UNIVERSIDADE VALE DO TAQUARI - UNIVATES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM ENSINO TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NO PROCESSO DE ENSINO DO CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAPÁ (UEAP) Alex Nery Morais Lajeado, agosto de 2020 Alex Nery Morais TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NO PROCESSO DE ENSINO DO CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAPÁ (UEAP) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Stricto Sensu Mestrado Acadêmico em Ensino da Universidade Vale do Taquari, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Ensino, na linha de pesquisa Recursos, Tecnologias e Ferramentas no Ensino. Orientador: Prof. Dr. Rogério José Schuck Lajeado, agosto de 2020 Alex Nery Morais TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NO PROCESSO DE ENSINO DO CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAPÁ (UEAP) A Banca examinadora abaixo _____________ a Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino, da Universidade do Vale do Taquari - Univates, como parte da exigência para a obtenção do grau de Mestre em Ensino, na linha de Recursos, Tecnologias e Ferramentas no Ensino. Prof. Dr. Rogério José Schuck – orientador Universidade do Vale do Taquari - Univates Profa. Dra. Silvana Neumann Martins Universidade do Vale do Taquari – Univates Prof. Dr. Derli Juliano Neuenfeldt Universidade do Vale do Taquari – Univates Prof. Dr. Cezar Luís Seibt Universidade Federal do Pará - UFPA Lajeado, agosto de 2020 À minha mãe, Angela Nery (in memoriam), cujo exemplo de força deixado é luz que carrego comigo. AGRADECIMENTOS Por trás de cada linha escrita nesta dissertação, além do que vem de tempos que eu não saberia precisar, existem importantes histórias e pessoas que estiveram comigo nesses dois anos de mestrado. Os desencontros, que não foram poucos, ficaram como aprendizados; os bons encontros que, felizmente!, foram em número muito maior, guardarei no coração e serei eternamente grato. Assim, agradeço ao meu orientador, o Prof. Dr. Rogério Schuck, pelos conhecimentos comigo partilhados, pelas orientações e pela paciência. Aos professores Cezar Seibt, Derli Neuenfeldt e Silvana Martins pela atenção dada ao meu projeto de pesquisa para a qualificação, o que foi possível perceber a partir das muitas e importantes contribuições gentilmente dadas ao meu trabalho. Às professoras do mestrado Morgana Hatgge e Suzana Schwertner pelas aulas tocantes e motivadoras, que me fizeram perceber a arte na docência, sensibilizando um pouco mais o meu olhar para a educação e para a vida. Agradeço aos professores e alunos do Curso de Licenciatura em Letras da UEAP que solicitamente se dispuseram a participar de minha pesquisa. A todos os meus amigos de curso, em especial ao Ronne Gonçalves, Fabiano Muller, Daniele Paes, Carlíria Fumeiro, Colari Teixeira e Lucinei Rezende, cujas companhias tornaram a minha jornada no mestrado mais leve. Aos amigos Deusuíte Machado, Jady Souza, Juliana Leão, Michele Carvalho e Sara Carneiro pela rede de motivação que criamos entre nós desde a graduação. Aos amigos que fiz em Lajeado - RS Leonardo Mariani e Sheila Batista, que foram grandes parceiros no período em que morei nessa cidade, acolhendo-me como membro da família. Ao meu amigo Carlos Carrera pelos grandes e generosos direcionamentos que me deu durante a produção desta pesquisa. Ao meu companheiro Daniel Costa por ter aceitado dividir comigo esse momento inesquecível da vida, que é o mestrado. Aos meus familiares, principalmente aos meus irmãos Arilson Nery e Patrícia Nery e ao meu pai Nilson Morais, pelo amparo e pela alegria que trazem à minha vida. O exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o conhecimento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o para quê, o como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem são exigências fundamentais de uma educação democrática à altura dos desafios do nosso tempo (FREIRE, 2000, p. 46). RESUMO O intenso uso de tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs), que perpassa e impacta todas as atividades humanas, é uma realidade inafastável da contemporaneidade. Essa é uma temática, portanto, que merece grande atenção daqueles que se interessam por educação. Assim, esta pesquisa constitui um movimento interpretativo de como essas tecnologias têm sido integradas aos processos de ensino e dos efeitos dessa integração. Ela visa compreender como as TDICs estão sendo incorporadas pelos docentes ao processo de ensino do Curso de Letras da Universidade do Estado do Amapá (UEAP), e tem como objetivos específicos: verificar e analisar a presença dessas tecnologias no Projeto Pedagógico do Curso; compreender as concepções dos professores acerca dessas tecnologias e de como o seu uso pode influenciar o processo de ensino; apontar as principais TDICs utilizadas, como os professores as têm empregado em suas disciplinas e analisar a percepção dos licenciandos desse uso feito pelos docentes. O percurso metodológico adotado baseou- se nos fundamentos da pesquisa qualitativa, nos pressupostos do estudo de tipo descritivo e nos princípios da hermenêutica filosófica, delineando-se como um estudo de caso. Para a realização desta investigação, foram feitas entrevistas semiestruturadas com docentes e discentes do Curso de Letras da UEAP, além de uma análise documental do PPC do Curso. Os dados coletados foram analisados à luz da Análise Textual Discursiva. Do PPC, interpretou-se que nele é reconhecida a importância do uso e do estudo das TDICs na formação ofertada pelo Curso. Da entrevista com os docentes, compreendeu-se que eles, em geral, concebem essas tecnologias como meios do contexto educativo, consideram que elas impactam o processo de ensino de maneira fortemente positiva e veem os áudios e vídeos prontos como as tecnologias que mais utilizam. Já das entrevistas com os acadêmicos, constatou-se que eles percebem o Datashow como principal tecnologia utilizada pelos docentes e que possuem uma visão mais crítica com relação aos impactos do uso de TDICs sobre o ensino e à capacidade de manuseio desses artefatos demonstrada por seus professores. Palavras-chave: TDICs. Ensino. Ensino Superior. ABSTRACT The intense use of digital information and communication technologies (DICTs), which permeates and impacts all human activities, it is an ingrained reality of contemporary times. This is a theme, therefore, that deserves great attention from those who are interested in education. Thus, this research is an interpretative movement of how these technologies have been integrated into the teaching processes and the effects obtained in this integration. It aims, more specifically, to understand how DICTs, have been incorporated by professors in the teaching process of the Linguistic Course at the University of the State of Amapá (UEAP), in which the specific objectives are: to verify and analyze the presence of these technologies in the Pedagogic Project of the Course; to observe and understand teachers' conceptions about these technologies and how their use can influence the teaching process; to point out the most DICTs used, how teachers have been using them in their disciplines and analyze the perception of the graduation students of this usage by their professors. The methodological path adopted is based on the foundations of qualitative research, on the assumptions of the descriptive study and on the principles of philosophical hermeneutics, outlining them as a case study. To make this investigation, semi-structured interviews were carried out with professors and students from UEAP Linguistic Course, in addition to a documentary analysis of the Course PPC. The collected data were analyzed using the Discursive Textual Analysis. In the PPC analysis, it was interpreted that it is shown in it the importance of the usage and study of DICTs. From the professor’s interviews, we understand that they, in general, conceive of these technologies as media in the educational context, they consider that technologies impact the teaching process in a highly positive and efficient way and see videos and audios as the most used techniques for them. By the interview conducted with the graduation students, it is shown that they perceived the projector as the main technology used by the professors and that they have a more critical view regarding the effects of the use of DICTs on teaching and the ability to handle these artifacts demonstrated by their professors. Keywords: DICTs. Teaching. University Education. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11 2 REFERENCIAL TEÓRICO .......................................................................................... 15 2.1 Conceitos de tecnologia ................................................................................................ 15 2.2 Olhares sobre a tecnologia ........................................................................................... 22 2.3 As perspectivas de Mário Bunge e Martin Heidegger .............................................. 27 2.4 TICs, NTICs, TE e TDICs ........................................................................................... 32 2.5 As TDICs e a Sociedade da Informação ..................................................................... 35 2.6 A integração das TDICs no ensino .............................................................................. 40 2.7 Mentalidades, habilidades e competências para o uso de TDICs ............................ 51 2.8 Usos autorais de TDICs no ensino .............................................................................. 57 2.9 As TDICs e as diferentes gerações .............................................................................. 64 2.10 Breve história do Curso de Letras e sua legislação ................................................. 69 2.11 O Curso de Licenciatura em Letras da UEAP......................................................... 76 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................................................. 80 3.1 Caracterização da pesquisa ......................................................................................... 80 3.2 Caminho hermenêutico-filosófico ............................................................................... 82 3.3 O lócus da pesquisa ...................................................................................................... 87 3.4 Participantes ................................................................................................................. 89 3.5 Técnica de coleta de dados ........................................................................................... 90 3.6 Análise dos dados .......................................................................................................... 92 4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS ........................................................... 96 4.1 As TDICs no PCC do Curso de Licenciatura em Letras da UEAP ......................... 