UNIVERSIDADE DO VALE DO TAQUARI - UNIVATES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO HISTÓRIA AMBIENTAL ENVOLVENDO INDÍGENAS GUARANI E JESUÍTAS NAS REDUÇÕES DA PROVÍNCIA DO TAPE, SÉCULO XVII Tuani de Cristo Lajeado, novembro de 2018 2 Tuani de Cristo HISTÓRIA AMBIENTAL ENVOLVENDO INDÍGENAS GUARANI E JESUÍTAS NAS REDUÇÕES DA PROVÍNCIA DO TAPE, SÉCULO XVII Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ambiente e Desenvolvimento, da Universidade do Vale do Taquari - UNIVATES, como parte da exigência para obtenção do grau de Mestre em Ambiente e Desenvolvimento. Orientador: Luís Fernando da Silva Laroque Lajeado, novembro de 2018 3 UNIVERSIDADE DO VALE DO TAQUARI - UNIVATES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado: HISTÓRIA AMBIENTAL ENVOLVENDO INDÍGENAS GUARANI E JESUÍTAS NAS REDUÇÕES DA PROVÍNCIA DO TAPE, SÉCULO XVII Elaborada por Tuani de Cristo Como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Ambiente e Desenvolvimento COMISSÃO EXAMINADORA: ______________________________________________ Prof. Dr. Luís Fernando da Silva Laroque (Orientador) PPGAD/Universidade do Vale do Taquari - Univates ___________________________________________ Profa Dra Neli Teresinha Galarce Machado PPGAD/Universidade do Vale do Taquari - Univates ______________________________________________________ Profa Dra Maria Cristina Bohn Martins PPG História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos _______________________________________________________________ Prof. Dr. Guilherme Galhegos Felippe PPG História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS Lajeado, 29 de novembro de 2018 4 Agradecimentos O presente trabalho foi realizado com bolsa financiamento do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Educação Superior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROSUC/CAPES), Código de Financiamento 001. Agradeço a CAPES e a UNIVATES pelo auxílio na pesquisa e bolsa de estudos. Agradeço ao professor e orientador Luís Fernando da Silva Laroque pela oportunidade. Agradeço a professora Dra. Neli Galarce Machado pela oportunidade de integrar o seu projeto de pesquisa “Arqueologia, História Ambiental e Etno-história do Rio Grande do Sul”. Aos colegas que integram o projeto de pesquisa “Identidades Étnicas em espaços territoriais da Bacia Hidrográfica do Taquari-Antas: história, movimentações e desdobramentos espaciais” e o projeto de extensão “História e Cultura Kaingang”. O amadurecimento de um projeto de pesquisa depende principalmente de trocas que são realizadas com colegas ao longo deste processo, por isso agradeço de modo especial aqueles com quem pude compartilhar minhas angústias, dúvidas, descobertas e alegrias: Marina, Paula, Ernesto, Jonathan, Moisés, Janaíne, Bruno, Emelí, Natália, Júlia, Marcele e Ana. A minha família e amigos que me apoiaram ao longo deste percurso, Elisa, Márcia, Nátali e aos meus pais, Raul e Rose, a minha irmã Kauani. 5 [...] O que estamos fazendo aqui, essa é a questão. Foi-nos dada uma oportunidade de descobrir. Sim, dentro dessa imensa confusão, apenas uma coisa está clara: estamos esperando que Godot venha. Samuel Beckett Esperando Godot (2017). 6 RESUMO Os Guarani pertencem ao tronco linguístico Tupi, viviam em territórios do atual Estado do Rio Grande do Sul desde o início da Era Cristã. No século XVII os referidos territórios passaram a ser ocupados pelo elemento europeu, inicialmente representado por padres da Companhia de Jesus, configurando a Província do Tape, denominação político-espanhola. O estudo tem como objetivo demonstrar, com base na História Ambiental, que a Província do Tape foi palco de negociações territoriais entre os coletivos Guarani e a Companhia de Jesus, ambos fundamentados em lógicas culturais distintas. Os indígenas fundamentados na lógica do ñande reko (modo de ser), ao qual estão integrados espíritos, plantas, animais e divindades, já os jesuítas fundamentados em uma relação ocidental com o território. A metodologia utilizada baseou-se na abordagem da Etno-história e da História Ambiental, com o cunho qualitativo e descritivo. Os procedimentos metodológicos consistem em revisões bibliográficas sobre a temática e pesquisa documental das Cartas Ânuas escritas pelos padres jesuítas no século XVII, material compilado por Jaime Cortesão (1969), Hélio Vianna (1970) e Ernesto Maeder (1984). Como resultados, tendo por base aportes teóricos da História Ambiental, territorialidade e cultura, foi possível constatar que os Guarani se fundamentaram na lógica cultural do ñande reko para viver suas historicidades e sentidos de territorialidade, mas a partir dos contatos com o projeto político-colonial e religioso da Companhia de Jesus, ressignificações culturais foram postas em prática por ambos os grupos. Os Guarani, com base no seu modo de ser, buscavam aspectos econômicos, cosmológicos e na memória parental; os jesuítas, por sua vez, imbuídos de conhecimentos ocidentais, possuíam uma visão “materialista”, observando no território potencialidades de autossuficiência e produção econômica para sustentar o projeto missionário. Para compreensão das diferentes visões, foi possível descrever os ambientes onde as reduções jesuíticas foram erguidas, corroborando com a hipótese de que a Companhia de Jesus buscava no território uma maior potencialização dos recursos naturais, visando à autossuficiência e produção de excedentes. Demonstrou-se que a introdução dos espaços missionais causaram impactos ambientais sentidos por Guaranis e missionários, a exemplo de ataques de ratões-do-banhado (Myocastor coypus) e de formigas (Formicidae), as roças das reduções e ainda os possíveis impactos causados a partir da introdução do gado vacum (Bos taurus) em territórios da Província do Tape. Com base na análise dos eventos narrados por jesuítas nas Cartas Ânuas, a investigação constatou que a Companhia de Jesus necessitou “negociar” a instalação do seu projeto político-econômico e religioso com as parcialidades Guarani e seus coletivos, tais como animais, plantas e espíritos. Isto ocasionou uma disputa por território no campo dos humanos e da natureza, tendo em vista que espécies vegetais e animais introduzidas pelos jesuítas também precisaram “barganhar” espaço com as espécies endêmicas. Constatou-se assim, que a Província do Tape 7 durante o século XVII foi palco de diversas historicidades ambientais e cosmológicas, permeadas por transformações, mas também por apropriações entre os envolvidos. Palavras-chave: Guarani; Jesuítas; Território; Natureza; Cultura. 8 ABSTRACT The Guarani are related to the Tupi linguistic stock, they used to live in territories of the present State of Rio Grande do Sul from the beginning of the Christian Era. In the seventeenth century the territories were occupied by the European element. Initially represented by priests of the Society of Jesus, forming Tape Province, denomination politic-Spanish. The study aims to show, based on Environmental History that Tape Province has become one of the territorial space between the Guarani people and the Society of Jesus, both foundated in distinct cultural logics, indigenous based on the logic of ñande reko (way of being) wich is integrated with spirits, plants, animals and deities, in the other hand the Jesuits already based on a Western relationship with the territory. The methodology based on the Ethno-history and Environmental History approach, with a qualitative and descriptive character. The methodological procedures consist of bibliographical reviews on the thematic and documental research of the Annual Letters written by the Jesuit priests in the seventeenth century, material that was compile by Jaime Cortesão (1969), Hélio Vianna (1970) and Ernesto Maeder (1984). As results, based on theoretical contributions of Environmental History, territoriality and culture, it was possible to verify that the Guarani were based on the cultural logic of ñande reko to live their historicities and territoriality, but from the contacts with the political- colonial project and religious of the Society of Jesus, cultural re-significances were put into practice by both groups. The Guarani based on their way of being searched for economic, cosmological and parental memory; the Jesuits, in turn, imbued with Western knowledge possessed a "materialistic" vision, observing in the territory potential of self-sufficiency and economic production to sustain the missionary project. In order to understand the different visions, it was possible to describe the environments where Jesuit reductions were built, corroborating the hypothesis that the Society of Jesus sought in the territory a greater potential of natural resources, aiming the self-sufficiency and production of surpluses. It was shown that the introduction of the missionary spaces caused environmental impacts felt by Guarani and missionaries, such as the attacks of ratões-do-banhado (Myocastor coypus) and ants (Formicidae), as well as the possible impacts caused by of the introduction of cattle (Bos taurus) into territories of the Tape Province. Based on the analysis of Jesuit events in the Annual Letters, the investigation found that the Society of Jesus needed to "negotiate" the installation of its political-economic and religious project with the Guarani biases and their collectives, such as animals, plants and spirits. This led to a territorial dispute in the field of 9 humans and nature, given that plant and animal species introduced by the Jesuits also needed to "bargain" space with endemic species. It was thus pointed out that the Tape Province during the seventeenth century was the scenario of various environmental and cosmological historicities, permeated by transformations, but also by appropriations among those involved. Keywords: Guarani; Jesuits; Territory; Nature; Culture. 10 LISTA DE TABELAS E FIGURAS Tabela 1 - Tabela referenciando as reduções jesuíticas localizadas na Província do Tape com o ano de fundação.....................................................................................................................25 Figura 1 - Mapa dos Biomas do Rio Grande do Sul demonstrando as reduções jesuíticas da Província do Tape.....................................................................................................................74 Figura 2 - Imagem do Pecari tacaju.........................................................................................79 Figura 3 - Imagem do Tayassu pecari......................................................................................79 Figura 4 - Imagem de uma Araucária (Araucaria angustifolia)...............................................85 Figura 5 - Imagem do pinhão....................................................................................................87 Figura 6 - Imagem da Ilex paraguariensis................................................................................90 Figura 7 - Imagem do formato da folha da Ilex paraguariensis...............................................91 Figura 8 - Imagem do veado-campeiro (Ozotocerus bezoarticus)..........................................101 Figura 9 - Mapa da hidrografia do Rio Grande do Sul, demonstrando a localização das reduções jesuíticas...................................................................................................................110 Figura 10 - Mapa da Hipsometria do Rio Grande do Sul: movimentação do padre Ximenez em territórios do rio Tebiquari................................................................................................117 Figura 11 – Imagem do ratão-do-banhado (Myocastor Coypus)............................................133 11 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior PPGAD - Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento PROSUC - Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior 12 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................14 2 FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA E TEÓRICA...............................................25 2.1 Campo de investigação.....................................................................................................25 2.2 Fontes empíricas e coleta de dados..................................................................................26 2.3 Metodologia.......................................................................................................................30 2.4 Aportes teóricos.................................................................................................................32 2.4.1 História Ambiental.........................................................................................................32 2.4.2 Território........................................................................................................................34 2.4.3 Cultura............................................................................................................................36 3 O “ÑANDE REKO” GUARANI VERSUS A LÓGICA OCIDENTAL DA COMPANHIA DE JESUS......................................................................................................40 3.1 Características ambientais do Estado do Rio Grande do Sul: O ñande reko Guarani e o modo de ocupar os territórios.............................................................................................40 3.2 Uma visão “materialista” da terra: outra lógica de relação com a natureza....................................................................................................................................51 4 CARACTERIZAÇÃO AMBIENTAL DAS REDUÇÕES JESUÍTICAS NA PROVÍNCIA DO TAPE.........................................................................................................73 4.1 O avanço missionário e a implantação das reduções em territórios das Bacias Hidrográficas dos rios Ibicuí e Ygaí.......................................................................................73 4.2 O avanço missionário e a implantação das reduções em territórios das Bacias Hidrográficas dos rios Ygaí e Iequí........................................................................................83 5 A COMPANHIA DE JESUS E A “NEGOCIAÇÃO” DO TERRITÓRIO COM OS COLETIVOS GUARANI.....................................................................................................107 5.1 Uma territorialidade negociada: o ñande reko Guarani versus o modelo das reduções jesuíticas.................................................................................................................................107 13 5.2 “Pragas ambientais”: Uma disputa entre humanos e “não humanos”?.............................................................................................................................125 5.3 A introdução do gado: os possíveis impactos ambientais............................................140 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................150 REFERÊNCIAS....................................................................................................................157 Documentais..........................................................................................................................157 Bibliográficas.........................................................................................................................158 14 1 INTRODUÇÃO A temática indígena tem angariado cada vez mais estudos nas últimas décadas na academia; muito se deve pela necessidade de compreender os direitos adquiridos por estas sociedades a partir da Constituição de 1988 e também é uma forma de compreender a luta destes coletivos pela demarcação de suas terras. A partir disso, diversas pesquisas têm sido realizadas desde a década de 1990 com enfoque no protagonismo destes sujeitos e coletivos indígenas, evidenciando a complexidade cultural das mais de 200 etnias presentes no Brasil contemporâneo. Neste sentido, Manuela Carneiro da Cunha (1992), John Manuel Monteiro (1994; 2001) e Maria Celestino de Almeida (2003; 2010; 2017) têm desafiado os historiadores a trabalhar a história indígena, trazendo-os como sujeitos atuantes na construção do Brasil. Para isso, conforme Almeida (2017), é preciso deixar de tratar os indígenas apenas como vítimas do projeto ibérico, percebendo-os como sujeitos atuantes, construtores de história, pensando até mesmo em uma reconstrução da História do Brasil. O processo de negociação por terras não é uma problemática atual, mas uma consequência de disputas por territórios oriundos dos primeiros contatos entre indígenas e europeus desde o século XVI. No caso dos Guarani, objeto desta pesquisa, as disputas territoriais ocorrem intensamente desde os primeiros contatos com espanhóis e portugueses, seja por meio de escravizações, situações de guerras, formações de cidades ou reduções jesuíticas. A partir disso, temos que a nova história indígena também tem como uma de suas premissas tentar compreender as inquietações/problemas sociais do presente por meio do processo histórico, conforme destacam Vieira et al. (2002, p. 43): “[...] que se busca no passado é algo que pode até ter-se perdido nesse passado, mas que se coloca nesse presente como questão não resolvida”. Segundo Marc Bloch (2001) “passado” e “presente” não são desconexos, possuem sentido duplo, de modo que é impossível compreender o passado sem entender o presente e vice-versa. 15 Compreende-se que os processos atuais do movimento indígena por direitos à terra, saúde, educação e viver conforme sua cultura é resultante de um passado de contatos intensos com os europeus, os quais se utilizaram de diversos métodos para se apropriar das terras das sociedades nativas. Porém, as recentes pesquisas têm demonstrado que apesar das relações desiguais, os indígenas protagonizaram diversas negociações políticas com os colonizadores, compreendendo os eventos a partir de suas próprias lógicas culturais, o que não apaga o genocídio sofrido por estas populações. Indígenas e europeus tinham modos distintos de se relacionar com o outro e principalmente com os elementos da natureza e universo cosmológico, situação que acarretava diferentes compreensões de negociações nos processos de contato. Quer dizer, enquanto a expansão espanhola e portuguesa por territórios da América seguiu a lógica de exploração com o intuito de implantar um modelo de vida semelhante ao vivenciado na Europa, os indígenas relacionaram-se com o elemento europeu de modo simétrico como o faziam com os demais integrantes da natureza, algo que não era bem compreendido pelos não índios. No caso dos Guarani e da Companhia de Jesus, as diferentes percepções da natureza e do que compreendiam como território evidenciam-se ao longo de suas relações nas reduções jesuíticas, o que causou uma série de reclamações dos padres em suas cartas e situações de guerras ou abandono das reduções, por parte dos Guarani. Neste sentido, a presente pesquisa tem como fio condutor compreender a “negociação” territorial entre os coletivos Guarani e Companhia de Jesus, ou seja, a História Ambiental e a disputa entre os Guarani, jesuítas, animais, plantas, espíritos e divindades em territórios da Província do Tape, durante o século XVII. No período em questão, os jesuítas não encontraram apenas distintos grupos étnicos, a exemplo de Kaingang, Charrua, Minuano e Xockleng/Laklanõ, mas também se depararam com distintos ecossistemas, organismos, vegetações e animais, com os quais precisaram negociar o território para formar as reduções jesuíticas. Novos elementos foram introduzidos aos seus cotidianos durante a convivência com os Guarani e vice-versa. Com base nestes aspectos destacamos que há inúmeros trabalhos sobre o impacto e transformações paisagísticas geradas após a chegada dos imigrantes açorianos, alemães e italianos no Rio Grande do Sul; assim como estudos relacionados às ações nocivas causadas por portugueses no Brasil Colonial. Entretanto, poucas pesquisas foram efetuadas sobre a História Ambiental gerada a partir de contatos entre a Companhia de Jesus e os indígenas. 16 É preciso salientar que a presente dissertação não realizou uma História Ambiental dos Guarani ou dos jesuítas, mas sim uma abordagem ambiental da Província do Tape envolvendo estes grupos. Quer dizer, a intenção foi demonstrar como Guarani e jesuítas se relacionavam com o território e de que modo suas relações ao longo do século XVII transformaram os ecossistemas nos quais estavam inseridos, gerando reações da natureza. Tanto os Guarani quanto os jesuítas manejaram recursos, introduziram novos elementos aos territórios que ocuparam, modificando paisagens e ecossistemas, entretanto ambos possuíam modelos distintos de organização e relação com a terra. Os Guarani exerciam a sua territorialidade com base no ñande reko (modo de ser), cujo local para ser ocupado deveria apresentar características simbólicas de relação com a cosmologia, memória e recursos econômicos; onde pudessem reproduzir o seu modo de ser. Tendo em vista que os Guarani, assim como as demais sociedades indígenas, apresentam um universo ontológico que não se desassocia da natureza, no qual animais, plantas, espíritos e divindades fazem parte das relações cotidianas do seu modo de ser. Sobre isto, Viveiros de Castro (2015) destaca a riqueza do universo ontológico das sociedades indígenas da América, pois para estes grupos o universo é formado por uma diversidade de agentes portadores de subjetividades, como os elementos elencados anteriormente. Para o referido autor, o pensamento ameríndio é multinaturalista, na qual há uma diversidade da natureza e uma homogeneidade cultural, percepção contrária ao multiculturalismo das sociedades ocidentais. Na concepção indígena os animais, as plantas, os rios, o clima, os espíritos possuem uma cultura semelhante às suas, ou seja, percebem-se como humanos, organizam-se politicamente, economicamente, socialmente como tais, formando assim uma unidade de espírito, mas diferindo-se a partir da natureza/corpo, o que demonstra que o físico é a particularidade do sujeito (VIVEIROS DE CASTRO, 2015). Por outro lado, os jesuítas, oriundos do continente europeu, apresentam universos ontológicos diferentes, separando cultura e natureza, onde o homem relaciona-se com a natureza de modo assimétrico, ou seja, não os compreendendo como portadores de subjetividades como os Guarani a consideravam. É claro que os padres não desconsideravam a natureza, pelo contrário, sabiam da necessidade de estabelecer reduções jesuíticas em territórios que apresentassem disponibilidades de recursos ambientais para tornar os espaços missionais autossuficientes. Imbuídos de uma visão ocidental que se fundamentava em um conhecimento “utilitarista”, os jesuítas introduziram novas técnicas de cultivo e domesticação 17 de animais que geraram desequilíbrios ambientais, perceptíveis ao longo dos relatos nas cartas ânuas analisadas para a pesquisa. Neste ponto, é valido explicar a utilização do termo “utilitarista” empregado neste trabalho para relacionar a visão dos padres sobre o território. A utilização do termo “utilitarista” não está relacionada a uma relação degradante com a natureza ou mesmo de desrespeito. O que se percebeu ao longo do trabalho é que os padres buscavam potencializar os recursos naturais disponíveis nos territórios escolhidos para fundar as reduções jesuíticas. Fundamentados não apenas nos conhecimentos ocidentais, mas também objetivando alcançar meios possíveis para implantar e subsidiar o projeto missional, isto é, os espaços reducionais com suas casas, igrejas, oficinas, roças, estâncias, entre outros; na tentativa de formar espaços semelhantes às cidades europeias. Neste sentido, ao utilizarmos este termo para descrever como a lógica de territorialidade dos missionários diferia dos Guarani, não significa que os padres também não se fundamentavam em aspectos simbólicos para escolher locais para estabelecer os espaços missionais. Em virtude das diferentes lógicas territoriais, a escolha do local para erguer as reduções, por vezes ocasionou conflitos entre parcialidades Guarani e jesuítas, tendo em vista que tanto um quanto o outro compreendiam a territorialidade com base em suas próprias lógicas culturais. Soma-se a este contexto analisado o fato de que indígenas e jesuítas não protagonizaram a disputa por territórios “sozinhos”, ambos possuíam ao seu lado elementos da natureza, tais como espécies animais e vegetais, assim como com os espíritos e divindades que foram tão atuantes quanto os jesuítas e os Guarani neste contexto, mesmo considerando que os missionários não compreendiam que os objetos, animais e plantas pudessem ser portadores de subjetividade. Exemplifica a situação o caso do gado bovino (Bos taurus) e dos equinos (Equus caballus) introduzidos pelos missionários em territórios do atual Estado do Rio Grande do Sul, animais que se expandiram pelo bioma Pampa e foram responsáveis por produzir diversas transformações ambientais, dividindo e/ou tomando espaço dos organismos endêmicos. A exemplo de espécies endêmicas atuantes nestes processos de contatos destacava-se a temida onça (Panthera oca), os ratões-do-banhado (Myocastor coypus) e as formigas (Formicidae), que em determinadas circunstâncias “invadiram” os espaços missionais, situações que evidenciam verdadeiras “batalhas” ecológicas e culturais na disputa por territórios. 