1 UNIVERSIDADE DO VALE DO TAQUARI – UNIVATES CURSO DE PEDAGOGIA INFÂNCIA RURAL: MEMÓRIAS DE UMA ÉPOCA Camila Guntzel Ely Lajeado, novembro de 2017 Camila Guntzel Ely INFÂNCIA RURAL: MEMÓRIAS DE UMA ÉPOCA Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, do curso de Pedagogia, Universidade do Vale do Taquari - Univates, como parte da exigência para a obtenção do título de Licenciatura em Pedagogia. Orientadora: Prof. Dra. Danise Vivian Lajeado, novembro de 2017 3 RESUMO Este Trabalho de Conclusão de Curso tem como foco as representações de infâncias de um grupo de idosos de uma localidade interiorana do município de Cruzeiro do Sul/RS. A pesquisa intenciona analisar as diferentes práticas de socialização, identificar o tempo e o espaço do brincar de uma determinada década e analisar de que modo os familiares compreendiam o processo de escolarização. Tal investigação parte da seguinte problemática: quais as representações de infâncias de idosos que residem na localidade de Boa Esperança Baixa? De abordagem qualitativa, a metodologia de pesquisa fez uso de entrevistas semiestruturadas, com quatro contadores de histórias, dois homens e duas mulheres, e posterior análise das narrativas biográficas obtidas. Entre os conceitos abordados e estudados, utilizou-se o conceito de infância sob mais de uma perspectiva, para além do tempo atual e de sua ligação com uma etapa cronológica, estabelecendo relações com as diferentes alterações que o sentimento de infância sofreu durante o decorrer da história e procurando analisar quais as impressões que idosos têm de sua própria infância. Para tanto, têm-se como principais autores estudados: Ariès (2012), Kohan (2004)e Bujes (2002). Outro conceito utilizado é o conceito de memória, os principais autores que embasaram o estudo foram: Bosi (1999) e Rinaldi (2012). O trabalho também buscou contemplar o conceito de experiência, a partir do qual são destacadas as experiências sentidas e vividas, bem como a experiência que nos é proporcionada ao trabalhar com narrativas biográficas, conforme destacam Faour (2009) e Gagnebin (2006). Como resultados, este estudo destaca que as práticas de socialização ocorriam entre primos e vizinhos e as relações familiares não demonstravam muita afetividade. Percebe-se que o tempo destinado ao brincar era um tempo regulamentado e social, por outro lado, indiretamente, através das narrativas, percebeu- se que haviam outros momentos para o brincar. Os contadores de histórias utilizavam-se do faz- de-conta para criarem suas brincadeiras. Com relação ao processo de escolarização, os contadores de histórias mencionaram o medo que sentiam do professor e o quanto essa figura era respeitada. Relataram também os castigos que recebiam, bem como a impossibilidade de retomar os conteúdos. Através deste estudo, pode-se perceber que não existe uma representação única e limitada do que é infância, mas sim diversas possibilidades de representações de infância, a partir da cultura, de vivências e de experiências dos grupos que são interpelados a falar sobre a mesma. Palavras-chave: Infância. Memória. Narrativas Biográficas. Experiência. 4 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 5 2 METODOLOGIA ................................................................................................................ 10 3 TRAMA CONCEITUAL – CONCEITOS QUE ME ACOMPANHAM ..................... 16 3.1 Entre rastros: o conceito de memória ............................................................................. 16 4 NARRATIVAS BIOGRÁFICAS E A EXPERIÊNCIA ................................................. 22 5INFÂNCIA: CAMINHOS DE COMPOSIÇÃO ................................................................ 31 5.1 Práticas de socialização: de que forma aconteciam? ..................................................... 39 5.2 O tempo e o espaço do brincar ........................................................................................ 47 5.3 Infâncias marcadas por dificuldades .............................................................................. 53 5.4 A vida escolar e os castigos da época .............................................................................. 57 5.5 Um amor chamado boa esperança .................................................................................. 64 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 70 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 75 APÊNDICES ........................................................................................................................... 78 5 1 INTRODUÇÃO Escolher um tema central para o trabalho de Conclusão de Curso não foi tarefa fácil. Na primeira reunião de TCCeu ainda não havia definido a minha escolha. No momento que conheci a professora Mariane, comentava com ela sobre o meu interesse em abordar uma temática que estivesse relacionada com o interior de uma cidade, mas não sabia exatamente o que eu gostaria que estivesse presente neste trabalho, que sim, merece muita dedicação. Por diversas vezes a angústia se fez presente quando em aulas abordávamos a questão do Trabalho de Conclusão de Curso. Como eu ainda não havia definido um tema específico em minhas leituras, ficava procurando um que talvez fosse do meu gosto aprofundar, mas não me dava conta que o meu maior interesse estava na minha frente e que eu poderia, sim, fazer um estudo abordando um lugar que tanto se fez presente na minha constituição pessoal. Certo dia, a professora Mariane comentou que havia realizado um trabalho com adultos e idosos, em que abordou as narrativas deles sobre a infância. Meus olhos brilharam e, foi ela quem me encorajou a decidir pelo meu tema central. Conhecia muito bem o meu desejo pelo interior, manter esse contato direto com pessoas humildes, com suas particularidades culturais e poder estudar essas narrativas de infância rural, que jamais me cansariam. Estava decidido, seria esse meu tema: memórias de infâncias rurais. 6 No início deste ano de 2017, a professora Mariane enviou-me um e mail no qual relatou que, estando meu tema alvo relacionado a pesquisas realizadas por ela, poderíamos fazer um belo trabalho juntas, caso ainda fosse o meu desejo. Sentada embaixo de uma grande árvore, na companhia dos meus queridos avós, da minha mãe, num lugar que eu amo de paixão, recebi essa adorável notícia. É claro que a resposta foi “sim”. Como foi acima mencionado, o tema central deste Trabalho de Conclusão de Curso são as narrativas e memórias de infâncias de idosos de uma localidade interiorana. Este assunto foi pensado inicialmente pela minha grande paixão por idosos e, acima de tudo, pelo interior de uma pequena localidade do município de Cruzeiro do Sul-RS, chamada Boa Esperança Baixa, onde eu nasci e me criei. Narrativas sempre me encantaram... Ao pé do fogão a lenha, em rigorosos invernos, ou embaixo de uma grande árvore de figueira sob um sol escaldante, ou mesmo ao lado do forno de pão, sob a sombra de um pomar cheiroso, na beira de uma sanga, na varanda da velha casa de madeira, nas enormes pedras de um imenso potreiro, ao redor de grandes açudes, na ida à roça, na carona de uma velha carroça ou no paiol prestes a cair, ouvi preciosas histórias sobre a difícil infância dos meus amáveis avós. Histórias essas que para mim são consideradas verdadeiras relíquias. A simples “arte” de parar tudo e sentar para escutar as histórias narradas é algo que até os dias atuais me causa enorme prazer e me torna uma pessoa melhor, no sentido de me fazer refletir e treinar a minha escuta, respeitar a fala do outro ou até mesmo o silêncio. Quando havia decidido a temática do meu trabalho, a primeira questão que me inquietou foi o termo utilizado por uma das autoras estudadas para a realização deste trabalho: “velho”. Embora Bosi (1999) não utilize a expressão “velho” num sentido pejorativo, em uma linguagem coloquial, o adjetivo pode ter um teor inconveniente. A educação que recebi dos meus avós e da minha mãe não permitiria que eu utilizasse esse termo na minha escrita. Era algo que eu não conseguia administrar e, portanto, eu não conseguia nem pronunciar essa palavra. Em muitos momentos o termo “idoso” será abordado, maneira que achei mais apropriada para denominar este grupo específico da nossa sociedade. Também não gostaria de limitar nesta pesquisa o termo “idoso” à geração de pessoas em idade avançada ou à etapa da velhice, mas sim mostrar toda a potência que essa geração possui. 7 Ter presente na minha vida pessoal o convívio com idosos do interior de uma cidade e poder ter a honra de ouvir suas narrativas é uma eterna aprendizagem. Abordar esse tema, compartilhando tanta informação sobre um conceito que é fundamental no curso de Pedagogia- “infância”, acredito que é de extrema importância, tanto para mim, como para esses “contadores de histórias”, que poderão reviver e fazer com que continue vivo esse sentimento de infância. Acredito que temos muito o que aprender com esses contadores de histórias e precisamos valorizar o que a vida já ensinou-lhes. Pelo tema escolhido envolver narrativas, optei por nomear aqueles que participarão desse trabalho de conclusão de curso de “contadores de histórias”. O termo vai ao encontro daquilo que considero umas das maiores artes, as narrativas sobre a infância num contexto rural. Há vários estilos de artes presentes no nosso universo: a arte de pintar, a arte de desenhar, de tocar algum instrumento musical, a arte de cantar, e também a arte de contar histórias, sejam elas reais ou fictícias. A mesma fruição que tenho ao observar uma obra de arte, tenho ao ouvir histórias narradas por pessoas idosas. Acredito que as narrativas podem ser um grande instrumento de aprendizagem. Tenho fascínio por palavras, pela simplicidade dos momentos vividos ao lado de pessoas que possuem a generosidade de compartilhar suas histórias conosco. Ao serem rememoradas, as vivências de nossa infância podem trazer visões e percepções diferenciadas daquelas que passam a ser adotadas pelo universo adulto. Como já dizia Manoel de Barros: Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade (BARROS, 2008, p. 67). Buscando essa intimidade de um tempo vivido em outra época, este Trabalho de Conclusão de Curso parte do seguinte problema: quais as representações de infância presentes nas narrativas de idosos que residem na localidade de Boa Esperança Baixa/ Cruzeiro do Sul- RS? Dessa forma, destaco como meu objetivo geral: analisar as representações de infância de idosos que residem na localidade de Boa Esperança Baixa/Cruzeiro do Sul-RS, a partir de narrativas biográficas. 