96 4.2 As TDICs na prática de ensino do curso de Licenciatura em Letras da UEAP ... 117 4.2.1 Concepções sobre TDICs e ensino .......................................................................... 117 4.2.2 As TDICs mais utilizadas pelos docentes e suas formas de utilização ................ 133 4.2.3 Formação para o trabalho com TDICs ................................................................. 136 4.2.4 A infraestrutura para o uso de TDICs .................................................................. 138 4.2.5 Autoavaliação da capacidade de manuseio ........................................................... 141 4.2.6 Conhecimento da presença das TDICs no PPC do Curso de Licenciatura em Letras ................................................................................................................................. 143 4.3 Percepções dos acadêmicos acerca do uso de TDICs por seus professores ........... 145 4.3.1 Concepções dos alunos sobre TDICs e ensino ....................................................... 145 4.3.2 A utilização das TDICs nas aulas do Curso de Licenciatura em Letras ............ 150 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 158 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 169 APÊNDICES ..................................................................................................................... 180 11 1 INTRODUÇÃO As mudanças velozes que ocorrem nos mais variados âmbitos sociais na atualidade são impulsionadas, em grande parte, pelas inovações tecnológicas; em especial pelo contínuo surgimento, aprimoramento e intenso uso das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs). O aumento do uso dessas tecnologias tem propiciado grandes mudanças nas formas de comunicação entre as pessoas, acarretando novas dinâmicas nos processos produtivos, nas relações de trabalho, no processamento e distribuição de informações, na construção do conhecimento, nos processos de ensino e aprendizagem, entre outros âmbitos. Os saberes, por exemplo, que antes ficavam restritos a determinados indivíduos, tempos e lugares, com a ampla difusão das TDICs, ultrapassaram as barreiras físicas e temporais, ficando muito mais acessíveis. E essa nova realidade tem trazido para as instituições de ensino e professores a necessidade de questionar e refletir acerca das bases sobre as quais a cultura escolar está assentada. O que ainda cabe ensinar? Como ensinar? O que fazer com a gama de informações que hoje, mais do que nunca, os alunos trazem para a escola? Como incorporar as tecnologias que eles estão habituados a utilizar para se informar e aprender? Esses são apenas alguns exemplos dos questionamentos que as escolas e professores precisam fazer. Nesse sentido, Moran (2012) acredita que há um descompasso entre as dinâmicas de aprendizagem que os indivíduos têm estabelecido informalmente por meio do uso de TDICs e a maneira como a educação formal está estruturada. Em sua visão, as escolas e as 12 universidades têm aproveitado muito pouco do que as TDICs têm ofertado informalmente aos indivíduos em termos de possibilidades de aprendizagem, ou seja, essas instituições pouco têm buscado incorporar essas tecnologias de modo a potencializar os processos de ensino e de aprendizagem. Demo (2015) sustenta que as TDICs podem auxiliar no desenvolvimento de uma aprendizagem autoral, que se caracteriza pelo aproveitamento das oportunidades ofertadas por essas tecnologias para pesquisar e construir conhecimento, oportunidades essas como a facilitação da pesquisa trazida pela internet, a interatividade para a construção colaborativa de conhecimento proporcionada pelas ferramentas da Web e a divulgação desse conhecimento para demais pessoas por meio de publicações on-line, por exemplo. Essa aprendizagem autoral, por sua vez, pode se desdobrar em uma docência autoral, na medida que o docente, ao saber utilizar essas tecnologias para facilitar a sua aprendizagem e produzir conhecimento próprio, é também capaz de orientar os alunos a fazer isso. Kenski (2013), por sua vez, defende que as TDICs podem contribuir para o desenvolvimento de uma prática de ensino transformadora. Para isso, é necessário, dentre outras coisas, que o professor tenha fluência tecnológica e que ele e a instituição de ensino, como um todo, estejam abertos a novas perspectivas sobre ensino e aprendizagem, já que a forma como as novas gerações vêm estabelecendo relações entre si, com o conhecimento e com o mundo é bem diferente das gerações anteriores. Além de o conhecimento e o uso dessas tecnologias representarem uma demanda da vida contemporânea, uma vez que perpassam todas as atividades humanas (CASTELLS, 2010), a produtividade e a importância do uso delas no ensino estão atestadas em vários documentos oficiais. Um deles é a Base Nacional Comum Curricular, em especial em sua 5ª competência geral para a educação básica: “Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais [...]” (BRASIL, 2018a, p. 9). Outro documento é Resolução n⁰ 2, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada, em Nível Superior, de Profissionais do Magistério para a Educação Básica (BRASIL, 2015), a qual postula o uso competente das tecnologias de informação e comunicação para o aprimoramento da prática pedagógica e a ampliação da formação cultural de professores e estudantes. 13 Um outro importante documento é a Resolução nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) (BRASIL, 2019). Essa resolução define no inciso IV do seu Art. 8º que entre os fundamentos pedagógicos dos cursos destinados à formação inicial de professores para a Educação Básica deve estar “o emprego pedagógico das inovações e linguagens digitais como recurso para o desenvolvimento [...] de competências sintonizadas com as previstas na BNCC e com o mundo contemporâneo” (BRASIL, 2019, p. 5). Nesta investigação, partiu-se da ideia de que as TDICs podem ser usadas de modo a instaurar dinâmicas de ensino e aprendizagem autorais, como teoriza Demo (2009), mas também de forma a apoiar velhas práticas, pois, como alerta Rezende (2000), a introdução de novas tecnologias na educação não resulta necessariamente em novas práticas pedagógicas, já que, com elas, pode-se apenas dar uma nova aparência ao que é essencialmente velho, como é o caso dos livros eletrônicos, tutoriais multimídia e de alguns cursos a distância disponíveis na internet que não incorporam nada de novo em termos de processo de ensino e aprendizagem. Como afirmam Soffa, Santos e Behrens (2008), nesses casos desenvolvem-se dinâmicas em que as tecnologias figuram como ferramentas para facilitar a mera repetição do conteúdo, para a sua recepção e assimilação. Partiu-se também do fato de que o universo humano está permeado por artefatos tecnológicos e, assim, a educação, como força que pode contribuir para a transformação do mundo (FREIRE, 2001), precisa estar atenta aos fenômenos subjacentes ao uso desses artefatos a fim de evitar o relativismo da mera instrumentalização técnica (HABOWSKI; CONTE, 2019). Nessa perspectiva, integrar essas tecnologias às práticas de ensino pressupõe que professores e alunos explorem-nas conjuntamente, indo além do foco em sua utilidade, que eles avaliem sua pertinência, averiguem criativamente suas possibilidades, discutam sobre seus impactos e analisem a forma como se relacionam aos seus contextos políticos e sociais (PESCE, 2014). O interesse pela temática nasceu da experiência que o pesquisador teve durante seu período de estudo no curso foco desta pesquisa, o Curso de Licenciatura em Letras da UEAP. Durante a sua graduação, este pesquisador utilizou frequentemente as redes sociais da internet para complementar os estudos de língua francesa, seguindo páginas, perfis e participando de grupos em que se discutia e eram veiculados conteúdos nessa língua nos mais 14 variados formatos, como textos escritos, músicas e vídeos. Ele percebeu, dessa forma, que as aprendizagens formais da sala de aula poderiam ser potencializadas por meio do uso de TDICs. Desses usos autônomos, merece destaque a sua participação nos grupos da rede social Facebook. O pesquisador acredita que a interação com pessoas dos mais variados lugares do mundo que tinham entre si o interesse comum de aprender e exercitar a língua francesa lhe proporcionou grandes conhecimentos na área. Essa experiência com os grupos resultou em sua monografia de conclusão da graduação, intitulada “Os grupos do Facebook como espaços de aprendizagem de língua francesa”, ainda por publicar. Ao final da realização desse estudo, ficou para o pesquisador a sensação de que as TDICs, que tanto lhe auxiliaram fora da universidade, poderiam impactar positivamente nas aprendizagens dos licenciandos se incorporadas com maior frequência às atividades de ensino das disciplinas do Curso sob o olhar experiente, direcionador e cuidadoso dos professores. Daí veio a inquietação de buscar compreender, primeiramente, como as TDICs têm sido integradas no processo de ensino por esses docentes. Assim, adotou-se como objetivo geral desta investigação compreender como as TDICs estão sendo incorporadas pelos docentes ao processo de ensino do Curso de Letras da Universidade do Estado do Amapá (UEAP), e como objetivos específicos: verificar e analisar a presença das TDICs no Projeto Pedagógico do Curso; compreender as concepções dos professores acerca dessas tecnologias e de como o seu uso pode influenciar o processo de ensino; apontar as principais TDICs utilizadas e como os professores as têm utilizado em suas disciplinas, e analisar a percepção dos licenciandos com relação ao uso que seus professores fazem dessas tecnologias no processo de ensino. A partir deste capítulo introdutório, esta dissertação está estruturada da seguinte forma: no segundo capítulo, apresenta-se o referencial teórico que subsidiou a execução da pesquisa; no terceiro capítulo, expõem-se os procedimentos metodológicos adotados na investigação; no quarto capítulo, apresentam-se os dados obtidos e a análise feita deles; no quinto e último capítulo, expõem-se as considerações finais às quais se chegou com este estudo. 15 2 REFERENCIAL TEÓRICO Neste capítulo, apresenta-se o referencial teórico que subsidiou a elaboração da pesquisa e a análise dos dados obtidos em sua execução. Esse referencial se divide em três grupos temáticos. No primeiro, discute-se sobre conceitos de tecnologia, apresentam-se algumas perspectivas filosóficas a seu respeito, esclarece-se o que são as TDICs por meio da explanação dessa nomenclatura em comparação a outras e aborda-se a sua relação com o contexto social. No segundo grupo, discute-se sobre a integração das TDICs no processo de ensino, explanam-se as capacidades e habilidades relativas ao uso dessas tecnologias importantes de serem desenvolvidas por professores e alunos, demonstram-se algumas práticas de ensino autorais envolvendo essas tecnologias e discute-se sobre como o uso desses artefatos varia conforme a faixa etária dos usuários. No terceiro, dá-se a conhecer a história do Curso de Letras observando a legislação que foi lhe dando forma com o passar do tempo e apresenta- se o curso específico sobre o qual se debruça este trabalho. 