18 No que tange as espécies vegetais, nos ambientes da Província do Tape se faziam presentes a erva-mate (Ilex paraguariensis), a araucária (Araucaria angustifolia), o cedro (Cedrera fissilis), o milho (Zea mays) e a mandioca (Manihot esculenta), espécies que integravam a ontologia Guarani, exercendo significados cosmológicos, cerimoniais e alimentícios. Por outro lado, os padres também inseriram espécies vegetais que propiciavam a reprodução da cultura europeia, tais como o trigo (Triticum), que era preferível ao milho na produção de pães e o algodão utilizado para a confecção de roupas. Como destacado, as referidas espécies atuaram em conjunto com os Guarani e os jesuítas na ocupação territorial, formando assim, em nosso ponto de vista, duas escalas de disputas territoriais: uma ontológica, na qual estão os coletivos Guarani e os jesuítas; e a outra ecológica, na qual as espécies endêmicas e as exóticas disputam espaço entre elas. Para interpretar as historicidades Guarani e o manuseio ambiental em territórios da Província do Tape no século XVII foi necessário recorrer a uma pesquisa interdisciplinar, atuando em conjunto com diversas áreas do conhecimento. Corroborando com a observação de Latour (2005) em sua obra “Jamais fomos modernos”, na qual salienta que por mais que os seres humanos tenham tentado separar os conhecimentos em disciplinas, uma não existe sem a outra. O mundo, a vida, a cultura, a tecnologia, a religião, tudo está imbricado. Os conhecimentos não podem ser separados, pois um depende do outro, o ser humano para existir depende dos outros humanos e também da natureza. Segundo Latour (2005) é preciso desconstruir o modelo cartesiano em evidência que é decorrente em nossa forma de pesquisar. Com isto em vista, a presente pesquisa tem como enfoque principal os coletivos Guarani e os jesuítas, a partir da abordagem ambiental. Sendo assim, o desafio ao que nos propusemos foi de dialogar com outras áreas de conhecimento, tais como: História, Antropologia, Arqueologia e Ecologia, visando equiparar a atuação dos sujeitos humanos e dos agentes da natureza. O intuito da presente pesquisa é ratificar a essencialidade do ambiente na construção cultural dos Guarani e no estabelecimento dos jesuítas e suas reduções em territórios da Província do Tape. A natureza jamais foi passiva durante os processos de contatos entre as sociedades e os ambientes, pelo contrário, foi atuante de modo incisivo, tanto por meio das espécies vegetais nativas e exóticas, quanto a partir dos animais domesticados e selvagens, bactérias, insetos e parasitas. Como problematizado por Worster (2003), o papel da História Ambiental é lembrar ao ser humano que a natureza sempre foi e será uma força ativa na vida 19 do homem, por mais que tenhamos tentado nos “emancipar”, por meio de nossas tecnologias e ciência, continuamos dependentes dela. Pádua (2013), ao abordar os impactos ambientais gerados em territórios brasileiros, alerta que a exploração dos recursos naturais, transformações ecossistêmicas e paisagísticas ocorreram em escalas e contextos diferentes. A constituição socioeconômica do Brasil baseou-se em ciclos econômicos, como pau-brasil, cana-de-açúcar, drogas do sertão, charque, borracha e café, contribuindo para a ocupação disforme do território e também para uma exploração insustentável dos recursos naturais. Em virtude deste modelo econômico, a maior parte dos territórios brasileiros passou a ser ocupada e explorada a datar do século XX. Em decorrência disto, para Pádua (2013) a exploração destrutiva da natureza brasileira é recente apesar de ter suas raízes formadas desde a chegada dos primeiros europeus. Tratando-se do Rio Grande do Sul a situação não foi diferente, pois a ocupação da Companhia de Jesus e o estabelecimento do seu projeto reducional que perdurou até o século XVIII, elucidam a utilização dos recursos naturais que transformaram significativamente o ambiente e fizeram com que as populações indígenas ressignificassem o modo de se relacionarem com esta natureza. Todavia, foi a partir do século XIX, com a chegada de novos personagens, que os referidos territórios sofreram transformações ambientais mais intensas; o que não invisibiliza as historicidades ambientais dos séculos precedentes. Tendo em vista que a introdução de espécies vegetais e animais exóticos em territórios da Província do Tape, somadas às novas metodologias de ocupação e exploração dos recursos naturais inseridas pela Companhia de Jesus contribuíram para gerar transformações ambientais e paisagísticas, mesmo que os impactos ambientais não apareçam de forma explícita na documentação, alguns indícios relatados pelos padres demonstram sua existência e até mesmo frequência. É sob estes sinais que nos debruçamos ao longo da pesquisa, sem deixar de mencionar os limites impostos não apenas pela documentação. O foco espacial desta pesquisa são os territórios da Província do Tape, situadas no atual Estado do Rio Grande do Sul e o temporal fundamenta-se no primeiro ciclo de reduções jesuíticas instalado neste espaço, mais precisamente entre 1626 a 1642. O fio condutor do argumento desenvolvido na pesquisa é a concepção de que tanto os Guarani quanto os jesuítas procuravam se estabelecer em territórios onde pudessem dar continuidade ao seu modo de ser. Os Guarani estabeleciam-se onde o ñande reko pudesse ser reproduzido. Os missionários, por sua vez, objetivavam erguer as reduções em locais onde 20 poderiam aplicar o projeto global para inserir os indígenas no sistema colonial, abrangendo questões religiosas, sociais, políticas e econômicas. Sendo assim, para os padres os territórios selecionados teriam que abranger as características econômicas onde pudessem desenvolver roças maiores, construir reduções aos moldes das cidades europeias, com estradas, praças, igrejas, casas, oficinas e domesticação de animais. É evidente que os jesuítas não conseguiram pôr este projeto em prática de modo efetivo nas primeiras reduções da Província do Tape, no mínimo por dois motivos: a atuação das lideranças espirituais e o ataque dos bandeirantes. Mas somam-se ainda a estes elementos a História Ambiental, tais como as atuações incisivas de animais, diversidades de plantas, de microrganismos e do clima que precisam ser levados em consideração para efetivação do projeto colonial e do modelo de vida europeu que os padres pretenderam introduzir no território. Deste modo, a pesquisa visa demonstrar que é improvável compreender a cultura Guarani sem analisar o ñande reko e o seu envolvimento com o mundo não humano e a natureza, assim como se torna difícil estudar a atuação dos jesuítas sem averiguar os territórios, a caracterização dos ecossistemas, plantas e animais. Com base em tais aspectos entendemos que a presente dissertação “História Ambiental envolvendo indígenas Guarani e Jesuítas nas reduções da Província do Tape, século XVII” justifica-se como uma contribuição aos trabalhos fundamentados na perspectiva da História Ambiental tendo em vista que a história das reduções da Província do Tape ainda não foi estudada nesta perspectiva. Considerando o exposto, a documentação e bibliografias consultadas percebe-se a atuação dos Guarani, da Companhia de Jesus, mas também dos animais, plantas e espíritos nestes processos de contatos. A partir disso, o problema que norteia a pesquisa consiste em identificar e analisar de que forma as historicidades dos coletivos Guarani na Província do Tape foram impactadas e/ou ressignificadas frente ao projeto jesuítico de formação das reduções e com a introdução do modelo de vida europeu, durante o século XVII. A hipótese formulada a partir do problema é de que os Guarani continuaram orquestrando as suas historicidades a partir da lógica do ñande reko em situações de alianças ou conflitos com a Companhia de Jesus. Tendo em vista que a introdução de espécies vegetais e animais, novas tecnologias, acessórios e métodos de cultivo por parte dos padres, foram interpretadas a partir da ótica cultural dos Guarani, as relações com o mundo não humano e com a natureza continuaram fundamentadas na reciprocidade, assim como os territórios 21 continuaram sendo operacionalizados a partir de elementos simbólicos, da memória e da sustentabilidade econômica, caracterizando uma historicidade ambiental. O objetivo geral desta pesquisa visa demonstrar, com base na História Ambiental, que a Província do Tape foi palco de negociações territoriais entre os coletivos Guarani e a Companhia de Jesus, ambos fundamentados em lógicas culturais distintas, os indígenas fundamentados na lógica do ñande reko (modo de ser), ao qual estão integrados os sujeitos não humanos e os agentes da natureza portadores de subjetividades e os jesuítas a partir de uma relação ocidental com o território. Os objetivos específicos são: a) Analisar a lógica da historicidade Guarani a partir do ñande reko (modo de ser); b) Identificar de que forma a Companhia de Jesus estabeleceu relações com a natureza na Província do Tape; c) Caracterizar ambientalmente os territórios nos quais foram erguidas as reduções jesuíticas da Província do Tape na primeira metade do século XVII; d) Compreender como os Guarani e os jesuítas concebiam o território e quais as consequências destas relações; e) Apresentar e analisar a História Ambiental e os desdobramentos gerados a partir da introdução do modelo reducional nos territórios da Província do Tape. A escolha do tema para a realização da presente pesquisa, conforme referido, se justifica pela existência de poucos trabalhos que abordam a História Ambiental das reduções jesuíticas. A natureza e os territórios são mencionados em diversas pesquisas sobre o período, a exemplo do trabalho de Artur Barcelos “Os Jesuítas e a ocupação do espaço platino nos séculos XVII e XVIII” (2000) e na dissertação de Jean Baptista “Jesuítas e Guarani na pastoral do medo: as variáveis do discurso missionário sobre a natureza” (2004), porém ao contrário de uma abordagem ambiental, recorrem a outras abordagens, como a análise dos discursos produzidos sobre a natureza e de como a busca dos territórios por parte dos padres estava relacionada aos conhecimentos produzidos na Europa. Deste modo, a presente pesquisa empenha-se ainda em apresentar não apenas os indígenas como sujeitos atuantes durante os primeiros contatos, mas também demonstrar como os demais elementos da natureza, integrantes do universo ontológico Guarani também se fizeram presentes. 