0 CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE DIREITO A MEDIDA DE SEGURANÇA NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO: INFLUÊNCIA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NA SUA EXECUÇÃO Bibiana Silveira Ferreira Lajeado, junho de 2015 1 Bibiana Silveira Ferreira A MEDIDA DE SEGURANÇA NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO: INFLUÊNCIA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NA SUA EXECUÇÃO Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Curso II – Monografia, do Curso de Direito, do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Profa. Ma. Flávia Colossi Frey Lajeado, junho de 2015 2 AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço a minha mãe, Rosa, por todo amor, apoio e esforço despendido durante os meus estudos, sobretudo pela educação que sempre me proporcionou. Aos meus avós, Renato e Denair, por todo apoio durante essa caminhada, pela paciência, amor, confiança e por estarem sempre presentes na minha vida. Pelo incentivo de toda a família, em especial a minha madrinha, Leli, sempre procurando formas de engrandecer esse trabalho. Aos meus amigos e namorado, pelas palavras de força e conforto, pela amizade e compreensão. Agradecimento especial à minha orientadora, Flávia Colossi Frey, por todo o auxílio e por estar sempre disposta a solucionar minhas dúvidas, buscando as melhores alternativas para os problemas, sendo essencial para o desenvolvimento desse trabalho. 3 A loucura sempre foi, em todas as sociedades, uma questão de como a pessoa se relaciona consigo mesma, como se relaciona com os outros e, principalmente, como vê o mundo e por este é vista. Paulo Vasconcelos Jacobina (2008) 4 RESUMO As medidas de segurança são a forma de punição dos inimputáveis que demonstram periculosidade. São essenciais para o andamento da sociedade, considerando que, no Brasil, são inúmeras as pessoas que necessitam de alguma assistência psiquiátrica. Assim, esta monografia tem como objetivo geral analisar a influência da Reforma Psiquiátrica na execução da medida de segurança, através do estudo dos princípios constitucionais penais e processuais penais, e da evolução do Direito Penal e da Psiquiatria. Trata-se de pesquisa qualitativa, realizada por meio de método dedutivo, com pesquisa bibliográfica, documental e jurisprudencial. Dessa forma, as reflexões começam por um resgate dos princípios norteadores do direito e processo penal, tais como o da dignidade da pessoa humana, legalidade, individualização da pena, proporcionalidade, e sua aplicação às medidas de segurança. Em seguida, faz uma análise da evolução histórica do Direito Penal e das medidas de segurança, no contexto mundial e brasileiro de ambos, além de um estudo jurídico e legal acerca da sanção do inimputável. Finalmente, examina a evolução da psiquiatria e o tratamento desempenhado aos doentes mentais, até chegar às lutas e conquistas da Reforma Psiquiátrica e a sua influência no modo de execução das medidas de segurança. Palavras-chave: Medida de Segurança. Direito Penal. Reforma Psiquiátrica. Lei nº 10.216/2001. 5 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Art. – Artigo CF – Constituição Federal CP – Código Penal TJ/RS – Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul STJ – Superior Tribunal de Justiça MTSM – Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental DINSAM – Divisão Nacional de Saúde Mental 6 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................. 08 2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS........ 11 2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana............................................... 12 2.2 Princípios da legalidade e da anterioridade.............................................. 14 2.3 Princípio da (ir)retroatividade da lei penal................................................. 15 2.4 Princípios da pessoalidade e individualização da pena........................... 16 2.5 Princípio da humanidade............................................................................. 18 2.6 Princípio da intervenção mínima................................................................ 19 2.7 Princípio da culpabilidade........................................................................... 20 2.8 Princípios do contraditório e da ampla defesa......................................... 21 2.9 Princípio da presunção de inocência......................................................... 23 2.10 Princípio da proporcionalidade................................................................ 24 2.11 Análise dos princípios e garantias fundamentais das medidas de segurança........................................................................................................... 25 3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO.......................................................................................... 29 3.1 Evolução histórica do Direito Penal........................................................... 29 3.1.1 Fase da vingança divina........................................................................... 30 3.1.2 Fase da vingança privada......................................................................... 31 3.1.3 Fase da vingança pública......................................................................... 32 3.1.4 Período humanitário................................................................................. 32 7 3.1.5 Escolas penais.......................................................................................... 34 3.1.5.1 Escola Clássica...................................................................................... 34 3.1.5.2 Escola Positiva....................................................................................... 35 3.1.6 História do Direito Penal brasileiro......................................................... 37 3.2 Teorias da Pena............................................................................................ 39 3.3 Evolução histórica das medidas de segurança........................................ 40 3.3.1 A medida de segurança na legislação brasileira................................... 41 3.3.2 Execução e espécies de medidas de segurança................................... 46 3.3.3 Prazo de duração da medida de segurança........................................... 47 3.3.4 Possibilidade de conversão de pena em medida de segurança.......... 50 3.3.5 Cessação da periculosidade e extinção da punibilidade...................... 51 4 O ADVENTO DA LEI Nº 10.216/2001 E A APLICAÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA NO ÂMBITO DO TJ/RS............................................................... 53 4.1 História mundial da loucura........................................................................ 54 4.1.1 A institucionalização................................................................................. 55 4.2 Evolução da psiquiatria no Brasil............................................................... 59 4.2.1 As colônias agrícolas............................................................................... 61 4.2.2 Do Higienismo às novas formas de ver a saúde mental....................... 63 4.2.3 A Reforma Psiquiátrica............................................................................. 64 4.2.4 O advento da Lei nº 10.216/2001.............................................................. 67 4.2.4.1 Programa “De Volta para Casa”........................................................... 68 4.3 Influência da Reforma Psiquiátrica na execução das medidas de segurança........................................................................................................... 69 4.4 Posicionamento jurisprudencial quanto a (in)aplicabilidade da Lei nº 10.216/2001......................................................................................................... 71 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 77 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 81 8 1 INTRODUÇÃO Uma sociedade define-se por suas diversas classes e pessoas. Quando alguém comete um delito penal, a solução é a punição. Mas o que fazer quando esse indivíduo que pratica um crime não possui o discernimento necessário para ser punido? Nosso sistema penal, então, adotou como solução para o caso, a aplicação de medidas de segurança, ou seja, esses indivíduos são submetidos ou a tratamento ambulatorial, ou internados em hospitais de tratamento psiquiátrico. A legislação e a doutrina tratam timidamente das medidas de segurança, sendo poucas as obras que analisam o assunto aprofundadamente. Diante disso, torna-se relevante discutir o tratamento dado pela sociedade aos indivíduos inimputáveis que cometem ilícitos penais. Nesse sentido, o presente trabalho pretende, como objetivo geral, analisar essa forma de tratamento ou punição, e as mudanças trazidas pela Reforma Psiquiátrica e o advento da Lei nº 10.216/2001. O estudo discute como problema: como se dá a aplicação das medidas de segurança no sistema penal brasileiro e se as lutas da Reforma Psiquiátrica trouxeram benefícios aos doentes mentais infratores. Como hipótese para tal questionamento, entende-se que o tratamento dado ao doente mental passou por grandes evoluções na história da humanidade, sendo que as lutas da Reforma Psiquiátrica e a humanização do pensamento proporcionaram um grande passo no seu objetivo de recuperar e ressocializar o indivíduo. 9 A pesquisa, quanto à abordagem, será qualitativa, que tem como característica o aprofundamento no contexto estudado e a perspectiva interpretativa desses possíveis dados para a realidade, conforme esclarecem Mezzaroba e Monteiro (2009). Para obter a finalidade desejada pelo estudo, será empregado o método dedutivo, cuja operacionalização se dará por meio de procedimentos técnicos baseados na doutrina, legislação e jurisprudência, relacionados, inicialmente, aos princípios norteadores do direito e processo penal, passando pela evolução histórica do Direito Penal e das medidas de segurança, para chegar ao ponto específico da influência das lutas da Reforma Psiquiátrica na execução das medidas de segurança. Dessa forma, no primeiro capítulo de desenvolvimento deste estudo serão abordados os princípios norteadores penais e processuais penais, por embasarem a aplicação da sanção penal, bem como os aspectos relevantes e a observância desses princípios e garantias para as medidas de segurança. No segundo capítulo, será descrita a evolução histórica do Direito Penal, tanto no contexto mundial, quanto no brasileiro, passando pela fase da vingança divina até os dias atuais, assim como das medidas de segurança, que também sofreram uma relevante evolução histórica, tanto nas suas espécies (que chegaram a ser classificadas como pessoais e patrimoniais) quanto pela forma como tratavam o doente mental, punindo-o pelo que ele era e não pelo que fez. Além disso, serão apresentadas as principais características das medidas de segurança, como suas espécies, prazos de duração e como se dá sua execução. Em seguida, no terceiro capítulo, far-se-á um estudo acerca do tratamento dado ao doente mental na história, analisando a evolução da psiquiatria e a difícil compreensão desses indivíduos. Serão examinadas as lutas da Reforma Psiquiátrica em busca dos direitos daqueles que sofrem com problemas psíquicos, resultando no advento da Lei nº 10.216/2001, que passou a tratar a pessoa e não apenas a doença, através de um trabalho interdisciplinar feito por profissionais da saúde, assistência social e juristas. Ao final, realizar-se-á uma pesquisa jurisprudencial junto ao site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, como forma de analisar a influência da Lei da Reforma Psiquiátrica na execução das medidas de segurança. 