2.1 Conceitos de tecnologia Definir tecnologia não é uma tarefa simples. Diferentes são as perspectivas e concepções traçadas a seu respeito por variados autores. Quando as analisam, alguns entendem-na como relativa sobretudo a objetos físicos; outros, na condição de processos; e outros, ainda, percebem-na inextricavelmente ligada a questões econômicas, sociais e culturais. 16 Pela sua complexidade, Cupani (2016) afirma que, quando se tenta dizer o que é tecnologia, comumente se apontam objetos físicos, como a televisão, o aspirador de pó, a ultrassonografia e os computadores, por exemplo. Ao se pensar um pouco mais, segundo ele, é possível que se amplie essa percepção a sistemas e formas de organização, como as redes telefônicas, a organização da produção nas fábricas, o sistema de controle do trânsito, entre outros. Diante da pluralidade e da complexidade do conceito de tecnologia, de acordo com o autor, é perceptível que, quando se tenta explicar ou teorizar a seu respeito, a questão da técnica comumente vem à tona, como algo que possivelmente a teria originado. Diante dessa constatação, buscou-se compreender melhor a tecnologia a partir da perspectiva histórica traçada por Vargas (1994). Esse autor recorre ao desenrolar da história humana para entender o que vem a ser a tecnologia, a sua essência e seus fundamentos filosóficos. Com base em suas ideias, é possível compreendê-la como uma fase avançada da técnica, fase essa precedida ainda por uma outra importante etapa, a techné grega. Oliveira (2008), seguindo as ideias de Vargas (1994), salienta que o transcorrer dessas fases ou etapas precisa ser entendido levando-se em consideração os contextos social, político, econômico e cultural das sociedades, uma vez que seu desenrolar foi motivado não por um único fator, mas por uma série de mudanças nesses âmbitos. Assim, passa-se a abordar a seguir a questão da técnica. De acordo com esses autores, a técnica corresponde à capacidade geral do homem de intervir na natureza, de criar coisas, de produzir objetos. E essa capacidade seria tão antiga quanto a humanidade, podendo ser percebida já na fabricação dos primeiros instrumentos pelos humanos. Como explica Kenski (2007), no princípio, o homem contava apenas com as capacidades naturais de seu corpo. Paulatinamente, entretanto, ele começou a andar ereto, a utilizar mais intensamente suas capacidades cerebrais, como armazenar informações, raciocinar e mobilizar conhecimentos, e passou também a utilizar as mãos para realizar atividades úteis à sua sobrevivência. Ainda sobre os primórdios da técnica, Bazzo, Linsingen e Pereira (2003) explicam que a intensa interação entre os hominídeos, família taxonômica da qual o gênero homo faz parte, propiciou sua mudança de habitat, levando-os a abandonarem a vida arborícola, própria de seus antepassados primatas, e a passarem a praticar caça cooperativa. A complexa organização social que se engendrou a partir dessa nova situação de caçadores-coletores 17 estimulou o desenvolvimento de uma técnica fundamental para o surgimento de outras técnicas: a linguagem. Para Vargas (2009), o desenvolvimento da linguagem foi um fator decisivo para o caráter evolutivo da técnica, ou seja, para que as produções humanas pudessem ser continuamente aperfeiçoadas. De acordo com ele, o fato de poder mobilizar símbolos dentro de um sistema é fundamental para que o homem possa construir sentidos, elaborar ideias e, ainda, comunicar-se; e isso permite, por sua vez, que haja aprendizagem e que, dessa forma, os processos de fabricação e uso de objetos sejam aperfeiçoados de geração em geração. Bazzo, Linsingen e Pereira (2003) sustentam que os hominídeos e seus descendentes foram desenvolvendo formas de vida sobre as quais a seleção natural passou a afetar de formas diferentes, pois as técnicas criadas em cada situação acabaram influindo na evolução natural. Dessa forma, os autores defendem que, a partir do desenvolvimento de diferentes técnicas, passou a ocorrer também um outro tipo de evolução, de natureza cultural, que consistiria na difusão e diversificação de instrumentos e atos técnicos para a adaptação do homem aos diferentes meios. Como lembram esses autores, a técnica tem permitido que o ser humano transforme os ambientes em que vive, o que demonstra que sua vida não está determinada e limitada pelas condições ambientais, como a de outros animais. Para eles, parece ser próprio da espécie humana a sua contínua capacidade de adaptação a diferentes condições ambientais, e isso é possível justamente por sua capacidade de desenvolvimento de técnicas. É nesse sentido que Cupani (2016) faz uma distinção entre capacidade de fazer e a de agir. Enquanto a capacidade de agir equivale a seguir a própria vida, de modo puramente instintivo, que é o caso dos demais animais; a capacidade de fazer é própria dos humanos, e ela resulta na criação de artefatos, entendidos como objetos ou processos artificiais. O autor lembra que as palavras “artefato” e “artificial” indicam que algo foi produzido segundo uma “arte”, um saber fazer, que pressupõe regras de procedimento, em outras palavras, pressupõe técnicas. Percebe-se, pelo exposto, que homem, técnica e linguagem são noções extremamente interligadas, pois, assim como Cupani (2016) aponta a técnica como elemento distintivo do homem em relação aos demais animais, Vargas (2009, p. 171) afirma que a tríade homem-linguagem-técnica “é a essência do fenômeno humano. Isto é, só é humano 18 aquele ser que tem a capacidade de se comunicar pela linguagem e a habilidade de fabricar utensílios pela técnica”. Ainda de acordo com Vargas (2009), quando as primeiras civilizações se formaram, a técnica revestiu-se de um caráter mágico. Nesse período, povos como os do Egito e da Mesopotâmia, por exemplo, passaram a ser regidos por mitos e contos sobre feitos de deuses e heróis, e as técnicas a serem vistas como saberes que estes transmitiam aos homens. Essas sociedades míticas teriam desaparecido com o advento de outras tradições filosóficas e religiosas, como o Taoísmo, na China; o hinduísmo e o budismo, na Índia; a religião do Zoroastro, na Pérsia; os profetas, na Palestina; e a episteme theoretike, na Grécia. O autor conta que o surgimento dessas correntes de pensamento ocorreu por volta de 800 a 300 anos a.C., quando as revelações religiosas, as sabedorias e também as técnicas perderam seu caráter mítico, passando a ser sistematizadas por homens historicamente existentes, tais como Lao-tse, Confúcio, Buda, Zaratustra e os profetas judaicos, por exemplo. Esse foi o contexto de surgimento da techné grega, apontada por Vargas (2009) como etapa fundamental pela qual passou a técnica até a chegada à tecnologia. Vale ressaltar que, conforme Chassot (1994), nenhum povo da Antiguidade influenciou tão decisivamente a civilização ocidental como os gregos. Vargas (2009) explica que surgiram na Grécia clássica duas novas formas de saber, a teoria, também chamada de episteme, e a techné. A primeira, segundo ele, como sinaliza a origem da palavra (theoren em grego é ver), baseava-se na descoberta de que é possível ver com os olhos do espírito, para além das aparências das coisas, ou seja, de forma lógica, portanto estável e perene. A segunda, podendo ser vista como a técnica então despida de seu caráter místico. Oliveira (2008) comenta que, enquanto incialmente a técnica esteve fortemente baseada na mitologia, com sua transmissão assumindo um caráter de segredo revelado por deuses, a techné grega passou a representar um estágio de desenvolvimento maior no que diz respeito à busca do homem pela solução de problemas práticos, à sua luta pelo melhoramento e aperfeiçoamento de sua sobrevivência, por meio da cura de doenças, por exemplo. Conforme Vargas (2009), a palavra grega techné diz respeito a uma determinada conduta numa atividade específica, subordinada a uma série de conhecimentos repassados através da educação. Percebe-se, pelo que ele expõe, que à techné subjazem saberes de caráter 19 prático, elaborados e sistematizados, advindos predominantemente não da contemplação humana, mas da manipulação e da experimentação, conhecimentos esses que passaram a ser difundidos e aperfeiçoados de geração em geração. Os tratados gregos da techné mais conhecidos, conforme Vargas (2009), são os da medicina, a qual, deixando de ser revelada pelo deus Esculápio, passou a ser ensinada até mesmo por escrito, como no caso da coleção de livros de Hipócrates, o Corpus Hipocrático. Conforme esse autor, embora nessa época houvesse na Grécia especulações filosóficas sobre as doenças e a construção de obras, os tratados da techné não envolviam teorias, não objetivavam compreender logicamente as doenças e a construção de obras, mas concentravam-se no saber fazer, em como curar os doentes e construir obras, por exemplo. Isso permite entender a techné como um saber possível de ser aprendido sem que se apelasse ao divino e ao saber teórico. Avançando pela história, Vargas (2009) lembra que, com a queda de Roma e a chegada do Cristianismo, sufocou-se na Europa o desejo de conhecer a natureza. Como exemplo disso, Chassot (1994) comenta que Santo Ambrósio, arcebispo que se tornou um dos mais influentes membros do clero no século IV, ensinava que as discussões sobre a natureza e a posição da Terra não ajudavam a esperar a vida futura. Com o Renascimento, entretanto, de acordo com Vargas (2009), reavivou-se na Europa o interesse pelo conhecimento da natureza e de seus segredos. Começou-se a perceber que o que era ensinado pelos mestres, essencialmente com base em habilidades manuais, poderia ser perscrutado através de estudos e do conhecimento de teorias. Segundo Oliveira (2008), esse é o momento em que, dentre outras coisas, recorreu- se à tradução dos tratados gregos e romanos da techné. Esse estudo, aliado à prosperidade do comércio, permitiu à burguesia das cidades medievais atingir seu poder político. Foi somente nas cidades, no final da Idade Média, que as atividades de tecelagem, construções e outras iniciadas nos mosteiros alcançaram um aperfeiçoamento magnífico. Essa constatação mostra, para a autora, que a techné teve papel fundamental na transição dos tempos medievais para a era moderna. Foi nesse contexto, sustenta ela, que surgiu o que se convencionou denominar de tecnologia, propiciada pelo declínio do feudalismo, pelo impulso do comércio, da urbanização e pela progressiva substituição da lei divina pela razão. Assim: 20 Enquanto o saber medieval estava imbuído de cristianismo, o novo saber e as novas técnicas que se constroem a partir do colapso da sociedade feudal estão articulados às necessidades e problemas que se colocam no processo de estruturação de uma nova sociedade (OLIVEIRA, 2008, p. 6). Segundo ela, desenvolveu-se uma nova maneira de produzir e de utilizar o conhecimento, que pode ser vista como uma combinação do empirismo dos artesãos com as novas formas de racionalidade descritas por filósofos como Bacon e Descartes. Essa interação entre o racional e o empírico criou