22 Soma-se a isto, o fato desta dissertação ser uma continuidade de pesquisas realizadas ao longo de três anos de atuação como bolsista de iniciação científica nos projetos “Análises e Perspectivas Geoambientais da Arqueologia e seus reflexos na cultura do Vale do Taquari/RS” e “Arqueologia, História Ambiental e Etnohistória do Rio Grande do Sul”, ambos coordenados pela Professora Doutora Neli Galarce Machado, vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento da UNIVATES. Neste período pudemos investigar as atuações e historicidades dos Guarani no século XVII em territórios das bacias hidrográficas dos rios Taquari-Antas e Pardo, resultando na monografia final do curso de História, “Historicidade e Fronteiras Culturais entre Guarani e Jesuítas em Territórios da Província do Tape (1626-1638)”. No decorrer das pesquisas no período de bolsa e principalmente para realização da monografia, foram analisadas documentações, onde nas entrelinhas observaram-se questões territoriais e ambientais, contudo o foco da investigação naquele momento eram as fronteiras culturais e atuações das lideranças Guarani. Desta forma, foram realizadas anotações de tais questões para que posteriormente pudessem ser retomadas. A dissertação está inserida na Linha de Pesquisa Espaço e Problemas Socioambientais do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD), que estuda interações entre homem e natureza, ocupações humanas, organizações produtivas e sociais. A pesquisa torna-se relevante com vista a analisar as relações que os coletivos Guarani e os jesuítas possuíam com os territórios, com o intuito de compreender a História Ambiental e as negociações territoriais entre humanos e não humanos em territórios da Província do Tape. A dissertação está dividida em quatro capítulos com vistas a atender os objetivos propostos. Inicialmente há a introdução, na qual está contemplado um breve panorama dos primeiros contatos entre os Guarani e Companhia de Jesus, problema, hipótese, objetivos e justificativa. No segundo capítulo, “Metodologia e Aportes Teóricos”, foi abordado o campo de investigação, as fontes empíricas, a metodologia e os aportes teóricos. O terceiro capítulo, intitulado “O “ñande reko” guarani versus a lógica ocidental da Companhia de Jesus”, discorreu sobre os possíveis ecossistemas de preferência dos Guarani e como o ñande reko fundamentou esta relação cosmológica com estes elementos da natureza e também com espíritos e divindades. Neste capítulo ainda realizou-se a descrição do projeto reducional da Companhia de Jesus e os novos métodos políticos, sociais, religiosos e 23 econômicos introduzidos no território, gerando ressignifcações culturais e transformações ambientais. O quarto capítulo, “Caracterização ambiental das reduções jesuíticas da Província do Tape”, apresentou a expansão da Companhia de Jesus para os territórios denominados como a Província do Tape, focando na caracterização ambiental dos espaços, alimentos cultivados e caçados pelos Guarani. O capítulo foi dividido em dois itens fundamentados em um marco territorial, abordando as reduções erguidas à margem direita e esquerda do Rio Ygaí (Jacuí). Na caracterização do estabelecimento das reduções foi observado o protagonismo Guarani, sobretudo relacionado às alianças estabelecidas com os jesuítas. O quinto capítulo, “A Companhia de Jesus e a “negociação” do território com os coletivos Guarani”, foi dividido em três subcapítulos. O primeiro aborda os conflitos territoriais ocorridos entre Guarani e jesuítas devido às suas diferentes territorialidades, evidenciando que em determinadas situações as parcialidades Guarani consideraram apropriado transferirem-se de seus territórios para o local escolhido pelos padres, tendo em vista a continuidade das alianças. Porém, houve momentos em que o estabelecimento ou continuidade destas alianças não agradava os Guarani a ponto de concordarem em deixar os territórios que abrangiam as características do ñande reko, gerando conflitos. No segundo subtítulo foi abordado como as negociações/disputas territoriais não ocorreram apenas entre os Guarani e os jesuítas, mas também entre os coletivos indígenas, seja nos universos cosmológico ou ambiental, visto que a introdução do método reducional causou transformações ambientais que afetaram a todos os organismos presentes no território. Já no último item deste capítulo, foram demonstrados quais os possíveis impactos ou transformações ambientais geradas a partir da introdução do gado (Bos taurus). Por fim, foram apresentadas as considerações finais e referências. No que se refere à questão da “negociação” entre os coletivos Guarani e a Companhia de Jesus, nos fundamentamos na ideia de Diogo de Carvalho Cabral que descreve na obra “Na presença da floresta: Mata Atlântica e história colonial” (2014a) como os portugueses precisaram negociar os avanços sobre os territórios brasileiros com indígenas, mas também com a própria natureza. A partir disso, compreendemos que ao longo dos contatos e estabelecimentos de alianças, os Guarani e os jesuítas buscavam alcançar vantagens. Sendo assim, tanto as parcialidades indígenas quanto os padres precisavam oferecer algo interessante para o outro visando legitimar a vivência nos espaços missionais 24 e/ou necessidade de transferência para outros territórios. Neste contexto, quando afirmamos que os jesuítas precisaram “negociar” a implantação das reduções jesuíticas não apenas com as parcialidades indígenas, mas também com a natureza, compreendemos que a escolha de um local onde o clima não fosse de difícil adaptação, com disponibilidade de recursos naturais e possibilidade de manejar estes ecossistemas para a implantação do modelo ocidental de organização do espaço, era essencial para a continuidade de alianças com os Guarani. Comprova isto o fato de que em momentos de adversidades enfrentadas nos espaços missionais algumas parcialidades as abandonavam. Esta “negociação” de modo algum foi simétrica entre ambos, pois as lógicas culturais são distintas, portanto os benefícios esperados destas relações também foram interpretados a partir da lógica de cada um. 25 2 FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA E TEÓRICA Neste capítulo serão apresentados o campo de investigação definido para a pesquisa e as fontes utilizadas para a realização da presente pesquisa, assim como a metodologia utilizada na análise da documentação. Por fim, apresentaremos o embasamento teórico sobre História Ambiental, Território e Cultura, os eixos que fundamentaram a pesquisa realizada. 2. 1 Campo de Investigação O campo de investigação da pesquisa é a Província Missionária do Tape situada em territórios que atualmente abrangem o Estado do Rio Grande do Sul. O Tape limitava-se ao Norte e Leste com a Província do Ibiaçá, seguindo o curso do rio Ygaí (Jacuí) até a Lagoa dos Patos. Ao Sul e Oeste limitava-se com a Província do Uruguay através da Serra Geral até as origens do rio Ygaí (PORTO, 1954). Ribeiro (2017) descreve que a Província do Tape somaria cerca de 150.000 Km², configurada por rios, chácaras, matas, estâncias e ervais. A partir do referido campo de investigação analisamos onze reduções jesuíticas fundadas neste espaço: Tabela 1 – Tabela referenciando as reduções jesuíticas localizadas na Província do Tape com o ano de fundação. Nome da redução Ano da fundação Nuestra Señora de la Candelária 16261 San Thome 1632 San Miguel 1632 San Joseph 1632 Nuestra Señora de la Natividad 1633 1 Destruída no mesmo ano de sua fundação por parcialidades Guarani contrárias à presença dos padres em seus territórios. No ano de 1628 esta é fundada novamente na Província do Uruguai (BECKER, 1992). 26 San Cosme y Damián 1632 Santa Teresa 1632 Santa Ana 1633 San Joaquín 1633 Jesus Maria 1633 San Cristóbal 1634 Fonte: Elaborado pelo autor. A escolha da delimitação espacial de pesquisa justifica-se porque a presente dissertação é uma continuidade da atuação como bolsista de iniciação científica no projeto intitulado “Arqueologia, Etnohistória e História Ambiental no Rio Grande do Sul”, no qual foram analisadas as cinco2 reduções jesuíticas que se localizavam próximas aos territórios do rio Tebiquari (Taqurai). Para a realização da presente pesquisa optou-se por ampliar o escopo de análise, elegendo a jurisdição político-colonial da Província do Tape como delimitação espacial, a qual abrange as onze reduções citadas. Os grupos estudados para o trabalho são os coletivos Guarani que fizeram ou não parte das reduções jesuíticas no século XVII e os jesuítas que atuaram nestes territórios. 2.2 Fontes empíricas e coleta de dados O aporte documental utilizado para a pesquisa consiste de cartas ânuas que abordam as primeiras reduções jesuíticas instaladas na Província do Tape durante o século XVII, período específico de 1626 a 1642. A documentação referente ao período em questão é escassa, em virtude de sua curta duração, visto que durante os anos de 1635 e 1636 as reduções foram atacadas por bandeirantes paulistas que destruíram diversos documentos, a exemplo de registros de batismos, de casamentos e de mortos. Sendo assim, os documentos utilizados estão fundamentados em compilações realizadas por padres e outros pesquisadores, o que permite a realização da pesquisa. Os referidos documentos e algumas referências bibliográficas foram coletados no Instituto Anchietano de Pesquisa, vinculado à Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, no Centro de Pesquisas Históricas da PUCRS e foram utilizados os Manuscritos da Coleção de Angelis publicados por Jaime Cortesão (1969) e Hélio Vianna (1970), que estão disponíveis no site da Biblioteca Nacional. Vale salientar que as cartas ânuas são correspondências utilizadas por missionários da Companhia de Jesus para comunicar-se com os seus superiores em Roma, nas Províncias de Buenos Aires e Assunção, principalmente com o Padre Geral. A correspondência abordava 2 Santa Teresa, San Joaquín, San Cristóbal, Santa Ana e Jesus Maria. 27 diversos temas referentes às atividades e avanços da Companhia de Jesus, tais como a formação dos Colégios, missões campestres, além de temas relacionados à evangelização das comunidades indígenas (MAEDER, 1984). Nas cartas os padres relatavam os problemas enfrentados nas reduções, tais como a falta de estrutura, os conflitos com os indígenas, sejam grupos inimigos que não integravam as reduções ou os reduzidos que “desobedeciam” aos ensinamentos cristãos. Grosso modo, estas cartas eram relatórios anuais. Também é possível encontrar descrições referentes às questões ambientais que dificultavam a convivência nos espaços missionais, como fome, ataque de “animais e temporais; a exemplo dos aspectos culturais das sociedades indígenas que entraram em contato com os padres. É evidente que a documentação analisada apresenta limites e possibilidades no que tangencia os nossos questionamentos, visto que os missionários ao escrever as cartas descrevem os indígenas como selvagens e com uma cultura inferior, todavia os seus relatos apresentam diversos indícios do que se denomina como o ñande reko Guarani, lógica que fundamenta esta pesquisa. Para a realização da pesquisa utilizamos os Manuscritos da Coleção de Angelis, publicados pelo historiador e paleógrafo português Jaime Cortesão e Hélio Vianna, cuja formação é na área do Direito. Nos “Manuscritos da Coleção de Angelis Jesuítas e Bandeirantes no Tape (1615-1641)” de 1969, Jaime Cortesão reúne cartas ânuas que tratam da expansão da Companhia de Jesus e dos ataques dos bandeirantes em direção à Província do Tape. Esta compilação constitui-se como base desta pesquisa, pois aborda especificamente os territórios e as reduções jesuíticas as quais nos propomos a pesquisar para o presente trabalho. No documento intitulado “Carta Ânua das Missões do Paraná e do Uruguai, relativa ao ano de 1633, pelo padre Pedro Romero” referente aos anos de 1633-1634, são encontradas descrições sobre a formação das reduções próximas aos rios Paraná e Uruguai, assim como sobre os espaços missionais fundados