8 Destaco também os objetivos específicos, a partir dos quais procurei aprofundar o objetivo geral: analisar as diferentes práticas de socialização; identificar o tempo e o espaço do brincar de uma determinada década e analisar de que modo os familiares compreendiam o processo de escolarização. Justifico a escolha do tema pesquisado, uma vez que considero ser de extrema importância pensar a infância para além do tempo atual. O principal intuito deste trabalho é compreender como a infância perpassa os corpos de diferentes maneiras. Para isso, trabalhei com um grupo específico, os chamados “contadores de histórias”. Não tenho a pretensão de fazer com que este Trabalho de Conclusão de Curso tenha um caráter saudosista, muito menos comparar infâncias em diferentes épocas. Caso eu perguntasse para meu avô ou para minha prima de 10 anos, possivelmente ambos defenderiam que sua infância foi a melhor. Jamais poderemos comparar infâncias em tempos diferentes, nem mesmo na mesma época. Cada ser carrega seus valores e narrará a sua infância com particularidades e vivências pessoais que fizeram sentido no seu tempo, por mais árduas que possam ter sido. Este estudo inicia-se com a apresentação da metodologia que aborda as narrativas biográficas, a partir de um viés qualitativo. Ressalto também que o foco do trabalho são as experiências dos meus contadores de histórias, nas quais os mesmos merecem principal destaque. Como ferramenta de pesquisa desenvolvi entrevistas semiestruturadas. Também neste capítulo, apresento os meus contadores de histórias, quem são, sua idade, e algumas características dos mesmos. No capítulo seguinte, tenho como eixo norteador o conceito de memória. Debruço-me sobre a análise das formas como buscamos as lembranças do passado. Reflito ainda sobre o quanto podemos confiar na nossa memória, e o quanto esta pode nos trair. Para realizar esta discussão, utilizo-me dos autores Bosi (1999), Silva e Marchezin (2014) e Ohlweiler (2014). Na sessão seguinte destino um capítulo às narrativas biográficas e ao conceito de experiência. Destaco a importância de trabalhar com narrativas na metodologia e a seriedade em não julgarmos qualquer colocação que nos for apresentada. Faço relações entre a ficção e a realidade dos fatos, o poder que uma escuta atenta possui e também a experiência que nos é proporcionada ao trabalhar com narrativas. Destaco a relevância das experiências sentidas e vividas. Para debater estes conceitos, me embaso nas teorias de Rinaldi (2012), Ohlweiler (2014), Faour (2009) e Gagnebin (2006). 9 Em seguida, apresento a abordagem do conceito de infância, para assim analisarmos como o sentimento de infância sofreu alterações no decorrer da história. Também destaco a infância como um período que não se finda, existindo assim, diversas representações de infância. Busco ainda ressaltar a importância que esse período da fase humana possui. Para tanto, usufruo das pesquisas de Ariès (2012), Kohan (2005; 2004), Franco (2002) e Bujes (2002). Optei por aproximar a teoria com algumas evidências que foram geradas no decorrer da pesquisa, ou seja, esse capítulo, além de teórico também é analítico. Percebi que seria necessário dividir o resultado dos meus objetivos específicos em subcapítulos, nos quais utilizo excertos das narrativas dos meus contadores de histórias Por fim, apresento as considerações finais deste estudo. Descrevo que a prática de socialização apresenta-se de maneira inversa para os meus contadores de histórias. As mulheres contadoras defenderam o pai como sendo “bonzinho” e a mãe como a mais rígida do círculo familiar, ao contrário dos contadores homens. Também, narraram as brincadeiras com a presença dos primos e vizinhos. Apresento também o tempo e o espaço do brincar, onde percebi que o tempo para brincar era temporal, geralmente acontecia nos domingos, mas meus contadores deixam subentendido que o brincar se dava para além desse tempo. Em relação aos brinquedos, estes eram fabricados e meus contadores utilizavam-se especialmente do faz-de- conta para criarem suas brincadeiras e torná-las atrativas. Através das narrativas, também identifiquei que o processo de escolarização estava atrelado as dificuldades que os contadores de histórias encontravam para permanecerem na escola, bem como o medo da figura do professor. Destaco ainda a forma de ensino pela qual passaram estes contadores de história, na qual era impossível retomar os conteúdos aprendidos. 10 2 METODOLOGIA A presente pesquisa aborda narrativas biográficas a partir de uma abordagem qualitativa. Segundo Minayo: A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 2002, p. 21-22). Destaco que o foco do trabalho são as experiências/vivências dos “contadores de histórias”, sendo eles as peças principais deste estudo. A ferramenta de pesquisa utilizada neste estudo foram as entrevistas. As entrevistas possibilitaram gerar as narrativas, ou seja, viabilizaram a produção das narrativas, que aqui poderíamos nomear como “resultado” do Trabalho de Conclusão de Curso. Para tanto, utilizei- me de algumas questões norteadoras (as mesmas encontram-se no APÊNDICE B). A entrevista é definida por Haguette como uma [...] coleta de dados sobre um determinado tema científico é a técnica mais utilizada no processo de trabalho de campo. Através dela os pesquisadores buscam obter informações, ou seja, coletar dados objetivos e subjetivos. Os dados objetivos podem ser obtidos também através de fontes secundárias tais como: censos, estatísticas, etc. Já os dados subjetivos só poderão ser obtidos através da entrevista, pois que, eles se relacionam com os valores, às atitudes e às opiniões dos sujeitos entrevistados (HAGUETTE, apud BONI; QUARESMA, 2005, p. 72). 11 Procurei não fazer perguntas que fugissem da realidade dos meus “contadores de histórias”. O que se tornou mais valioso foi o momento de interação entre pesquisador e entrevistado, uma vez que as narrativas com o método de entrevistas semiestruturadas permitiu me prolongar e captar as experiências mais emocionantes. Vali-me desse método, pelo fato de deixar o entrevistado mais a vontade para que assim pudesse resgatar fatos importantes da sua infância e compartilhar com o pesquisador. A história de vida, [...] tem como ponto principal permitir que o informante retome sua vivência de forma retrospectiva. Muitas vezes durante a entrevista acontece a liberação de pensamentos reprimidos que chegam ao entrevistador em tom de confidência. Esses relatos fornecem um material extremamente rico para análise. Neles se encontram o reflexo da dimensão coletiva a partir da visão individual (BONI; QUARESMA, 2005, p. 73). Ressalto também que a entrevista não teve um aspecto de conversa formal, muito pelo contrário. Busquei, nas visitas marcadas, proporcionar uma conversa mais espontânea, intervindo em caso de extrema necessidade, uma vez que o assunto seguia por um caminho mais extenso. Dessa forma, as entrevistas foram elaboradas de maneira semiestruturada buscando combinar, [...] perguntas abertas e fechadas, onde o informante tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto. O pesquisador deve seguir um conjunto de questões previamente definidas, mas ele o faz em um contexto muito semelhante ao de uma conversa informal. O entrevistador deve ficar atento para dirigir, no momento que achar oportuno, a discussão para o assunto que o interessa fazendo perguntas adicionais para elucidar questões que não ficaram claras ou ajudar a recompor o contexto da entrevista, caso o informante tenha “fugido” ao tema ou tenha dificuldades com ele. Esse tipo de entrevista é muito utilizado quando se deseja delimitar o volume das informações, obtendo assim um direcionamento maior para o tema, intervindo a fim de que os objetivos sejam alcançados (BONI; QUARESMA, 2005, p. 75, grifos do autor). Os “contadores de histórias” eram moradores da localidade de Boa Esperança, interior do município de Cruzeiro do Sul-RS. Moradores estes que viveram sua infância naquela localidade e que ainda moram no mesmo local. Procurei fazer minha pesquisa no meio rural para poder mostrar um “outro lado”, diferente daquilo que estamos habituados a ouvir em músicas, notícias, ou seja, uma desnaturalização da representação do meio rural que muitas vezes é imposta. Horn (2010) é extremamente sensível quando diz: 12 [...] ao narrar o mundo a partir de um determinado ponto de vista, especialmente a partir da ótica dos “urbanos”, o rural é homogeneizado e colocado de forma inferiorizada. É como se todos que vivem no meio rural se vestissem com os mesmos trajes, gostassem das mesmas coisas, se divertissem da mesma maneira, preferissem pés descalços a um sapato confortável. Na maioria das vezes, essas representações não são questionadas, ao contrário, são naturalizadas e assumem um caráter de verdade. Estas convenções elaboram pontos de vista que são bastante difundidos e aceitos, o que dificulta a possibilidade de pensarmos de outras formas sobre o que é o rural, mais plurais, e, por consequência, modos de olhas mais amplos sobre os sujeitos que lá residem (HORN, 2010, p. 21-22). Para este trabalho, pude contar com a participação de quatro contadores de histórias, destes, dois homens e duas mulheres. Para preservar a identidade dos meus contadores de histórias, solicitei que escolhessem um nome fictício para ser inserido no trabalho. Dos quatro participantes, três optaram por manter o nome original. São os contadores de histórias: Dulce, com seus 79 anos de idade, muito bem vividos como ela gosta de ressaltar; Maria Lúcia, também com 79 anos de idade, considera-se “bem vozinha” já; Elésio com 68 anos e muita disposição para trabalhar nos seus galinheiros e Chico com seus 77 anos de muita história para contar. Cada contador de história narrou sua infância por cerca de duas horas, duas horas e meia. Ressaltando, foram quatro contadores de histórias, nascidos nas das décadas de 30 e 40, do século XX. Utilizei-me da transcrição das entrevistas. O dialeto alemão foi usado por todos os contadores, uma vez que permiti, pois demonstravam estar à vontade para se comunicarem comigo, bem como me trouxe um grande desafio, traduzir e transcrever para o português. Em alguns momentos, deixei a palavra em alemão, quando esta se tornou repetitiva, demonstrando um caráter respeitoso com o entrevistado, mas sem perder a compreensão, uma vez que o próprio contador de história fez o detalhamento daquilo que estava querendo explicar. Tinha previsto a possibilidade, em caso de necessidade, da realização de mais encontros com o mesmo entrevistado, pensando assim na disponibilidade de tempo que cada um possui, porém, isto não se fez necessário. As entrevistas foram realizadas na casa dos contadores de histórias, e pelo fato da minha querida avó ter um contato mais próximo com essas pessoas, ela se dispôs em acompanhar todas as entrevistas. Ela foi a “ponte” para tornar esse momento de encontros agradável. O contato foi feito por mim, via telefone e como citado anteriormente, com a companhia da minha avó nas visitas, pela inserção que ela possui no contexto dessas pessoas. 13 Cruzeiro do Sul é um município que se destaca pelo cultivo de milho, arroz e aipim. Sua área rural é mais extensa que a área urbana. Na localidade de Boa Esperança, a maioria das famílias ainda tem como principal fonte de renda a agricultura. Poucos se aventuraram em ir morar na cidade, preferindo permanecer no local onde nasceram e se criaram. O dialeto alemão é bastante utilizado, uma vez que a maioria dos moradores se comunica através dele, seja em visitas aos vizinhos, festa da comunidade, ou até mesmo na missa de domingo. Outro fator que me fez escolher o método de entrevistas semiestruturadas, que após sua realização foram transcritas, foi o público alvo entrevistado. Uma vez que conheço a realidade da localidade onde o dialeto alemão é muito presente, não tive nenhum problema em inserir participantes que não sabiam ou tinham dificuldade em se comunicar em língua portuguesa. Não optei pela entrevista descritiva, ou o uso de questionários, uma vez que procurei respeitar aqueles que pudessem ter dificuldades na ortografia, além de possibilitar uma narrativa fluída através da fala. E não poderia deixar de citar o aspecto afetivo que essa entrevista aberta proporciona: As técnicas de entrevista aberta e semi-estruturada também têm como vantagem a sua elasticidade quanto à duração, permitindo uma cobertura mais profunda sobre determinados assuntos. Além disso, a interação entre o entrevistador e o entrevistado favorece as respostas espontâneas. Elas também são possibilitadoras de uma abertura e proximidade maior entre entrevistador e entrevistado, o que permite ao entrevistador tocar em assuntos mais complexos e delicados, ou seja, quanto menos estruturada a entrevista maior será o favorecimento de uma troca mais afetiva entre as duas partes. Desse modo, estes tipos de entrevista colaboram muito na investigação dos aspectos afetivos e valorativos dos informantes que determinam significados pessoais de suas atitudes e comportamentos. As respostas espontâneas dos entrevistados e a maior liberdade que estes têm podem fazer surgir questões inesperadas ao entrevistador que poderão ser de grande utilidade em sua pesquisa (BONI; QUARESMA, 2005, p. 75). Ao elaborar as entrevistas me preocupei em respeitar a subjetividade de cada sujeito, ou seja, que cada entrevistado tivesse valorizadas as suas especificidades, bem como deixei claro os meus objetivos. Para a realização destas entrevistas, entreguei previamente o Termo de Consentimento Informado e Esclarecido (o mesmo encontra-se no APÊNDICE A), no qual os participantes autorizaram o uso de suas narrativas a partir da assinatura. Boni e Quaresma, citando Goldenberg, destacam a importância da confiança: [...] assinala que para se realizar uma entrevista bem sucedida é necessário criar uma atmosfera amistosa e de confiança, não discordar das opiniões do entrevistado, tentar ser o mais neutro possível. Acima de tudo, a confiança passada ao entrevistado é fundamental para o êxito no trabalho de campo (GOLDENBERG, apud BONI; QUARESMA, 2005, p. 78). 