-a, contextualizando-a e oferecendo acesso a obras que possam ser significativas para seu desenvolvimento pessoal em atividades de apreciação e produção” (BRASIL, 1997, p. 75). Faz-se necessário considerar que a implantação dos PCN, embora tenha sido instituída como um currículo pronto e global, pouco considerando as diferenças regionais e culturais, entrou com força na educação brasileira, dando um rumo ao currículo nacional e às práticas dos professores, de modo que ainda continuam circulando nas escolas como um material de referência. Porém, vale ressaltar que a inserção de tais materiais no Ensino Brasileiro não foi uma estratégia apolítica e isenta de intenções. Manter um currículo padrão, por meio de parâmetros nacionais, garante, de alguma forma, uma homogeneização de pensamento. 4.1 O retorno da música na escola Com a ausência formal do ensino de música na escola, em meados de 2004, iniciaram-se discussões acerca da necessidade de seu retorno para a sala de aula. O movimento contou com a participação de cantores e compositores de renome no cenário musical nacional e, a partir de 2005, foram integrados aos grupos de discussões, professores e pesquisadores em 38 educação musical (BELÓQUIO; GARBOSA, 2014). Apresentada ao Senado Federal em 2006, em audiência pública, tais discussões obtiveram acolhimento, resultando no Projeto de Lei número 343/2006, composto por três artigos e dois incisos. Porém, além de aprovação pelo Senado, necessitaria também a aprovação da Câmara de Deputados Federais e para tanto, também necessitou mobilizações. Na Câmara de Deputados Federais o PL passou a ter o número 2732-b/2008 através de seu relator, o Deputado Federal e músico Frank Aguiar (PEREIRA, 2010). Após um longo percurso, e sancionado pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, as discussões ganharam sustentação pela Lei 11.769 de 18/08/2008 e a nova Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional. A importância dessa disciplina, conceitos e seu papel dentro do currículo escolar vinham despertando a atenção não somente de profissionais da área, mas de educadores, gestores e estudiosos em educação. Assim, a Lei 11.769 sancionou a obrigatoriedade da Educação Musical em todo o Ensino Básico e determinou um prazo de três anos para a adequação das instituições de ensino para sua efetivação. Porém, o prazo findou em 2011, e a realidade mostrou uma outra face: a pouca clareza da Lei; a não necessidade de ser disciplina exclusiva, podendo fazer parte do ensino de artes, ou seja, o conteúdo é obrigatório, mas a disciplina não; a falta de clareza no propósito da Educação Musical; a ausência de auxílio na implementação da Lei pelos estados e municípios; a falta de conhecimento sobre a estrutura das instituições necessária para tal. Por um lado, existia a contrariedade a Lei com a LDB de 1996, que exige a formação em Nível Superior para lecionar no Ensino Básico (Art. 62º); por outro, o artigo 2º da lei 11.769/2008, que referencia a formação do profissional, vetado com a seguinte justificativa: Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do § 1o do art. 66 da Constituição, decidi vetar parcialmente, por contrariedade ao interesse público, o Projeto de Lei no 2.732, de 2008 (no 330/06 no Senado Federal), que Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica. Ouvido, o Ministério da Educação manifestou-se pelo veto ao seguinte dispositivo: Art. 2o Art. 2o O art. 62 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único: Art. 62. ........................................................................................................................ Parágrafo único. O ensino da música será ministrado por professores com formação específica na área’ (Vetado). Razões do veto 39 No tocante ao parágrafo único do art. 62º, é necessário que se tenha muita clareza sobre o que significa ‘formação específica na área’. Vale ressaltar que a música é uma prática social e que no Brasil existem diversos profissionais atuantes nessa área sem formação acadêmica ou oficial em música e que são reconhecidos nacionalmente. Esses