uma nova lógica tanto de entendimento da natureza quanto de sua capacidade de transformação pelo homem. A partir da Idade Moderna, ciência e técnica se tornaram inseparáveis. É nesse sentido que Vargas (1994, p. 179) conceitua tecnologia como “a solução de problemas técnicos por meio de teorias, métodos e processos científicos”. Conceituação convergente a essa é a feita por Blanco e Silva (1993), para quem ela é um estudo profundo e sistemático de como encontrar os meios de atingir um objetivo final, a partir de princípios verdadeiros e de experiências seguras. Esses autores consideram-na como a aplicação de conhecimentos científicos na resolução de problemas, em outras palavras, como sinônimo de ciência aplicada. Kenski (2007) concorda que a entrada do conhecimento científico na técnica pode ser vista como sinalizadora do surgimento da tecnologia. A esse respeito, ela adverte que a técnica não se transformou em tecnologia e, a partir de então, deixou de existir. Observando esses termos na contemporaneidade, afirma que a tecnologia estaria para a pesquisa e o planejamento necessários à produção de qualquer equipamento, como uma caneta ou um computador; já a técnica seria mais concebida como as maneiras, jeitos ou habilidades necessárias para lidar com cada tipo de equipamento. Dessa forma, pode-se inferir que técnica e tecnologia, a despeito de suas especificidades, relacionam-se basicamente às intervenções, alterações, transformações que o homem provoca no meio, assim como dizem respeito aos artefatos materiais que ele constrói para/nesse processo. A grande proximidade entre técnica e tecnologia pode ser atestada também pelo fato de alguns autores e dicionários tomarem-nas como sinônimas. Veja-se, por exemplo, uma classificação de tecnologias proposta por Tajra (2011) e a definição apontada pelo dicionário Houaiss (2019). 21 Para a autora, as tecnologias se dividem em tecnologias físicas, organizadoras e simbólicas. As físicas correspondem às inovações de instrumentos físicos, tais como caneta, livro, telefone, aparelho celular, entre outros. As organizadoras dizem respeito às formas de relacionamento com o mundo, como os modos de organização dos diversos sistemas produtivos e os variados métodos de ensino, por exemplo, que são tecnologias de organização das relações de aprendizagem. Já as tecnologias simbólicas estão relacionadas à comunicação entre as pessoas, desde a iniciação dos idiomas escritos e falados à forma como elas se comunicam, ou seja, dizem respeito à construção e mobilização de símbolos para a comunicação. Levando em consideração o que se vinha discutindo neste capítulo, percebe-se que na classificação estabelecida por Tajra (2011) técnica e tecnologia se confundem, em especial quando se observam as tecnologias simbólicas. O mesmo acontece com a definição do dicionário Houaiss (2019), segundo o qual tecnologia significa tanto teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos, quanto técnica ou conjunto de técnicas de um domínio particular. Diante do exposto, é importante explicitar que a discussão do conceito de tecnologia, considerando a técnica e a techné grega, feita neste capítulo teve o intuito de chamar a atenção para o fato de que, enquanto atividade humana de intervenção no meio e produção de artefatos, a tecnologia há muito está enredada à vida em seus mais variados aspectos. Nesse sentido, é importante esclarecer também que é essa complexidade, que se anuncia já a partir da dificuldade de sua conceituação, que se espera não perder de vista neste trabalho, ainda que seu foco seja um tipo de específico de tecnologia, as TDICs, pois se deseja descrever não só a forma como os sujeitos usam esses artefatos, mas também como eles os percebem. 22 2.2 Olhares sobre a tecnologia Apresenta-se, nesta seção, um breve panorama das discussões filosóficas contemporâneas sobre tecnologia, levando em consideração as sistematizações feitas por Andrew Feenberg e Carl Mitcham. Antes de avançar na reflexão, é importante lembrar que, no capítulo anterior, desenvolveu-se a argumentação de que a tecnologia pode ser vista como uma certa continuidade da técnica e, nesse sentido, como algo ligado à vida humana desde os tempos mais remotos. Para muitos autores, como se viu, o divisor de águas seria o uso dos conhecimentos da ciência moderna. Assim, se a tecnologia passou a existir como tal a partir do momento em que o fazer humano passou a estar marcado por estabelecer relação com a ciência moderna, olhar para o contexto em que esses dois âmbitos passaram a se relacionar ajuda a compreender a visão mais tradicional que se tem de tecnologia. Como explica Miranda (2002), a discussão sobre o que a tecnologia é fatalmente leva a um posicionamento valorativo a seu respeito. Nesse sentido, Bazzo, Linsingen e Pereira (2003) afirmam que, na concepção mais tradicional de tecnologia, ela não só corresponde à aplicação dos conhecimentos científicos, ou seja, à ciência aplicada, como também é vista como neutra. Observando o contexto de surgimento dos conhecimentos de que, nessa perspectiva, dependeria a tecnologia, Araújo (2006) sustenta que a ciência moderna surgiu no século XVI dentro do processo da modernidade de ruptura com o mundo feudal e eclesiástico; ela originou-se do Renascimento e embasou-se filosoficamente pelo Iluminismo. No princípio, segundo Alves (2000), caracterizou-se fortemente pela busca de um saber objetivo, baseado na formulação de modelos e leis que explicassem os fenômenos da natureza, no uso de hipóteses e de experimentação, no rigor do pensamento por meio da utilização do raciocínio lógico. Percebe-se, portanto, que o contexto de surgimento da ciência moderna foi marcado pela crença em sua neutralidade, pela ideia de que ela representava a forma de encontrar a verdade, lógica, universal e independente de juízos de valor. Assim, se tradicionalmente a tecnologia foi vista como tal a partir do momento em que passou a fazer uso dos 23 conhecimentos científicos, e como correspondente à aplicação desses conhecimentos, é natural que ela também tenha sido vista como neutra. Feenberg (2010) afirma que a crença na neutralidade da ciência e da tecnologia esteve na base da constituição das sociedades modernas. Esse autor lembra que essas sociedades emergiram da libertação do poder de questionar as formas de pensamento até então existentes. Dessa forma, o Iluminismo do séc. XVIII exigiu que todos os costumes e instituições se justificassem racionalmente para a humanidade. Diante dessa exigência, a ciência e a tecnologia se tornaram a base para as novas compreensões, reformando a cultura gradualmente para ser o que hoje se entende como racional. Como consequência, elas se tornaram onipresentes na vida humana e, junto com elas, os modos técnico-científicos de pensar. Para o autor, essa cultura passou a ser tão abrangente, que questões mais profundas passaram a ser feitas acerca do seu valor e viabilidade como um todo. Cabendo, portanto, questionamentos quanto à sua dignidade, ética e completude, por exemplo. Assim, admitindo que as sociedades contemporâneas têm base tecnológica, o autor entende que esses questionamentos constituem a filosofia da tecnologia, um movimento de reflexão “para além da utilidade, no sentido estrito da pergunta quanto ao tipo de mundo e ao modo de vida que emerge em uma sociedade moderna” (FEENBERG, 2010, p. 39). O autor sustenta que no século XIX passou a ser comum ver a modernidade como um processo interminável rumo à satisfação das necessidades humanas através do avanço tecnológico. No século XX, entretanto, diante das guerras mundiais, campos de concentração e catástrofes ambientais, passou a ficar cada vez mais difícil ignorar a falta de sentido da modernidade. Nesse sentido, a filosofia da tecnologia surgiu como uma crítica à modernidade. De acordo com Feenberg (2010), os debates da filosofia da tecnologia contemporânea se dão em torno das questões da neutralidade e da autonomia da tecnologia, ou seja, se, e em caso positivo de que forma, ela e a sociedade exercem influência uma sobre a outra. Ele argumenta que essas questões deram origem a quatro formas de conceber essa relação. Na primeira concepção apresentada pelo autor, a tecnologia é vista como neutra e humanamente controlável. Ele a chama de visão instrumentalista. Essa é, segundo ele, a visão 24 padrão da modernidade. Nela se vê a tecnologia simplesmente como uma ferramenta ou um instrumento produzido pela espécie humana para a satisfação de suas necessidades. Verasztos et al. (2009) chamam também essa visão de utilitarista e a avaliam como problemática, pois com ela tende-se a focar somente na utilidade dos artefatos, desinteressando-se por questões relacionadas ao seu processo de desenvolvimento. Na segunda concepção, conforme Feenberg (2010), considera-se a tecnologia como neutra e autônoma. É chamada de visão determinista. De acordo com o autor, os deterministas acreditam que a tecnologia não é controlável humanamente, mas, ao contrário, controla os seres humanos, isto é, molda a sociedade às exigências da eficiência e do progresso. Verasztos et al. (2009) comentam que um dos âmbitos em que essa ideia mais teve influência foi a ficção científica, podendo ser aludida à alegoria frankensteiniana da perda do controle da invenção pelo inventor. Esses autores afirmam, ainda, que nessa perspectiva o progresso tecnológico segue um caminho fixo, sendo que, mesmo que fatores políticos, econômicos ou sociais possam exercer alguma influência, não se pode alterar o poderoso domínio que a tecnologia impõe às transformações sociais. Para eles, essa também é uma concepção problemática, pois com ela os sujeitos podem se sentir isentos de suas responsabilidades em relação às produções tecnológicas. Segundo Feenberg (2010), na terceira visão compreende-se a tecnologia como autônoma e carregada de valores, visão essa nomeada de substantivista. Nessa perspectiva, a tecnologia é carregada de valor substantivo, ou seja, ela já nasce disposta a funcionar de determinada forma, sendo que essa forma já está comprometida com uma visão específica de vida. Seu valor, portanto, não é meramente instrumental; ela não pode, assim, ser usada segundo os diferentes propósitos dos indivíduos e sociedades. Na quarta perspectiva apresentada pelo autor, a tecnologia é vista como carregada de valores e, ao mesmo tempo, humanamente controlável. É chamada de teoria crítica. Segundo o autor, a teoria crítica reconhece os impactos da tecnologia sobre a sociedade, como as suas consequências catastróficas ressaltadas pelo substantivismo, por exemplo, mas ainda vê uma possibilidade de maior liberdade na tecnologia. Nessa perspectiva, a qual o autor se filia, acredita-se que é possível controlar a tecnologia, submetendo-a a processos mais democráticos no momento em que se estabelecem seus projetos, durante a fase de seu desenvolvimento. Assim, ela não é entendida como 25 ferramenta, mas como estrutura de estilos de vida. As escolhas disponíveis para as sociedades situam-se em um nível mais alto do que o instrumental; são, dessa forma, uma meta-escolha, que