14 Não foi a minha pretensão utilizar a minha pesquisa de conclusão de curso como um fator de julgamento, bem pelo contrário, como já citado anteriormente, através das narrativas biográficas busquei oportunizar um momento potencializador para narrar e pensar sobre a infância que pode ser resgatada através da memória. Para tanto, permiti a livre expressão dos entrevistados, bem como o respeito pelo silêncio, quando este acontecia. Tive um cuidado ético com os sentimentos dos meus “contadores de histórias” para que assim eu pudesse alcançar os objetivos traçados. É com imensa alegria que voltei para a localidade onde eu também nasci e me criei para dar voz àqueles que se dispuseram a viajar comigo nessa linda missão de reviver uma fase tão importante da nossa vida, a infância. E também para defender uma afirmação que Horn (2010) menciona na sua escrita: O discurso entendido como uma prática que define e forma os objetos de que fala, as palavras que conferem significados às coisas. Percebo, assim, serem constituídos discursos que posicionam, que diferenciam, que nomeiam, por exemplo, o sujeito rural de “colono”, “cafona”, “ingênuo”, “atrasado”, criando concepções. Se a representação de rural está relacionada a um sujeito ignorante, que se veste mal, que é desatualizado, menos crítico; então, logo, aquilo que advém do meio rural, passa a ser considerado de “menor valor” por determinado grupo de sujeitos (HORN, 2010, p. 22-23). Ainda, segundo Queluz e Cordeiro (1986): Vivemos numa sociedade de consumo e, para o consumista, o que é velho não serve para mais nada, está ultrapassado, deve ser trocado. Mesmo que as coisas sejam resistentes e ainda funcionem bem, as pessoas sentem-se atraídas e desejam os modelos novos, “do ano”. O resultado é que olham desse modo também para os velhos. E, como estes não podem ser jogados fora ou trocados, acabam desrespeitados, discriminados, marginalizados. Principalmente porque os jovens imaginam que os velhos são inúteis e incapazes de produzir. Deixados de lado como personagens sem importância [...], os velhos sofrem. Nem sempre estão envelhecidos a ponto de ficar dependentes; mas, sem aceitação, afeto e apoio, carentes de companhia, vão se acabando, sem alegria, perdem a vontade de viver (QUELUZ; CORDEIRO, 1986, p. 67). Penso que o meio rural merece um importante destaque para os estudos na área da educação, uma vez que ser “colono” para mim, sem o seu sentido pejorativo, tem grande valor e orgulho-me muito desse conceito. Quis, através desta pesquisa, narrar as tantas e tantas histórias que ensinam e que nos transmitem inúmeras experiências positivas e negativas, bem como desviar daquilo que estamos habituados a pensar, sem antes refletir. 15 Na perspectiva de uma pesquisa que permite e "dá a voz" a sujeitos sociais por vezes distantes do contexto acadêmico, encontro em Paulo Freire a definição potente do diálogo: “não há, [...] diálogo, se não há humildade. A pronúncia do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante”. (FREIRE, 2005, p. 92). Eu preciso acreditar que o outro tem algo para me dizer, e às vezes os netos acham que ouvir seus avós é tempo perdido. Eu, enquanto pesquisadora, ao me dispor a ouvir, estou me colocando em um ato de humildade. Deixar meus contadores de história à vontade, fez parte da minha postura no sentido de ter procurado me manter atenta e sensível na escuta, bem como de permitir que eles falassem no dialeto alemão. Ou seja, o próprio fato de "falar a mesma língua", criou de certa forma a percepção da empatia que tenho com eles, de que eu os valorizo pelas suas histórias e pelo que tem a contar. 16 3TRAMA CONCEITUAL- CONCEITOS QUE ME ACOMPANHAM Nesse capítulo, me debrucei sobre os conceitos de memória, narrativas, experiência e ficção. Estes estão emaranhados, sendo difícil falar sobre cada um separadamente. Ao falarmos sobre memória, os demais conceitos inevitavelmente já estarão sendo mencionados nas entrelinhas, ou seja, são conceitos tramados, que de certa forma completam-se. Esta escrita se dará entre rastros, pois não temos a certeza de um todo. Não conseguimos definir o que realmente é a memória, mas sim temos pistas, criamos hipóteses. 3.1 Entre rastros: o conceito de memória Tendo como eixo norteador o conceito de memória, é preciso refletir a forma como buscamos as lembranças do passado. Será que nossa memória pode nos trair? Será que somos capazes de lembrar com exatidão experiências da infância? Recorremos a algum instrumento para nos facilitar recordar o passado? Pensando-se na complexidade dessas perguntas e que ficam para indagações, surge o pensamento de Bosi, que afirma: 17 Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. [...]Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias,nossos juízos de realidade e de valor (BOSI, 1999, p. 55). É através desse acesso à informação que buscamos na memória que conseguimos relembrar experiências passadas. Mas nem sempre isso é sinal de que esta é fielmente confiável, no sentido de lembrarmos dos fatos da maneira exata como aconteceram, sem ajuda de nenhum instrumento. As narrativas apresentadas pelos contadores de histórias nos fazem refletir sobre quão difícil é lembrarmos de fatos passados com exatidão, podemos perceber através da fala da contadora Dulce e Maria Lúcia que narram a dificuldade de lembrar da infância como ela realmente foi. As duas contadoras de histórias apresentaram narrativas parecidas quando questionadas sobre momentos que marcaram a sua infância, conforme trecho destacado abaixo1: Jesus, lembrar da minha infância? Como vou contar? É que às vezes eu me esqueço como as coisas aconteceram mesmo. Pode contar o que a gente lembra só, o que eu nunca esqueci? (Dulce) Assim também Maria Lúcia dizia repetidas vezes a seguinte frase: A gente já não lembra mais muito bem. (Maria Lúcia) Como destaca Bosi (1999), tudo o que vivemos, a sensação que sentimos naquele momento é única. Podemos até lembrar fatos ocorridos, mas sim, nossas ideias mudam e talvez o modo de compreender uma passagem do passado seja diferente da nossa compreensão atual. Sobre a memória, tomando em consideração algumas ideias do senso comum, são diversos os conceitos relativos à forma pela qual as pessoas recorrem às experiências passadas a fim de usar as informações que são tomadas como relevantes no presente. [...] Dessa forma, pode-se considerar que a memória é mais do que simplesmente a evocação de informações, mas um processo que envolve também aquisição, gravação, conservação e evocação [...] possuindo também a capacidade de modificar o comportamento em função de experiências anteriores [...] (GOMES, 2007, p. 4). 1 Todas as narrativas dos contadores de histórias, sujeitos participantes, serão destacadas em itálico no decorrer no texto. 18 Pode-se perceber o quanto trabalhar com o conceito de memória nos remete a uma riqueza de informações, mas também a uma sensibilidade por parte de quem busca manter viva a memória do passado, mesmo precisando da ajuda de alguns instrumentos como imagens, fotografias, vídeos, escritos, ou até mesmo como acontece ainda nos dias de hoje e que é confirmado pelos meus avós: o cultivo de determinada flor, pois mantém viva a presença de alguém querido que já partiu e que apreciava muito aquela espécie. Acredito que o idoso tem papel fundamental para pensar e problematizar o próprio conceito de infância, bem como ilustrar para as crianças de hoje o contexto histórico que já passou, uma vez que é ele quem vai contar fatos passados e enfatizar a história da família a qual pertence. As autoras Queluz e Cordeiro (1986) são extremamente felizes quando dizem que: “Os velhos têm naturalmente mais paciência e capacidade de aceitação. Compreendem, ouvem, possuem memória e tempo para conversar, sendo uma ótima convivência para a criança. Juntos, crianças e velhos podem evitar a solidão e a rejeição”. (QUELUZ; CORDEIRO, 1986, p. 69). Para Maria Lúcia é muito importante as crianças de hoje ouvirem os mais velhos para saber e conhecer o passado dos seus avós. Os netos tinham que ouvir as nossas histórias, de como foi tudo difícil e como eles tem as coisas fáceis hoje, mas eles não querem ouvir, fazem de conta que isso nem existe. A gente, eu e meu marido, gostava tanto de contar pra eles como era quando a gente se conheceu e começou a “fazer” a nossa família. (Maria Lúcia) Elésio e Chico também acham importante seus netos ouvirem essas histórias e dão muito valor àqueles que param e ouvem, mas mencionam que são chamados de “mentirosos” porque as pessoas não acreditam que é tudo verdade o que eles tiveram que passar. Podemos observar através das narrativas o quanto esse fato está presente na vida dos dois. Olha, eu acho assim, importante pra eles é, só que eles acham que a gente é mentiroso. Porque, eles não acreditam que foi tão difícil. Isso hoje, eu já comi o pão que o diabo amassou. Era trabalhar, trabalhar, trabalhar. Meu corpo era um guincho. Isso, não tinha serviço que não dava pra fazer, era tudo braçal. Isso tinha que ir. Se a gente conta né, ah! (Elésio) Isso, se eles param pra escutar, eles acham direto que isso é mentira. Eles diz, não, isso é pura mentira. O que a gente trabalhava, com oito, dez anos, barbaridade. (Chico) Chico narra a sua satisfação quando pode compartilhar momentos da sua infância: 19 Eu fico feliz em poder contar umas coisas. E gente nota quando prestam atenção, se não tão escutando a gente, ou tão....ah, não! Daí já nem conto mais nada. Não tão prestando atenção e daí eu estou falando pra mim mesmo. O que a gente passou, óia, não foi bem assim, mas quando a gente pode contar isso pros netos e eles aprendem alguma coisa, a gente fica muito satisfeito. Às vezes de noite se eu não consigo dormir eu lembro daquela vida. Passa uma fita. (Chico) Conforme mencionam as autoras Zagaglia e Pereira O idoso é imprescindível na vida de uma criança. Caso contrário, elas seriam membros numa sociedade sem passado, sem memória e sem compromissos, uma sociedade de pura competição que pode facilmente se autodestruir (ZAGAGLIA; PEREIRA, 2004, p. 183). Conforme destaca Bosi (1999, p. 53), “a lembrança é a sobrevivência do passado”. Precisamos manter vivas as narrativas contadas pelos mais idosos sobre o passado, para que assim possamos compreender diversos acontecimentos relacionados não só à educação, mas sim de todo trajeto percorrido por esses seres e que de alguma forma influenciam quem somos hoje. Narrativas, tais como a origem da família, como eram as escolas, quais eram os meios de transportes, como eram feitos os contatos com parentes distantes, enfim, histórias do passado que