10 Assim, acredita-se na importância do desenvolvimento deste estudo, pois poderá trazer reflexões pessoais e acadêmicas acerca do tratamento dos inimputáveis que cometem ilícitos penais, de modo a compreender a melhor forma de se tratar questões tão delicadas e, para muitos, uma realidade distante que nem sequer deveria ser discutida. 11 2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS Diante do interesse pessoal em questões psicológicas e de direito penal, além de considerar que todo o ser humano é um sujeito com direitos e deveres, independente de sua capacidade de discernimento, criou-se a motivação para elaborar este trabalho. Ao ingressar no curso de Direito, o estudante, primeiramente, depara-se com o estudo dos princípios, a fim de iniciar a compreensão do mundo sob uma visão jurídica. Dessa forma, por ser a base de todo estudo do direito, os princípios são utilizados para orientar a solução de conflitos individuais, coletivos e sociais, possuindo extrema relevância para o direito penal, em especial na aplicabilidade da pena. Nucci (2009, p. 29) explica que, no sentido jurídico, princípio “significa uma ordenação que se irradia e imanta o sistema normativo, proporcionando alicerce para a interpretação, integração, conhecimento e eficiente aplicação do direito positivo”. Todos os ramos do direito são regidos por princípios, podendo estar previstos na lei (explícitos) ou implícitos no ordenamento jurídico. Conforme se observará, a Constituição Federal de 1988 preocupou-se mais em estabelecer princípios e garantias para o processo penal do que para o processo civil, pois o primeiro cuida principalmente da liberdade pessoal do sujeito, garantida constitucionalmente, bem como, devido as suas origens históricas, o processo penal visa proteger o indivíduo contra o arbítrio do julgador. Por sua vez, o processo civil 12 regula as relações particulares, cuidando das questões que não necessitam ser resolvidas no âmbito criminal (GRECO FILHO, 2010). Prado (2014) distingue os princípios constitucionais entre os de natureza penal e os constitucionais gerais, sendo os primeiros aqueles que integram o ordenamento penal positivo, destacando-se os princípios da legalidade, da culpabilidade e da individualização da pena; e os últimos referem-se à matéria constitucional, estabelecendo as diretrizes acerca da matéria penal em si (princípios da proporcionalidade e da igualdade, por exemplo). No preâmbulo de nossa Carta Magna, já estão previstos os princípios da liberdade, igualdade e justiça, que “inspiram todo o nosso sistema normativo, como fonte interpretativa e de integração das normas constitucionais” (BITENCOURT, 2014, p. 49). Consequentemente, tais princípios também servem de norte para a interpretação e a aplicação da norma penal. O estudioso destaca que esses princípios orientam o legislador doutrinário a adotar um Direito Penal voltado a assegurar os direitos humanos, embasado em um Direito Penal mínimo e garantista. Assim, este capítulo fará uma análise dos princípios constitucionais aplicáveis ao direito penal, bem como daqueles norteadores do processo penal, além de identificar aspectos relevantes e a observância desses princípios fundamentais na aplicação das medidas de segurança. Ressalta-se que não há a pretensão de esgotar a matéria, mas, sim, de citar os principais pontos que servirão de embasamento para o presente trabalho. 2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana Conforme Prado (2014, p. 110), com a Constituição Federal de 1988, “a dignidade da pessoa humana foi guindada à categoria de valor fundamentador do sistema de direitos fundamentais”, quando dispõe, in verbis: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: 13 I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. (grifo nosso) Assim, de acordo com Moraes (2002, p. 60), entende-se por dignidade da pessoa humana “um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”. Ainda, pode-se acrescentar que o conceito de dignidade foi construído ao longo da história, chegando ao início do século XXI como um valor supremo, formado pela razão jurídica. É um direito que nasce com as pessoas, fazendo parte da sua essência, independente de classe social, raça, saúde mental ou crença religiosa: “o ser humano é digno porque é” (NUNES, 2010, p.63). O doutrinador considera a dignidade da pessoa humana o principal direito fundamental garantido pela Constituição Federal, pois serve como interpretação a todos os outros direitos e garantias conferidos às pessoas no ordenamento jurídico. Segundo Prado (2014), dessa forma, é reconhecido o valor do homem, que limita a atuação do poder estatal, sendo, consequentemente, considerada inconstitucional toda a lei que viole a dignidade da pessoa humana. Moraes (2002, p. 60) refere que este princípio apresenta duas concepções, sendo a primeira o direito individual protetivo, “seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos”, e a segunda refere-se ao tratamento igualitário entre os semelhantes. Nesse sentido, Nunes (2010) destaca que, estando em sociedade, o ser humano poderá ferir a dignidade do outro, limitando a garantia através de uma qualidade social, ou seja, a dignidade somente será uma garantia ilimitada quando não violar a do próximo. Conforme o estudioso, portanto, tal princípio deve ser levado em consideração na hora da aplicação da pena ou da medida de segurança, tratando o réu como um sujeito de direitos, devendo a conduta e decisões dos operadores jurídicos (advogados, juízes, promotores, delegados, professores, alunos, etc.), 14 pautarem-se na observância à implementação real dessa garantia, a qual é princípio absoluto em nosso ordenamento. Por fim, ressalta-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada pelo Brasil, em 10 de dezembro de 1948, “reconhece a dignidade como inerente a todos os membros da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (MORAES, 2002, p. 61). 2.2 Princípios da legalidade e da anterioridade Já dizia Beccaria (2002, p. 44), no clássico “Dos delitos e das penas”, originalmente publicado em 1764, “só as leis podem decretar as penas dos delitos, e esta autoridade só pode residir no legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social”. Assim, dentre os princípios constitucionais explícitos, no art. 5°, XXXIX, da Constituição Federal, estão o da legalidade e da anterioridade, também denominado por alguns doutrinadores de reserva legal, determinando que “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Para Nucci (2014a, p. 20), o princípio da legalidade é o “fixador do conteúdo das normas penais incriminadoras, ou seja, os tipos penais, mormente os incriminadores, somente podem ser criados através de lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo”. Esse princípio também se encontra previsto no art. 1°, do Código Penal. Bitencourt (2014) acrescenta que esse princípio limita o poder punitivo estatal, pois não admite desvios, nem exceções, tendo o seu reconhecimento sido resultado de um longo processo histórico. Nesse sentido, Prado (2014, p. 107) destaca: O reconhecimento legislativo do princípio da legalidade se inicia com a Declaração de Virgínia, de 1776, passa pela Josephina austríaca, de 1787, e, finalmente, chega ao seu momento culminante com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Em época posterior, com o Código Penal francês de 1810 (art. 4°), propaga-se por todas as legislações penais contemporâneas. Conforme o autor, na legislação brasileira o princípio da legalidade já se encontrava na Constituição do Império, de 1824, em seu art. 179, XI; no art. 1° do 15 Código Criminal de 1830; assim como nos demais textos constitucionais e no art. 1°, dos Códigos Penais de 1890 e 1940, ainda vigente. Bitencourt (2014) ainda acrescenta que, por esse princípio, a norma penal e suas sanções devem ser claras e precisas, não sendo admitidas expressões vagas ou ambíguas, uma vez que não poderá proteger plenamente o cidadão, permitindo ao juiz adotar a interpretação que desejar. Já o princípio da anterioridade prevê que a lei “somente pode ser aplicada a um fato concreto, caso tenha tido origem antes da prática da conduta para a qual se destina” (NUCCI, 2014a, p. 21). Assim, os princípios da legalidade e da anterioridade devem ser analisados de maneira conjunta, pois criar uma lei após a prática da conduta para poder aplicá-la ou aplicar a lei a fatos ocorridos antes da sua vigência, violam a segurança que a norma penal deve representar para a sociedade. Dessa forma, somente a lei pode criar normas incriminadoras e estabelecer a sanção penal, assim como a medida de segurança deve estar positivada anteriormente à prática do delito, eliminando qualquer forma de arbitrariedade do juiz. 2.3 Princípio da (ir)retroatividade da lei penal De acordo com o princípio supra, a irretroatividade da lei é imprescindível para a segurança jurídica e a liberdade da sociedade, sendo que a lei só pode ser aplicada a fatos futuros. Porém, Bitencourt (2014) destaca que a irretroatividade se aplica somente em relação à lei mais severa. Sendo assim, também previsto na Constituição Federal, em seu art. 5°, XL, está o princípio da retroatividade da lei penal benéfica. Dessa forma, “havendo anterioridade obrigatória para a lei penal incriminadora, não se pode permitir a retroatividade de leis, especificamente as prejudiciais ao acusado” (NUCCI, 2014a, p. 21). Quando novas leis entram em vigor, as mesmas devem abranger somente acontecimentos futuros, exceto quando a nova lei for mais benéfica para o réu, situação em que deverá retroagir. 16 O doutrinador ressalta que a lei mais benéfica ao réu pode retroagir ainda que o fato já tenha sido decidido por sentença condenatória transitada em julgado (art. 2°, parágrafo único, Código Penal), o que de nenhuma maneira afronta a segurança da sociedade. Alguns doutrinadores, como Nucci, denominam o princípio como o da retroatividade da lei penal benéfica, porém, ambos se referem à mesma ideia, estando corretas ambas as formas. 2.4 Princípios da pessoalidade e da individualização da pena Prado (2014) explica que pelo princípio da pessoalidade, somente o autor da infração penal pode ser punido. O art. 5°, XLV, da Constituição Federal, estabelece que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”. Esse princípio já estava presente na Constituição Imperial de 1824, em seu art. 179, inciso XX: “Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Por tanto não haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infamia do Réo se transmittirá aos parentes em qualquer gráo, que seja” [sic], o que se opunha às disposições relativas à aplicação e execução das penas das Ordenações Filipinas, de 1603. Posteriormente, o princípio foi reproduzido em todas as Constituições brasileiras, porém, não exatamente nesses mesmos termos (CARVALHO, 2014). Alguns doutrinadores denominam esse princípio como da personalidade da pena ou princípio da intranscendência. Nucci (2014b, texto digital) destaca que a responsabilidade a que se refere é somente a criminal, podendo o terceiro ser responsabilizado civilmente: “Exemplo disso seria denunciar o patrão porque o empregado, dirigindo veículo da empresa de forma imprudente, atropelou e causou a morte de alguém. Civilmente, é responsável pelo ato do preposto; jamais criminalmente”. 17 Por sua vez, de acordo com o princípio da individualização da pena, cabe a cada infrator a exata punição pelo que fez, devendo a pena ser dada na medida da sua culpabilidade, conforme expressa o art. 29 do Código Penal e art. 5°, XLVI, da Carta Magna: Art. 5º - (...). XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos (grifo nosso). Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. § 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. § 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser- lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave (grifo nosso). Assim, deverá ser eleita a maneira mais justa e a sanção penal mais adequada para o infrator, de acordo com seu perfil e os “efeitos pendentes sobre o sentenciado, tornando-o único e distinto dos demais infratores, ainda que co-autores ou mesmo co-réus [sic]” (NUCCI, 2009, p. 34). Prado (2014, p. 117) acrescenta que a individualização da pena obedece a três fases: legislativa, judicial e executória: Na primeira delas, a lei fixa para cada tipo penal uma ou mais penas proporcionais a importância do bem tutelado e a gravidade da ofensa; na segunda, o julgador, tendo em conta as particularidades da espécie concreta e determinados fatores previstos em lei, fixa a pena aplicável, obedecendo o marco legal; e a terceira, é a que diz respeito ao cumprimento da pena – fase de execução da pena, que é basicamente de ordem administrativa. Dessa forma, verifica-se que a individualização da pena é de extrema importância, ainda mais considerando o objeto do presente trabalho, qual seja, a medida de segurança, em que deverão ser avaliadas, criteriosamente, as particularidades do infrator, devido a sua incapacidade absoluta ou relativa de discernir o caráter ilícito do delito. Sendo assim, o infrator que possui doença mental não poderá ser punido com uma pena, da mesma forma que os imputáveis, mas sim, em tese, da forma menos gravosa para sua condição. 18 2.5 Princípio da humanidade Já dentre os princípios implícitos na Constituição Federal, está o princípio da humanidade, o qual sustenta que o “poder punitivo estatal não pode aplicar sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico- psíquica dos condenados” (BITENCOURT, 2014, p. 70). Baseado nesse princípio veda-se a adoção da pena de morte e da prisão perpétua, bem como as penas cruéis, de tortura e maus-tratos, conforme expresso no art. 5°, XLVII, da Constituição Federal. Também o inciso XLIX, do mesmo dispositivo, assegura aos presos “o respeito à integridade física e moral” (p. 71). A humanização das penas criminais é fruto da evolução histórica do Direito Penal, tendo se consagrado devido às ideias iluministas dos séculos XVII e XVIII. Assim, pode-se dizer, em suma, que se iniciou com as penas corporais e de morte, passando pelas privativas de liberdade, até chegar as penas restritivas de direitos ou penas alternativas, como a multa, prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana, devendo ser aplicadas de acordo com as características do delito e do infrator, conforme analisado no princípio acima (PRADO, 2014). Destaca Nucci (2014a, p. 21) que “o direito penal deve pautar-se pela benevolência, garantindo o bem-estar da coletividade, incluindo-se o dos condenados”. Dessa forma, aqueles que cometem uma infração penal continuam sendo seres humanos, dignos de respeito e de cuidados, não devendo ser segregados da sociedade ou tratados como inferiores. Prado (2014) menciona que o princípio da humanidade encontra-se na Declaração dos Direitos do Homem (1948), no Pacto Internacional dos Direito Civis e Políticos (1966), na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, entre outros. Esse princípio deve ser observado em todas as fases do processo e não apenas na aplicação da pena. Bitencourt (2014) menciona seus reflexos na proibição da tortura e dos maus-tratos nos interrogatórios policiais, além da obrigação do Estado de adotar uma infraestrutura carcerária adequada, que não degrade ou dissocialize os condenados. Infelizmente não é o que se observa ao 19 analisar as condições precárias dos presídios ou hospitais de custódia, sendo esses últimos o local destinado ao cumprimento da medida de segurança de internação. Porém, o referido autor ressalva que o Direito Penal não possui caráter assistencialista, mas visa a responsabilização do infrator pela violação da ordem jurídica, o qual deverá despender certos sacrifícios, seja na privação de sua liberdade ou de seus direitos, a fim de cumprir adequadamente com a finalidade da pena. 2.6 Princípio da intervenção mínima Também implícito no ordenamento jurídico, destaca-se o da intervenção mínima, também conhecida como ultima ratio, preconizando que o Direito Penal não deve interferir demasiadamente na vida da sociedade, visto que “há outros ramos do Direito preparados a solucionar as desavenças e lides surgidas na comunidade, compondo-as sem maiores traumas” (NUCCI, 2014a, p. 25). Sendo assim, antes “de se recorrer ao Direito Penal, deve-se esgotar todos os meios extrapenais de controle social” (BITENCOURT, 2014, p. 54) e, somente quando esses meios se mostrarem inadequados, justificar-se-á a imposição das penas e sanções penais. Já dizia Beccaria (2002, p. 42), “todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da necessidade absoluta é tirânico”. Para Capez (2010, p. 36), “somente haverá Direito Penal naqueles raros episódios típicos em que a lei descreve um fato como crime”, sendo que, quando a lei nada prever, não há que se falar em Direito Penal. Quando a sanção criminal é utilizada excessivamente, Prado (2014) aduz que ocorre a chamada “inflação penal”, que, ao invés de garantir uma maior proteção aos bens jurídicos, condena o direito penal a uma função apenas simbólica, com caráter negativo. Nesse sentido, refere Bitencourt (2014, p. 54-55): 20 Os legisladores contemporâneos, nas mais diversas partes do mundo, têm abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princípio em exame, levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo sua força intimidativa diante da “inflação legislativa” reinantes nos ordenamentos positivos. Também implícito no ordenamento jurídico e considerado corolário do princípio da intervenção mínima, está o princípio da fragmentariedade. Nucci (2014a, p. 71) bem destaca: Fragmento é apenas a parte de um todo, razão pela qual o direito penal deve ser visto, no campo dos atos ilícitos, como fragmentário, ou seja, deve ocupar-se das condutas mais graves, verdadeiramente lesivas à vida em sociedade, passíveis de causar distúrbios de monta à segurança pública e individual. Sendo assim, percebe-se a preocupação dos doutrinadores em deixar claro que o Direito Penal é a última instância de controle da sociedade, sendo que somente deverá ser impulsionado quando nenhum outro método resolver a questão. Sintetizando, Bitencourt (2014, p. 55) aduz que “nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, como nem todos os bens jurídicos são por ele protegidos”. 2.7 Princípio da culpabilidade Relevante para o objeto do presente trabalho é o princípio da culpabilidade. Para Bitencourt (2014, p. 64), a culpabilidade é um “juízo de valor que permite atribuir responsabilidade pela prática de um fato típico e antijurídico a uma determinada pessoa para a consequente aplicação de pena”. Refere a culpabilidade não como um fenômeno individual, mas sim social. Já Nucci (2014a) entende que esse princípio refere-se à presença de dolo ou culpa quando da prática de um delito, conforme estabelece o art. 18, do Código Penal, com redação dada pela Lei n° 7.209, de 11 de julho de 1984: Art. 18 – Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi- lo; II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Parágrafo único – Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. 21 Dessa forma, será punido aquele que praticar um delito agindo dolosamente, sendo exceção a responsabilização pelo agir culposo do agente. Por sua vez, no dizer de Prado (2014, p. 111), “só pode ser punido aquele que atua culpavelmente e a pena não pode ir além da medida da culpabilidade”, considerando que o princípio da culpabilidade funda-se na possibilidade do autor de discernir a reprovabilidade do seu ato. Segundo o doutrinador, tal princípio vincula- se ao da igualdade (art. 5°, caput, da Constituição Federal), o qual veda a aplicação da mesma sanção ao culpável e ao inculpável. Portanto, o princípio da culpabilidade pode referir-se tanto à imputação subjetiva do delito, ou seja, a presença de dolo ou culpa, quando à reprovabilidade individual. Ocorre que este princípio relaciona-se com o da proporcionalidade, que a seguir será analisado, pois, através das circunstâncias individuais do infrator, será determinada a pena aplicada. 2.8 Princípios do contraditório e da ampla defesa Tanto o contraditório quanto a ampla defesa constituem princípios fundamentais no andamento de todo o processo, para ambas as partes, principalmente do processo penal, conforme previsto no art. 5°, LV, da Constituição Federal: “aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Conforme Oliveira (2008), o princípio do contraditório refere-se não só à garantia da informação dos atos do processo, mas da oportunidade de resposta na mesma intensidade e extensão de cada ato realizado. Nesse sentido, conforme Nucci (2014b, texto digital): Quer dizer que a toda alegação fática ou apresentação de prova, feita no processo por uma das partes, tem o adversário o direito de se manifestar, havendo um perfeito equilíbrio na relação estabelecida entre a pretensão punitiva do Estado e o direito à liberdade e à manutenção do estado de inocência do acusado (art. 5.°, LV, CF). 22 Assim, pelo contraditório, o julgador tem o dever de cientificar as partes, garantindo que a informação seja dada a fim de possibilitar a reação da parte adversa, porém jamais obrigará a prática de determinado ato processual, sendo que a parte assumirá o risco da sua omissão (DI GESU, 2014). Conforme a doutrinadora, o referido princípio é essencial para superar a hipossuficiência do réu no processo, diante da dupla atuação do Estado, ora como parte (Ministério Público), ora como julgador. Para Lopes Jr. (2014, texto digital), o contraditório é tão essencial ao processo penal que pode se confundir com sua própria essência, sendo “observado quando se criam as condições ideais de fala e oitiva da outra parte, ainda que ela não queira utilizar-se da faculdade (...)”. Oliveira (2008, p. 28) destaca, também, a importância do princípio, em razão de constituir requisito de validade do processo, “na medida em que sua não- observância é passível até de nulidade absoluta, quando em prejuízo do acusado”. Quanto ao princípio da ampla defesa, apesar de semelhante ao contraditório, o estudioso destaca que, enquanto esse garante a participação das partes no processo, o primeiro impõe a realização efetiva desta participação. Nucci (2014b, texto digital) acrescenta que “ao réu é concedido o direito de se valer de amplos e extensos métodos para se defender da imputação feita pela acusação”. Nesse sentido, está o art. 261, do Código de Processo Penal: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. Ou seja, tal direito é indisponível, devendo, necessariamente, o réu estar acompanhado de pessoa dotada de conhecimentos técnicos e jurídicos, que, quando não escolhido pelo próprio acusado, é nomeado pelo juiz (DI GESU, 2014). Porém, por esse princípio, não basta a simples constituição ou nomeação de defensor, mas deve ser utilizado todos os meios disponíveis para o exercício da defesa. Assim, diante da natureza mais fragilizada do réu no processo penal, mecanismos exclusivos acabam sendo gerados: A ampla defesa gera inúmeros direitos exclusivos do réu, como é o caso de ajuizamento de revisão criminal – o que é vedado à acusação – bem como a oportunidade de ser verificada a eficiência da defesa pelo magistrado, que 23 pode desconstituir o advogado escolhido pelo réu, fazendo-o eleger outro ou nomeando-lhe um dativo, entre outros (NUCCI, 2014b, texto digital). Oliveira (2008), ainda, menciona o direito à participação do advogado do corréu durante o interrogatório de todos os acusados, considerando que poderá haver interesses diversos entre eles. Logo, ambos os princípios objetivam equilibrar a relação entre as partes, dando mais garantias aos que se encontram em situação de hipossuficiência, pela natureza da sua condição. 