profissionais estariam impossibilitados de ministrar tal conteúdo na maneira em que este dispositivo está proposto. Adicionalmente, esta exigência vai além da definição de uma diretriz curricular e estabelece, sem precedentes, uma formação específica para a transferência de um conteúdo. Note-se que não há qualquer exigência de formação específica para Matemática, Física, Biologia etc. Nem mesmo quando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional define conteúdos mais específicos como os relacionados a diferentes culturas e etnias (art. 26, § 4o) e de língua estrangeira (art. 26, § 5o), ela estabelece qual seria a formação mínima daqueles que passariam a ministrar esses conteúdos. Essas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar o dispositivo acima mencionado do projeto em causa, as quais ora submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional (BRASIL, 2008). Mesmo com o veto, nos anos que se seguiram, a exigência foi a formação em nível acadêmico específico em música36 ou, em alguns casos, especialização na área, incluindo-se, no rol de dificuldades, o parco volume de músicos com licenciatura. Os motivos vão desde o financeiro37 até a opção profissional de ser um bacharel no instrumento de preferência e domínio, alçando uma carreira solo como músico ou buscando a inclusão em uma orquestra. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul abriu em 2008 as primeiras turmas de Licenciatura em Música na modalidade EAD, com polos distribuídos em onze municípios dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Espírito Santo, Rondônia e da Bahia. Em 2012, a instituição graduou cento e oitenta e nove educadores musicais, um número insuficiente para a demanda que a Lei ora citada exige. Complementando a Lei 11.769, o Conselho Nacional de Educação e a Câmara de Educação Básica publicaram, no Diário oficial da União, em 11/05/2016, a Resolução nº 02 de 10 de maio de 2016, orientando sobre a operacionalização do ensino de música nas escolas de Educação Básica. Tal orientação se destina às escolas, Secretarias de Educação, Instituições formadoras de profissionais e docentes de música, Ministério da Educação e Conselhos de Educação, indicando as competências de cada instituição para que se possa efetivar aulas de educação musical. Contudo, não houve divulgação em nenhum outro meio de comunicação ou discussão sobre a citada orientação. 36Ver LDB Capítulo VII – Dos Profissionais da Educação, Art. 62. 37O salário de um professor de Educação Básica não atrai jovens formados em música, que optam por trabalhar nos conservatórios musicais ou participar de uma orquestra ou banda. 40 Apesar das expectativas e dúvidas, geradas a partir da Lei 11.769, o conteúdo “música” resultou em apenas uma linha na LDB de 1996, ainda dentro do componente “Artes”, que posteriormente também é retirado da Lei 9396/96 pelo Governo de Michel Temer. Para substituir o texto retirado, a Lei 13.415 de 2016 inclui o seguinte recorte: § 2o O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica. § 6o As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o § 2o deste artigo. (BRASIL, 1996) O certo é que, ainda hoje, encontramos lacunas pela falta de professores de música nas escolas brasileiras, de projetos político pedagógicos claros e de políticas públicas para a formação continuada do profissional de educação musical em níveis municipal e estadual. Da mesma forma, evidencia-se o abandono de autoridades responsáveis para a efetivação da Lei quanto à adequação de espaços, instrumentação das instituições públicas e suporte aos docentes. Porém, este cenário possibilitou a minha inserção na escola e o desenvolvimento do ensino musical, tendo como ferramenta principal, justamente o canto coral. 