ensinam e, sobretudo, emocionam. Ainda conforme Bosi A criança recebe do passado não só os dados da história escrita; mergulha suas raízes na história vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte da sua socialização. Sem estas haveria apenas uma competência abstrata para lidar com os dados do passado, mas não a memória (BOSI, 1999, p. 73). Durante a minha infância, no interior do município de Cruzeiro do Sul, inúmeras foram as vezes nas quais os meus avós contavam-me sobre fatos vividos por eles no passado. Hoje, consigo perceber que o vocabulário utilizado por eles naquela época continua o mesmo, quando estes contam as mesmas narrativas para seus bisnetos. Não havia e não há uma preocupação com a forma de contar tais acontecimentos. Episódios tristes, dolorosos, perdas de entes queridos, castigos escolares, sacrifício de locomoção, dificuldade de encontrar matéria prima para confeccionar brinquedos, tempo raro para brincadeiras são narrados sem cortes, como se estivessem contando algo que no passado também lhes trouxe alegrias. Segundo Silva e Marchezin 20 A memória é [...] uma representação de experiências já acontecidas. Ela é, portanto, uma representação, uma reconstrução simbólica; ela não é a coisa em si, mas a coisa reconstruída por meio da linguagem. Ela sempre diz respeito a ações ou coisas ocorridas no passado. Assim, a memória é a reconstrução simbólica do passado. Outra dimensão fundamental é que a memória é sempre memória de alguém sobre alguma coisa. É uma relação simbólica feita por pessoas. A memória é memória de pessoas sobre suas experiências ou as dos seus antepassados. Quando a avó se senta para contar sobre sua infância para a neta, ela está reconstruindo suas experiências, organizando-as e conferindo a elas significados que sua neta possa compreender (SILVA; MARCHEZIN, 2014, p. 24). O conceito de memória perpassa diversos aspectos, sejam eles culturais, políticos ou econômicos. Portanto, para não ser entregue e esquecida no tempo, a memória precisa ser compartilhada, como aponta Silva e Marchezin Por sempre pertencer a alguém, a memória não existe fora do tempo: é uma relação ativa no presente sobre o passado. A memória não existe sozinha, mesmo quando toma forma de lembrança individual- se não for comunicada ou compartilhada de alguma forma, ela desaparece. Ou seja, a memória que não é socializada não existe por muito tempo, e toda memória – por mais individual que seja a experiência que ela representa – só ganha pleno sentido como memória ao se tornar coletiva. Portanto, é possível pensar que mesmo as memórias individuais são, em certa medida, parte da memória social de um determinado grupo (SILVA; MARCHEZIN, 2014, p. 24). É preciso ficar claro que muitas memórias apresentadas no decorrer desse Trabalho de Conclusão de Curso foram interpretadas, uma vez que o silêncio pode deixar algo suposto nas entrelinhas. Assim como reinterpretamos dados aos marrá-los, eu, enquanto pesquisadora, inevitavelmente fiz seleções, cortes e também interpretei recordações obtidas, de forma a imprimir mais sentido a um ou outro dado, conforme a minha percepção. A memória é sensível, por vezes cruel; indestrutível, por vezes abalável; eterna, por vezes passageira; persistente, por vezes temporária; duradoura, por vezes fugitiva; e estável, por vezes instável. Diante de tudo isso uma dúvida me inquieta: é a memória que nos trai ou somos nós que traímos a nós mesmos? Por vezes, temos o desejo de confiar na nossa memória, noutras inventamos mentiras e acreditamos nelas próprias. Ou seja, mentimos para nós mesmos. 21 Você nunca se deparou com algo que tivesse imensamente o desejo de lembrar e que não tinha mais a convicção de sua certeza? Seja algo que aconteceu em um dia da semana ou algum acontecimento importante: a hora em que chegou numa cidade desejada, a cor de uma roupa que usava numa ocasião importante. Será que era quarta? Ou era na quinta mesmo? Será que era preto, ou era vermelho? Será que chegamos em Maceió ao anoitecer ou de madrugada? Enfim, inúmeras situações das quais não temos mais a certeza dos detalhes e que nos desacomodam em certos momentos. Isso significa que, muitas vezes, a nossa memória nos trai, mas continuamos fiéis e acreditando nela durante muito tempo. Traímos amizades, relacionamentos e também somos traídos pela nossa própria memória. Ohlweiler (2014) traz em seus estudos alguns autores que também problematizam essa transição da memória, ora confiável, ora não: Como afirma Finocchio (2005), a narrativa permite um discurso mais ligado à vida, às vivências, à experiência, além de abrigar com naturalidade pensamentos, sentimentos e desejos. Por isso, compartilho do incômodo de Huyssen (2000) em relação à cisão entre memória real e virtual; afinal, “qualquer coisa recordada - pela memória vivida ou imaginada – é virtual por sua própria natureza. A memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e passível de esquecimento; em suma, ela é humana e social (OHLWEILER, 2014, p.37). A contadora de histórias Maria Lúcia questionou sobre a sua certeza durante a entrevista: Era assim né? Acho que não estou enganada! (Maria Lúcia) E é em virtude exatamente da ampla gama de armazenamento de informações daquilo que vivemos, que podemos analisar a memória sob diferentes aspectos. Sendo a memória capaz de abrigar sentimentos, negativos ou positivos de alguns fatos, nesse momento ela já pode nos trair. Seja num momento de raiva ou de extrema felicidade, ela pode fazer com que as narrativas tenham uma outra finalidade. Nesse sentido, um fato acontecido é denominado real, mas no instante seguinte ao que ele aconteceu, torna-se virtual. Diferentemente do sentido que estamos habituados a relacionar o virtual, o universo tecnológico, nossa memória trabalha com virtual pelo fato de não conseguir reviver o acontecido de maneira concreta. Durante o meu trabalho, tive que lidar muito com essas memórias virtuais, ou seja, com a memória recordada. 22 4 NARRATIVAS BIOGRÁFICAS E A EXPERIÊNCIA Narrativa é um gênero literário que tem como principal característica a contação de um fato, seja ele real ou imaginário. As narrativas podem ter como foco um sujeito que está disposto a ser informado sobre algo, entreter, e também aprender. Mas podem se dar sem foco algum, pelo simples prazer de narrar. Neste estudo, através de narrativas, dessa escuta atenta, há um desejo. Rinaldi salienta que Por trás do ato de escuta existe normalmente uma curiosidade, um desejo, uma dúvida, um interesse; há sempre alguma emoção. Escuta é emoção; é um ato originado por emoções e que estimula emoções. As emoções dos outros nos influenciam por meio de processos fortes, diretos, não mediados e intrínsecos à interação entre sujeitos comunicantes. Escutar como forma de aceitar de bom grado e estar aberto às diferenças, reconhecendo o valor do ponto de vista e da interpretação dos outros (RINALDI, 2012, p. 124). As narrativas são utilizadas desde os primórdios, e um dos maiores exemplos de narrativas encontram-se na Bíblia, documento este que contém inúmeras histórias sobre o tempo passado. Podemos destacar, também, que as histórias das famílias são belas narrativas contadas pelos patriarcas e matriarcas. Há sempre um narrador por trás de toda história narrada, ou seja, aquela pessoa que está contando o fato. Como enfatiza Paiva Muitos são os significados de narrativa que circulam entre nós: uma história; algo contado ou recontado; um relato de um evento real ou fictício; um relato de uma série de eventos conectados em sequência; um relato de acontecimentos; uma sequência de eventos passados; uma série de eventos lógicos e cronológicos, etc. as narrativas circulam em textos orais, escritos e visuais e têm sido amplamente investigadas na área da Linguística Aplicada (PAIVA, 2008, p.1). 23 Trabalhar com narrativas na metodologia significa ter como principal parâmetro a coleta de dados através de histórias vividas, mas para muito além disso, primeiramente, quando se pensa em trabalhar com essa metodologia, é preciso o pesquisador estar preparado, pois diante de nós estará alguém para narrar as suas vivências e não nos cabe julgar qualquer colocação apresentada. Como destacam Muylaert et al, As narrativas, [...], são consideradas representações ou interpretações do mundo e, portanto, não estão abertas a comprovação e não podem ser julgadas como verdadeiras ou falsas, pois expressam a verdade de um ponto de vista em determinado tempo, espaço e contexto sóciohistórico (MUYLAERT et al, 2015, p. 195). Seixas afirma que: Não é de nosso interesse confirmar ou atestar o veredito das informações que nos forem concedidas, mas de fazer lembrar e permitir a ficção e a criação; permitir que a subjetividade do sujeito aflore, que vá além do que aconteceu, porque o que aconteceu nunca foi, sempre é, está sendo; e a “memória constrói muito mais o real do que o resgata” (SEIXAS, apud OHLWEILER, 2014, p. 51, grifos do autor). É preciso então ter esclarecido que narrativas são o hábito de contar histórias. O elemento que merece destaque nas narrativas é o narrador, ou seja, é o personagem principal da nossa pesquisa, e é através desse narrador que temos nas experiências algo incalculável, que é da ordem do discurso, mas também da ordem da emoção, do que mais marcou os “contadores de histórias” em suas vidas. Como afirmam Muylaert et al [...] a possibilidade de narrar o vivido ou passar ao outro sua experiência de vida, torna a vivência que é finita, infinita. Graças a existência da linguagem a narrativa pode se enraizar no outro. Sendo assim, a narrativa é fundamental para a construção da noção do coletivo (Muylaert et al, 2015, p. 194). É comum nas narrativas termos relatos baseados em ficção, nos quais acrescentamos elementos. Nesse sentido, reproduzo aqui a definição dada pela minha avó, em uma conversa recente que tive com ela, a qual disse-me que a forma como contamos algo hoje será diferente se contarmos o mesmo fato no dia seguinte. Por mais que imaginamos narrar o real, construímos sobre ele ao narrar, então mesmo o “mais verdadeiro, real e verídico” estará sempre imbuído de ficção. As narrativas baseadas na ficção levam em conta a capacidade de imaginação do narrador, da capacidade de criar, mesmo que involuntariamente. Assim, poderíamos chamar de relatos semirrealistas aqueles em que o narrador conta uma história baseada em fatos reais, mas que ao longo da narrativa acrescenta elementos imaginários. 24 Ao interagir com narradores, é importante não “[...] distinguir realidade e ficção e [...] permitir que as pessoas entrevistadas ‘ficcionem’, porque afinal, ficcionamos o real e procuramos tornar reais algumas ficções.” (OHLWEILER, 2014, p. 117). Nesse sentido, a memória parte de uma ficção, pois ao narrarmos um fato que não lembramos com exatidão, o ficcionamos para que o ouvinte permaneça atento à história e acredite fielmente nela. E, de fato, neste Trabalho de Conclusão de Curso não saberemos, e também nem é essa a nossa intenção, quais fatos narrados são reais e quais são fictícios. Ohlweiler (2014) cita um documentário brasileiro no qual o diretor utiliza-se de fatos reais e fictícios, deixando o telespectador extremamente confuso: Um bom propulsor para pensar o jogo entre realidade e ficção, ou, entre real e fictício, é o documentário de Eduardo Coutinho, Jogo de Cena, no qual o diretor brasileiro convida mulheres (atrizes e não-atrizes) e faz com que estas narrem histórias. O espectador fica numa situação de adivinhação ao perceber que as histórias se repetem na voz de atrizes e não-atrizes, e passa a se questionar se aquela que narra realmente viveu ou não aquilo que conta. A emoção transmitida por vezes é mais forte na interpretação das atrizes, e aí ficam as dúvidas, de quem seriam as histórias e quem seria aquela que narra de verdade ou somente está interpretando (OHLWEILER, 2014, p. 117, grifos do autor). Durante o trabalho de campo, realizado com narrativas, também me deparei com histórias cujo teor de verdade pode ser questionável, mas a mim, enquanto pesquisadora, coube o papel de aceitar as ficções e mais do que isso, compreender o quanto estas fazem parte do próprio processo de relembrar. Narrar é uma forma de comunicação. Narramos outras pessoas como também podemos narrar algo sobre nós mesmos. Wittizorecki et al (2006, p. 10) diz que “Não há experiência humana que não possa ser expressa na forma de uma narrativa.” (BAUER; JOVCHELOVITCH, 2002) De alguma forma narramos. Narramos fatos, feitos, fenômenos. Narramos experiências, sentimentos, outras pessoas e nos narramos. Vale dizer que os textos científicos também se constituem, de forma elaborada, coesa e parametrizada, em narrativas: narram descobertas, compreensões, interpretações, recomendações. Portanto, narrar é dimensão fundamental de comunicação humana e de atribuição de significados ao mundo. 