2.9 Princípio da presunção de inocência Também denominado como estado de inocência ou da não culpabilidade, o princípio da presunção de inocência encontra-se previsto no art. 5°, LVII, da Carta Magna: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Esse princípio, Nucci (2014b, texto digital) menciona, garante que o ônus da prova caiba à acusação e não à defesa: “as pessoas nascem inocentes, sendo esse o seu estado natural, razão pela qual, para quebrar tal regra, torna-se indispensável que o Estado-acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado-juiz, a culpa do réu”. Diante disso, as medidas cautelares de prisão serão excepcionais, somente quando demonstrado fundado motivo, seja para garantir a instrução do feito, seja para restaurar a ordem pública. Oliveira (2008) refere a proibição de antecipar os resultados finais do processo (prisão), quando as circunstâncias do fato ou do agente não exigirem. Logo, o presente princípio relaciona-se diretamente com o in dubio pro reo, pois a dúvida acerca da prática do delito, dolo ou autoria, sempre militam em favor do acusado. Porém, ensina Lopes Jr. (2014, texto digital), que nem sempre foi assim: A presunção de inocência remonta ao Direito romano (escritos de Trajano), mas foi seriamente atacada e até invertida na inquisição da Idade Média. 24 Basta recordar que na inquisição a dúvida gerada pela insuficiência de provas equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve. Era na verdade uma presunção de culpabilidade. Portanto, a regra geral é a liberdade, sendo que, enquanto não provada a culpa do agente, sua inocência é presumida, cabendo à acusação comprovar o contrário, e, em caso de não o fazer, a absolvição do réu é medida que se impõe. 2.10 Princípio da proporcionalidade Importante mencionar, ainda, o princípio da proporcionalidade, pois possui extrema relevância na aplicação das sanções penais, em especial da medida de segurança, o qual se encontra em diversos dispositivos na Carta Magna, quais sejam, no art. 5°, XLVI (individualização da pena); art. 5°, XLVII (proibição de certos tipos de sanções penais); art. 5°, XLII, XLIII e XLIV (maior rigor para infrações mais graves) (CAPEZ, 2010). Como bem aduz Nucci (2014b, texto digital), o princípio da proporcionalidade “significa que as penas devem ser harmônicas com a gravidade da infração penal cometida”. Prado (2014) vai além, referindo que uma medida é proporcional ou razoável quando atinge seu objetivo, causando o menor prejuízo, possuindo maiores vantagens do que desvantagens. Consagrado no Iluminismo (século XVIII), o princípio da proporcionalidade firmou-se como pressuposto penal, ao pregar que as penas devem ser proporcionais ao delito cometido, bem como ao dano causado à sociedade (PRADO, 2014). Já preconizava Beccaria (2002, p. 62) ser necessário “escolher penas e modos de infligi-las, que, guardadas as proporções, causem a impressão mais eficaz e duradoura nos espíritos dos homens, e a menos penosa no corpo do réu”. O autor prossegue, referindo que “não se medem as penas pela sensibilidade do réu, mas sim pelo dano público, tanto maior quanto é ocasionado pelo mais favorecido; que a igualdade das penas só pode ser intrínseca, diferindo realmente em cada indivíduo” (BECCARIA, 2002, p. 83). 25 Bitencourt (2014) menciona os três fatores essenciais ao princípio da proporcionalidade: a) adequação teleológica, sendo que todo ato estatal deve fundar-se nos valores previstos na Constituição Federal e não nos princípios do próprio administrador; b) necessidade, pois o meio não pode exceder os limites que levarão ao fim legítimo pretendido; e c) proporcionalidade em sentido estrito. Por sua vez, Ferrari (2001, p. 100) ensina que: Esse princípio constituiu-se em uma limitação legal às arbitrariedades do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, impedindo, de um lado, a fixação de sanções abstratas, desproporcionais à gravidade do delito, e, de outro, a imposição judicial de sanções desajustadas à gravidade do delito ultimado. Portanto, o presente princípio deve ser aplicado tanto ao legislador, quando da elaboração da norma jurídica incriminadora, quanto ao julgador, e, em especial, a este último, quando do proferimento da sentença. Em especial à medida de segurança, objeto da presente monografia, devido a esse princípio, deve ser observada a necessidade, adequação, bem como sua limitação, de forma a atingir plenamente sua finalidade (FERRARI, 2001). Dessa forma, é visível que o processo penal deve analisar todos os princípios conjuntamente, sob pena de, na sua inobservância, ocorrerem consequências irreversíveis na vida do ser humano, pois tal assunto refere-se a um bem jurídico tutelado pelo estado, qual seja, a liberdade. 2.11 Análise dos princípios e garantias fundamentais das medidas de segurança Assim como a pena, a medida de segurança criminal é uma espécie de sanção penal aplicada pelo Estado, sendo que ambas possuem a mesma natureza, assim como os fins preventivos, sendo formas de controle da sociedade, devendo, portanto, observar as garantias e princípios inerentes a elas (FERRARI, 2001). Segundo Ferrari (2001, p. 92), “todos os instrumentos garantísticos inseridos na Constituição Federal de 1988 valem automaticamente para o inimputável e para o semi-imputável sujeito a tratamento”. 26 Porém, apesar de ser esse o entendimento da maior parte da doutrina, Carvalho (2014, p. 520) entende que, no caso dos portadores de sofrimento psíquico, em nome da garantia de seus direitos, exclui-se a possibilidade de responsabilização criminal, o que “veda a imposição de penas [e] afasta todos os limites inerentes à pretensão punitiva”, justificando a imposição de uma medida perpétua. De acordo com o estudioso e conforme já visto no tópico anterior, a cadeia de princípios previstos tanto expressa, quanto implicitamente, são, na sua maioria, limitadores da função punitiva estatal, a fim de assegurar as garantias fundamentais dos indivíduos e da sociedade. Portanto, todos os princípios analisados acima devem, sim, ser observados na aplicação das medidas de segurança, porém, algum deles merecem destaque. De acordo com o princípio da legalidade, assim como na aplicação da pena, ninguém sofrerá uma medida de segurança sem anterior previsão legal. Ferrari (2001, p. 93) ressalta que, por esse princípio, “tanto a descrição da conduta como a consequência jurídica da infração devem ser claras, determinadas e definidas previamente”, referindo-se ao preceito primário e secundário do tipo penal. Para Bitencourt (2014, p. 859), “todo cidadão tem o direito de saber antecipadamente a natureza e duração das sanções penais – pena e medida de segurança – a que está sujeito se violar a ordem jurídico-penal”. Nucci (2014b) destaca, também, o princípio do devido processo legal, que deve assegurar ao agente, ainda que comprovada sua semi ou inimputabilidade, o direito à ampla defesa e ao contraditório. Sendo assim, a medida de segurança só poderá ser aplicada após o trâmite processual, com a devida instrução, assegurada a produção de provas. Importante destacar o princípio da irretroatividade da lei penal, visto que muitas discussões envolvem a aplicação da medida de segurança criminal em relação à lei penal no tempo. De igual forma quando da aplicação da pena, a lei penal que trata da medida de segurança imposta será aquela vigente à época do fato, e retroagirá somente nas situações em que a norma for mais benéfica ao delinquente-doente (FERRARI, 2001). 27 Conforme menciona Prado (2014, p. 565), o artigo 75, do Código Penal de 1940, “estabelecia que as medidas de segurança regiam-se pela lei vigente ao tempo da sentença, prevalecendo, se diversa, a lei vigente ao tempo da execução”. Porém, com a reforma penal e a revogação da previsão da aplicação das medidas de segurança para os imputáveis, retroagiu, também, in bonan partem, a todos, os casos ocorridos antes de sua vigência. Ou seja, admite a aplicação da medida de segurança mais benéfica, ainda que na execução da pena. Nesse sentido, caso o infrator não seja mais inimputável à época da execução da medida de segurança, “impossível a aplicação da consequência jurídica, vez que ausente estará seu fim especial preventivo, pois se recuperou o cidadão” (FERRARI, 2001, p. 99), e, sendo essa a finalidade da medida de segurança, sua aplicação não tem mais razão de ser. Carvalho (2014) destaca o princípio da humanidade das penas, que deixou de ser observado na aplicação da medida de segurança, ao não ter seu limite temporal limitado como na pena, podendo perdurar por lapso de tempo absurdo, se não cessada a periculosidade do agente. Conforme o doutrinador, “lacunas desta ordem acarretam, na realidade manicomial brasileira, a possibilidade de imposição de sanção perpétua aos usuários do sistema de saúde mental que incorreram em condutas previstas como delito” (p. 266). Nos capítulos seguintes serão analisados os mecanismos que avançaram no sentido de assegurar direitos e garantias aos inimputáveis, como o entendimento jurisprudencial e, em especial o advento da Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216/2001). Ferrari (2001, p. 123) vai além, entendendo que pelo princípio da humanidade e da dignidade da pessoa humana, as autoridades administrativas devem conferir ao infrator com doença mental condições mínimas de tratamento, tais como “salubridade no ambiente institucional, presença de profissionais habilitados laborando na instituição, progressividade terapêutica, individualização na execução da medida de segurança”, entre outras. Ainda, segundo o estudioso, outro princípio que deve, imprescindivelmente, ser observado é o da proporcionalidade, devendo a cominação do delito e a 28 aplicação da medida de segurança serem equivalentes à gravidade do ilícito. Assim, também questiona o ilimitado lapso temporal de sua duração, o que vai contra o dito princípio. Apesar da maioria dos doutrinadores considerar semelhante o tratamento dispensado às penas e às medidas de segurança, a falta de princípios explícitos que regulamentam a matéria pode enfraquecer os direitos e garantias dos inimputáveis, levando, muitas vezes, à violação destes. Sendo assim, após o estudo dos princípios norteadores do direito e processo penais, a seguir será apresentado o relato acerca da evolução histórica do direito penal e das medidas de segurança, bem como a análise acerca das particularidades dessas. 29 3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO Historicamente, a medida de segurança era a forma de defesa da sociedade contra atos não só dos doentes mentais, mas também dos ébrios habituais e “vagabundos”, segregando-os e escondendo-os, e não como forma de recuperação e de reinserção do indivíduo ao meio social. Assim, o objetivo neste capítulo será descrever a evolução das medidas de segurança no Direito Penal, como se posicionava a sociedade em tempos passados, além da importante distinção entre pena e medida de segurança, e como são amparados os direitos dos inimputáveis pela sociedade brasileira. 