na Província do Tape, próximos aos rios Jacuí, Ibicuí e Pardo. Com base nos relatos realizados pelos jesuítas nas cartas foi possível reconstituir o ambiente no qual estavam inseridas estas reduções durante a primeira metade do século XVII. Além disso, a referida documentação apresenta aspectos da cultura Guarani que são possíveis de ser analisados utilizando-se da Etno-história. Da referida compilação utilizamos ainda o documento “Carta do padre Franciso Taño para o superior do Tape, dando-lhe conta do estado das respectivas reduções” de 1635-1636, no qual são descritas incursões dos missionários em territórios do rio Tebiquari, local que a Companhia de Jesus pretendia avançar com a estrutura missional. O relato é importante, pois 28 nos auxilia na análise de características ambientais que os jesuítas buscavam nos territórios para fundar as reduções, assim como nos subsidia na análise da territorialidade Guarani. Também é neste documento que encontramos referenciado o evento envolvendo lideranças espirituais e os ratões em relação à redução de Jesus Maria e suas roças, situação interpretada a partir de aportes da cultura e da História Ambiental, os quais nos subsidiam para compreender as relações simétricas entre humanos e não humanos. E, por fim, o mesmo evento possibilita a compreensão de que tais lideranças procuravam a continuidade prescritiva do ñande reko Guarani, por isso, declaram guerra aos padres e indígenas cristãos. Os documentos “Carta do provincial padre Diogo de Boroa ao Rei dando-lhe conta da invasão do Tape pela bandeira de Antônio Raposo Tavares e pedindo amparo para os índios e castigo para os bandeirantes” de 1637-1638 e “Relação do estado em que se encontravam as reduções do Paraná e Uruguai” de 1640 abordam os ataques dos bandeirantes às reduções da Província do Tape, os quais fornecem dados para a análise da territorialidade Guarani, na medida em que estes em determinados momentos negaram-se a deixar seus territórios, como proposto pelos jesuítas, optando por lutar contra os paulistas e mesmo quando aceitaram transferirem-se com os padres, dispersavam-se pelo caminho. Também fazemos uso dos manuscritos organizados por Hélio Vianna, intitulados “Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai (1611-1758)” publicados em 1970, os quais também subsidiaram a pesquisa no sentido de encontrar indícios sobre questões ambientais. No documento intitulado “Cópia de títulos de terras do Uruguai de 1698” encontramos referências sobre a espécie de árvores utilizadas para a construção das reduções de San Thomé e San Francisco Xavier, contribuindo não apenas para a descrição do ambiente onde estavam situadas a duas reduções, como também corrobora com a hipótese de que a escolha do local para fundá-las considerava a disponibilidade de recursos naturais. Ainda nos manuscritos organizados por Hélio Vianna (1970) analisamos o documento intitulado “Carta Ânua da redução de Santa Maria do Iguaçu de 1627”, no qual foi observado o ataque de “ratões” às roças da redução de Santa Maria do Iguaçu, gerando o abandono das mesmas por parte das parcialidades Guarani que a frequentavam. Na referida compilação também se fez uso do documento “Cartas Ânuas das reduções do Paraná e Uruguai de 1634. Santos Mártires de Caro” no qual é descrito o trabalho dos indígenas para cortar árvores e transportá-las ao local escolhido para fundar a redução de San Nicolás del Piratini. É narrada a utilização de juntas de bois e rios como meio de transporte para os troncos até a referida redução; e o trabalho das mulheres Guarani para 29 confeccionar telhas para as casas e Igreja. Também foram utilizadas as cartas organizadas pelo historiador Ernesto J. Maeder em “Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay, 1632- 1634” de 1984 e “Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay, 1637-1639” (1984), com o mesmo intuito de descrever a formação das reduções jesuíticas da Província do Tape. Para compreensão do projeto jesuítico e a formação das reduções jesuíticas empregamos ainda “Conquista Espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape” ([1639] 1985), do padre Antônio Ruiz de Montoya, obra na qual Montoya descreve as características culturais dos Guarani, como organização política, econômica e social, sinalizando algumas características do ñande reko. Montoya, ao apresentar aspectos sobre o modo de subsistência Guarani como cultivo, coleta ou caça, fornece indícios da variedade de recursos naturais que esta sociedade cultivava, a exemplo da variedade de abelhas domesticadas, ofertando uma ampla diversidade de mel, mandioca (Manihot esculenta), erva-mate (Ilex paraguariensis), frutas, fungos, entre outros. Além destas questões, Montoya expôs a atuação dos padres e a formação das reduções jesuíticas em territórios das Províncias do Paraguay, Guayrá, Uruguay e Tape, contribuindo para a reconstrução do ambiente onde os espaços missionais foram inseridos. Também analisamos a obra do padre Antônio Sepp “Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos” (1951), na qual o religioso aborda os seus trabalhos nas reduções, principalmente sua atuação nas reduções de San Miguel e São João Baptista em territórios do atual Rio Grande do Sul, no final do século XVII e início do século XVIII. A obra subsidiou a presente pesquisa porque forneceu indícios referentes à territorialidade Guarani, na medida em que Sepp expôs que os Guarani não eram favoráveis a transferirem-se de seus territórios. Tal aspecto contribuiu para a abordagem da territorialidade Guarani e a conexão com a terra de seus antepassados. Nas descrições de Sepp também foram encontrados aspectos da cultura Guarani e sobre a estrutura missional, como roças, domesticação de animais, oficinas, entre outros. A partir disso, o referido padre forneceu evidências do impacto ambiental gerado pelo projeto reducional, por exemplo, quando expôs que uma das justificativas para a transferência de parte da população de San Miguel para um novo espaço devia-se ao desgaste do solo. Estas são as documentações que fundamentam a pesquisa, as quais forneceram dados referentes aos recursos naturais disponíveis, os impactos ambientais gerados a partir da introdução do modelo reducional e claro, demonstrando aspectos da cultura Guarani e de sua territorialidade. Para responder a problemáticas e aos objetivos propostos para a pesquisa recorreu-se a três etapas: a primeira consistiu em realizar o levantamento documental e da 30 bibliografia consultada visando subsidiar a compreensão do que seria o ñande reko Guarani e o projeto de evangelização da Companhia de Jesus. Contribuiu para identificar as distinções entre o modo de ser Guarani e o de ser jesuíta, bem como o comparativo das diferentes metodologias de organização espacial e de relacionarem-se com os recursos naturais. A partir disso, nos propomos a reconstituir o ambiente no qual as reduções da Província do Tape foram inseridas. A segunda etapa caracterizou-se pela busca na documentação de sinais que demonstrassem que as territorialidades dos Guarani e dos jesuítas além de serem distintas, geraram conflitos e negociações entre os envolvidos. E, por fim, a terceira etapa resumiu-se à procura de indícios que demonstrassem as transformações e/ou impactos ambientais gerados a partir da introdução do modelo reducional no território em estudo. 2.3 Metodologia A partir da problemática e dos objetivos a metodologia utilizada para a realização da pesquisa teve como base a análise de natureza qualitativa e descritiva. Os procedimentos técnicos foram observados a partir de pesquisa bibliográfica e documental. Conforme Pimentel (2001), a pesquisa documental consiste em analisar o documento com base nos questionamentos propostos, interpretando os dados extraídos. Para a análise crítica dos documentos foi necessário que referências bibliográficas e outras documentações subsidiassem os dados coletados. Desta forma a compreensão do contexto em que tais documentos foram produzidos e a atuação dos seus atores foi fundamental. A pesquisa bibliográfica consiste na revisão do que já foi publicado sobre o tema escolhido, resumindo as principais ideias dos autores, criticando quando for necessário e demonstrando quais e porque estes trabalhos fundamentam a pesquisa (GERHARDT; SILVEIRA, 2009). A partir do que já foi indicado a natureza da pesquisa é qualitativa, tendo em vista que a proposta de análise pressupõe a compreensão dos significados simbólicos das ações dos sujeitos que vivenciaram o contexto analisado (GODOY, 1995). A abordagem qualitativa é preponderante para a pesquisa, porque nossos objetivos questionam quais seriam as características ideais que formavam o território “ideal” para os Guarani e para os jesuítas; e quais os impactos gerados a partir da introdução do projeto jesuítico no ambiente. Tendo em vista o objetivo geral, o tipo de pesquisa proposto no presente projeto é de natureza descritiva, com base na investigação de dados em documentos e textos bibliográficos (STRAUSS; CORBIN, 2008). A pesquisa descritiva configura-se por apresentar as características culturais dos grupos pesquisados para entender os fatos ocorridos. Por fim, destacou-se que a 31 realização desta pesquisa se fundamentou em duas abordagens, a Etno-história e a História Ambiental. Com o intuito de tratar os indígenas como protagonistas nos eventos analisados, a Etno-história em conjunto com a História Ambiental apresentaram-se como abordagens empregadas para a realização da pesquisa. Sendo assim, com base na Etno-história buscou-se explorar a documentação com vistas a compreender os eventos ocorridos - mesmo que com limites – tendo como base a perspectiva Guarani. Para isto, a interdisciplinaridade foi fundamental, congregando aportes da Antropologia, História, Arqueologia e Biologia (CAVALCANTE, 2011). Sobre a relação interdisciplinar Trigger (1986) compreende que a Etno-história contribui para repensar visões preconceituosas sobre as sociedades indígenas descritas nas documentações coloniais, pois ao confrontar os discursos dos europeus com pesquisas arqueológicas e antropológicas desconstrói-se a ideia do “selvagem”. Ainda sobre isto, Laroque et. al (2015) destaca que a abordagem da Etno-história permite que o pesquisador relativize a história contada pelo colonizador que tratava as sociedades indígenas como estáticas, simples e sem cultura. Neste sentido, ao dialogarmos com outras áreas de conhecimento foi possível demonstrar a riqueza cultural, material e de conhecimento das sociedades indígenas. Relacionando pesquisas Históricas, Antropológicas e Arqueológicas analisamos as historicidades vivenciadas nos contatos entre os Guarani e os jesuítas a partir do século XVI. Sendo assim, o diálogo entre estudos da História e da Arqueologia contribuem na reconstituição do espaço analisado, possibilitando perceber a atuação dos coletivos indígenas e não indígenas em questão. O diálogo com as demais áreas de conhecimento subsidiou a análise documental, quer dizer, a pesquisa não se caracteriza como uma investigação etnográfica, arqueológica ou ecológica. A Etno-história nos fornece a possibilidade de revisitar estudos das referidas áreas para interpretar a documentação analisada, ou seja, na presente pesquisa fazemos uso de conceitos, interpretações e dados referenciados por arqueólogos, antropólogos e ecólogos. A Antropologia nos auxilia no estudo das lógicas culturais dos atores sociais presentes neste contexto, com enfoque nos Guarani e nos Jesuítas. Ao compreender os significados culturais das ações realizadas por estes grupos é possível analisar as Cartas Ânuas de modo crítico, ou seja, desconstruindo o olhar “colonizador” dos missionários. Com base em pesquisas antropológicas interpretamos as ações dos Guarani a partir de sua estrutura cultural, o ñande reko. Considerando a cosmologia indígena podemos interpretar situações de 32 conflitos entre os Guarani e os missionários, como o caso do conflito das