25 Por estar relacionada a tantas facetas é que a narrativa me encanta. Me encanta pela capacidade que tem de emocionar, de imaginar, de viajar, de sentir a dor ou a alegria de momentos narrados por outrem, me encanta pela capacidade de dedicarmos o nosso tempo, que consideramos precioso, para ouvir, como enfatiza Rinaldi (2012, p. 124): “[...] ouvir não somente com as orelhas, mas com todos os sentidos (visão, tato, olfato, paladar, audição e também direção)”. Podemos observar a fala da contadora de história Dulce quando questionou a mim a importância que dou sobre a sua narrativa: Mas me diz, você está interessada mesmo em saber todas as histórias da minha infância? Ninguém nunca me pediu isso. A gente tem que lembrar tudo pra contar né? Sou velha, mas alguma coisa ainda lembro. (Dulce) Ainda conforme Rinaldi A escuta não é fácil. Exige uma profunda consciência e suspensão de nossos julgamentos e, acima de tudo, de nossos preconceitos; demanda abertura à mudança. Requer que tenhamos claro em nossa mente o valor do desconhecido e que sejamos capazes de superar a sensação de vazio e precariedade que experimentamos sempre que nossas certezas são questionadas (RINALDI, 2012, p. 125, grifos do autor). Pensando ainda sobre a escuta atenta, Faour ressalta a diferença entre escutar e ouvir: Escutar é mais que ouvir. É mais do que estar parada em frente a alguém, dividindo o mesmo metro quadrado. Escuta-se com todas as células do corpo. Escuta-se com as mãos, com os olhos, com a respiração, escuta-se, inclusive, com os ouvidos. Uma postura escuta, um gesto escuta, a boca escuta. Há que se deixar apagar e se concentrar no outro. Há também que se eliminar quaisquer ruídos de interferência – como pensamentos que voam, telefones que tocam, vaidades que afloram, vontade de ir ao banheiro. Muitos dizem que a fala distingue o ser humano dos outros animais. Discordo. Saber escutar é o que nos dá humanidade. Mas escutar não é o que se vê por aí. O que se vê por aí é uma distorção. Algo parecido com um duelo. Uma pessoa fala, logo depois a outra retruca, contando uma experiência muito melhor ou bem pior. Isso é uma relação de falsa solidariedade. Isso não é escutar. É outra coisa que não sei o nome. Escutar é ceder. É um ato de generosidade (FAOUR, 2009, p. 123). Quando decidi trabalhar com narrativas biográficas, tive claro que ao fazê-las nada poderia tirar o meu foco. Estaria ali para ouvir, ouvir de todo coração, não somente com o ouvido, sem me preocupar com outros assuntos que não fossem as histórias narradas pelos meus “contadores de histórias”. Estaria ali doando, ofertando o meu tempo para que os participantes do meu Trabalho de Conclusão de Curso pudessem contar suas experiências. De fato, coloquei- me a disposição para ouvir e também respeitar o silêncio dos participantes, uma vez que o silêncio também fala. “Poucos sabem a importância de um silêncio bem colocado” (FAOUR, 2009, p. 19). 26 É preciso saber ouvir, para também ser escutado. Corroboro com Faour Sou, por opção, toda ouvidos, como se diz popularmente. E olhos também, que um olhar de permissão e de “fique à vontade” cai muito bem nessas ocasiões. Nas ocasiões de encontros, quero dizer. Inspira confiança e credibilidade. Duas qualidades fundamentais (FAOUR, 2009, p. 78). A referida autora ainda utiliza-se de uma frase um tanto quanto direta e dura, mas que considero muito importante, por isso trago-a para refletir: Tenho aflição quando alguém fala e não recebe a atenção que merece. Se alguém tem o trabalho de abrir a boca, articular um pensamento e emitir um som – a fala é uma das atividades mais complexas para o cérebro humano – é por necessidade. Se alguém se dá o trabalho de falar, o mínimo que temos a fazer é ... escutar (FAOUR, 2009, p. 23). As crianças ainda tendem a ser mais capturadas pela contação de histórias de vida, sobretudo pelas práticas que se dão no contexto escolar. Acabam tornando-se boas ouvintes, talvez por já estarem mais habituadas à própria prática de contação de histórias. Essa capacidade de escutar e de alimentar expectativas recíprocas, que possibilita a comunicação e o diálogo, é uma qualidade da mente e da inteligência, particularmente na criança pequena. É uma qualidade que requer compreensão e apoio. No sentido metafórico, as crianças são as maiores ouvintes da realidade que as cerca. Elas possuem o tempo de escutar, que não é apenas o tempo para escutar, mas o tempo rarefeito, curioso, suspenso, generoso- um tempo cheio de espera e expectativa. As crianças escutam a vida todas as suas formas e cores, e escutam os outros (adultos e colegas). Elas logo percebem que o ato de escutar (observando, mas também tocando, cheirando, sentindo o gosto, pesquisando) é essencial para a comunicação. As crianças são biologicamente predispostas a se comunicar, a existir em relação, a viver em relação (RINALDI, 2012, p. 126-127, grifos do autor). Procurei, enquanto pesquisadora, me imbuir desse “tempo curioso e generoso” das crianças, no sentido do tempo que deixa acontecer, e que procurou deixar a fala fluir para entrar num ouvido sedento de histórias. Santos e Garms ressaltam a significação das narrativas: Narrativas, orais e escritas, têm sido utilizadas na história humana como recurso educativo e se constituem em instrumento cultural com grande potencial de organização do pensamento e da realidade na estruturação de aprendizagens. Em geral, relatam o desenvolvimento de uma situação provocada pela vivência de tensões e conflitos, reais ou imaginários, e a forma como eles são resolvidos. As experiências narradas pelos outros são significativas na compreensão da realidade, pois o ouvinte\leitor experimenta, simultaneamente com um certo distanciamento emocional e com uma certa proximidade, uma identificação com a história relatada (SANTOS; GARMS, 2014, p. 7-8). 27 Quando pensamos em analisar os dados coletados, que aqui tratam-se de histórias narradas, diversas são as possibilidades de o fazermos. Primeiramente é preciso estar disposto a interagir com o participante da pesquisa, no caso, os “contadores de histórias”, e interpretar, como apontam Muylaert et al [...] para obter bons resultados o pesquisador deve ter uma grande capacidade de interação com o outro, uma disponibilidade psicológica para ouvir e habilidades de escrever as experiências analisadas (MUYLAERT et al,2015, p. 196): Corraboro com Muylaert et al, para quem A interpretação de narrativas ainda representa um desafio aos pesquisadores que podem seguir diferentes técnicas ou métodos. Ao mesmo tempo em que o domínio de técnicas específicas é exigido, não há intenção de esgotar as possibilidades de análises, mas sim de realizar uma análise no sentido de abrir os sentidos (MUYLAERT et al, 2015, p. 196), Quando o trabalho com narrativas se faz presente, é importante que o pesquisador esteja preparado para um trabalho minucioso, no qual ele irá analisar os fatos e transcrever os dados. Como citado acima, diversas são as possibilidades de analisar os dados coletados, e não podemos simplesmente descrever o relato, mas sim, debruçar-se sobre cada detalhe e jamais findar uma possibilidade de “fazer tocar” o leitor do trabalho. Segundo Souza Outra questão importante é indicar como concebemos o papel do pesquisador no processo de recolha das fontes e elaboração do conhecimento. Não concordamos com as posições que reduzem o papel do pesquisador à mera descrição, argumentando que toda interpretação implica traição à essência do discurso do outro. O papel do pesquisador não pode limitar-se a tomar notas, pois a sua tarefa é a escuta sensível na qual perceba os componentes e dimensões relevantes na vida dos sujeitos que lancem luz sobre as problemáticas construídas (SOUZA, 2007, p. 67-68). Destaco que, nesse Trabalho de Conclusão de Curso, abordarei as narrativas biográficas. Biografia quer dizer a história contada sobre a vida de uma pessoa com detalhes de datas e acontecimentos e que também pode conter relatos que comprovem os fatos que aconteceram. Já autobiografia é também um gênero literário, no qual uma pessoa narra sua história de vida, abordando os principais acontecimentos. Ou seja, é uma biografia que pode ser escrita ou narrada pelo próprio autor. Conforme destaca Abrahão (2003, p. 80), trabalha-se “[...] antes com emoções e intuições do que com dados exatos e acabados; com subjetividades, portanto, antes do que com o objetivo”. Ou seja, trabalhar com narrativas exige uma atenção àquilo que é da ordem do subjetivo, àquilo que é singular e particular de cada entrevistado. 28 O pesquisador, trabalhando com narrativas biográficas, valoriza o processo das histórias contadas, mais do que o resultado final, que talvez não será aquele que ele deseja. Gussi (2008) destaca a importância da aprendizagem através do narrado: A intersubjetividade possibilita ampliar, analiticamente, a discussão sobre a experiência e a aprendizagem. A dimensão autobiográfica da experiência de pesquisa e de produção de conhecimento, entendida como resultado do encontro com os sujeitos, permite que o pesquisador aprenda com eles, com suas experiências vividas e narradas. Assim, o processo de aprendizagem se dá entre o vivido, o narrado e, finalmente, pelo que é compreendido na dimensão intersubjetiva construída na experiência dialógica entre os sujeitos e o pesquisador (GUSSI, 2008, p. 14). Nesse sentido, trabalhar com narrativas biográficas envolve experiência. Quando olho para o passado, mais exatamente para a minha infância, lembro-me de fatos que me tocaram, me envolveram, que provocaram uma experiência, pois estava ali, presente, para que assim ela acontecesse. Ou seja, narrativas produzem experiências. Experiência essa que nem sempre é positiva. Quantas experiências negativas a forma de viver pode produzir hoje? Mas produzem, seja positiva ou negativamente. E posso dizer que muitas experiências negativas marcam e ensinam, tanto como as positivas. Pensando nisso trago os relatos dos contadores de histórias, a partir dos quais podemos observar que ambos possuem a mesma ideia das experiências que não são fáceis, mas que ensinam: Aqui na Boa Esperança era bonito sempre de viver, a gente tinha a vida difícil, mas quando a gente era criança era tudo simples. Era dura a nossa vida na verdade, a gente não era criança como se é hoje. Mas acho que nós vivemos a vida mais difícil mas isso ensinou muito a gente também. Às vezes as coisas ruins servem pra ensinar alguma coisa pra gente. (Dulce) Vocês não sabem nada, Meu Deus. Hoje é muito, muito diferente. Hoje eles nascem e já tem tudo. No nosso tempo, nós não tinha nada. A gente precisa dizer o que é. Nós vivia como podia, sorte que tinha a plantação, mas sabe guria, nós era mais feliz. Não sei, era tanta dificuldade, tanta dificuldade, mas nós sempre tinha o pai e a mãe ali, e isso valia muito. Talvez mais do que se nós tivesse tudo que se tem hoje em dia. (Maria Lúcia) E sabe, querendo ou não essas histórias tristes do nosso tempo de guri, podiam ensinar alguma coisa pra criançada de hoje. Pensa, o quanto eles podiam aprender com as coisas que nós passamos. (Chico) 29 Nós fizemos a roça, puxava 15000 metros de eucalipto, sozinho. Eu ia pro mato com meus boi, minha carroça e lá ficava. Puxava por dia 50, 55 metros. E se tu vai contar isso, isso ninguém acredita. Tu vai dizer que era forte. Eu conta as histórias pra neta, elas acham que esse veio tá mentindo. Mas não é, a gente fez isso tudo. Carregar torra hoje em dia, isso ninguém mais faz, mandam fazer. Na realidade nem boi mais podem fazer isso hoje. Mas acho que isso são ensinamentos pras netas também. Coisas que a gente viveu e que elas podem aprender alguma coisa. (Elésio) Elésio relata um fato de quando seu filho era criança e o quanto pode aprender com as experiências da sua época de “Filho”: Acho que hoje educa sem bater. Eu na realidade, eduquei meu filho, e bati ele uma vez só. Um dia desses, não sei mais o que ele tinha feito, mas tava preparado pra chover, e a mãe de briga com ele lá e jogou as coisas dele na rua. Daí ele tava lá na rua chorando, tava abandonado, né. Daí fui lá, peguei brita e mandei ele ajoelhar na brita. 