41 5 A MÍDIA E O CANTO CORAL No século XXI, é comum encontrarmos em algumas comunidades, a existência de coros universitários, empresariais, de instituições religiosas com as mais diversas formações, características e finalidades. Há os adultos, juvenis, infanto-juvenis e infantis, que podem ser mistos, femininos, masculinos, utilizar acompanhamento de instrumentos musicais, playbacks, ou a capela38. Com tamanha riqueza de possibilidades, o canto coral também adentrou na escola mesmo com a simples finalidade de atender a alguns eventos do calendário escolar. Vale ressaltar a necessidade de um conhecimento maior sobre a história da música e em que momento o canto em grupo, juntamente com a expressão cênica, passou a integrar efetivamente o meio musical. Essa incorporação ocorreu em meados da década de 20 com a inserção do som na indústria cinematográfica, possibilitando a criação de um gênero que dominou essa mídia ao menos três décadas e ainda hoje se fazem presentes: os musicais, que uniam o canto, a dança e o teatro em meio às narrativas (ALMEIDA, 2012). Esse gênero foi o “divisor de águas” que mudaria para sempre a história do cinema e alavancaria o surgimento de grupos musicais também no teatro. 5.1 O Cinema e o canto Os musicais se proliferaram com uma linguagem jovem que estimulava o canto, a dança, o teatro e a poesia em grupo. Cronologicamente, seguem alguns considerados principais a partir de 1920: 38Diz-se do canto em que não se utilizam instrumentos musicais, apenas a voz. 42 1927: o primeiro filme sonoro da Warner Brothers em Nova York foi “O Cantor de Jazz” que, segundo Scott Heymann, a cada canção interpretada o ambiente estremecia com aplausos e histeria (HEYMANN, 1997); 1929: surgimento da comédia musical Alvorada de Amor” com direção de Ernst Lubtsch; 1930: Montecarlo, da Paramount, apresentou mais uma comédia musical. O filme mostra uma das sequências imortais do cinema, aquela em que Jeanette MacDonald canta "Beyond the Blue Horizon", debruçada na janela de um trem, acompanhada pelo ruído das rodas nos trilhos enquanto um coral acena ao longo da rodovia; 1933: Rua 42 – da Warner Brothers - comédia musical, dirigida por Lloyd Bacon, indicado ao Oscar de melhor filme em 1934. Este ocupou a 13ª colocação na Lista dos vinte e cinco Maiores Musicais Americanos de todos os tempos, idealizada pelo American Film Institute (AFI) e divulgada em 2006; 1933: Fred Astaire e Ginger Rogers, em Voando para o Rio de Janeiro (Flying down to Rio), da RKO Radio Pictures. Musical com fotografia do Rio de Janeiro nos anos 30; 1935: O Picolino, também da RKO Radio Pictures, comédia musical dirigida por Mark Sandrich, computou o maior sucesso da dupla Fred Astaire e Ginger Rogers, divulgado no Top Hat de 1935; 1936: Ritmo Louco, também da RKO Radio Pictures, com direção de George Stevens, apresentou uma comédia musical com muita dança e sapateado; 1939: O Mágico de Oz, da Metro Goldwyn Mayer (MGM), apresentou um musical infantil escrito por L. Frank Baum e Garland. Considerado "culturalmente, historicamente, visualmente e esteticamente significante" pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, foi selecionado para ser preservado no National Film Registry em 1989; 1952: Cantando na chuva, também da Metro Goldwyn Mayer (MGM), apresentou uma comédia musical, com direção de Stanley Donen e Gene Kelly. O filme se passa nos anos 20, em Hollywood, na transição do cinema mudo para o falado; 1965: A Noviça Rebelde, distribuído pela Fox Film do Brasil, com direção de Robert Wise, também seguiu a comédia musical; Além desses, importantes musicais do cinema ganharam e continuam apresentando suas versões ao vivo nos musicais da Broadway, com liderança de obras infantis. Visando ao 43 sucesso desses musicais, os programas de TV investem em filmes e seriados, principalmente para o público adolescente. 