determina quais valores devem ser incorporados na estrutura técnica da vida em sociedade. Da discussão que faz Feenberg (2010) acerca das principais perspectivas teóricas contemporâneas da filosofia da tecnologia, merece destaque o fato de ele ter colocado a visão de Karl Marx sobre a tecnologia como neutra e determinista. Em suas palavras, “Marx e os teóricos da modernização do período de pós-guerra acreditaram que a tecnologia era o servo neutro das necessidades humanas básicas” (FEENBERG, 2010, p. 48). Júnior et al. (2014), pesquisadores do movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), ao analisarem as contribuições das ideias marxianas para uma discussão crítica das implicações sociais da tecnologia, apoiam-se em pelo menos dois pontos para contestar essa visão. Segundo esses autores, a ideia de materialidade em que Marx se baseia para compreender a sociedade compõe-se de muitos elementos, dentre os quais as inovações tecnológicas. Dessa forma, na perspectiva marxiana, os movimentos na história não poderiam ser explicados unicamente por meio do surgimento de inovações tecnológicas. Eles também se apoiam na ideia de que, embora Marx reconheça que a tecnologia atua sobre a sociedade, uma vez que o emprego de invenções tecnológicas gera redução da força de trabalho, ele também admite que há um movimento contrário, da sociedade influenciando a tecnologia, na medida que o capitalista tende a empregar (o que pressupõe também financiamento para o desenvolvimento) inovações tecnológicas cada vez mais rentáveis. Nesse trabalho, esses autores abordam também uma interessante perspectiva de ciência e tecnologia chamada de salvacionista. Essa “refere-se à crença de que todos os problemas sociais podem ser resolvidos pelo desenvolvimento científico e tecnológico” (JUNIOR et al., 2014, p. 177); em outras palavras, ao entendimento de que para resolver os problemas sociais é suficiente que se invista mais em ciência e tecnologia. Assim, eles contestam a visão linear de desenvolvimento por trás dessa perspectiva, o modelo em que se acredita que desenvolvimento técnico-científico implica necessariamente em mais desenvolvimento tecnológico, econômico e social, pois, a partir 26 das ideias marxianas, concluem que questões de relações sociais influem decisivamente na distribuição dos bens produzidos. Para eles: Somente uma análise muito ingênua leva a crer que um aumento na produção de alimentos implica direta e simplesmente a redução da fome no país [...]. A fome em larga escala não resulta da falta de alimentos, mas da má distribuição dos alimentos produzidos (JUNIOR et al., 2014, p. 183-184). Nesse sentido, colaboram com essa discussão as ideias de Rezende (2016) acerca do conceito de desenvolvimento social. Conforme essa autora, essa noção, de modo geral, adveio de debates ocorridos na América Latina na segunda metade do século XX que giravam justamente em torno da necessidade de superação da ideia de desenvolvimento como equivalente a crescimento econômico e avanço tecnológico. Ao lado de indicativos dessas duas áreas, sociólogos como Celso Furtado (1977) reivindicavam que outros deveriam ser levados em consideração para uma melhor compreensão de desenvolvimento, como a potencialização do bem-estar social, a melhoria da distribuição de renda, de recursos de poder, de condições de moradia, entre outros. Voltando às temáticas de que se ocupa a filosofia da tecnologia, Mitcham (1994), citado por Lenzi (2019), apresenta uma outra classificação dessas discussões. Segundo ele, esses debates estão tradicionalmente polarizados. Há, de um lado, teorizações marcadas por um otimismo diante do avanço tecnológico, as quais ele denomina de “filosofia tecnológica”, sendo que essas geralmente são feitas por engenheiros ou tecnólogos. E, de outro lado, teorizações que tendem a abordar a tecnologia de forma mais crítica e interpretativa, muitas vezes consideradas pessimistas, as quais ele chama de “filosofia hermenêutica da tecnologia”. São aquelas feitas por teóricos das humanidades e que se caracterizam por relacioná-la ao transtécnico, modos de vida humanos que transcendem o fazer tecnológico, como a arte, a literatura, a ética, a política e a religião. 27 2.3 As perspectivas de Mário Bunge e Martin Heidegger Como forma de dar continuidade às discussões filosóficas sobre a tecnologia e sobre as reflexões éticas que ela suscita, apresentam-se, a seguir, as linhas teóricas anteriormente citadas, tomando como base teorizações de Mário Bunge e Martin Heidegger. Para Lenzi (2019), o filósofo argentino Mário Bunge pode ser considerado um representante da filosofia tecnológica, uma vez que ele separa e enfatiza o contexto epistemológico da tecnologia de seu âmbito ético e político em suas análises. Seus postulados, que dão ampla ênfase a conceitos, são importantes por esclarecerem os elementos peculiares do conhecimento tecnológico, ressaltando seus objetivos e métodos, contribuindo para levantar a discussão sobre o que é a tecnologia e os problemas filosóficos que se criam no seu entorno. Como forma de ilustrar essa perspectiva, passa-se, a seguir, a apresentar as discussões acerca do conceito de técnica e tecnologia feitas por Bunge, de acordo com Cupani (2016). Segundo Cupani (2016), Bunge considera que a técnica equivale ao controle ou à transformação da natureza pelo homem, utilizando-se de conhecimentos pré-científicos. Já a tecnologia corresponde à técnica de base científica, surgida a partir do século XVIII junto com a Revolução Industrial. O que caracteriza tanto a técnica quanto a tecnologia, na visão de Bunge, é a produção de algo artificial, que pode ser não somente um objeto, mas a modificação do estado de um sistema natural, como o desvio do curso de um rio, ou a criação de um sistema, como a escrita. Em todos os casos, a ação técnica opera utilizando recursos naturais, transformando-os ou sintetizando-os. Outro elemento que as caracteriza é a previsão de uma planificação, a suposição de um objetivo preciso, ainda que mínimo, para o artefato. Na produção técnica ou tecnológica, os elementos naturais são vistos como recursos, ou seja, em função de sua serventia, e não apreciados pelas suas qualidades inerentes, o que vai resultar na atribuição de valores. Algo vale “x” porque com ele se pode fazer “y”. Essa produção obedece a regras, instruções, sem as quais nenhum artefato funcionaria ou seria utilizável por outros. Essas regras são necessárias, principalmente, porque o objeto final deve ser eficiente, desempenhando a sua função da forma mais econômica possível. 28 O autor acredita que a técnica acompanhou e possibilitou o desenvolvimento da humanidade ao longo da maior parte da história e que o surgimento da tecnologia, por sua vez, foi condição para uma aceleração do progresso humano, pois, para ele, a inércia da vida social, dentro da qual está a técnica tradicional, dificulta o surgimento de inovações. A tecnologia aparece, para Bunge, na medida em que se indaga a fundamentação teórica das regras técnicas ou se busca aplicar conhecimentos científicos à solução de problemas práticos. Ele a define como “[..] conhecimento relativo ao desenho de artefatos e à planificação da sua realização, operação, ajustamento, manutenção e monitoramento, à luz de conhecimento científico” (BUNGE, 1985 apud CUPANI, 2004, p. 496). De acordo com Lenzi (2019), Bunge é herdeiro da tradição iluminista, para a qual a racionalidade constitui o traço característico fundamental do homem. Nessa perspectiva, por meio da racionalidade, o ser humano pode compreender o mundo e a si mesmo de forma objetiva e modificar o meio segundo a sua necessidade. A ciência e a tecnologia figuram, desse modo, como as formas de conhecimento racional por excelência e, portanto, como os melhores meios para auxiliar o homem em suas escolhas. Nesse sentido, de acordo com Cupani (2016), Bunge acredita que todos os problemas práticos humanos podem ser formulados tecnologicamente ou ter uma solução adequada que se fundamente na ciência e na tecnologia. É por isso, defende o autor, que se costuma ver a perspectiva bungeana como otimista, pois Bunge chega a vislumbrar a implementação de uma engenharia social, que consistiria em colocar todos os recursos científicos possíveis para a resolução de problemas sociais, como a fome, a superpopulação e a criminalidade. Martin Heidegger (2007), por sua vez, visando compreender o que seria a essência da técnica, analisa-a em sua chegada à modernidade (o que se pode transpor à ideia de tecnologia), entendendo-a para além da mera conjunção do produzir humano com os conhecimentos científicos. Nessa busca, ele recorre à forma como os gregos viam o fazer na techné grega. De acordo com Heidegger (2007), os gregos viam o ato de produzir baseado em uma lógica de causa e efeito; na qual, entretanto, operaria não somente uma causa, mas quatro, sendo elas denominadas de causa materialis, causa formalis, causa finalis e causa efficiens. A causa materialis corresponde à matéria a partir da qual determinado artefato foi feito, 29 como, no caso de um copo de vidro, aos elementos a partir dos quais se compõe o vidro. Pode-se entender que o copo lhes deve a sua constituição, foi constituído graças a eles. A causa formalis diz respeito à forma, à figura na qual se instala a matéria. A causa finalis corresponde à utilidade para a qual o artefato foi feito, como beber água, no caso do exemplo. E a causa efficiens diz respeito ao artefato acabado, como no exemplo, ao copo em si enquanto objeto. Dessa forma, ao relacionar a concepção da techné grega à ideia de técnica, não seria possível entender esta apenas em termos de meio para se alcançar determinado fim, como costumeiramente se faz, pois assim somente uma de suas causalidades estaria sendo levada em conta, a finalis. Ainda segundo Heiddeger (2007), o produzir na perspectiva grega, com suas quatro causalidadades, pode ser condensado na palavra “ocasionar”, considerada como trazer à presença aquilo que ainda não se apresenta, um levar à frente; e isso não somente no caso daquilo que é produzido artificialmente, mas também daquilo que a partir de si mesmo emerge, como uma planta ao brotar. Esse produzir corresponde a fazer existir aquilo que antes não existia, isto é, a um “desocultamento”. A técnica, dessa forma, equivale a um tirar do abrigo aquilo que estava abrigado, escondido; portanto, é um “desabrigar”. Esse “desabrigar”, com a chegada da ciência moderna, revestiu-se de um novo elemento, um desafiar, o qual estabelece para a natureza a exigência do fornecimento de energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal. Opera por trás desse produzir, de acordo com o autor, a lógica do explorar, transformar, armazenar e distribuir. O que é produzido, nesse novo contexto, essencializa-se ao estabelecer-se em uma posição de subsistência, passando, então, a ser constantemente requerido para ficar depositado e à disposição para o consumo. Assim, na lógica da técnica moderna, tanto os artefatos, ao se essencializarem, passam a ser requeridos, quanto o próprio homem passa a ser requerido para a sua produção. Como forma de condensar essa nova dinâmica do produzir, Heidegger (2007) utiliza a palavra “armação”. E nesse produzir enquanto armação, esse autor chama a atenção para, dentre outras coisas, a necessidade de o homem questionar a técnica, reconhecer sua essência, reconhecer seu papel dentro desse produzir e, ainda, perceber possibilidades produtivas mais originais. 