15 min. E daí eu fui tomar banho, quando voltei ele perguntou: Oh pai, já passou os 15 min? Mais 10 min eu disse. E se tu perguntar de novo, mais 10 min. Mas daí não deixei ele lá os 15 min, começou a chover. Disse pra ele tomar banho, mas escuta, isso foi o melhor remédio pra ele. Doeu mais que uma surra. Ele sentiu mais, isso ele conta hoje ainda. A gente aprendeu com a nossa infância que apanhar dói, mas não acredito que educamos sem castigo também. Tem essas experiências que a gente vai adquirindo no decorrer da vida que podemos passar para os filhos. (Elésio) Reforçando essa ideia de experiência e das diferentes formas de acontecer, trago Gagnebin (2006) e o relato sobre a lenda do vinhateiro: [...] que, no seu leito de morte, confia a seus filhos que um tesouro está escondido no solo do vinhedo. Os filhos cavam, cavam, mas não encontram nada. Em compensação, quando chega o outono, suas vindimas se tornam as mais abundantes da região. Os filhos então reconhecem que o pai não lhes legou nenhum tesouro, mas sim uma preciosa experiência, e que sua riqueza lhes advém dessa experiência (GAGNEBIN, 2006, p. 42). Uma lenda marcada pela tradição de palavras e conselhos trocados entre pais e filhos e que nos mostra o quanto uma experiência pode ter infinitas possibilidades de acontecer. Uma experiência que se dá por meio dos sentidos, da afetividade. Experiência que o pai, um velho vinhateiro, tenta transmitir aos seus filhos, e estes o escutam: 30 Pode-se, naturalmente, interpretar esta fábula como a ilustração da nobreza do trabalho e do esforço. Benjamin, entretanto, não a usa para fins moralizantes. É a encenação da história que lhe interessa. Não é o conteúdo da mensagem paterna que importa; aliás, o pai promete um tesouro inexistente e prega uma peça a seus filhos para convencê-los. O que importa é que o pai fala do seu leito de morte e é ouvido, que os filhos respondem a uma palavra transmitida nesse limiar, e reconhecem, em seus atos, que algo passa de geração para geração; algo maior que as pequenas experiências individuais particulares (Erlebnisse), maior que a simples existência individual do pai, um pobre vinhateiro, porém, que é transmitido por ele; [...] (GAGNEBIN, 2006, p. 42). É através das experiências vividas e sentidas que nos tornamos quem somos hoje, como ressalta Azevedo Experiência e memória têm uma relação de complementariedade, já que é preciso rememorar para narrar e ao narrar talvez reviver o acontecido, não só para melhor compreender a situação vivenciada, mas para perceber o que com ela aprendemos e como ela nos transformou no que somos hoje (AZEVEDO, 2013, p. 43). Concluo este capítulo com as palavras de França (2013), que ressalta as marcas pessoais dos sujeitos em relação aos acontecimentos, estes que o significam e ressignificam: O sujeito da experiência é constituído por acontecimentos. Acontecimentos que o marcam, o tiram do lugar, levam para fora de si mesmo, trazendo ressignificações, de tal forma que o sujeito após a experiência não é o mesmo de antes dela (FRANÇA, 2013, p. 62). Ou seja, acontecimentos que trazem novos significados, que nos causam uma experiência, esta tem como resultado um novo sujeito. 31 5 INFÂNCIAS: CAMINHOS DE COMPOSIÇÃO Ao refletirmos sobre o que é infância, inúmeras são as respostas possíveis. Algumas questões que poderiam vir ao encontro deste conceito são inocência, pureza, magia, brincar, novidades, fantasia, criações, combinações e outras inúmeras situações que fazem parte desse universo infantil. Infância como um período de liberdade, na qual as brincadeiras se fazem presentes, é o período da vida humana onde se iniciam as descobertas. Segundo o Artigo 2º. do Estatuto da Criança e do Adolescente, “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (BRASIL, 2015, p.11). Pelas condições precárias da época, a dependência econômica entre pais e filhos era muito forte. Os filhos que moravam sob o mesmo teto deviam satisfação aos seus pais e muitas vezes precisavam entregar o dinheiro que ganhavam, fruto do trabalho braçal que estes exerciam. Era uma espécie de hierarquia. Os pais mandavam, os filhos obedeciam. Essa obediência era inquestionável. Os registros históricos nos permitem perceber que nem sempre o conceito de infância foi compreendido como um sentimento da vida e no decorrer dos últimos séculos o mesmo sofreu algumas alterações. O historiador Ariès (2012) foi o pesquisador pioneiro no que se refere aos estudos sobre a constituição e evolução do sentimento de infância no período medieval e moderno. Conforme destaca Bujes 32 Ariès (1981), na condição de pioneiro, teve o mérito de inaugurar uma nova compreensão acerca do fenômeno da infância, situando-o como um acontecimento caracteristicamente moderno. Em que pesem as críticas que lhe são feitas, especialmente aquelas que contestam esta condição de pioneirismo- já havia histórias da infância escritas no século XIX-, é ele que vem apontar para o fato de que é por volta do século XVI que começa a se instituir um modo novo de significar as crianças, um novo regime discursivo sobre a infância (BUJES, 2002, p. 31). Em sua obra “História Social da Criança e da Família”, Ariès (2012) descreve as evoluçõeshistóricas que o sentimento de infância sofreu. Segundo ele, na Época Medieval, não existia o sentimento de infância, sendo que esta era um período relativamente curto. A criança era um ser insignificante, sem qualquer autonomia e nem mesmo a morte desses pequeninos causavam comoção. Kohan (2005), ao estudar a obra de Ariès, ressalta que [...] nas sociedades europeias, durante a época medieval, não havia um sentimento ou consciência de “infância”. Nessas sociedades, o que chamamos de infância estava limitado a esse período relativamente curto, mais frágil da vida, em que uma pessoa ainda não pode satisfazer por si mesma suas necessidades básicas (KOHAN, 2005, p. 63-64). Ariès (2012) relata que as crianças eram vistas como mini adultos, e que somente o tamanho distinguia uma fase da outra. Segundo o autor, não se acreditava na inocência da infância. As brincadeiras relacionadas a sexo eram consideradas normais entre adultos e crianças. Os “contadores de histórias”, em vários momentos demonstraram o quanto rompiam com algumas regras sociais quando narram as suas transgressões, o que vai de encontro à pureza da infância constituída no período da modernidade. Meu irmão uma vez chamou nós para fumar escondido e a mãe viu, daí apanhamos bastante. Levamos um laço. Também a gente ia tomar banho nos arroios sem avisar a mãe, era errado né? Mas a gente não tinha muita coisa pra fazer. Ah, lembrei que nós chamávamos os primos e dizíamos para tomar chimarrão, colocávamos açúcar de monte na cuia e eles morriam de dor de barriga. Era feio fazer isso, mas nós éramos crianças. (Maria Lúcia) Uma vez, um irmão foi buscar o balde de água lá para tomar banho, daí ele estava voltando e nós derrubamos toda água que ele tinha ido buscar. Que feio, né? Coitado, foi longe e nós fizemos mal criação. (Dulce) 33 Elésio também nos conta que a “arte”, expressão utilizada por ele mesmo para representar travessuras infantis, não faltava no seu tempo. Relata que incomodavam muito. Já para Chico, a “arte”, ou o ser “arteiro” se resumia em conversar na escola e caçar passarinho, como ele mesmo conta: Olha, brincava um tanto na aula e tal... caçava passarinho, levava o bodoque junto na mochila, na aula. Voltava às vezes uma, uma e meia de tarde pra casa. Então, caçava passarinho, colhia fruta lá no mato. (Chico) Apesar desses fatos relatados não estarem relacionados com a pureza ou a inocência de uma criança, no sentido do que os adultos esperavam das crianças, como uma construção histórica sobre o sujeito infantil, os contadores de histórias relatam estas brincadeiras como algo que não mereça elogios. Àries (2012) destaca que quando as crianças demonstravam que poderiam ser independentes, eram inseridas no universo adulto. Podemos fazer uma breve reflexão em relação ao período em que os contadores de histórias viveram a sua infância. Estamos falando em alguns séculos após o período definido por Ariès como o surgimento do sentimento da infância, porém a relação entre dependência infantil e trabalho se mantiveram, pelo menos nas classes mais desfavorecidas economicamente. O que fazia, por exemplo, com que as mulheres entrevistadas fossem pertencentes ao universo adulto? Era conseguir trabalhar quase tal como um adulto? Porém, elas ainda eram vistas como crianças, pois em certos momentos não poderiam fazer parte da roda de conversa. Havia essa inserção no mundo adulto? Sim, somente pelo trabalho. Mas, parecia estar definido o que era somente dos adultos e aquilo que era das crianças, ou seja, uma não participação das crianças em determinados contextos. Ao mesmo tempo que se era criança, também se era adulto, mas somente para algumas coisas. Ou seja, se era criança, mas se trabalhava como adulto, ao mesmo tempo que trabalhava como adulto, mas não podia ouvir as conversas. As narrativas dos contadores de histórias demonstram essa situação: 34 Quando ganhava visita a gente não podia ficar junto. Nós já sabia que tinha que sair. A mãe só olhava pra gente e nós já sabia o que ela queria dizer pra nós. Daí nós fomos brincar na nossa casinha! Aiiiii, daí nós “tava faceiro”. A conversa dos mais velho, tu não podia escutar. Isso era respeito. Não sei se era respeito ou burrice. As duas eu acho! Porque a gente “tava” grande e não sabia nada. Os pai não “explicava tudo, tudo” como é hoje. Isto era muito diferente. Tinha coisas que nós meninas aprendia com as primas. (Dulce) A gente já não lembra mais muito bem. Quando as mulheres falavam alguma coisa errada, a gente não podia escutar...isto foi tudo errado né? Isto foi tudo, tudo errado. Porque hoje as criança podem ficar e sabem tudo logo. A mãe sentava com as visitas e nós tínhamos que sair, nós já sabíamos disso, a mãe nem precisava mandar, mas às vezes nós ouvíamos. (Maria Lúcia) Para Elésio e Chico, a situação não era diferente. Participar das rodas de conversa com as visitas? Nem pensar, era extremamente proibido. Ah, isso nós ganhava visita mas não podia ouvir a conversa dos mais velhos. Isso não era permitido. Eles mandavam as criança brincar, e os velhos naquela época escutavam o que eles estavam falando para as crianças não ouvirem. Hoje nós nem queremos