5.2 A TV e o canto Nos anos que se seguiram, a indústria cinematográfica produziu um vasto rol de musicais. Porém, as produções musicais voltadas ao público adolescente se fizeram presentes no século XXI. Mesmo sem a intenção de auxiliar na criação de corais, mas, corroborando a formação e a troca entre os profissionais do canto coral, em 2004, surgiu uma telenovela musical mexicana, produzida pela Televisa e exibida originalmente pelo Canal de las Estrellas, tornou-se febre entre as crianças e adolescentes do Brasil. Rebelde é uma trama que narra o cotidiano de seis adolescentes que estudam num colégio em regime de semi-internato e enfrentam os "dramas" típicos do período, como a descoberta do primeiro amor, os conflitos de autoimagem, o desenvolvimento de distúrbios alimentares, o relacionamento conflituoso com os pais, o bullying e o alcoolismo. Em 2006, o canal Disney Channel lançou um seriado denominado “High School Musical”, de gênero musical infanto-juvenil, com um enredo cheio de aventuras e romances adolescentes, transitado em uma escola onde se disputavam vagas em um musical. Após duas temporadas, foram comercializados como filme, sendo que o terceiro da série foi produzido especialmente para o cinema, transformando-se na preferência entre crianças e adolescentes, mudando, em parte, o conceito da música em grupo. A trilha sonora foi o álbum mais vendido em 2006, sendo o primeiro sinal de alerta oferecido pela mídia aos jovens e sua relação com a música em grupo, reforçando as ideias sobre o canto coral cênico. Mas o grande momento do canto coral jovem surgiu mais tarde através de uma série americana chamada “Glee”, produzida por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan, exibida em mais de sessenta países, entre 2008 e 2015, pela FOX (canal fechado). A trama, também com adolescentes, mostra a realidade de uma escola fictícia, às vezes muito complexa em se tratando de relações de respeito e trocas que também retratam temas juvenis da atualidade. Para superar essas dificuldades, criou-se um coral com toda uma diversidade de pessoas de classes sociais distintas que até hoje, frequentemente, sofrem buliyng: cadeirantes, homossexuais, obesos, negros, asiáticos, numa demonstração do poder fortalecedor da atividade coral. 44 Em 2012, aconteceu o lançamento do primeiro longa-metragem da franquia “A Escolha Perfeita”39, comédia musical repleta de canções de sucesso, e um enredo que trabalha uma história simples, porém direta. Um coral universitário luta para chegar ao topo, enfrentando adversários e problemas dos mais variados tipos. Entre inúmeros corais da universidade, o The Barden Bellas é um grupo composto apenas por garotas, que apostam no visual perfeito e em sucessos pop para conquistar o público da escola. Entretanto, após uma apresentação desastrosa na competição de fim de ano, suas integrantes decidem repensar o grupo. E tudo muda com a chegada de uma nova aluna ao Campus. “A Escolha Perfeita” foi sucesso de bilheteria e, em 2015, lançou-se o segundo filme com o mesmo título e promessa para 2017, o terceiro, abordando os rumos do grupo Barden Bellas após a formatura de suas integrantes. Em 2016, a Rede Globo de Televisão lançou, em um programa de auditório ao vivo, um quadro denominado “A Capela”, onde concorreram grupos vocais de todo o país interpretando canções nacionais com arranjos vocais e cenas, sendo o grande vencedor o grupo gaúcho “Vocal 5” de Porto Alegre. Com esse apoio da mídia (intencional ou não), houve uma expansão significativa de coros jovens que têm se utilizado, além da voz, da cena, da dança e da poesia dos musicais e percussão corporal. Esse cenário favorável possibilitou que seus ecos se fizessem presentes no cotidiano das escolas. São alunos que cantam, dançam, encenam e recitam as frases longas de um Rap40 em coro. Um som uníssono como se todos partilhassem a batida de um só coração. 39Roteiro de Kay Kannon, trilha sonora de Christophe Back, Mark Killian, Jessica Neilsen, produzido por Gold Circle Films, Brownstone Productions, tendo como distribuidor no Brasil a Universal Pictures. 