30 Apesar de afirmar que a técnica moderna representa uma “armação” para dentro da qual, a sua revelia, o homem é jogado, pode-se dizer que Heidegger também vê possibilidade de resistência. Isso pode ser percebido observando a sua conferência intitulada “Serenidade” (HEIDEGGER, 2001), um discurso comemorativo proferido por ele no ano de 1955 numa cerimônia em homenagem ao compositor alemão Conradin Kreutzer. Nessa conferência, pode-se alegar que Heidegger (2001) ratifica a força nociva da técnica moderna quando afirma que nos equipamentos e nas construções técnicas há poderes enformados, os quais há muito tempo “solicitam, prendem, arrastam e afligem o homem” (HEIDEGGER, 2001, p. 20), superando a sua vontade e capacidade de decisão. Por outro lado, declara também que faz parte do mundo técnico uma rapidez de veiculação de conteúdos que faz suas realizações “serem o mais rapidamente possível conhecidas e admiradas publicamente” (HEIDEGGER, 2001, p. 20) É importante evidenciar que, embora seja possível entender a velocidade na difusão de conteúdos como ponto positivo da técnica moderna apontado por Heidegger, ele logo trata de fazer uma advertência a esse respeito: “Contudo, uma coisa é termos ouvido ou lido algo, isto é, termos tomado conhecimento disso, outra é conhecermos, isto é, reflectirmos (bedenken) sobre o que ouvimos e lemos” (HEIDEGGER, 2001, p. 21). Essa contraposição do ato de tomar conhecimento de algo, ouvir falar ou ler sobre ele ao ato de conhecer esse algo tem relação com sua concepção de que existem duas formas de pensar, uma que calcula e outra que medita, ambas consideradas legítimas e necessárias. Em conformidade com o que ele propõe, pode-se dizer que o pensamento que calcula seria o que está por trás do fazer tecnológico, diz respeito à concepção de um plano, ao vislumbre de determinados resultados, ao levantamento contínuo de hipóteses novas, sempre com perspectivas maiores e mais econômicas, não envolvendo reflexão no/sobre o processo. O pensamento que medita, contrariamente, seria aquele que se demora, reflete no/sobre o que se faz, em que o indivíduo questiona a relação disso com o seu eu, com suas necessidades, levando em conta a realidade de que faz parte. Assim, Heidegger (2001) defende que no mundo moderno, por ser essencialmente técnico e, dessa forma, engendrar um ritmo de vida cada vez mais veloz, sem tempo para que se medite sobre as coisas, a humanidade tem se empobrecido de pensamento, pois “toma-se 31 conhecimento de tudo pelo caminho mais rápido e mais econômico e, no mesmo instante e com mesma rapidez, tudo se esquece” (HEIDEGGER, 2001, p. 11) . Ele defende que os equipamentos, aparelhos e máquinas do mundo técnico são hoje imprescindíveis, variando em maior ou menor grau de pessoa para pessoa e que, dessa forma, seria inútil querer demonizar o mundo técnico. Adverte, entretanto, que o apego a esses objetos é que torna o homem escravo. Propondo, então, uma saída diante dessa tendência à escravização, ele alega que: Podemos utilizar os objetos técnicos e, no entanto, ao utilizá-los normalmente, permanecer ao mesmo tempo livres deles, de tal modo que os possamos a qualquer momento largar. Podemos utilizar os objetos técnicos tal como eles têm de ser utilizados. Mas podemos, simultaneamente, deixar esses objetos repousar em si mesmos como algo que não interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer “sim” à utilização inevitável dos objetos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer “não”, impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem nossa natureza (HEIDEGGER, 2001, p. 23). A essa postura de dizer “sim” e “não” ao mesmo tempo aos objetos técnicos, ele chama de “serenidade para com as coisas”. Para ele, com essa atitude deixa-se de ver os objetos apenas do ponto de vista da técnica, verifica-se que a fabricação e a utilização de máquinas exigem do homem que ele busque sentido em sua relação com as coisas. A transformação da lavoura e da agriculta em indústria alimentar motorizada, como ele exemplifica, não representa uma simples mudança na forma de fazer as coisas, mas uma transformação profunda na relação do homem com a natureza e com o mundo, sentido esse que, se não buscado, permanecerá obscuro ao homem. Por meio da atitude de dizer “sim” e “não” ao mundo técnico, Heidegger acredita que é possível ao homem manter uma convivência positiva e calma com esse mundo. Ele afirma: “Se, no entanto, dissermos [...] ‘sim’ e ‘não’ aos objetos técnicos, não se tornará a nossa relação com o mundo técnico ambígua e incerta? Muito pelo contrário, a nossa relação com o mundo técnico torna-se maravilhosamente simples e tranquila (HEIDEGGER, 2001, p. 24). Para isso, é necessário que o ser humano desvende o mistério que se instaura por trás das transformações técnicas, em outras palavras, problematize-as, reflita sobre seus condicionamentos e desdobramentos. É necessário que ele crie uma relação em que os objetos dependam dele, e não o contrário; ou seja, que coloque as coisas no lugar de coisas, 32 “que não são algo de absoluto, mas que dependem elas próprias de algo superior” (HEIDEGGER, 2001, p. 24). 2.4 TICs, NTICs, TE e TDICs Na literatura concernente ao âmbito da tecnologia na educação, é comum encontrar a utilização das nomenclaturas “tecnologias da informação e comunicação” (TICs), “novas tecnologias da informação e comunicação” (NTICs), “tecnologias educacionais” (TE) e também “tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs)”. Diante dessa variabilidade de terminologias para se referir a, aparentemente, uma mesma coisa, a presente seção tratará de cada uma delas, com o intuito de ampliar a discussão sobre a relação entre os instrumentos tecnológicos da informação e comunicação e a educação na atualidade e, ao mesmo tempo, de justificar a adoção da nomenclatura TDIC na pesquisa. Segundo Coll e Monereo (2010), as TICs são aquelas capazes de representar e transmitir informações, tornando-se, dessa forma, instrumentos para refletir, aprender, conhecer, representar e difundir para outras pessoas e gerações os conhecimentos adquiridos. Segundo eles, para representar e transmitir uma determinada informação essas tecnologias possuem um mesmo princípio: a utilização de sistemas de signos, como linguagem oral, linguagem escrita, imagens estáticas, imagens em movimento, símbolos matemáticos, entre outros. A terminologia NTICs, conforme Kenski (2007), faz referência ao avanço das tecnologias digitais de comunicação e informação e da microeletrônica no tempo. É uma expressão variável e que carece de contextualização, confundindo-se, em muitos casos, com o conceito de inovação. Com a rapidez do desenvolvimento tecnológico atual, a autora acredita que fica difícil estabelecer o limite de tempo que se deve considerar para designar os conhecimentos, instrumentos e procedimentos que vão aparecendo como “novos”. Como explica Ponte (2000), durante muitos anos falou-se apenas no computador. Depois, com a proeminência que os periféricos começaram a ter, como impressoras, plotters, scanners etc., começou-se a falar em novas tecnologias de informação (NTI). Com a 33 associação entre informática em telecomunicações, generalizou-se o termo tecnologias de informação e comunicação (TIC). Percebe-se, portanto, que TICs e NTICs dizem respeito, em geral, a tecnologias físicas (TAJRA, 2011), instrumentos por meio dos quais é possível informar e comunicar. O diferencial entre ambas estaria na referência temporal de novidade, no status de inovação que a segunda nomenclatura sinaliza. A terminologia tecnologias educacionais (TE), por sua vez, diz respeito aos recursos tecnológicos aplicados no âmbito educacional, corresponde ao uso de diversas ferramentas de comunicação e informação e materiais dentro de um processo de ensino e aprendizagem, com objetivos específicos (BRITO e PURIFICAÇÃO, 2008; TAJRA, 2011). Como as autoras supracitadas consideram o computador como uma TE, percebe-se que, tomando suas teorizações como parâmetro, a diferença entre TE e TICs diria respeito apenas à perspectiva com que se olha para esses artefatos. As autoras, no caso, consideram o computador uma TE porque enfocam as suas possibilidades educacionais. Todavia, neste trabalho entende-se que TICs e TEs não são a mesma coisa. Sabe-se que existem artefatos que, assim como as TICs, se prestam a difundir informação e estabelecer comunicação, mas que foram desenvolvidos exatamente para serem utilizados em contextos educativos, com o objetivo de auxiliar no processo de ensino e aprendizagem. Esses seriam as TEs. Já as TICs são produzidas para informar e comunicar de forma mais ampla, nos mais variados contextos e com os mais diversos propósitos. Apoia o estabelecimento dessa diferenciação a constatação de que o Fundo Nacional de Desenvolvimento, autarquia vinculada ao Ministério da Educação, publica editais para a contratação de tecnologias educacionais e, como consta em seu último Edital (BRASIL, 2018b), as TEs são produtos digitais, ferramentas ou aparatos inovadores desenvolvidos para apoiar o processo de ensino e aprendizagem, integrados a uma proposta pedagógica teoricamente fundamentada e que se prestam a trabalhar conteúdos educacionais específicos, facilitando as atividades dos sujeitos envolvidos. A nomenclatura TDICs, como o próprio nome já aponta, por sua vez, representa a entrada do aspecto digital nas tecnologias eletrônicas de comunicação e informação, mais precisamente da linguagem digital. De acordo com Kenski (2007), essa é uma linguagem 34 simples, baseada em códigos binários, por meio da qual é possível informar, comunicar, interagir e aprender. Segundo Ribeiro (2019), tecnologia digital diz respeito a um conjunto de tecnologias que permite, sobretudo, que qualquer linguagem ou dado seja transformado em números, isto é, em zeros e uns (0 e 1). Uma imagem, um som, um texto, ou a convergência de todos eles, que aparecem em sua forma final na tela de um dispositivo digital, na forma de imagem fixa ou em movimento, som ou texto verbal, por exemplo, são traduções em números que podem ser lidas por dispositivos variados, chamados, genericamente, de computadores. Desse modo, há uma estrutura que dá suporte a essa linguagem no interior dos aparelhos constituída de programações que não se veem. Kenski (2007) comenta que a tecnologia digital, na condição de linguagem, ultrapassa tanto a forma circular e repetida das narrativas orais quanto o encaminhamento contínuo e sequencial da escrita, apresentando-se como um fenômeno descontínuo, aberto e veloz. Com ela, deixa-se de lado a estrutura linear e hierárquica na articulação dos conhecimentos e se abre para o estabelecimento de novas relações entre conteúdos, ideias, espaços, tempos e pessoas. Diante do exposto, pode-se considerar as tecnologias digitais de informação e comunicação como um subgrupo das tecnologias de informação e comunicação, sendo que deste também fazem parte as tecnologias da informação e comunicação não digitais, como o livro e o jornal impressos, por exemplo. Em se tratando de tecnologia e ensino, vale mencionar que a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018a), referência para a formulação dos currículos de todas as escolas do país, dá grande foco às tecnologias digitais de informação e comunicação. Ao observar esse documento, foram encontradas 20 ocorrências dessa nomenclatura, 41 da expressão mais genérica “tecnologia digital”, 3 da expressão “tecnologias de informação e comunicação”, 2 da nomenclatura “novas tecnologias de informação e comunicação”, 2 da expressão “novas tecnologias digitais de informação e comunicação” e nenhuma ocorrência da expressão “tecnologia educacional”. Um exemplo do uso da nomenclatura “tecnologia digital de informação e comunicação” pode ser visto na 5ª competência geral para a educação básica estabelecida pelo documento: 35 Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva (BRASIL, 2018, p. 9). A BNCC pode ser considerada como um construto em que se condensam as visões dos profissionais envolvidos com a educação e da sociedade civil como um todo, no que diz respeito às suas concepções e anseios para a educação do país. Assim, diante da grande atenção dada às TDICs no documento, deve-se admitir que, na atualidade, a reflexão sobre o subgrupo das TDICs no processo de ensino e aprendizagem é crucial. 