lideranças espirituais, a redução de Jesus Maria. Autores que trabalham a cosmologia indígena também subsidiam a compreensão da ontologia Guarani, permitindo que observemos as relações simétricas dos Guarani com o seu coletivo, ou seja, a constituição de humanos e demais agentes portadores de subjetividade no universo do ñande reko. A Arqueologia, por sua vez, nos subsidia com dados que possibilitam compreensão de objetos, animais e plantas que integravam os coletivos Guarani. As pesquisas arqueológicas em sítios missionais e Guarani pré-contato também indicam possíveis diferenças de estrutura organizacional do espaço. Já a Ecologia foi essencial para a caracterização dos ecossistemas nos quais as reduções jesuíticas analisadas foram inseridas, contribuindo para a construção de uma História Ambiental das missões jesuíticas e historicidades dos coletivos Guarani. Com base em pesquisas ecológicas pudemos construir hipóteses para interpretar situações de desequilíbrios ambientais relatadas pelos jesuítas nas Cartas Ânuas: ataques de animais as roças missionais, infestação de insetos no solo degradado e possibilidade de impactos ambientais causados pela introdução do gado em territórios da Província do Tape. Neste ínterim, a abordagem da História Ambiental corrobora para a análise das cartas ânuas, pois permite a abertura de novas perspectivas sobre a temática indígena e das reduções jesuíticas, sobretudo, em perceber as relações e impactos ambientais gerados a partir dos novos modelos de organizações políticas, econômicas e sociais. Além disso, a História Ambiental possibilita que a natureza ocupe o campo central ou pelo menos de igualdade com os seres humanos, ou seja, dividindo o “palco de atuação”. Com base nisto, confirmou-se que outros atores se fizeram presentes e foram atuantes nestes espaços, tais como elementos da natureza que por muito tempo foram relegados ao ostracismo na historiografia tradicional. Ilustra a situação os casos dos ratões-do-banhado (Myocastor coypus), das formigas (Formicidae), do gado (Bos taurus), da araucária (Araucaria angustifolia), da erva-mate (Ilex paraguariensis), do milho (Zea mays), dos rios, do clima, entre outros. 2.4 Aportes teóricos Apresentam-se a seguir os aportes teóricos da História Ambiental, do Território e da Cultura que foram utilizados para o embasamento da pesquisa. 2.4.1 História Ambiental 33 Como bem definiu Donald Worster em seu artigo “Para fazer História Ambiental” (1991), a historiografia por muito tempo se debruçou sobre personagens históricos, Estados, política e economia do passado, mas com o passar do tempo deu-se conta que os atores políticos não foram os únicos a operar. Grupos sociais menos favorecidos e categorias como etnias, gêneros e castas também atuaram nestes contextos; por isso, a historiografia alargou seu escopo de análise com o intuito de visibilizar estes sujeitos, ou seja, a história passou a ser escrita de baixo para cima. Seguindo nesta lógica, os historiadores ambientais compreenderam a necessidade de ater-se a esta verticalidade nas análises e fontes para encontrar a terra, interpretando-a como um agente significativo na história (WORSTER, 1991). De outro lado, a História Ambiental também se volta para a história do não humano no sentido de que o homem não está separado da natureza; por isso, as sociedades no decorrer do processo histórico estiveram diretamente relacionadas com a história do meio ambiente, impactando-o, mas também sendo impactadas por ele (WORSTER, 1991). A partir disso, a História Ambiental nos permite encontrar sinais de uma relação de mão dupla entre humanos e não humanos. O objeto em estudo possibilita problematizar porque os ratões atacaram as roças de Jesus Maria. Porque as formigas infestaram o solo da redução de San Miguel. Como o gado bovino (Bos taurus), espécie exótica, impactou o solo. Estas são algumas das questões evidenciadas a partir da leitura e análise das cartas ânuas. Portanto, na problematização destas questões foi necessário alargar o campo de investigação da História, tornando-se necessária a relação com as demais ciências, como Biologia, Química e Geografia, claro que dentro dos limites e possibilidades, visto que o pesquisador deste trabalho não possui formação nas referidas áreas, motivo pelo qual nem sempre será possível uma análise em profundidade. É a partir da visão interdisciplinar que a perspectiva ambiental permite que a historiografia compreenda uma relação simétrica entre a vida humana e a natureza. José Augusto Pádua, no artigo intitulado “Bases teóricas da História Ambiental” (2010), demonstra que o surgimento da História Ambiental no século XX está relacionado com questões sociológicas e epistemológicas. A primeira cunhada na década de 1970, período no qual o mundo passou a discutir os problemas ambientais gerados em escala global; a segunda, fundamentada em mudanças importantes do conhecimento, sobretudo em dois aspectos: 1º) O ser humano impacta no ambiente, podendo gerar degradação; 2º) A natureza vista como uma história que está em constante transformação ao longo do tempo. Tais mudanças epistemológicas subsidiaram as análises do presente estudo, na medida em que buscou-se ao longo dos capítulos escrever a História Ambiental que envolveu as reduções jesuíticas e 34 problematizar como o modelo reducional introduzido em territórios da Província do Tape gerou impactos ambientais que são possíveis de ser percebidos a partir das próprias ações da natureza, conforme foi possível perceber nos indícios registrados na documentação. Na busca por demonstrar como os Guarani e os jesuítas não somente interagiram com outras etnias indígenas e com colonizadores europeus, buscou-se elevar a natureza ao nível de protagonista em conjunto com os demais atores não humanos. Como descreve Diogo de Carvalho Cabral na obra intitulada “Na presença da floresta: Mata Atlântica e história colonial” (2014a), a História foi construída a partir das relações entre elementos humanos e não humanos, como animais, plantas, microrganismos e ecossistemas, portanto é preciso reescrever esta história demonstrando a importância destes elementos. Ao longo dos capítulos observou-se não apenas os impactos ambientais gerados a partir do novo modelo de ocupação e exploração econômica dos territórios da Província do Tape, mas também teve como objetivo demonstrar que a escolha dos territórios de ocupação, tanto para os Guarani quanto para os jesuítas, foi fundamentada na busca por recursos que os ecossistemas poderiam oferecer. Os Guarani possuíam preferência por áreas com presença de floresta semidecidual, próximas aos rios e arroios, áreas com menos altitude, climas mais amenos, locais onde pudessem reproduzir o seu ñande reko (modo de ser). Já os padres, moldados em um sistema colonial, buscavam nos territórios questões mais práticas e com possibilidades econômicas, visando a autossuficiência das reduções e comercialização de produtos. Por isso, observaram nos territórios a presença de recursos que pudessem ser explorados, a exemplo de terra fértil, presença de rios, mata para empregar nas construções dos espaços missionais, caminhos acessíveis, áreas potenciais para domesticar animais como o gado (Bos taurus) e cultivar roças de maior porte para sustentar os indígenas reduzidos. Quer dizer, a natureza esteve presente em todos os aspectos do cotidiano vivenciado nas reduções da Província Jesuítica do Tape. 2.4.2 Território Ao longo da presente pesquisa também foi preciso observar como a categoria território foi percebida pelos Guarani e pelos padres jesuítas, já que apresentava concepções distintas para cada um dos grupos. Anthony Seeger e Eduardo Viveiros de Castro no artigo “Terras e territórios indígenas no Brasil” (1979) evidenciam que a concepção de território para as sociedades indígenas possui dimensões sócio-político-cosmológicas, atingindo uma amplitude maior do que a concepção de terra das sociedades não índias que geralmente é 35 baseada na ideia de produção. Nesta lógica, não é qualquer terra que pode ser ocupada pelas sociedades indígenas, pois elas não têm como objetivo ocupar o local para fins econômico e de excedentes, o que buscam é a conexão com a memória e cosmologia (SEEGER, VIVEIROS DE CASTRO, 1979). A partir disso, foi problematizado que os locais considerados apropriados pelos jesuítas para instalar as reduções jesuíticas, em determinadas situações, não era interessante para algumas parcialidades Guarani, pois os locais onde estavam instalados atendiam suficientemente suas dimensões políticas, econômicas e cosmológicas, portanto não era necessário transferirem-se de lugares. Soma-se a isto o fato de não existir para as sociedades indígenas a concepção de propriedade privada ou fronteiras nacionais, como bem relacionam Seeger e Viveiros de Castro (1979). Tomando esta prerrogativa para os casos em análise observou-se que recursos, mesmo que distante das áreas das reduções, não significava impedimentos para a parcialidade acessá-lo, como é o caso da erva-mate (Ilex paraguariensis) e da araucária (Araucaria angustifolia) situadas em locais distantes da primeira instalação da redução de Santa Teresa. Paul Little no trabalho “Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade” (2002) define que os povos tradicionais significam o território a partir de saberes socioambientais, políticos, econômicos e cosmológicos criados pelos coletivos e conforme o contexto vivenciado, ou seja, a sua manutenção e identificação com o território pode ser ressignificada. Neste sentido, foi observada a existência de conflitos e desentendimentos entre Guarani e jesuítas acerca dos territórios. Situações eram resolvidas a partir de negociações, nas quais determinadas parcialidades optaram por dar continuidade às alianças com os padres, exemplificando casos em que os grupos aceitaram se transferir de um território para outro. Deste modo, houve ressignificações culturais no que se refere a estas transferências interpretando-as a partir da lógica do ñande reko, demonstrando que tal categoria Guarani não é estática e que se transforma ao longo da história. Conforme Rogério Haesbaert no artigo intitulado “Território e Multiterritorialidade: um debate” (2007) ao trabalhar como determinado território é construído e identificado, devemos nos ater de que modo os grupos o constroem, pois um mesmo espaço possui distintas territorialidades, cada coletivo ou indivíduo o identifica conforme sua lógica. Neste sentido, conforme destacado anteriormente, os jesuítas baseados em seus conhecimentos ocidentais observavam no território a existência de recursos naturais que pudessem ser explorados para autossuficiência das reduções, assim como a possibilidade de exploração econômica, seja a partir da domesticação de animais ou de espécies vegetais. Quer dizer, 36 visando o sucesso religioso e colonial do projeto missional os padres possuíam uma visão mais “utilitarista” da terra, algo que na concepção ocidental perdura até a atualidade, o que não remete a falta de simbolismos territoriais. Mas, segue a lógica de separação entre cultura e natureza, na qual não consideram que a terra e seus elementos são portadores de subjetividades, como os índios o fazem. Já os Guarani, embora procurassem lugares que oferecessem recursos naturais, buscavam principalmente territórios que abrangessem questões funcionais e simbólicas, nos quais analisavam as conexões com as divindades ancestrais e seus parentes. Sendo assim, para os Guarani o território além de oferecer os recursos naturais que seriam utilizados, teria que oferecer condições para a realização de seus cerimoniais, cultivo de espécies conforme os ensinamentos sagrados, oferecer condições para comunicarem-se com os animais, plantas e espíritos; e preservar a memória dos seus antepassados. Na análise sobre o território o autor em questão salienta que enquanto o território possui esta configuração simbólica e funcional, a territorialidade se manifesta em três bases: política, econômica e cultural, isto é, como as pessoas se organizam no território, se relacionam com ele e quais as estratégias para controle do espaço. O simbólico está relacionado aos significados dos lugares dentro do território, já o funcional refere-se aos recursos naturais que a terra pode oferecer (HAESBAERT, 2007). A territorialidade Guarani está expressa culturalmente através das organizações dos Guará, Tekohá e Teii, reprodução da memória de seus antepassados, assim como relações com a cosmologia a partir da presença de espíritos e divindades. Por outro lado, para os jesuítas, a territorialidade era manifestada a partir da construção dos espaços missionais, desde igrejas, casas, oficinas, roças e estâncias, ou seja, estes elementos reproduzem o avanço do cristianismo e também da Coroa Espanhola. Maria Inês Ladeira no trabalho “Espaço Geográfico Mbyá-Guarani: significado, constituição e uso” (2008) aponta que o mundo dos Mbyá-Guarani se constituiu a partir do território. A manutenção do modo de ser Guarani depende da existência do território, com vista à reprodução das organizações político-sociais, econômicas e cosmológicas do grupo. Esta definição corrobora com o que se apresentou ao longo dos capítulos da presente pesquisa; isto é, que os Guarani visavam nos territórios a manutenção do seu ñande reko e nem sempre os locais escolhidos pelos padres apresentavam estas condições, o que gerava conflitos. 