3.1 Evolução histórica do Direito Penal A análise da evolução histórica do Direito Penal é imprescindível para a compreensão do direito como conhecemos hoje. Para Nucci (2014a), o homem sempre viveu em estado de associação, porém, ao violar as regras de convivência, tornou-se necessária a aplicação de punições. Essas várias formas de castigo nem sempre foram reconhecidas como penas. A sociedade passou por grandes transformações ao longo dos séculos. Costa Jr. (2008, p. 12) destaca que “o primeiro direito a surgir foi o penal”. Segundo Carvalho (2014, p. 39), “na estrutura do direito penal, a previsão de uma conduta 30 como crime estará sempre vinculada à possibilidade concreta de os Poderes constituídos habilitarem um ato de coerção”. Esclarece Beccaria, em sua obra “Dos delitos e das penas”, originalmente publicada em 1764, “o que reuniu os primeiros selvagens foi a multiplicação da espécie humana, pequena por si só”, e ainda que “as primeiras uniões formaram necessariamente outras para resistir àquelas e, assim, o estado de guerra se transferiu do indivíduo para as nações” (2002, p. 43). Assim, com o advento das sociedades, surgia também a necessidade de repreensão àqueles que perturbavam a ordem. Pela teoria contratualista de Rousseau, a união das pessoas em sociedade resultou de um acordo de vontades, levando a um sistema de normas jurídicas antes mesmo da criação do Estado. “Essa teoria do Contrato Social pressupõe a igualdade absoluta entre todos os homens”, sendo sob essa perspectiva que se analisava a imposição das penas e o alcance do livre arbítrio (BITENCOURT, 2014, p. 98). Porém, antes desse período, ainda nos primórdios da humanidade, vivenciou- se a fase da vingança penal. A doutrina predominante adotou uma tríplice divisão para esta fase: a vingança divina, vingança privada e vingança pública, todas caracterizadas por fortes sentimentos religiosos e espirituais. O autor ainda destaca que as referidas fases não sucederam uma a outra, numa progressão sistemática, mas sim conviveram conjuntamente. 3.1.1 Fase da vingança divina Ante à grande influência da religião na vida dos antigos povos, surge a fase da vingança divina, na qual os fenômenos naturais, como chuvas e tempestades, eram considerados manifestações divinas que atingiam aqueles que praticavam um ato que desagradava os deuses (BITENCOURT, 2014). Segundo o doutrinador, as penas eram cruéis, desumanas, com a clara finalidade de intimidação, sendo aplicadas pelos sacerdotes e justificadas pela purificação da alma, punindo-se o infrator para satisfazer as divindades. 31 Nucci (2014a) explica que a punição ocorria quando algum tabu era quebrado, pois acreditava-se que, se não houvesse a punição, a ira dos deuses atingiria toda a sociedade. Destacam-se como legislações típicas desse período o Código de Manu, Cinco Livros (Egito), Livro das Cinco Penas (Egito), Avesta (Pérsia), Pentateuco (Israel), além de ter sido também adotada na Babilônia. 3.1.2 Fase da vingança privada A fase da vingança privada ocasionou verdadeira barbárie nos grupos sociais, pois, quando um indivíduo praticava alguma ofensa a outro, toda sua comunidade poderia ser massacrada, visto que a reação costumava ser mais severa do que a agressão (COSTA JR., 2008). Para evitar a dizimação das tribos, surge, então, a lei de talião, que consistia na proporcionalidade entre agressão e punição, conhecida pela máxima: “olho por olho, dente por dente”. Referida lei foi adotada no Código de Hamurabi (Babilônia), no Êxodo (Hebreus) e na Lei as XII Tábuas (Roma) (BITENCOURT, 2014). Porém, como o número de infratores era grande, as populações iam ficando mutiladas pela perda de membros ou sentidos, o que era proporcionado pelo direito talional. Surge, assim, a composição, que, segundo Bitencourt (2014, p. 73-74): Evoluiu-se para a composição, sistema através do qual o infrator comprava a sua liberdade, livrando-se do castigo. A composição, que foi largamente aceita, na sua época, constitui um dos antecedentes da moderna reparação do Direito Civil e das penas pecuniárias do Direito Penal. Dessa forma, em substituição à pena corporal, era facultado ao agressor reparar o dano através de uma prestação pecuniária. Entretanto, de acordo com o doutrinador, com uma melhor organização da sociedade, afastou-se a ideia da vingança privada, surgindo a fase da vingança pública. 32 3.1.3 Fase da vingança pública Nessa terceira fase, o Estado assumiu “o poder-dever de manter a ordem e a segurança social”, mantendo a identidade entre poder divino e poder político (BITENCOURT, 2014, p. 74). A pena passou a ser aplicada pelo soberano (rei, monarca) como forma de garantir a sua própria segurança, porém, a sanção penal carregava, ainda, as características cruéis e desumanas, mantendo a sua finalidade intimidatória, bem como ainda fortemente presente o enfoque religioso. Em nenhuma dessas fases houve a adoção do direito penal como ciência jurídica, visto que sempre presente um caráter místico ou religioso da sanção penal. Somente a partir das conquistas do Iluminismo (século XVIII), os mandamentos mais significativos do Direito passaram a ser observados, como o respeito pela dignidade da pessoa humana (BITENCOURT, 2014). Conforme Beccaria (2002, p. 41), “as leis são condições sob as quais homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo estado de guerra e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de sua conservação”. 3.1.4 Período humanitário Contrário às atrocidades cometidas nas fases anteriores surge, no século XVIII, o chamado Século das Luzes, “uma reação humanitária ou reformadora decorrente do Iluminismo”, tendo como fundamento de suas ideias, a razão e a humanidade (PRADO, 2014, p. 85). Preconizava Beccaria (2002, p. 79), “quanto mais a pena for rápida e próxima do delito, tanto mais justa e útil ela será”, ou seja, já havia sinais de humanização em suas ideias, visto que assim poupariam o réu dos tormentos da incerteza de sua punição. Cabe mencionar que, antes da pena de prisão existir como a conhecemos 33 hoje, ela era utilizada como espera para a punição. Assim, o réu era privado de sua liberdade até o proferimento da sentença, quando então saberia qual seria sua pena. O cárcere é, pois, a simples custódia de um cidadão até que ele seja julgado culpado, e sendo essa custódia essencialmente penosa, deve durar o menor tempo possível e ser o menos dura possível. Esse tempo menor deve medir-se pela duração necessária do processo e pelo direito de anterioridade do réu ao julgamento. A duração do recolhimento ao cárcere só pode ser a necessária para impedir a fuga, ou para que não sejam ocultadas as provas dos delitos (BECCARIA, 2002, p. 79). O estudioso descreve que as penas eram, principalmente, corporais, como o banimento, em que o infrator era excluído para sempre da sociedade de que era membro, ou a pena de morte, que se tornava um espetáculo público na forma dos suplícios, com diversas formas de torturas desumanas e cruéis, além do confisco de seus bens. Michel Foucault (2013), em sua obra “Vigiar e Punir”, publicado originalmente em 1975, em seu primeiro capítulo narra o suplício de Damiens, condenado em 2 de março de 1757, detalhando a forma como seu corpo fora desmembrado por quatro cavalos e depois reduzido a cinzas, perante o povo de Paris. Obviamente, não havia distinção entre imputáveis e inimputáveis, sendo que, mesmo doente mental, o infrator recebia o mesmo tratamento, bastando a prática do delito para haver a punição. O filósofo descreve a época da transição das penas corporais às penas como conhecemos hoje, em decorrência dos pensadores da época, que passaram a ver a necessidade de humanização das punições: No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai se extinguindo. Nessa transformação, misturam-se dois processos. Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas razões de ser. De um lado, a supressão do espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de administração. A confissão pública tinha sido abolida na França pela primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por breve tempo; o pelourinho foi supresso em 1789; a Inglaterra o aboliu em 1837. As obras públicas que a Áustria, a Suíça e algumas províncias americanas como a Pensilvânia obrigavam a fazer em plena rua ou nas estradas – condenados com coleitas de ferro, em vestes multicores, grilhetas nos pés, trocando com o povo desafios, injúrias, zombarias, pancadas, sinais de rancor ou de cumplicidade – são eliminados mais ou menos em toda parte do fim do século XVIII, ou na primeira metade do século XIX (FOUCAULT, 2013, p. 13). 34 Assim, segundo Costa Jr. (2008), o Iluminismo foi o grande responsável pela reforma nas leis e na justiça penal. Nesse período surgiram importantes filósofos que empreenderam esforços na defesa pela liberdade, igualdade e justiça, dentre eles Montesquieu, Voltaire, Rousseau e Cesare Beccaria (BITENCOURT, 2014). Para Nucci (2014a), a já mencionada obra “Dos delitos e das penas”, de Cesare Beccaria, do período da Escola Clássica (que a seguir será analisada), foi um marco para o Direito Penal, sustentando que somente leis poderiam fixar penas, não competindo sua imposição ao livre arbítrio dos magistrados, sendo um marco para o nascimento do Direito Penal moderno. O autor destaca que os séculos XVIII e XIX trouxeram legislações penais transformadoras, podendo ser mencionados importantes Códigos, como o Napoleônico, inspirado nas ideias iluministas de Beccaria, Voltaire e Rousseau. Consagra-se o pensamento iluminista na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789. 3.1.5 Escolas penais Bitencourt (2014, p. 96) ensina que as Escolas Penais foram “correntes de pensamento estruturadas de forma sistemática, segundo determinados princípios fundamentais”, sendo responsáveis por impulsionar a dogmática penal moderna. Embora tenham surgido diversas escolas penais, serão analisadas apenas a Escola Clássica e a Escola Positiva, que, por serem as mais relevantes e com ideias consistentes, serviram de base para as demais. 3.1.5.1 Escola Clássica Prado (2014, p. 87) refere que essa doutrina seguia uma linha filosófica, de caráter liberal e humanitário, sendo que “classicismo significa equilíbrio, apogeu, expressão acabada de uma tradição”. 35 No dizer de Nucci (2014a, p. 11), novamente Cesare Beccaria, representante dessa escola, tornou-se um marco na história do Direito Penal: Contrário à pena de morte e às penas cruéis, pregou o Marquês de Beccaria o princípio da proporcionalidade da pena à infração praticada, dando relevo ao dano que o crime havia causado à sociedade. O caráter humanitário presente em sua obra foi um marco para o Direito Penal, até porque contrapôs-se ao arbítrio e à prepotência dos juízes, sustentando-se que somente leis poderiam fixar penas, não cabendo aos magistrados interpretá- las, mas somente aplicá-las tal como postas. Insurgiu-se contra a tortura como método de investigação criminal e pregou o princípio da responsabilidade pessoal, buscando evitar que as penas pudessem atingir os familiares do infrator, o que era fato corriqueiro até então. A pena, segundo defendeu, além do caráter intimidativo, deveria sustentar-se na missão de regenerar o criminoso. Estava ocorrendo um processo de modernização das penas, buscando-se uma racionalização na sua aplicação e, consequentemente, um caráter mais humano. “A pena ganha um contorno de utilidade, destinada a prevenir delitos e não simplesmente castigar” (NUCCI, 2014a, p. 12). Outro grande representante da escola clássica foi Francesco Carrara, criador da dogmática penal. Carrara, contrário à pena de morte e às penas cruéis, entendia ser o crime um ente jurídico, consistente na violação de um direito; bem como que o infrator tinha o livre-arbítrio para realizar a conduta, sendo que, somente se presente sua consciente vontade de praticar o fato, poderia ser punido. Carrara, ainda, pregava que o objetivo da pena era restaurar a ordem da sociedade e não unicamente punir o infrator (BITENCOURT, 2014). Segundo o doutrinador, as ideias da Escola Clássica foram o estopim para a construção da Teoria Geral do Delito, distinguindo seus vários componentes, considerando a imputabilidade e a culpabilidade. Prado (2014) destaca o Código de Zanardelli, de 1889, o qual adotou as ideias clássicas fundamentais, possuindo grande importância para o Direito Penal. 