saber né, se as crianças estão junto. Hoje, a tv, ela não tem mais censura. Então como os pais vão ter censura? Naquele tempo tinha censura. (Elésio) O pai dizia: Vão brincar lá fora. Ou achava um servicinho. Vão fazer isso, isso, isso. Né, o pai. Eles achavam um serviço pra gente fazer, dia de semana se tinha visita lá em casa, ficar junto? “Nega pau!” Procuravam um serviço, nem que não era necessário. (Chico) A distinção entre o universo adulto e infantil no contexto dos contadores de histórias era delimitado no sentido do acesso a determinadas informações. Barreiras hoje já indefinidas. Postman (1999) vai dizer que a televisão aproxima o mundo adulto do mundo infantil, ela não guarda mais os “segredos”, tudo que era privado se torna público, através do acesso as informações e as crianças vêem tudo que a televisão transmite. Ou seja, não se tem mais segredos a contar para as crianças, todos sabem tudo ao mesmo tempo, perde-se então a maneira de manter crianças distantes do mundo adulto. As crianças são “adultilizadas”. Se voltarmos para o período estudado por Ariès (2012), de surgimento que compreende a transição do Feudalismo para a Idade Média, perceberemos que as barreiras entre o universo adulto e infantil praticamente não existiam. Conforme Kohan, a aprendizagem das crianças nessa época se dava através do desenvolvimento de tarefas: 35 As crianças, tal como as compreendemos atualmente, eram mantidas pouco tempo no âmbito da família. Tão logo o pequeno pudesse abastecer-se fisicamente, habitava o mesmo mundo que os adultos, confundindo-se com eles. Nesse mundo adulto, aqueles que hoje chamamos crianças eram educados sem que existissem instituições especiais para eles. Tampouco existia, nessa época, a adolescência ou a juventude: os pequenos passavam diretamente de bebês a homens (ou mulheres) jovens. Não havia, naqueles tempos, nenhuma ideia ou percepção particular ou específica de natureza da infância diferente de adultez(KOHAN, 2005, p.64). Em meados do século XVII, o cenário começa a sofrer algumas modificações: [...]a partir de um longo período, e, de um modo definitivo, a partir do séc. XVII, se produz uma mudança considerável: começa a se desenvolver um sentimento novo com relação à “infância”. A criança passa a ser o centro das atenções dentro da instituição familiar. A família, gradualmente, vai organizando-se em torno das crianças, dando-lhes uma importância desconhecida até então: já não se pode perdê- las ou substituí-las sem grande dor, já não se pode tê-las tão em seguida, precisa-se limitar o seu número para poder atendê-las melhor (KOHAN, 2005, p. 66). A criança passa a ser percebida pelos adultos e começa-se a pensar na fragilidade destes seres. Perder um filho passa a ser um momento de dor intensa; faz-se valer o ditado popular “menos é mais” e tem-se poucos filhos, para que assim fosse dado todo suporte necessário.Cabe ressaltar, porém, que a diminuição no número de filhos se deu de maneira gradativa e inicialmente na burguesia. No contexto brasileiro, por exemplo, percebemos que esta modificação é recente, dado fato de que o número de filhos correspondia a uma ajuda no trabalho braçal, em especial, nas atividades rurais. Ainda em meados do século XVIII,o modo de vestir as crianças também sofre alterações e a preocupação com a educação se faz presente. Inicia-se um processo de transformação. Segundo Corazza Por volta do século XVI, a criança começa a ser percebida como uma fonte de distração e relaxamento para os adultos, embora ainda não exista uma consciência de infância. O século XVII, gradualmente, inicia a discriminação entre adultos e crianças, as quais vão perdendo o caráter de adultos que ainda não cresceram. Os moralistas e os homens da Igreja do período as vêem como sendo inocentes, como puras criaturinhas de Deus, que têm necessidade de ter sua inocência preservada, e também como seres frágeis, como indivíduos morais e racionais, que precisam ser educados, vigiados e corrigidos. No século XVIII, estes dois atributos da infância- inocência e fraqueza- persistem acrescidos de um maior apuramento no que tange aos cuidados físicos. Em meados deste mesmo século, a moderna perspectiva de infância emerge constituída por preocupações em relação a seu futuro, preservação e existência real, as quais passam a ocupar um lugar central na família (CORAZZA, 2002, p. 84-85). Da mesma forma, Kohan corrobora com a autora ao afirmar que 36 A criança se torna uma fonte de distração e relaxamento para o adulto, que começa a expressar e tornar cada vez mais ostensivos tais sentimentos. A arte também oferece esse reflexo com os novos retratos de crianças sozinhas e outros em que a criança se torna o centro da composição. O Estado mostra um interesse cada vez maior em formar o caráter das crianças. Surgem assim uma série de instituições com o objetivo de separar e isolar a criança do mundo adulto, entre elas, a escola. A criança adquire um novo espaço dentro e fora da instituição familiar (KOHAN, 2005, p. 66). Ainda segundo Ariès (2012), nem todas as crianças “vivenciavam” esse momento da infância, pois a situação econômica e social era determinante neste período. Sendo assim, o “sentimento de infância” sofreu inúmeras modificações ao longo da história para ter a dimensão que se tem hoje. Foi preciso muito estudo acerca desse processo de infância e, sobretudo, refletir sobre a maneira de pensar o que é ser criança e a importância que este período da fase humana possui. Ainda hoje, diversas pesquisas são realizadas com o intuito de compreender esse sentimento. Conforme Franco “Para tentarmos compreender a criança, precisamos, inicialmente, pensar sobre o que ela é. [...] não é fácil definir e, muito menos, é possível entender um conceito sociohistórico deslocado de sua realidade”(FRANCO, 2002, p. 29). Conforme os meus contadores de histórias, podemos observar as diferentes representações de infância que estes apresentam em suas narrativas. Entendo por representação o conceito trabalhado por Hall (2005), quando este discorre sobre três aspectos em relação ao conceito de representação. Ele associa a linguagem, a cultura e a representação. O autor argumenta que somos sujeitos de linguagem e por isso atribuímos significados às coisas. Esses significados não são isolados. Por exemplo, construímos no coletivo, uma ideia de família, mas cada indivíduo atribui diferentes significados a este conceito. Para alguns, significados mais afetivos, específicos a partir daquilo que se vive e da cultura na qual estamos inseridos. Nesse sentido, podemos destacar o quanto a cultura é fator determinante para a criação de determinadas representações. Somos indivíduos, temos uma identidade própria, mas construímos as representações coletivamente, a partir daquilo que vivemos. Dulce e Maria Lúcia descrevem a infância com um momento difícil da vida, com muitas dificuldades econômicas, o trabalho árduo que desenvolviam, brincadeiras simples, mas como um período que ambas ressaltam como “maravilhoso”, um tempo muito bom e saudável que deixou “muita lembrança boa”. Apresento as falas destas contadoras de histórias acima mencionadas que ilustram essas questões: 37 Lá no pai, ele tinha um mato de bergamota, três carreiros assim, um atrás do outro, como daqui até lá na Melania[vizinha mais próxima], e era fresquinho. Nós sentávamos embaixo dos pés de bergamota e ficávamos quase que a tarde toda lá, quando o pai não chamava a gente. As bergamotas eram bonitas, nós descascávamos pra ficar o cheiro na mão o dia todo. Hoje ninguém mais gosta de descascar, né? Querem ficar com a mão limpa. Guria, isto era um tempo difícil, nós trabalhávamos muito, mas as coisas que a gente tinha, a gente dava muito valor. Os pais se esforçavam pra criar todo mundo. Às vezes a gente tem saudade desse tempo. (Dulce) Ah, a gente lembra né! Ah, era tão bonito, mas tão bonito. Difícil também, como a gente brincava, ia no potreiro brincar. Brincava de dentista, boneca, de tudo a gente brincava. Até de dentista a gente brincava. Eu me lembro ainda quando a gente ia na escola né, como a gente brincava com as amiguinhas. Isso eu me lembro ainda. Ia nas tia passear, nas mana do pai, perto da lagoa. De manhã ia a pé, de noite voltava. Às vezes com o pai e a mãe, senão ia sozinha. Depois o pai comprou isso tudo e a gente ia trabalhar lá em baixo a pé. Daí a gente não achava mais longe. Que coisa boa se voltasse tudo assim, se a gente fosse novo assim de novo. (Maria Lúcia) Para Elésio e Chico, a infância também foi narrada como um tempo bom, mas estes contadores, “homens” deixaram mais nítida a ideia do trabalho árduo, como eles mesmos mencionam: Eu acho que o nosso tempo era sofrido, nós tínhamos de trabalhar muito, mas às vezes também podia brincar, mas isso era tão pouco que a gente se lembra mais do trabalho que a gente exercia. (Elésio) Chico é ainda mais duro em suas palavras quando estas precisam narrar a sua infância: Olha, coisa triste, quase tudo era triste! Não tinha recursos. Tá, eu trabalhava, e depois quando o pai deixou nós ir trabalhar pra fora e ganhava um dinheirinho, tinha que entregar tudo, tudo, mas tudo pro pai. Não deixava um pila pra mim. Tinha os mais favorecidos, coisa que eu nunca topei. (Chico) E se voltarmos para a infância contemporânea, perceberemos que o modo como a criança vive a infância atualmente é diretamente influenciado pela visão dos pais ou responsáveis, como enfatiza Franco: Hoje, encontramos o adulto organizando a forma de ser da criança conforme a sua visão, a sua maneira de ser. O que ele acredita que vai ser bom para o seu filho é o que prevalece (e o que nem sempre é o mais indicado para a criança). Pode-se dizer que se aliena e constrói-se a infância em função do outro (FRANCO, 2002, p. 32). 38 De certa maneira, o pai de Chico também acredita que estava fazendo o melhor para o seu filho, mas claro, havia uma questão financeira por trás. São inúmeras as atividades extraescolares que as crianças possuem na atualidade, tais como natação, aula de línguas, ballet, patinação, futsal, aula de lutas corporais e não se tem mais tempo para o brincar. Para Franco, percebe-se que as crianças Já não têm tempo para, simplesmente, serem crianças, pois as aulas de balé, inglês, natação, futebol, computação, assim como a necessidade precoce da inserção no mundo dos adultos acaba transformando essas crianças em pequenos adultos. No Brasil, a inserção precoce da criança no mundo do trabalho não é novidade, tendo suas infâncias furtadas, passando a ocupar uma posição adversa ao mundo infantil (FRANCO, 2002, p. 32-33). Esse é o caso dos meus contadores de histórias. Apesar de estar falando dos tempos atuais, na década de 30 e 40 do século XX, período em que os contadores viveram a sua infância, eles ocupavam o seu tempo com o trabalho. Enquanto no século XVII paulatinamente criou-se o sentimento da infância e as crianças deixaram de ser “mini adultos”, hoje percebemos que a preocupação extrema em ocupar o tempo das crianças transformou-as, novamente, em certa medida, em “mini adultos”. É preciso dar conta de todas as programações que, muitas vezes, os pais, sem o consentimento dos filhos, decidem. A vida agitada do adulto pode ser facilmente comparada com a vida das crianças. A interação com a tecnologia acontece desde a mais tenra idade. É uma nova geração para a qual prioriza-se a diversidade, e de pais que ainda não sabem lidar com tantas mudanças e preocupam-se em tornar os seus filhos “produtivos”, no sentido de crianças que fazem e aprendem muitas coisas desde cedo, os inserindo em uma lógica neoliberal. As autoras Queluz e Cordeiro já em 1986 advertiam: Nossas crianças estão deixando de ser crianças cada vez mais cedo. Elas são apressadas a crescer, forçadas a amadurecer rapidamente e levadas a assumir responsabilidades cada vez mais com menos idade. A meninice parece ameaçada de extinção, e a própria infância corre perigo (QUELUZ; CORDEIRO, 1986, p. 10). 