2.4.3 Cultura 37 O conceito de cultura trabalhado por Clifford Geertz em “Interpretação das Culturas” (1978) é essencialmente semiótico, ou seja, cada sociedade significa suas ações e eventos vivenciados com base em sua lógica cultural. Aproximando o conceito de cultura proposto por Geertz (1978) com a proposta de análise dos eventos vivenciados por jesuítas e Guarani, foi preciso entender o ñande reko Guarani para perceber as diferenças de historicidades vivenciadas. A partir disso, também foi possível compreender como cada evento foi percebido por jesuítas, parcialidades Guarani que integraram ou não as reduções jesuíticas. Tratando-se da concepção de cultura, o trabalho de Marshall Sahlins “Cultura na prática” (2004) define que a cultura de um povo é formada por suas relações com grupos simbolicamente construídos, sejam eles humanos, natureza ou cosmologia e fundamentada nas estruturas sociais, tecnologias, linguagem, ideias, economia, política, religião, assim por diante. Sendo assim, as ações, organizações e relações são orquestradas por significados simbólicos para cada cultura. Relacionando a definição de cultura de Sahlins (2004) com o ñande reko Guarani foi possível interpretar diversas situações vivenciadas e descritas pelos padres na documentação analisada. Por exemplo, os Guarani realizavam os seus cultivos em meio à mata, sem exercer a limpeza total do terreno como empregado pelos jesuítas porque este foi o ensinamento transmitido por suas divindades; além disso, acreditam que a presença de espíritos bons nas proximidades de seus Tekohá é determinante para o sucesso da permanência da comunidade no local escolhido para fundar a aldeia. Acreditam ainda que podem se comunicar com animais e plantas, aspecto determinante para manter uma relação de respeito com os elementos não humanos possuidores de subjetividades. Sendo assim, a escolha de determinadas espécies vegetais e animais para o uso cotidiano está relacionada com o universo ontológico, a exemplo do cedro, que para os Guarani é uma árvore sagrada. Evitando a prolixidade, percebe-se que a cultura Guarani regida pela nomenclatura ñande reko (modo de ser) estabelece os significados das relações dos indígenas com os coletivos e determina os significados de suas relações. O segundo trabalho de Sahlins que subsidiou as análises da presente dissertação foi “Ilhas de História” (2011), no qual demonstra a partir do estudo da sociedade havaiana que cada coletivo ordena a cultura conforme lógicas internas, portanto a cultura poderá ser orquestrada de forma distinta para cada uma. No caso da presente pesquisa destacamos que os Guarani se fundamentam na lógica do ñande reko (modo de ser), enquanto os jesuítas possuíam a sua lógica cultural fundamentada nas organizações políticas, econômicas, sociais e religiosas ocidental-cristã. Sahlins (2011) postula ainda que a cultura é reproduzida e 38 ressignificada historicamente a partir da ação dos grupos e dos sujeitos envolvidos no processo de contato. Neste sentido, categorias como performatividade e prescritividade, as quais estruturam e significam as historicidades, podem ser operacionalizadas de forma individual ou em conjunto em uma sociedade. Na categoria prescritiva a reprodução da cultura é fundamentada na repetição, mesmo quando ocorre a mudança, isto é, a efetivação da cultura ocorre a partir da interpretação de que nada é novo; os acontecimentos são valorizados ou cobrados pelo grupo para que siga a ordem prescrita. Chamamos a atenção para o fato de que nas categorias prescritivas ocorrem ressignificações, pois as sociedades estão em constante contato e a cultura é dinâmica, no entanto, a reprodução prescritiva incorpora as relações, objetos ou sujeitos externos significando-os a partir da lógica interna preexistente. É neste sentido que “[...] a cultura é historicamente reproduzida na ação” (SAHLINS, 2011, p. 7). Já na categoria performativa a cultura é alterada historicamente na ação, ou seja, os grupos em contato repensam as estruturas também assimilando objetos e sujeitos externos, aceitando reinterpretações estruturais, mas seguindo a lógica de sua cultura. O que quer dizer que a performatividade da cultura não significa uma aculturação, mas sim a reinterpretação dos esquemas culturais que ganham significados a partir de suas próprias lógicas culturais e não a partir da lógica do outro. Sendo assim, com base nas duas possibilidades de reestruturação propostas por Sahlins (2011) interpretamos que houve momentos nos contatos entre os Guarani e os jesuítas, em que o ñande reko foi ressignificado prescritivamente e em outros performativamente. Ressaltamos que embora nos fundamentamos no modelo reducional dos jesuítas para realizar as análises propostas, não nos propomos a problematizar a cultura ocidental-cristã dos padres, pois entendemos que isto já foi suficientemente trabalhado ao longo da historiografia missional. Por isso, o foco da pesquisa baseia-se na compreensão da lógica cultural e significados dos eventos por parte dos Guarani, o que não significa que os padres não tenham passado por ressignificações prescritivas ou performativas, tendo em vista que a cultura é dinâmica. Ainda sobre a cultura das sociedades indígenas Eduardo Viveiros de Castro, nos estudos “A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia” (2002) e “Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural” (2015) contribuiu na compreensão das análises de como a sociedade Guarani se relaciona com o mundo não humano. Com base no estudo sobre o perspectivismo ameríndio, xamanismo e 39 multinaturalismo foram possíveis interpretar determinadas situações que ocorreram nos eventos envolvendo Guarani e Jesuítas. A relação entre o mundo humano e não humano está implícita na situação analisada no capítulo quatro, quando lideranças espirituais Guarani afirmam comunicarem-se com animais, como onças (Panthera onca) ou os ratões do banhado (Myocastor coypus), assim como se relacionam com os espíritos das montanhas. Ao não separar cultura e natureza, animais, plantas, espíritos e divindades integravam os coletivos indígenas, ou seja, fazem parte da ontologia ameríndia. Com base nos referidos aportes teóricos e nas abordagens da Etno-história e História Ambiental entendemos ser possível reconstituir uma História mais abrangente dos grupos indígenas, na medida em que os Guarani, assim como as demais etnias, não se sentem separados do ambiente. Além disso, outros atores são elevados à categoria de protagonistas, neste caso, os elementos não humanos, a natureza que integra o coletivo Guarani. 40 3 O “ÑANDE REKO” GUARANI VERSUS A LÓGICA OCIDENTAL DA COMPANHIA DE JESUS Neste capítulo apresentam-se de um modo geral as características ambientais do Estado do Rio Grande do Sul e quais os ecossistemas de preferência dos Guarani. Demonstra- se ainda como os Guarani se organizavam do ponto de vista sociopolítico e econômico a partir do ñande reko (modo de ser). Por fim, serão abordadas algumas características do método implantado pela Companhia de Jesus nas reduções, com base nos aspectos sociais, político- econômicos e religioso. Em conjunto com a análise do ñandre reko Guarani e do projeto missional observamos as historicidades ambientais dos territórios empreendidos. 3.1 Características ambientais do Estado do Rio Grande do Sul: O ñande reko Guarani e o modo de ocupar os territórios O Estado Rio Grande do Sul está situado no extremo sul do Brasil, totalizando uma extensão territorial de 281.730,2 Km²3, cuja riqueza hidrográfica e vegetal possibilitou a presença de uma ampla diversidade étnica, desde os primeiros grupos caçadores-coletores, aos Guarani, Kaingang, Charrua, Minuano, Xokleng/Laklanõ e aos não índios. O Rio Grande do Sul é composto por cinco unidades geomorfológicas: ao norte situa-se o Planalto Meridional, a extremidade oeste é formada pela Cuesta do Haedo, o centro do Estado é formado pela Depressão Central. Ao Sul está situado o Escudo cristalino Sul-Riograndense e ao litoral situa-se a Planície Costeira (RIO GRANDE DO SUL, ATLAS 2017). O território sul-rio-grandense é composto por dois biomas, a Mata Atlântica e o Pampa4. No período da chegada dos europeus a Mata Atlântica cobria cerca de 15% do 3 Conforme Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul, 2017. 4 O que caracteriza um bioma é uma área do espaço geográfico, somando mais de 1 milhão de quilômetros quadrados, com um tipo uniforme de ambiente, o qual é identificado e classificado conforme o macroclima, formação vegetal, fauna e outros organismos associados; também levando em consideração outras condições 41 território brasileiro, mas devido à exploração econômica realizada pelos novos colonizadores e que tem continuidade até os dias atuais, a cobertura vegetal deste bioma foi reduzida à cerca de 27% da vegetação original5 (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). O bioma da Mata Atlântica no Rio Grande do Sul é composto por quase todos os ecossistemas que o integram no Brasil: a Floresta Ombrófila Densa situada na faixa costeira do litoral e nas encostas do litoral de Osório e Torres (MARCUZZO et. al, 1998). A Floresta Ombrófila Mista e os Campos de Altitude localizados na região do Planalto; a Serra Geral e o Alto Uruguai caracterizam-se pelos ecossistemas das Florestas Estacionais Deciduais e Semideciduais, já a vegetação da restinga localiza-se na maior parte do litoral. (MARCUZZO et. al, 1998). Devido a este diversificado conjunto de fitofisionomias que abrangem a Mata Atlântica, este bioma possui uma das mais altas diversidades biológicas do planeta Terra (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). Por exemplo, considerando apenas as plantas angiospermas6 estima-se que existam cerca de 20.000 espécies na Mata Atlântica de todo o país (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). No que se refere aos animais, a probabilidade é que existam mais de 1,6 milhões de espécies (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). Já o Bioma Pampa integra áreas de países como Argentina, Uruguai e Brasil, onde ocorre apenas no Estado do Rio Grande do Sul. O Bioma Pampa no Rio Grande do Sul totaliza uma cobertura vegetal que abrange 2,07% do território, somando cerca de 176.000km² (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). O clima do Pampa é temperado com ocorrência de chuvas em todos os meses ao longo do ano (KÖPPEN, 1931 apud POPPE, SCHMTZ, VALENTE, 2016). A paisagem do Pampa possui áreas de vegetação arbóreas representadas pela Floresta Estacional Decidual e a Ombrófila Densa na parte leste e norte, caracterizando uma substituição natural das estepes por vegetação florestal (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). O referido bioma possui uma rica biodiversidade, com cerca de 3000 espécies vegetais, mais de 100 mamíferos e cerca de 500 espécies de aves (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). Como exemplos de espécies vegetais e animais típicos deste bioma há o nhandavaí ambientais como o solo, altitude etc. (WALTER, 1986 apud COUTINHO, 2006; CABRAL, 2012). Conforme Coutinho (2006) somando estas características, o bioma possui uma ecologia própria. 