3.1.5.2 Escola Positiva Em um contexto de elevado desenvolvimento dos estudos biológicos e sociais (Antropologia, Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, etc.), surge a Escola Positiva, 36 determinando uma nova visão nos estudos criminológicos. Devido a isso, essa escola é conhecida pelo nascimento da criminologia, destacando-se o estudioso Cesare Lombroso com sua obra “O homem delinquente”, publicada em 1876 (BITENCOURT, 2014). O autor explica, ainda, que a Escola Positiva procurava aplicar, ao Direito, métodos de observação e investigação semelhantes aos utilizados em disciplinas como Biologia e Antropologia. Porém, logo constatou-se que a norma jurídica não era científica, levando a substituição do estudo das normas pelo estudo da sociologia ou antropologia do infrator. Nesta fase, conforme já citado, destaca-se Cesare Lombroso, com sua obra “O homem delinquente” (1876), sustentando que o homem poderia ser um criminoso nato, já nascendo com características impeditivas de sua adaptação social, trazendo como consequência a prática de crimes (NUCCI, 2014a). Assim, detectando-se tais características, o criminoso nato já poderia ser submetido a uma sanção antes mesmo de praticar um delito, assegurando, assim, a melhor proteção da sociedade. Posteriormente, Lombroso reconheceu que o crime não era consequência apenas das “anomalias” humanas, que nada mais eram do que imperfeições físicas, mas sim de muitas causas que devem ser consideradas. Diante disso, sua tipologia de delinquentes ampliou-se, defindo-os como o nato, por paixão, louco, de ocasião e epilético (BITENCOURT, 2014). O doutrinador menciona que, apesar do fracasso de sua teoria, Lombroso teve o mérito de fundar a Antropologia Criminal, ao tentar encontrar explicações para o comportamento antissocial do ser humano. Ressalta-se que a Escola Positiva exerceu forte influência no campo da individualização da pena e, consequentemente, da medida de segurança, por levar em consideração, por exemplo, a personalidade e conduta social do agente para estabelecimento da sanção (NUCCI, 2014a). Tais pensamentos foram essenciais para a organização do tratamento aos criminosos “loucos” e para a evolução das medidas de segurança. Porém, esse instituto, mesmo nos dias atuais, mostra-se ainda influenciado por essas teorias antigas. 37 3.1.6 História do Direito Penal brasileiro Assim como na história mundial do Direito Penal, no período colonial, a primitiva civilização brasileira também viveu a fase da vingança privada, além de estabelecer certas formas de composição (NUCCI, 2014a). Após o descobrimento do Brasil, em 1500, instalou-se a legislação portuguesa, na forma das Ordenações do Reino. Bitencourt (2014) menciona que, primeiramente, sob o reinado de D. Afonso V, vigoravam as Ordenações Afonsinas, publicadas em 1446, sendo posteriormente substituídas pelas Ordenações Manuelinas (D. Manuel I, 1521), que, por sua vez, perduraram até o advento da compilação de Duarte Nunes de Leão, por volta de 1569. As Ordenações Filipinas (D. Filipe II) foram as mais longas, perdurando de 1603 a 1830, prevendo severas punições, dentre elas a pena de morte, o açoite e a amputação de membros. Conforme o doutrinador, diante da grande colônia, os ordenamentos jurídicos não eram plenamente eficazes, sendo, na prática, o arbítrio dos donatários o responsável por instituir o Direito aplicado, tornando-se catastrófico o direito penal nesse período. Somente com o Código Criminal do Império (1830), advindo do projeto de Bernardo Pereira de Vasconcellos, instalou-se uma legislação mais humanizada, devido ao advento das ideias liberais (COSTA JR., 2008). Segundo Bitencourt. (2014, p. 91), esse Código ”influenciou grandemente o Código Penal espanhol de 1848 e o Código Penal português de 1852, por sua clareza, precisão, concisão e apuro técnico”. Nucci (2014a) acrescenta que o referido Código constituiu um avanço notável, por instituir sistemas até hoje utilizados, como o dia-multa. Posteriormente, com a implantação da República no Brasil, aprovou-se o novo Código Penal, em 1890, o qual apresentou muitos defeitos, recebendo críticas por não ter acompanhado os avanços doutrinários da época, sendo atrasado em relação à ciência do seu tempo (BITENCOURT, 2014). Apesar de ter sido considerado um retrocesso na evolução do Direito Penal, o Código Republicano vigeu até 1932, porém, segundo Bitencourt (2014, p. 91), 38 transformou-se em uma “verdadeira colcha de retalhos, tamanha a quantidade de leis extravagantes” que o integraram. Conforme explica Costa Jr. (2008), durante o Estado Novo, em 1938, elaborado por Alcântara Machado, o anteprojeto de um novo Código Penal foi apresentado. A comissão revisora, composta por nomes como Nélson Hungria e Roberto Lyra, modificaram o projeto, sendo apresentado ao Governo em 1940, entrando em vigor em 1° de janeiro de 1942, perdurando até os dias atuais, embora parcialmente modificado. Segundo o doutrinador, o novo estatuto teve influência do Código italiano de 1930 e do Código suíço de 1937, mostrando-se liberal, com estrutura harmônica e redação clara. Muitas foram as leis que modificaram o vigente Código Penal. Bitencourt (2014), porém, destaca a Lei n° 6.416, de 24 de maio de 1977, a qual procurou modernizar as sanções penais, e a Lei n° 7.209, de 11 de julho de 1984, que definiu uma nova parte geral. Ademais, cumpre mencionar que, em 1963, Nélson Hungria elaborou um novo projeto, que pretendia substituir o Código Penal de 1940. O projeto foi promulgado em 1969, para entrar em vigor em 1° de janeiro de 1970, porém o prazo de vacância foi sendo prorrogado, até ser revogado pela Lei n° 6.578/78 (COSTA JR., 2008). O autor explica que a Lei n° 7.209/84 alterou substancialmente a Parte Geral do Código Penal, adotando-se o sistema vicariante, que prevê a aplicação de pena ou medida de segurança, proibindo a dupla punição por um mesmo delito, o que será analisado nos próximos tópicos. Assim, antes de analisar a evolução histórica das medidas de segurança, importante fazer um breve relato acerca das teorias da finalidade das penas, pois essas, ao longo da história, também sofreram “forte influência do contexto político, ideológico e sociocultural nos quais se envolveram” (BITENCOURT, 2014, p. 130) 39 3.2 Teorias da pena O art. 59, do Código Penal preceitua que o juiz fixará a pena de modo necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Segundo Prado (2014), as consequências jurídicas do delito, para o Direito Penal moderno, são as penas e as medidas de segurança. À vista disso, são inúmeras as teorias que procuram entender suas finalidades e fundamentos, sendo as principais as absolutas, as relativas e as unitárias ou ecléticas. As primeiras, de acordo com o doutrinador, consideram que a pena é retribuição, ou seja, compensação do mal causado através do delito. Assim, conforme Costa Jr. (2008, p. 142), “a retribuição implica personalidade da pena, só devendo atingir o autor do crime”, e ainda que “a pena, em sua função retributiva, não deixa de espelhar certo sentimento de vingança”, por exigir uma reparação com relação à vítima, sua família e a sociedade, na forma de um castigo. Porém, conforme refere Prado (2014, p. 446), “na atualidade, a ideia de retribuição jurídica significa que uma pena deve ser proporcional ao injusto culpável, de acordo com o princípio da justiça distributiva”, portanto, na concepção moderna, a retribuição não é mais um sentimento de vingança social, mas um princípio limitativo, no qual o delito praticado deve “operar como fundamento e limite da pena”. Os principais representantes das teorias absolutas da pena são Kant e Hegel, sendo que, para o primeiro a pena é uma ordem ética, devendo o réu ser castigado unicamente por ter delinquido, não havendo consideração sobre a utilidade da pena para o infrator ou para a sociedade; enquanto para Hegel trata-se de uma ordem jurídica, sendo a pena a melhor maneira de compensar o delito e restaurar o equilíbrio. Não preocupavam-se com o infrator, mas com a punição imposta a ele, como forma de fazer justiça (BITENCOURT, 2014). Por sua vez, as teorias relativas da pena fundamentam-se na necessidade de evitar a futura prática de novos delitos, como forma de prevenção. “Se o castigo ao autor do delito se impõe, segundo a lógica das teorias absolutas, somente porque delinquiu, nas teorias relativas a pena se impõe para que não volte a delinquir” (BITENCOURT, 2014, p. 142). 40 A finalidade preventiva divide-se em: a) prevenção geral, destinada ao coletivo social, podendo ser capaz de intimidar os possíveis infratores, afastando- nos da prática delitiva; e b) especial, sendo o destinatário aquele que delinquiu, para que não volte a transgredir a norma penal (PRADO, 2014). Por fim, as teorias unitárias, ecléticas ou ainda mistas da pena, conforme Bitencourt (2014), tentam reunir em um único conceito os fins da pena, conciliando a retribuição jurídica com os fins de prevenção geral e especial. Costa Jr. (2008, p. 151), aduz que, Segundo Roxin, não podem ser superadas as deficiências das teorias retribucionistas, ou da preventivo-específica, com um posicionamento eclético. Propõe então a teoria unificadora dialética, que se distingue das tradicionais teorias monistas, ao levar em consideração as diversas fases através das quais se desenvolve o poder punitivo estatal com relação ao indivíduo. As fases, que são três – ameaça legal, aplicação jurisdicional e execução da pena –, integram um processo dialético unitário (grifo nosso). Dessa forma, conforme Nucci (2014a), pode-se afirmar que no atual sistema brasileiro, a pena possui todas as características expostas acima, ou seja, possui caráter misto. 3.3 Evolução histórica das medidas de segurança Em análise à evolução histórica do Direito Penal, evidencia-se que não havia distinção entre o criminoso e o doente mental, pois, durante muito tempo, receberam tratamento similar, não importando o motivo que os levavam a cometer um delito, mas sim que deveriam ser punidos por aquilo que cometeram. Nesse sentido, Nunes e Trindade (2013, p. 21) destacam que “o trajeto percorrido pelas pessoas com comportamentos criminosos foi, por longo tempo, olhado de forma semelhante ao daqueles que padeciam de problemas mentais”. Porém, as sociedades foram percebendo que alguns indivíduos apresentavam ameaça permanente de cometer novos delitos, não bastando para eles a simples repressão, fazendo-se necessário outros mecanismos capazes de completar a atuação penal (PRADO, 2014). 41 De acordo com Ferrari (2001, p. 16), “uma das medidas mais antigas aplicadas aos doentes mentais ocorreu com os romanos, que visavam segregar esses indivíduos da sociedade, internando-os em casas de custódia”. Ocorre que, para garantir a segurança social, não era preciso esse doente mental cometer algum delito, pois o simples perigo que poderia vir a causar justificava a aplicação das medidas preventivas. A Inglaterra foi o primeiro país a aplicar tratamentos psiquiátricos a criminosos com doenças mentais, determinando seu recolhimento a um asilo. Nesse país também surgiu o primeiro manicômio judiciário, em 1800, “quando o rei Jorge III foi vítima de uma tentativa de homicídio praticada por um insano mental que, absolvido, foi internado por tempo indeterminado” (PRADO, 2014, p. 560). O doutrinador explica que, apesar do episódio supracitado, somente no anteprojeto do Código Penal Suíço, de 1893, as medidas de segurança foram normatizadas: poderiam substituir a sanção penal para os indivíduos multirreincidentes, prevendo também a internação facultativa em casa de trabalho e o asilo para ébrios habituais. As medidas de segurança fizeram-se presentes nos Códigos Penais de Portugal (1896), da Noruega (1902) e da Argentina (1921). O projeto de Código Penal italiano previa a adoção de sistema vicariante, recebendo, tanto a pena quanto a medida de segurança, a denominação de sanções penais. O projeto fracassou, sendo que na elaboração do novo Código Penal da Itália consagrou-se o sistema dualístico, no qual seria aplicada ou pena ou medida de segurança (PRADO, 2014). Esse Código, inclusive, serviu de inspiração para o legislador brasileiro de 1940, sendo que a seguir passar-se-á à análise das medidas de segurança no Brasil. 