39 Por se tratar de um assunto complexo e interminável, este Trabalho de Conclusão de Curso abordará o termo “infância” não como uma fase da vida humana que vai do nascimento à puberdade, mas sim todas as vivências que esse período proporciona, experiências que constroem as pessoas que somos hoje. Infância como um período de lembranças, de diferentes percepções, momentos que nos tocam profundamente e, sobretudo, nos afetam. Em concordância: “Notemos que a infância não é apenas uma questão cronológica: a infância é uma condição da experiência. É preciso ampliar os horizontes da temporalidade” (KOHAN, 2004, p.54). Pensar como a infância se constituiu não é tarefa fácil e requer muito estudo. Também há muitos pensamentos enraizados no senso comum e é preciso ter um olhar atento sobre esse aspecto. Bujes enfatiza que Nos nossos contatos cotidianos com as crianças e também quando tratamos delas, usualmente somos movidos por uma compreensão da infância como um dado atemporal. Uma visão da infância como dependência, com as crianças gradualmente conquistando sua autonomia intelectual e, por extensão, a sua autonomia moral; a infância como um momento privilegiado, que representa o que de mais puro e bom existe na sociedade, como um ideal de perfeição, também constitui a orientação predominante no senso comum, quando pensamos este período da vida dos sujeitos humanos. Estas perspectivas de significar a infância, por outro lado, estão de tal maneira naturalizadas que deixam pouco espaço para que percebamos outras formas de pensá-la e também para que ponhamos em questão os processos que vieram a constituí-la deste modo (BUJES, 2002, p. 19). Entre diferentes possibilidades de compreender a infância, minha pesquisa intencionou mobilizar outros modos de pensar e significá-la. Uma infância que reverbera, quando o ato de (re)lembrar também é dar significados, inclusive, novos. Podemos pensar aqui em perdas de entes queridos, fins de relacionamentos, entre tantos outros momentos tristes, que ao lembrarmos, damos novos significados, muitas vezes menos sofridos. Assim, também a infância pode ser impregnada de sentidos outros ao passar pelo processo de rememoração. 5.1 Práticas de socialização: de que forma aconteciam? 40 Entender como aconteciam as práticas de socialização, ou seja, de que forma ocorria o relacionamento com os pais, com os primos e os vizinhos e também de que forma aconteciam, e se aconteciam demonstrações de afeto dos pais com os meus contadores de histórias foi um dos objetivos que me levaram a fazer esta pesquisa. Ou seja, o processo de socialização e as relações com o outro no período da infância. Uma das falas que mais chamou minha atenção durante as entrevistas é do contador de histórias Chico. Ele falou sobre a delicada situação de convivência com seu pai: Coisa boa do pai? Eu não me lembro de nada. [...]o pai batia. Óia, com um cacete assim. O Pai batia, isso era ruim, isto era ruim, ruim. Óia, brincadeira. Nunca gostei dele porque ele só queria bater e castigar, principalmente eu. Tinha os queridos, esses não. (Chico) Chico não diz que a relação com o pai era boa. Chico pensa num ideal de família, que é coletivo, caso contrário, ele não lamentaria a falta de relação com o pai. Então existe um ideal coletivo de família, mas ele criou uma representação específica, deu um novo significado, este, negativo. As autoras Queluz e Cordeiro (1986) relatam que somente as crianças tinham que ter respeito com os adultos, o contrário não era recíproco: [...] antigamente, o adulto não via na criança uma pessoa. Os filhos deviam todo o respeito ao pais, mas, por seu lado, não viam reconhecido o seu direito ao respeito. Amar é uma forma de respeitar a criança. Mas o contrato vai mais longe: devemos entender a respeitar a criança e seus tempos, sua maneira de ser. A recíproca a que os pais têm direito, o respeito que esperamos de qualquer filho, virá automaticamente, sem precisar ser imposto a grito ou pelo medo, na exata medida de nosso respeito por ele. Quanto mais respeito receber, mais aprenderá a respeitar e mais facilmente incorpora essa qualidade (QUELUZ; CORDEIRO, 1986, p. 21). Ressalto ainda que Chico falou em bom e alto tom para mim que poderia anotar tudo o que ele estava falando, numa atitude que parecia intencionalmente frisar a realidade dos fatos relatados, ou, ao mesmo tempo, a necessidade de tornar pública a sua história, por mais triste que esta pareça ser. Apresento na sequência a descrição de outro fato, também revoltante para o contador de história. Ali, naquele tempo meu pai tinha preferência sempre pelo filho mais velho. Ele tinha todas as chances e os outros não. Eu era o mais prejudicado de todos. Castigado. (Chico) As autoras Queluz e Cordeiro (1986) descrevem o hábito de comparar crianças: 41 Na esperança de modificar comportamentos ou sentimentos de nossos filhos “enchendo-os de brios”, muitas vezes os criticamos e até os ofendemos. O mau hábito de comparar crianças raramente dá o resultado que a gente pretende. Criticar e ofender não são boas formas de comunicação com a criança e quase nunca a fazem “tomar vergonha” ou sentir-se motivada a mudar. Ao contrário, geralmente a criança sente nossa crítica ou ofensa como uma agressão. E reage (QUELUZ; CORDEIRO, 1986, p. 31). Ou seja, o pai de Chico, com o ato de ter preferência por filhos, estava de certo modo comparando seus filhos, e como as autoras trazem, isso gera uma reação. De fato, na época de criança, Chico não reagia, mas atualmente essa renúncia em relação ao pai é um modo de reação. Elésio também narrou que seus pais eram bravos, mas havia uma convivência amigável, diferente do caso de Chico. O pai e a mãe eram brabos. Só que a mãe só entregava nós pro pai, e o pai quem passava a vara. O pai fazia um churrasco bom, ele era muito impertinente. Tinha que ser do gosto dele. (Elésio) Podemos observar nas narrativas apresentadas pelos contadores de histórias Dulce, Maria Lúcia, Elésio e Chico que o relacionamento com os pais se dava de forma distinta. Enquanto para Dulce os pais ensinavam o que era o certo e o errado, para Maria Lúcia, os pais não falavam nada, as meninas aprendiam muitas coisas com as primas mais velhas. Já para Elésio, os pais também ensinavam, mas a cobrança maior vinha por parte do pai, que era muito rígido. A mãe e o pai ensinavam a gente o que era certo e errado, nós aprendia desde pequenos as coisas. Eles diziam a mesma coisa para todos os meus outros irmãos. Quando nós tinha dúvida de alguma coisa, nós pedia pro pai e pra mãe e eles respondiam, quando sabiam. Nem sempre eles sabiam. (Dulce) O pai e a mãe não diziam nada pra gente, entende? Nós não sabia as coisas se os outros não falavam. (Maria Lúcia) 42 Essa narrativa da contadora Maria Lúcia é questionável. “O pai e a mãe não diziam nada?” Não é possível que nada fosse ensinado ou que somente “as coisas” fossem aprendidas pelos outros... As crianças aprendiam muito com seus pais. Há um juízo moral muito forte nessa narrativa. Talvez Maria Lúcia esteja se referindo à questões consideradas tabus na época, tais como sexualidade, gravidez. Assuntos relativos ao trabalho, ao preparo da comida, etc., com certeza eram ensinados. As próprias repreensões (de não falar quando havia alguma visita) mostra que os pais “diziam algo” sim. Seria mesmo possível que não dissessem nada? Ainda quanto aos modos como se davam as aprendizagens na época da infância dos meus contadores de histórias, Chico narrou os espaços onde e através dos quais ele aprendia ou nos quais os adultos acreditavam que ensinavam: A gente aprendia na escola, na igreja e tal...eles achavam, mas muita coisa era errado que eles ensinavam. O pai achou que estava ensinando certo. Errado. Depois a gente descobriu que não era certo. (Chico) Sobre o perfil dos pais, ambas contadoras (mulheres) de histórias contam que a mãe era mais brava que o pai. Dulce relata que nunca apanhou do pai e Maria Lúcia define o pai como um ser “bonzinho”. Eu nunca, nunca não apanhei. Tinha 8 irmãos. Da mãe sim, ela pegou o chinelo, “flepa, flepa, flepa” na bunda... mas isto a gente nem sentia mais…mas o pai nunca bateu. A mãe era a braba, era a cacique...ela gritava bastante. Mas o pai nunca disse a palavra não, se tinha uma coisa. (Dulce) A mãe era bem braba, mais o pai era muito assim...Bonzinho! A mãe gostava de dar uns “fletis”, de varinha, mas bater forte não. (Maria Lúcia) Jung (2014) estabelece relações entre a autoridade feminina, que ocorre no âmbito familiar, e a autoridade masculina, no espaço público. É na infância que passamos a maior parte do nosso tempo com os nossos pais, e de fato, os filhos ficavam mais com as suas mães, tendo o pai o poder de impor o “medo”. Bastava um olhar de canto que os filhos já compreendiam que o pai não estava de acordo com alguma coisa. Ou seja, a mãe tinha o controle sobre seus filhos no âmbito familiar, pois estes permaneciam a maior parte do tempo com ela. Quando a família tinha alguma programação fora desse eixo doméstico, quem assumia o poder era o pai. Desobedecê-lo perante o público era uma grande ofensa. 43 Já para os contadores (homens) a narrativa se deu de forma totalmente inversa. Se para as meninas, o pai era considerado o “bonzinho” da história, para os meninos a mãe era a peça fundamental da família. Elésio disse que os dois eram bravos, mas o pai era mais rígido. Isso o pai era bem rígido, ele queria as coisas certo né. A mãe era mais tranquila, mas ela era braba também quando nós incomodava ela. Imagina, uma escadinha de filho, se tu vai lidar com a rédea solta? Tu tem que educar os filhos. (Elésio) Chico, com suas palavras descreveu seus pais e aquilo que considerava ser um defeito da sua mãe: O pai era meio rançoso. Mas a mãe era muito boa, muito boa. Ela tinha um defeito, nós, fazia uma arte e ela estava vendo, ela contava logo pro pai. Sabia que ele ia castigar forte nós. Isto ela não podia fazer. Depois quando era maior tinha muita festinha de aniversário na vizinhança, fazia festa, tinha gaiteiro. Então, eu tinha que pular da janela pra fora pro pai não ouvir... e aí às vezes a mãe notava e já falava pro pai. Por isso eu às vezes xingava a mãe, mas assim ela era muito boa. (Chico) Chico ainda narrou a preocupação que sua mãe tinha quando um filho estava doente: Quando a gente estava meio adoentado, a mãe quase nem saía do lado da cama. Eu vou fazer um chá, vou fazer isso, aquilo...o que tu quer comer? Era muito preocupada! Omelete eu gostava muito e daí ela fazia. (Chico) Dulce e Maria Lúcia lembram que seus pais não demonstravam com grandes gestos o carinho que sentiam pelos filhos, mas ambas defenderam a ideia de que era o jeito deles serem. A mãe era assim mais fechada, o pai às vezes dizia que nós era isso ou aquilo dele. Não me lembro direito como ele dizia. Mas eles gostavam da gente porque nós era a família deles. (Dulce) Os pais não eram muito assim de demostrar que gostavam da gente, de dar um abraço forte ou um beijo, isso nunca, não era assim. A gente sabia que eles gostavam, porque a gente era filho, e também porque às vezes a mãe fazia aquilo que nós mais gostava de comer. (Maria Lúcia) “A mãe fazia aquilo que nós mais gostava de comer”, esta era e se mantém até hoje como uma demonstração de afeto. Demonstrações de carinho pelos pais não foram mencionadas nas narrativas de Elésio e Chico. Mas podemos compreender que a preocupação quando os filhos estavam doentes, fazer 44 uma comida que gostavam também trata-se de uma demonstração de carinho. Em relação ao afeto e relações em família, é interessante perceber como os contadores de histórias acreditam ser importante ter a prese