2.5 As TDICs e a Sociedade da Informação Nesta seção pretende-se discutir sobre o contexto histórico, econômico e cultural em que as tecnologias digitais de informação e comunicação passaram a influenciar de maneira mais decisiva o cotidiano das pessoas. Para isso, aborda-se a compreensão desse período histórico enquanto constituição de uma sociedade da informação, verifica-se de que forma a evolução das TICs serviu como base à formação de um novo paradigma social e discorre-se sobre o surgimento de uma nova cultura baseada na interatividade proporcionada pelas mais recentes TDICs. Como afirmam Coll e Monereo (2010), já faz algumas décadas que se presencia o advento de uma nova forma de organização econômica, social, política e cultural identificada, por muitos autores, entre outras formas, como sociedade da informação. Esse novo contexto social, segundo os autores, tem como base, principalmente, o grande desenvolvimento das TICs, ocorrido durante a segunda metade do século passado. Para eles, o processo de liberalização crescente pelo qual passou a economia nesse período propiciou o reposicionamento de empresas, a diminuição das taxas de importação, a abertura dos investimentos internacionais, a privatização de empresas estatais; em outras palavras, permitiu que o mundo pudesse ser visto como um grande mercado. Os autores afirmam que as TICs, na condição de causa e efeito, têm sido determinantes nessa transfiguração. 36 Tremacoldi (2011) explica que, em meio a tentativa de compreensão dessa nova realidade por parte da teoria sociológica, há um certo consenso de que o capitalismo entrou numa fase diferente daquela em que o capital industrial era o principal motor do sistema. Ele afirma que essa ideia surgiu entre as décadas de 1960 e 1970, defendida pelos autores Daniel Bell e Alain Touraine, os quais proclamavam o nascimento de uma sociedade pós-industrial. Essa nova sociedade, conforme Tremacoldi (2001), teria como principais características a perda do papel dominante da indústria na economia, a queda do número de trabalhadores manuais e o aumento da taxa de profissionais com conhecimento técnico, mudança sinalizadora de que o conhecimento passaria a assumir um lugar central nas decisões políticas e econômicas, e de que as tecnologias empregadas seriam cada vez menos de produção e envolveriam cada vez mais informação. Ainda de acordo com o autor, anos mais tarde, em virtude da preponderância das tecnologias de informação e comunicação, Daniel Bell reformulou sua teoria e passou a chamar essa nova sociedade de sociedade da informação. Burch (2005) afirma que Bell passou a advogar que o eixo principal dessa sociedade seria o conhecimento teórico e a advertir que os serviços baseados no conhecimento seriam convertidos na estrutura central da nova economia de uma sociedade sustentada na informação. Segundo Nehmy e Paim (2008), Bell chegou a essas conclusões com base na análise de estatísticas sobre a estrutura de empregos nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1970, quando percebeu a superação do crescimento do setor de serviços em relação ao emprego industrial. Ele chamou atenção para o aumento da quantidade de postos de trabalho relacionados ao conhecimento, da classe profissional e técnica, de ocupações ligadas à pesquisa e ao governo, de engenheiros e cientistas. Assim, de acordo com Ferreira (2003), Bell foi capaz de prever o alvoroço que o desenvolvimento das tecnologias de computação e comunicação iriam trazer e escreveu sobre elas antes de sua grande expansão. É interessante perceber que, como lembram Nehmy e Paim (2008), apesar de a questão dos empregos ser a tese que anunciava a sociedade pós-industrial, é a noção de conhecimento que ocupou lugar de destaque em suas teorizações. Dessa forma, o autor passou a advogar que a sociedade pós-industrial seria uma sociedade do conhecimento porque as fontes de inovação passariam a decorrer, cada vez mais, do desenvolvimento com base em pesquisa. 37 Manuel Castells é um outro importante autor que aborda esse contexto de mutação social amparado pelas tecnologias até os dias mais contemporâneos. No lugar de “sociedade da informação”, no entanto, ele utiliza a expressão “sociedade informacional” (CASTELLS, 2010). Esse autor considera o contexto de mudanças sociais em paralelo ao surgimento dos artefatos tecnológicos como uma verdadeira revolução tecnológica. Para Castells (2010), essas mudanças correspondem a um evento histórico da mesma importância da Revolução Industrial do século XVIII, representando uma descontinuidade nas bases materiais da economia, da sociedade e da cultura. O autor lembra que a história das revoluções tecnológicas mostra que todas elas se caracterizaram por sua penetração em todos os domínios da vida humana. O cerne da transformação que ainda estaria curso referir-se-ia, para ele, às tecnologias da informação, processamento e comunicação. De acordo com esse autor, houve um conjunto de grandes avanços tecnológicos nas duas últimas décadas do século XX, no que diz respeito a materiais, fontes de energia, aplicações na medicina, técnicas de produção, tecnologias de transporte, entre outras. Além disso, esse processo de transformação tecnológica tem crescido exponencialmente por sua capacidade de criação de interface entre diferentes campos tecnológicos mediante o uso de linguagem digital comum, por meio da qual a informação é gerada, armazenada, processada e transmitida. Castells (2010) afirma que, a partir da década de 1970, as tecnologias da informação difundiram-se amplamente, acelerando seu desenvolvimento sinérgico e, assim, convergindo em um novo paradigma econômico e tecnológico: o paradigma da tecnologia da informação, o qual tem como características: 1. A informação como matéria prima. Sendo assim, trata-se de tecnologias para agir e atuar sobre a informação, não apenas informações para agir sobre as tecnologias, como ocorreu nas revoluções tecnológicas anteriores. 2. A penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias. Como a informação perpassa todas as atividades humanas, todos os processos de nossa existência individual e coletiva acabam sendo diretamente moldados, embora não determinados, pelos novos meios tecnológicos. 38 3. O estabelecimento de uma lógica de redes em qualquer sistema e conjunto de relações, por meio do uso das novas tecnologias de informação. A estrutura da rede parece capaz de adaptar-se à crescente complexidade de interação e às suas imprevisíveis expansões advindas do poder criativo das interações. 4. A flexibilidade na base do paradigma. O que diferencia a configuração do novo paradigma tecnológico é justamente a sua capacidade de reconfiguração. 5. A progressiva convergência de tecnologias distintas para um sistema fortemente integrado, no qual tecnologias antigas ficam impossíveis de se verem em separado. Vale lembrar que a perspectiva da “sociedade da informação” diz respeito a apenas uma das formas de entender essa nova sociedade. Há também uma teoria chamada de pós- fordista, uma visão surgida entre as correntes de esquerda do espectro ideológico que se caracteriza por uma crítica à perspectiva pós-industrial por vê-la como uma fase da ideologia burguesa e por esta dar atenção às mudanças econômicas em paralelo à tecnologia. Há ainda uma perspectiva chamada de pós-moderna que, por sua vez, tem foco maior nas questões culturais, amparada em uma ideia de superação da modernidade (KUMAR, 1997). No mundo contemporâneo, como defende Sancho (2006), torna-se difícil negar a influência das tecnologias da informação e comunicação. Nesse contexto, duas tecnologias destacam-se bastante: o computador e a internet. Brito e Purificação (2011) afirmam que o surgimento do computador remonta à década de 1940, ao contexto da Segunda Guerra Mundial, sendo que o microcomputador, a forma como se o conhece atualmente, chegou ao mercado na década de 1980. A popularidade desses aparelhos veio com a criação de programas dedicados à edição de textos, à criação de planilhas, à comunicação, passando, assim, a serem adotados por empresas e profissionais como instrumento de trabalho. Já a internet foi a grande inovação da década de 1990, que promoveu grandes mudanças, interferindo na estrutura dos diferentes sistemas e transformando as relações e as comunicações globais. Coll e Monereo (2010) veem o advento da internet não apenas como mais uma nova tecnologia, mas como a manifestação do novo paradigma tecnológico e das transformações socioeconômicas e socioculturais. Nessa mesma linha de raciocínio, Castells (2003) afirma que ela é um meio de comunicação que permitiu, pela primeira vez, a comunicação de muitos 39 com muitos em escala global. Para ele, ela é uma tecnologia particularmente maleável, passível de ser profundamente alterada pelas práticas sociais e propícia a uma série de resultados sociais potenciais a serem descobertos pela experiência, não ditáveis aprioristicamente. Com o advento do computador e da internet, Lévy (2010) chama a atenção para o fenômeno da virtualização da comunicação por meio do procedimento técnico da digitalização. Esse autor defende que, por meio dessa capacidade de virtualização, criou-se uma nova dimensão social chamada de ciberespaço; como ele diz, “eu defino o ciberespaço como o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial de computadores e das memórias dos computadores” (LÉVY, 2010, p. 94). O estabelecimento desse espaço, por sua vez, deu