3.3.1 A medida de segurança na legislação brasileira No Brasil, as medidas de segurança foram disciplinadas pela primeira vez no Decreto n° 1.132, de 22 de dezembro de 1903, responsável por reorganizar a 42 assistência a doentes mentais, chamados alienados; porém, antes disso, outras legislações cuidaram dessas medidas de tratamento, ainda denominadas como penas. Como exemplo, cita-se o art. 12, do Código Criminal do Império, que previa o recolhimento dos doentes mentais às casas a eles destinadas ou o encaminhamento a suas famílias, sendo que a decisão caberia ao juízo criminal (FERRARI, 2001). O Código Penal Republicano (1890), em seu artigo 29, não inovou quanto ao tratamento dos inimputáveis (aqueles que não possuem capacidade de discernir um ato ilícito), novamente prevendo que fossem entregues a suas famílias ou recolhidos a hospitais psiquiátricos (chamados de hospitais de alienados). Ademais, deixou de fazer referência aos semi-imputáveis, “preferindo incluí-los, na maioria das vezes, entre aqueles que se achavam completamente turbados de inteligência no momento do crime”, enquadrados no art. 27, §4°: “os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime” [sic] (PRADO, 2014, p. 561). De acordo com Ferrari (2001), no Decreto n° 1.132/1903, a medida consistia no recolhimento dos indivíduos portadores de alguma doença mental a institutos próprios, pois tal moléstia poderia comprometer a ordem pública ou a segurança da sociedade. O autor também menciona o Projeto do Código Penal elaborado por Galdino Siqueira, em 1913, no qual constatou-se a busca por uma nova sanção penal, impondo-se uma pena complementar ao “reincidente perigoso, com duração de um período três vezes superior ao da pena, não ultrapassando, em qualquer caso, os quinze anos” (FERRARI, 2001, p. 33). Somente com a promulgação do Código Penal de 1940 instituiu-se definitivamente a sistematização das medidas de segurança no Brasil, adotando-se o sistema do duplo binário. Segundo tal sistema, Nucci (2014a, p. 528) explica que “quando o réu praticava delito grave e violento, sendo considerado perigoso, recebia pena e medida de segurança”. Assim, terminada a pena privativa de liberdade, o réu continuava detido até cessar sua periculosidade, gerando um lapso temporal absurdo (FERRARI, 2001). 43 Conforme o doutrinador, as medidas de segurança no Código Penal de 1940 seguiam a seguinte classificação: Divididas em detentivas ou não detentivas, as medidas de seguranças classificavam-se como pessoais, conforme a gravidade do crime, bem como a periculosidade do agente, admitindo-se, outrossim, medidas de natureza patrimoniais, das quais exemplos constituíam o confisco, a interdição de estabelecimento e a interdição de sede de sociedade, ou associação (art. 100). Tratava-se, assim, de uma resposta penal justificada pela periculosidade social, punindo o indivíduo não pelo que ele fez, mas pelo que ele era (FERRARI, 2001, p. 35). Prado (2014, p. 561) cita como medidas pessoais detentivas a “internação em manicômio judiciário, casa de custódia e tratamento, colônia agrícola, instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional”, e como as não detentivas a liberdade vigiada, proibição de frequentar determinados lugares e o exílio local. Conforme exposto por Ferrari (2001), era possível a aplicação da medida de segurança na forma preventiva, ainda que não praticado o delito. O que se visava era a proteção da sociedade, pouco importando a reinserção do indivíduo ao convívio social. Dessa forma, justificava-se a ausência de limite da medida de segurança, devendo persistir até a total cessação da periculosidade. Ademais, apesar do art. 75 do Código Penal de 1940 indicar um certo princípio da legalidade, exigindo-se a prática de um delito para a aplicação da medida, seu parágrafo único possibilitava a aplicação da medida, ainda que não praticado nenhum crime, tornando-se incoerente a legislação da época. Embora o princípio da jurisdicionalidade fosse o adotado, a presunção de periculosidade era aceita estando, inclusive, prevista no art. 78, do Código de 1940, com hipóteses taxativas, suficientes a ensejar a aplicação da medida de segurança, sem que houvesse a ocorrência de crime pretérito. “Contrapondo-se a qualquer critério de justiça, admitia-se até mesmo a aplicação provisória das medidas de segurança (art. 80), pouco importando-se com a presunção da inocência do indivíduo” (FERRARI, 2001, p. 36). O autor menciona, ainda, que o Código Penal de 1969, revogado antes mesmo da sua vigência, eliminou a cumulatividade entre pena e medida de segurança, dando relevância ao semi-imputável: admitiu sua internação em estabelecimento anexo ao manicômio judiciário, a fim de separá-lo dos 44 absolutamente inimputáveis. Nos casos em que o indivíduo encontrava-se na zona fronteiriça entre a imputabilidade e a inimputabilidade, o juiz deveria optar entre a diminuição da pena ou a medida de segurança de internação. Apesar de revolucionário quanto às medidas de segurança, conforme já mencionado, o Código Penal de 1969 foi revogado antes da sua vigência. Assim, antes da Reforma Penal de 1984, os indivíduos imputáveis também poderiam receber medidas de segurança, desde a proibição de frequentar determinados lugares, o exílio local (medidas não detentivas), até a internação em colônia agrícola, instituição de trabalho e ensino (medidas detentivas). Somente após essa reforma, eliminou-se, definitivamente, a aplicação dupla de pena e medida de segurança para os imputáveis e semi-imputáveis. Hoje, é evidente que o duplo binário fere o princípio do ne bis in idem, ou seja, a proibição de punir um indivíduo duas vezes pelo mesmo fato (BITENCOURT, 2014). Segundo o autor, “atualmente, o imputável que praticar uma conduta punível sujeitar-se-á somente à pena correspondente; o inimputável, à medida de segurança, e o semi-imputável, o chamado “fronteiriço”, sofrerá pena ou medida de segurança” (BITENCOURT, 2014, p. 858). Importante destacar, também, uma breve distinção entre pena e medida de segurança. Segundo o estudioso, enquanto a primeira possui caráter retributivo- preventivo, a segunda tem natureza eminentemente preventiva; o fundamento da aplicação da pena é a culpabilidade, enquanto o da medida de segurança é a periculosidade. Ainda, as penas têm seu tempo de duração determinado, já as medidas de segurança só terminam quando cessar a periculosidade do agente, admitindo-se, em tese, a perpetuidade da medida. Para apurar a inimputabilidade ou a semi-imputabilidade do infrator é instaurado o incidente de insanidade mental, que pode ocorrer tanto no inquérito policial, quanto no curso da ação penal. Tal incidente somente será instaurado diante de fundada dúvida acerca das condições mentais do acusado e pode ser feito pelo juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, defensor ou curador do investigado, além de seus ascendentes, descendentes, irmãos ou cônjuge, conforme art. 149, do Código de Processo Penal (NUCCI, 2014b, texto digital). 45 Segundo Oliveira (2008, p. 272), a condição mental do infrator será avaliada através de um exame médico-legal, a ser realizado no prazo de 45 dias, podendo ser prorrogado. Assim, serão adotadas duas soluções: a) Constatado que o acusado (ou indiciado) já era inimputável (art. 26, CP) ao tempo da infração, o processo terá seu curso normal, nomeando-se-lhe curador; b) Se comprovado, porém, que o acometimento da doença é posterior à infração penal, se já em curso ação penal, o processo continuará suspenso (suspensão anteriormente decretada com base no art. 149, §2°, CPP) até o restabelecimento do acusado, sem prejuízo da realização dos atos reputados urgentes (art.152). Constatada a inimputabilidade do acusado, caberá a aplicação da medida de segurança, prevista no Código de Processo Penal em seu art. 386, parágrafo único, III, ao dispor que: na sentença absolutória, o juiz aplicará medida de segurança, se cabível. Ou seja, a denominada sentença absolutória imprópria. Conforme destaca Prado (2014), há discussão na doutrina acerca da natureza jurídica da medida de segurança: se teria caráter jurídico-penal ou meramente administrativo. Embora juristas tentem negar que as medidas de segurança possuem o caráter de sanção penal, visto que sua aplicação advém de uma sentença penal absolutória, na prática, não se diferencia de uma pena imposta àquele que pratica um ilícito penal. Para a aplicação da medida de segurança é indispensável, além da prática de um delito e a presença da anomalia psíquica, a periculosidade do agente. Para Bitencourt (2014), a periculosidade é classificada em presumida, nos termos do artigo 26, caput, do Código Penal, ou seja, quando o réu é inimputável, e real (art. 26, parágrafo único, do Código Penal), quando tratar-se de semi-imputável, devendo ser reconhecida pelo juiz. Cabe mencionar que, para o diagnóstico do nível de periculosidade do agente, deve ser realizado o exame médico-pericial, após prazo mínimo fixado pelo juiz (de um a três anos). 46 3.3.2 Execução e espécies de medidas de segurança Atualmente, nosso Código Penal prevê apenas duas espécies de medida de segurança: a) internação, também chamada de medida detentiva, que se refere à internação do sentenciado em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou outro estabelecimento adequado (art. 96, I, do CP); b) tratamento ambulatorial, ou medida restritiva, introduzida pela reforma de 1984, através do qual o agente é submetido a cuidados médicos, sem internação (art. 96, II, do CP), embora esta possa se tornar necessária durante o tratamento, sendo possível sua conversão (art. 97, §4°, do CP) (BITENCOURT, 2014). O autor ressalta que, quanto à medida de internação, a nova terminologia não modificou em nada as precárias condições dos antigos manicômios judiciários, visto que em nenhum Estado brasileiro foram construídos novos estabelecimentos. Conforme Costa Jr. (2008), e de acordo com o art. 97, do Código Penal, para os indivíduos inimputáveis que tenham praticado um delito apenado com reclusão, a medida de segurança de internação é a sanção que se impõe, e, portanto, quando o delito é apenado com detenção ou para os semi-imputáveis, a medida de segurança adequada seria o tratamento ambulatorial. Ocorre que a regra não é absoluta, dependendo do caso concreto que será analisado pelo magistrado, havendo, inclusive, precedente do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a espécie da medida de segurança deve se ajustar ao tratamento que o inimputável ou semi- imputável necessita (REsp. 324091-SP, 6ª Turma, relator Hamilton Carvalhido, 16.12.2003). Nesse sentido, Nucci (2014a, p. 530) considera o preceito legal injusto, pois “padroniza a aplicação da sanção penal e não resolve o drama de muitos doentes mentais que poderiam ter suas internações evitadas”. Ademais, as condições enfrentadas pelos estabelecimentos “adequados” à internação do doente mental infrator, em geral, encontram-se deficientes e precárias. Bitencourt (2014, p. 852), ao tentar diferenciar os locais destinados ao cumprimento das medidas, conclui que a denominação “hospital de custódia e tratamento psiquiátrico” não apresentou mudanças além do nome dos manicômios 47 judiciários. No Rio Grande do Sul, é o chamado Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso, situado em Porto Alegre/RS. Ao assegurar os “direitos do internado”, o art. 99, do Código Penal, estabeleceu que o inimputável submetido a essa medida fosse recolhido a estabelecimento “dotado de características hospitalares”, o que, ironicamente, faz os manicômios judiciários serem novamente os “estabelecimentos adequados”. Ainda, quanto a esses estabelecimentos, Carvalho (2014, p. 506) expressa que, na prática, “o modelo de internação compulsória se realiza nos chamados manicômios judiciários, instituições totais com características asilares e segregacionistas similares às penitenciárias”. O art. 43, da Lei de Execuções Penais, garante ao agente submetido à medida de internação ou tratamento ambulatorial a liberdade de contratar médico de sua confiança pessoal ou de seus familiares e dependentes, a fim de orientar e acompanhar o tratamento. O parágrafo único, do mesmo dispositivo, expressa que as divergências entre o médico oficial e o particular serão resolvidas pelo juiz da execução. Quanto à medida de segurança preventiva, prevista no artigo 378, do Código de Processo Penal, a maioria da doutrina a considera revogada. O que é passível, quando medida necessária, é a decretação de prisão preventiva, desde que devidamente fundamentada, colocando o agente em lugar compatível com a sua situação (NUCCI, 2014a). Dessa forma, a medida de segurança só poderá ser executada após o trânsito em julgado da sentença (art. 171, da LEP). 