5 Nas últimas três décadas a destruição e degradação do bioma da Mata Atlântica foi intensificada, gerando severas alterações em ecossistemas e biodiversidade (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). 6 Vegetais que possuem as suas sementes protegidas por frutos (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). 42 (Acacia farnesiana) e o veado-campeiro (Ozotocerus bezoarticus), entre outros (MINISTÉRIO do Meio Ambiente, 2007). São estes os dois biomas que integram o Rio Grande do Sul, territórios que foram e ainda são palco de ocupação de diversos grupos indígenas. Cada uma destas etnias ocupou ao longo do tempo ambientes ecológicos que apresentassem maior proximidade com as suas práticas socioeconômicas, mesmo que o ambiente não determinasse onde cada grupo “deveria” se situar, estes possuíam preferências ecológicas. Os ecossistemas foram manejados conforme a lógica de cada grupo, sejam eles indígenas ou não índios, como os jesuítas que fundaram as reduções jesuíticas em territórios que lhes pareciam mais interessantes economicamente, inserindo novos objetos, espécies animais e vegetais, assim como novas dinâmicas de relação com o ambiente. Neste sentido, cabe uma breve explicação ecológica. Todas as espécies de seres vivos encontram nos locais onde vivem os recursos necessários, desde a nutrição até o espaço fundamental para a sua sobrevivência. Entretanto, qualquer recurso existente em um meio é limitado, ou seja, se não utilizado de modo sustentável tende a desaparecer. Diversas espécies, não apenas a humana, modificam/artificializam o meio onde vivem com o intuito de aumentar a sua valência ecológica, isto é, a capacidade destas espécies de se adaptar a diferentes ambientes (MAZOYER, ROUDART, 2010). Esta artificialização da natureza ocorre desde a exploração de uma espécie animal por outra, a exemplo da adaptação do ambiente para a domesticação de outras espécies7. O homem é uma das espécies que desenvolveu essa capacidade de domesticar animais e plantas para a sua sobrevivência, transformando ecossistemas naturais em artificializados/cultivados (MAZOYER, ROUDART, 2010). Como pesquisas arqueológicas e ecológicas têm demonstrado, a domesticação é um processo de transformação das características biológicas de animais e espécies vegetais, tornando-os mais úteis às necessidades humanas e aos diferentes climas, as quais adquirem características domésticas (CLEMENT, et. al, 2010; MAZOYER, ROUDART, 2010). Conforme destacado anteriormente, diversas sociedades indígenas praticavam a agricultura e a domesticação de animais quando os europeus chegaram na América, dentre estas culturas estavam os Guarani, exímios agricultores, sendo este um dos fatores determinantes para a preferência dos missionários em reduzi-los. 7 Mazoyer e Roudart (2010) apontam o caso de algumas espécies de formigas (Formicidae) que cultivam cogumelos e outras criam pulgões, com o intuito de consumir as excreções açucaradas. 43 A etnia Guarani já ocupou um amplo espaço territorial que abrange países como Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, contudo no pós-contato com os europeus muitos destes territórios foram paulatinamente sendo invadidos por não índios, situação que perdura até a atualidade. A perda dos seus territórios e ressignificações culturais se devem principalmente ao intenso contato com os não indígenas desde o século XVI. Conforme Schaden (1974), os Guarani foram um dos grupos ameríndios que mais sofreu com os contatos interculturais. Os Guarani pertencem ao tronco linguístico Tupi e à família linguística Tupi- Guarani, são oriundos dos territórios próximos às bacias hidrográficas dos rios Guaporé e Madeira no sudoeste da Amazônia (URBAN, [1992] 1998; NOELLI, 1996). A expansão territorial dos Guarani teria iniciado por volta de 5000 anos como possível consequência do aumento demográfico e da necessidade de procurar outras áreas para dar continuidade à prática da horticultura (BROCHADO, 1989; NOELLI, 1993). A necessidade por recursos ambientais para dar continuidade ao ñande reko forçou os Guarani à expansão para territórios do Brasil Meridional, ocupando áreas próximas aos principais rios e seus afluentes. Conforme Rogge (2004) a expansão Guarani aos territórios do Rio Grande do Sul ocorreu em três estágios. O primeiro momento ocorreu há cerca de 2000 anos, adentrando os espaços sul-rio-grandenses a partir do Noroeste do atual estado e se instalando nas proximidades dos rios Uruguai, Ijuí e Ygaí (Jacuí). O segundo momento desta expansão Guarani sucedeu entre os séculos IX e XIII, quando as parcialidades passaram a ocupar as áreas mais férteis destes ambientes; se alastrando para a margem esquerda do rio Ygaí (Jacuí), matas da Serra do Sudeste, chegando à Laguna dos Patos. Por fim, no terceiro estágio, entre os séculos XV e XVI, os Guarani localizavam-se nas áreas florestadas dos vales fluviais e no litoral sulino. Ainda conforme o referido autor, os Guarani demonstravam preferência por determinado ecossistema: Em toda a área de dispersão da tradição arqueológica, os sítios mostram uma forte relação com um tipo específico de sistema ecológico: as áreas de vales de rios, cobertas por Floresta Estacional Decidual e Semidecidual, a partir de uma adaptação agrícola provavelmente iniciada em algum ponto da floresta amazônica (ROGGE, 2004, p. 71-72). A proximidade dos Guarani aos rios, arroios, montanhas e matas além de atender as necessidades socioeconômicas do ñande reko, também remete à cosmologia desta etnia, visto que acreditam que elementos da natureza podem protegê-los de doenças (TOMMASINO, 2008; SCHALLENBERGER, SANTOS, 2014). A partir de pesquisas etnográficas com os Guarani no século XX, Schaden (1974) destaca que os Guarani mais velhos acreditavam que 44 tomar banho matinal no rio geraria “vida longa”. A partir disso, percebe-se que os Guarani ao se expandir para os territórios escolhidos, procuravam um determinado ambiente que fosse compatível com as características necessárias para que eles pudessem dar continuidade ao ñande reko, ou seja, a escolha não era aleatória, seguia “regras” culturais. Rogge (2004) trabalha em sua tese com três tradições ceramistas, Tupiguarani, Taquara e Vieira, na qual demonstra que estes três sistemas se adaptaram em ambientes distintos, embora também haja registros arqueológicos da presença dos referidos grupos em ambientes distintos, principalmente em zonas de fronteiras ecológicas. Como o Rio Grande do Sul apresenta limites entre a mata subtropical, mata de campos e mata de pinheiros, as três tradições ceramistas adaptaram-se a distintos sistemas ecológicos (ROGGE, 2004). Os estudos arqueológicos demonstram que a Tradição Taquara8 preferencialmente ocupava as áreas de Planalto, caracterizada pela presença da mata mista, na qual o pinheiro (Araucaria angustifólia) representa o maior símbolo natural desta paisagem (ROGGE, 2004). Já a Tradição Vieira9 ocupou as áreas de campo na Campanha e as terras alagadiças nas proximidades das lagoas. Por fim, a Tradição Tupiguarani a qual é associada aos Guarani, objeto de estudo da presente pesquisa, tem como áreas características de ocupação os territórios compostos por matas subtropicais, situados nas várzeas férteis das bacias hidrográficas do Uruguai, Jacuí, Pardo e Taquari-Antas (ROGGE, 2004). Para o referido autor é possível inferir que conforme as populações se expandiam nos territórios característicos, pode ter ocorrido uma pressão populacional, causando não apenas uma luta por recursos, mas também a necessidade de explorar outras áreas. Os novos territórios poderiam integrar o sistema ecológico característico do grupo ou de outro. A partir disso, as distintas tradições estabeleceriam uma acomodação equilibrada nestas áreas, caracterizada pela interação entre ambas as partes (ROGGE, 2004). Sobre a coexistência de distintos grupos em territórios que integram o mesmo sistema ecológico, a análise da Carta Ânua de 1634 demonstrou a presença de grupos Jês convivendo com os Guarani na redução de Santa Teresa. A referida redução estava localizada no Planalto em áreas cobertas pela Floresta Ombrófila Mista, sistema ecológico característico da Tradição Taquara, associada aos Jês, evidenciando a presença dos Guarani em ambientes 8 Associada aos indígenas Kaingang. 9 Associada aos indígenas Minuano e Charrua. 45 não tão característicos ao seu grupo. Isto se explica porque os Guarani estavam situados no ecossistema da Floresta Estacional Decidual que estabelece fronteiras com os sistemas ecológicos da Tradição Taquara e Vieira, deste modo, a necessidade de expansão dos Guarani os levou para os territórios de outros grupos (ROGGE, 2004). Já Meliá (1988) ao abordar a expansão e ocupação dos Guarani Chiriguanos aos territórios na Bolívia, salienta que o ambiente era distinto dos sistemas ecológicos característicos do grupo. Todavia, eram terras nas quais os Guarani Chiriguanos puderam dar continuidade à reprodução do ñande reko (modo de ser), como cultivar o milho (Zea mays), mandioca (Manihot esculenta), abóboras (Cucurbita) e feijões (Phaseolus vulgaris). A escolha do território sempre leva em consideração a possibilidade de reprodução econômica do grupo, perpetuando o ñande reko (MELIÁ, 1988). O ñande reko (modo de ser) Guarani possui duas bases fundamentais: a territorialidade e a tradição. O modo de ser subsidia as organizações e historicidades Guarani em territórios escolhidos (MELIÁ, 1988; MELIÁ, 1997). O sistema econômico dos Guarani está fundamentado nas relações sociais, políticas e simbólicas e estas relações correspondem e são correspondidas por intermédio da produção do grupo. Deste modo, a organização social e política dos Guarani está relacionada com as questões econômicas, pois para as sociedades indígenas não há separação entre estas categorias, de modo que tudo está imbricado (SOUZA, 2002). Clastres (2014) aponta que Sahlins, ao avaliar o modo de produção doméstico das sociedades melanésias, africanas e sul-americanas que praticam a agricultura, observou que estas se organizavam em unidades de produção e consumo, formadas por famílias ou grupos domésticos. Cada um destes grupos ou famílias funciona como um segmento autônomo, mas que se relacionam entre si e externamente, formando redes de trocas que estruturam a comunidade (CLASTRES, 2014). Segundo Souza (2002) esta relação holística entre os segmentos sociais - relações políticas, produção e simbólicas - que estão fundamentadas nas relações de parentesco, evocam à família um significado plurifuncional, pois baseiam todas as relações nas sociedades indígenas. No caso dos Guarani a estrutura socioeconômica fundamenta-se na família extensa, isto é, o Teiî (MONTOYA [1639] 1985; MELIÁ, 1988; SOUZA, 2002). O Teiî era formado sob a autoridade do chefe da família, o pai ou o avô, formada por laços de parentescos realizados através de casamentos. O prestígio do líder do Teiî se dava conforme o número de 46 sobrinhos, netos e cunhados que conseguia atrair para a sua casa, o que lhe daria maior poder econômico e bélico. Geralmente os líderes possuíam várias mulheres que lhe forneciam maiores poderes econômicos e possibilidade de formar novas alianças parentais (MELIÁ, 1988). Destrinchando ainda mais esta organização, os Teiî eram formados por dezenas de famílias nucleares, constituída pe