40Rap (em inglês, também conhecido como emceeing) é um discurso rítmico com rimas e poesias, que surgiu no final do século XX entre as comunidades negras dos Estados Unidos. É um dos cinco pilares fundamentais da cultura hip hop, de modo que se chame metonimicamente (e de forma imprecisa) hip hop. 45 6 CANTO CORAL E A ESCOLA Por muito tempo, a atividade coral esteve relacionada ao cunho religioso, cujo objetivo consistia em entoar os cânticos em celebrações. Compositores, como Johann Sebastian Bach, Johannes Brahms, Georg Friedrich Haendel, Wolfgang Amadeus Mozart, Pe. José Nunes Garcia, Manoel Senra, Francisco Gomes da Rocha, José Meireles, Jerônimo de Souza Lobo, José Joaquim da Paixão, Manoel Dias de Oliveira, dentre tantos outros, nacionais e estrangeiros, destacaram-se pelas obras sacras para coros. No Brasil, o canto coral se tornou parte integrante da educação musical nos anos de 1930 e parte de 40, como um projeto de sistematização nacional do ensino de música por Heitor Villa-Lobos através do “canto orfeônico” (MATEIRO, 2014). Contudo, após a década de 70, a música perdeu espaço na escola, fato que se estendeu até a LDB de 1996, momento em que se iniciou um processo de discussões acerca do ensino musical. Neste sentido, após anos de debates entre profissionais da área da educação musical, em 2008, foi aprovada a Lei 11.769, oferecendo a possibilidade de um resgate da música em sala de aula embora tenha havido inúmeras dificuldades para sua efetivação. Nessa jornada, o canto se apresentou de diversas formas e finalidades, e o registro de tais atividades em artigos, dissertações, teses e eventos de cunho científico e artístico tornou possível uma análise mais aprofundada sobre seu valor estético, social e cognitivo, bem como as possibilidades metodológicas a serem adotadas para seu desenvolvimento. Segundo Amato (2007), é relevante aludir que a participação em um coral, como em qualquer manifestação musical, pode provocar um desejo pela interdisciplinaridade de conhecimentos artísticos, pois, a partir da experiência musical vivenciada, os integrantes do coro podem interessar-se pela literatura, artes plásticas e até mesmo outras ciências e técnicas. Já para Bréscia (2011), no que diz respeito à socialização, o canto coral apresenta ferramentas claras para se perceber a superação do individualismo e do egoísmo, uma vez que a proposta 46 social é estreitar os laços de afinidade entre os pares num trabalho em conjunto, além do respeito que desenvolvem no contato com o público em apresentações. A autora segue sua análise afirmando que o canto coral “privilegia a união [...] além de proporcionar um conhecimento de caráter cultural” (p.77). Na atividade de canto escolar, a questão de valores também perpassa as experiências dos participantes, através da a comunicação sensorial, simbólica, afetiva e, portanto, social. Assim sendo, geralmente, “desencadeia a convicção de que nossos alunos podem expor, assumir suas experiências musicais e que nós podemos dialogar sobre elas (SOUZA, 2004, p. 9). Por outra via, o trabalho com o canto coral escolar demanda alguns cuidados por se tratar de crianças em desenvolvimento do próprio corpo e, em especial, seu aparato respiratório e fonador, passando pela sua cognição, afetividade e construção de sua subjetividade em relação ao outro e ao mundo. Nesse sentido, a seguir, abordo alguns aspectos fisiológicos importantes que exigem uma atenção especial quando envolve canto coral escolar e que, necessariamente, devem ser aprofundados pelos profissionais que se envolverão com o canto. 6.1 Muda vocal Para esse tipo de trabalho vocal com crianças e adolescentes, fazem-se necessários alguns cuidados e conhecimentos tanto para educadores quanto para regente de coros em relação à voz do jovem, que, como seu corpo, está em transformação. A mudança física para ambos os gêneros que, aos poucos, perdem seus corpos de crianças; seus “pais da infância”, que os tratam de maneira diferente da de outrora e a visão que passam a ter da criança no mundo; bem como uma série de tensões, desajustes e contradições que fazem parte dessa etapa da vida também se tornam visíveis em relação ao canto (SOBREIRA, 2013). De fato, estágios de desenvolvimento vocal, previsíveis e sucessivos atingem esse público no momento de transição entre a infância e a fase adulta. Esses estágios implicam importantes questões emocionais, fisiológicas, sociológicas e cognitivas, e o tratamento inadequado dessas vozes pode gerar problemas vocais e psicológicos por vezes irreversíveis (MENDONÇA, 2011). Os meninos, que, no período da adolescência, apresentam uma muda vocal de forma mais acentuada que