3.3.3 Prazo de duração da medida de segurança De acordo com os arts. 97, §1°, e 98, do Código Penal, o prazo mínimo de cumprimento da medida de segurança é de um a três anos, qualquer que seja o delito praticado, variando de acordo com a periculosidade do agente (PRADO, 2014). 48 Já o seu prazo máximo de duração, conforme previsto no art. 97, § 1°, do Código Penal, é indeterminado, perdurando enquanto não comprovada a cessação da periculosidade, mediante perícia médica. Nesse aspecto, é grande a divergência doutrinária. Bitencourt (2014) destaca uma das cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988: a proibição de prisão perpétua. Ressalta que a medida de segurança é espécie de sanção penal, devendo limitar seu cumprimento a prazo não superior a 30 anos, lapso máximo permitido de privação de liberdade do infrator (art. 75 do Código Penal). Esse também é entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal, expresso no Habeas Corpus 107432/RS, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowsi, julgado em 24/05/2011, pela Primeira Turma: EMENTA: PENAL. HABEAS CORPUS. RÉU INIMPUTÁVEL. MEDIDA DE SEGURANÇA. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. PERICULOSIDADE DO PACIENTE SUBSISTENTE. TRANSFERÊNCIA PARA HOSPITAL PSIQUIÁTRICO, NOS TERMOS DA LEI 10.261/2001. WRIT CONCEDIDO EM PARTE. I – Esta Corte já firmou entendimento no sentido de que o prazo máximo de duração da medida de segurança é o previsto no art. 75 do CP, ou seja, trinta anos. Na espécie, entretanto, tal prazo não foi alcançado. II - Não há falar em extinção da punibilidade pela prescrição da medida de segurança uma vez que a internação do paciente interrompeu o curso do prazo prescricional (art. 117, V, do Código Penal). III – Laudo psicológico que reconheceu a permanência da periculosidade do paciente, embora atenuada, o que torna cabível, no caso, a imposição de medida terapêutica em hospital psiquiátrico próprio. IV – Ordem concedida em parte para determinar a transferência do paciente para hospital psiquiátrico que disponha de estrutura adequada ao seu tratamento, nos termos da Lei 10.261/2001, sob a supervisão do Ministério Público e do órgão judicial competente (STF - HC: 107432 RS, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 24/05/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-110 DIVULG 08-06-2011 PUBLIC 09-06- 2011). Assim, de acordo com esse entendimento, passados os 30 anos, o agente, caso não cessada sua periculosidade, apesar de cumprida a medida de segurança, será internado em hospital psiquiátrico comum. Para Ferrari (2001, p. 179), “as medidas de segurança indeterminadas quanto a seu prazo de duração máxima violam o princípio da legalidade, configurando-se característica inaceitável em um Estado Democrático de Direito”. Nesse sentido, Prado (2014) também afirma que o poder de punir do Estado não pode se estender indefinidamente no tempo. 49 Já Nucci (2014a, p. 531) é contrário a tal posicionamento, e entende que o agente deve ficar submetido à medida de segurança, ou seja, sob a custódia do Estado, até cessar sua periculosidade: Apesar de seu caráter de sanção penal, a medida de segurança não deixa de ter o propósito curativo e terapêutico. Ora, enquanto não for devidamente curado, deve o sujeito submetido à internação permanecer em tratamento, sob custódia do Estado. Seria demasiado apego à forma transferi-lo de um hospital de custódia e tratamento criminal para outro, onde estão abrigados insanos interditados civilmente, somente porque foi atingido o teto máximo da pena correspondente ao fato criminoso praticado, como alguns sugerem, ou o teto máximo de 30 anos, previsto no art. 75, como sugerem outros. Um posicionamento que vem ganhando força é de que o prazo da medida de segurança não pode ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito, pois seria o limite de intervenção estatal na liberdade do indivíduo. Bitencourt (2014, p. 864) ressalta: Superado o lapso temporal correspondente à pena cominada à infração imputada, se o agente ainda apresentar sintomas de sua enfermidade mental, não será mais objeto do sistema penal, mas um problema de saúde pública, devendo ser removido e tratado em hospitais da rede pública, como qualquer outro cidadão normal. É esse o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao decidir: EMBARGOS INFRINGENTES. CRIME DE ROUBO. MEDIDA DE SEGURANÇA. PRAZO MÁXIMO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA PROPORCIONALIDADE. PREVALÊNCIA DO VOTO VENCIDO. De acordo com o disposto no art. 97, § 1º, do Código Penal, a medida de segurança é aplicada por tempo indeterminado, devendo perdurar enquanto não ocorrer à cessação da periculosidade. Entretanto, considerando os princípios constitucionais da isonomia e da proporcionalidade, não pode o inimputável receber tratamento mais severo do que o imputável, que tem a pena limitada no tempo. Assim, o prazo máximo da medida de segurança deve ser o mesmo dado para a pena caso esta fosse aplicada ao caso. Prevalência do voto vencido. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS. POR MAIORIA. (Embargos Infringentes e de Nulidade Nº 70059983809, Terceiro Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lizete Andreis Sebben, Julgado em 15/08/2014). (TJ-RS - EI: 70059983809 RS, Relator: Lizete Andreis Sebben, Data de Julgamento: 15/08/2014, Terceiro Grupo de Câmaras Criminais, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 08/10/2014). 50 Entretanto, no dia 18/05/2015, é publicada a Súmula 527 do Superior Tribunal de Justiça, que afasta toda a divergência em torno do assunto, limitando o tempo máximo de duração da medida de segurança. In verbis: Súmula 527 STJ: O tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado. Finalmente, a extinção da medida de segurança se dá através do livramento condicional, ficando o agente em observação por um ano, fulcro no art. 178, da Lei de Execução Penal. Durante o período de prova, se o agente praticar algum ato que demonstre a existência da periculosidade (não precisa ser um fato típico penal), poderá voltar à situação anterior (NUCCI, 2014a). Comprovada a cessação da periculosidade e transcorrendo o período de prova sem haver a ocorrência de fato a ensejar sua revogação, a medida de segurança será extinta definitivamente (BITENCOURT, 2014). 3.3.4 Possibilidade de conversão de pena em medida de segurança O art. 183, da Lei de Execução Penal, autoriza a substituição da pena por medida de segurança quando, no curso da execução da pena privativa de liberdade, sobrevier doença ou perturbação mental. A determinação da substituição será feita pelo juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público ou da autoridade administrativa (NUCCI, 2014a). O doutrinador apresenta duas hipóteses dessa conversão, sendo a primeira delas quando tratar-se de doença mental temporária, devendo ser aplicado o disposto no art. 41, do Código Penal, ou seja, transfere-se o condenado para hospital de tratamento psiquiátrico por tempo suficiente a ensejar sua cura. Melhorando seu estado, retornará a cumprir a pena no presídio originário. A segunda hipótese é em casos de doenças mentais duradouras, quando a transferência do sentenciado será definitiva, convertendo-se a pena em medida de segurança. 51 Prado (2014) acrescenta que quando a superveniência da doença mental se dá durante a execução de sursis ou das penas restritivas de direitos, não há conversão, mas, sim, suspensão da execução, assim como nos casos de multa (arts. 52, do CP e 167, da LEP). Conforme Nucci (2014a), a reconversão de medida de segurança em pena é possível em caso de melhora da saúde mental do acusado, devendo retornar a cumprir sua pena a que foi condenado. O autor menciona, ainda, a conversão da medida de internação em tratamento ambulatorial, denominada desinternação progressiva, quando mais benéfica ao agente, não se tratando de desinternação, pois não cessada a periculosidade, mas, sim, de liberação para a continuidade do tratamento, porém de forma diversa. 3.3.5 Cessação da periculosidade e extinção da punibilidade A periculosidade do agente é constatada através de perícia médica, devendo ser o primeiro exame pericial realizado ao final do prazo mínimo fixado pelo juízo para duração da medida de segurança, de acordo com aquele estabelecido pela legislação (de um a três anos), conforme disposto no art. 97, §1°, do Código Penal (BITENCOURT, 2014). Conforme o autor, antes de escoado esse prazo, o referido exame só poderá ser realizado mediante requerimento fundamentado do Ministério Público ou do interessado (procurador ou defensor), de acordo com art. 176, da Lei de Execução Penal. Dessa forma, conforme já mencionado, cessada a periculosidade ocorrerá a desinternação ou liberação do tratamento ambulatorial. Se, durante o período de prova, praticar algum ato que indique periculosidade, voltará à situação anterior. Transcorrido o período de prova, sem a constatação de fatos a ensejar a revogação da desinternação ou liberação condicional, está extinta a punibilidade do agente. Prado (2014, p. 572) destaca, ainda, que são “admitidas todas as hipóteses 52 de extinção da punibilidade para as medidas de segurança”, aceitando-se, portanto, estarem essas também submetidas à prescrição, tanto da pretensão punitiva (antes do trânsito em julgado da sentença) quanto da pretensão executória (após a sentença transitar em julgado). O prazo prescricional das medidas de segurança é o mesmo das penas, estando expresso nos arts. 109 e 110 do Código Penal. Desta feita, o próximo capítulo analisará a história da Reforma Psiquiátrica, resultante na Lei nº 10.216/2001, bem como sua contribuição para o tratamento dos inimputáveis sujeitos à medida de segurança, além da forma como se dá a aplicação da medida no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, através de jurisprudências. 53 4 O ADVENTO DA LEI Nº 10.216/01 E A APLICAÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA NO ÂMBITO DO TJ/RS Apesar de, teoricamente, receberem diferentes formas de tratamento, durante muito tempo, o imputável e o doente mental eram submetidos a métodos semelhantes: enquanto o primeiro era encarcerado em presídios; o doente mental era tratado em hospitais psiquiátricos,