vazão ao surgimento de uma nova forma de cultura, a cibercultura, uma sinergia entre a vida social e os dispositivos eletrônicos e suas redes telemáticas (LEMOS, 2010). O ciberespaço não é uma infraestrutura técnica particular de telecomunicações, mas uma certa maneira de usar as infraestruturas existentes, por mais imperfeitas e sem sentido que possam parecer. Ele corresponde a um percurso particular de relação entre as pessoas, cuja autoestrada é eletrônica, composta de um conjunto de softwares, de cabos de cobre ou de fibras óticas, de ligação por satélite, entre outras (LÉVY, 2010). De acordo com Lemos (2010), o ciberespaço constitui o mais recente desenvolvimento da evolução da linguagem. Com ele, os signos da cultura, textos, música, imagens, mundos virtuais, simulações, softwares, moedas atingem o último estágio de digitalização, tornando-se, dessa forma, ubiquitários na rede, ou seja, passam a estar em algum lugar e em toda a parte ao mesmo tempo. Para esclarecer o que seria o ciberespaço, o autor faz uma analogia a história dos Correios. Segundo ele, as técnicas materiais e organizacionais dos correios já existiam na China desde a mais remota Antiguidade. Até o século XVIII, entretanto, os sistemas de correio organizavam-se em torno de um governo central de onde saiam ordens e aonde chegavam notícias dos variados pontos do reino. A partir de então, todavia, passou a vigorar um serviço postal com lógica de ponto a ponto, em que os mais diferentes indivíduos passaram a corresponder-se entre si, e não mais somente do centro para a periferia e vice- versa. Dessa forma, estabeleceu-se um sistema social de comunicação que oportunizou o florescimento das correspondências econômicas, administrativas, a literatura epistolar, a 40 república europeia dos espíritos, o estabelecimento uma rede de sábios e filósofos, as cartas de amor etc. Assim, da mesma maneira que a correspondência entre pessoas fez surgir o verdadeiro uso do correio, o ciberespaço, para o autor, equivale ao verdadeiro uso da rede telefônica e do computador pessoal. Ele pode ser entendido, conforme Lévy (2010), como prática de comunicação interativa, recíproca, comunitária e intercomunitária, como um horizonte do mundo virtual vivo, heterogêneo e intotalizável, do qual todos podem participar e com o qual todos podem contribuir. Segundo Lemos (2010), hodiernamente as novas tecnologias parecem caminhar para uma forma de onipresença, imiscuindo-se de maneira radical e quase imperceptível ao nosso ambiente cultural através de seu movimento de tornar-se cada vez mais micro e ainda de seu devir estético. Esse movimento ocasiona até mesmo a aproximação da tecnologia contemporânea do prazer estético e do compartilhamento social. Ainda de acordo com o autor, hoje essa cibercultura faz parte do cotidiano e pode- se dizer que ela é uma realidade na maioria dos países. Além disso, há quem sugira que nem faça mais sentido falar em ciberespaço ou em internet, pois “estarmos caminhando para a ubiquidade total das redes, ou seja, para o seu retraimento em um fundo de coisas e mineração de dados” (LEMOS, 2010, p. 10). Para o autor, tudo isso ocasiona também uma crise de modelos culturais, já que a cultura de massa industrial foi abalada pela cultura pós-massiva dos novos produtos e serviços da cultura digital contemporânea, pós-massiva no sentindo de que usuário antes unicamente consumidor das mídias tradicionais, por meio do uso das novas tecnologias e do ciberespaço, pode passar agora a ser também produtor e distribuidor de produtos culturais. 2.6 A integração das TDICs no ensino Nos últimos anos, vivenciam-se significativas alterações nas diferentes esferas sociais impulsionadas pelas inovações tecnológicas digitais, que tão velozmente se apresentam e se inserem na sociedade (KENSKI, 2013). Essas inovações têm produzido uma 41 sorte de redefinições nos processos de produção e trabalho, no processamento das informações e na administração dos conhecimentos (MARFIN; PESCE, 2019). Esse processo de entrada das inovações tecnológicas no mercado como um todo, Agustinho e Garcia (2018) chamam de difusão tecnológica; em outras palavras, essa expressão refere-se à chegada de produtos, serviços, processos, métodos ou sistemas que não havia antes ou que se diferenciam do padrão em vigor. Bozeman (2000), por sua vez, conceitua difusão tecnológica como o movimento de transmissão de artefatos tecnológicos ou conhecimentos técnicos de uma organização para outra. Para a esfera escolar, afirma Moran (2013), a dinâmica da incorporação das TDICs tem trazido inúmeras possibilidades, ao mesmo tempo em que tem desestabilizado as instituições com relação, por exemplo, ao que manter, ao que alterar e ao que adotar. Essa instabilidade trazida pelo digital, apontada pelo autor, não diz respeito somente a um acompanhamento do avanço dos diferentes aparatos tecnológicos, o que, como adverte Silva (2010), muitas vezes a funciona meramente como marketing; mas diz respeito, principalmente, como afirma Kenski (2013), ao reconhecimento de que as TDICs provocaram uma verdadeira revolução na própria compreensão tradicional de construção do conhecimento. Nesse sentido, Kenski (2013) sustenta que o processo de construção do conhecimento, tradicionalmente concebido como linear, estruturado e previsível, na era digital tem ganhado cada vez mais um o caráter de multiplicidade e atualização, uma vez que múltiplas informações podem ser acessadas simultaneamente, sem ordem cronológica, sequência e hierarquia. O advento da linguagem digital, por meio da qual as informações viajam nas infovias, é visto por Castells (2010) como algo que tem promovido transformações na comunicação humana tão profundas quanto a invenção do alfabeto promoveu há mais 2 mil anos. O que há de inédito nessa nova configuração de linguagem, para ele, é a sua constituição hipertextual, a partir da qual se torna possível integrar as modalidades escrita, oral e audiovisual. Kenski (2003) afirma que o aspecto digital engendra, obrigatoriamente, não apenas o uso de novos equipamentos para a produção e a apreensão do conhecimento, mas também novos comportamentos de aprendizagem, novas racionalidades, novos estímulos perceptivos. 42 E diante do rápido alastramento e multiplicação das TDICs em novos produtos e em novas áreas, a autora considera que não se pode mais ignorar presença e importância dessas tecnologias. Seguindo essa linha de raciocínio, Behrens (2013) defende que as instituições de ensino não têm como ficar indiferentes a essas mudanças. Nesse sentido, Moran (2012) afirma que a educação formal passa por um momento de transição. Para ele, ela nem está mais no modelo industrial, por mais que se mantenham muitas de suas estruturas organizacionais e mentais; nem está no modelo da sociedade do conhecimento, embora incorpore em parte alguns dos seus valores e expectativas. A sociedade do conhecimento, na visão desse autor, corresponde à compreensão de que “a educação é um processo que ocorre no seio da sociedade, [...] que afeta todas as pessoas, o tempo todo, em qualquer situação e de todas as formas possíveis” (MORAN, 2012). Segundo ele, portanto, toda a sociedade educa ao fazer circular ideias, valores e conhecimentos, sendo que essa circulação ganhou novos contornos com as novas formas de acesso e distribuição das informações proporcionadas pelas TDICs. Moran (2012) afirma também que, enquanto a sociedade tem mudado, experimentado desafios mais complexos, a educação formal tem continuado, de maneira geral, organizada de modo previsível, repetitivo, burocrático e, por conseguinte, pouco interessante. Há, portanto, um crescente descompasso entre os modelos tradicionais de ensino e as novas possibilidades que a sociedade já desenvolve informalmente utilizando as tecnologias digitais. Ainda assim, ele acredita que essas tecnologias adentrarão cada vez mais na educação formal, passando a desempenhar muitas das tarefas que os professores sempre desenvolveram. A atividade de transmitir conteúdos, por exemplo, dependerá cada vez menos dos professores, porque cada vez mais se dispõe de um vasto arsenal de materiais digitais sobre qualquer assunto. Percebe-se, portanto, que a prática de ensino como transmissão de conteúdos deixa ainda mais de fazer sentido nesses tempos de grande acesso à informação e de estruturação das sociedades em torno do conhecimento, como ratifica Roldão (2007). Em um passado mais distante, acredita essa autora, essa visão assumia um significado socialmente pertinente, pois o saber disponível era muito menor, pouco acessível, e o seu domínio ficava limitado a 43 um número restrito de indivíduos. Esse contexto, lembra ela, compreende de modo geral o desenvolvimento da escolaridade até o final da primeira metade do século XX. É importante destacar que, ao conceber a educação como um processo que ocorre em todos os espaços, Moran (2012) não deseja menosprezar o papel da escola formal, reconhecida por ele como um dos espaços definidos por meio de diretrizes políticas onde as sociedades explicitam seus valores básicos fundamentais em cada momento histórico. Percebe-se, ao invés disso, que suas ideias se orientam no sentido de discutir algumas alterações na organização e no funcionamento dessa instituição, necessárias à sua ressignificação e, portanto, à sua valorização na atualidade. Aranha (2006) deixa claro esse raciocínio ao afirmar que os contratempos pelos quais passa a instituição escolar na contemporaneidade não apontam que ela deva ser renegada, mas sim indicam a necessidade de que sejam repensadas as suas funções e redefinidos os valores que a têm sustentado. Acerca das alterações na relação entre os indivíduos e o saber em virtude da intensificação do uso de tecnologias, que certamente afetam os processos de ensino da educação formal na contemporaneidade, Lévy (2010) defende que elas precisam ser vistas dentro do contexto da cibercultura. Assim, ele aponta três desdobramentos desta que ajudam a explicar melhor essas alterações. O primeiro deles é o fato de que, nesse contexto, aceleraram-se o surgimento, a circulação e, portanto, a renovação dos saberes e dos savoir-faire, ou seja, intensificou-se a obsolescência dos conhecimentos. O segundo, diz respeito à ocorrência de uma alteração na natureza do trabalho em virtude de seu âmbito de troca de conhecimentos ter passado a ser cada vez mais crescente, de ele envolver cada vez mais processos de aprendizagem, troca de saberes e produção de conhecimentos. O terceiro concerne à emergência de tecnologias intelectuais capazes de modificar numerosas funções cognitivas humanas, tais como a memória, por meio dos bancos de dados; a imaginação, a partir das simulações, e a percepção, por meio das realidades virtuais. Para Lévy (2010), as tecnologias intelectuais favorecem novas formas de acesso à informação por meio da navegação por hiperdocumentos, busca de informações através de mecanismos de pesquisa e exploração conceitual através de mapas dinâmicos, por exemplo. Elas favorecem, ainda, novos estilos de raciocínio e de conhecimento, tais como a simulação, que, para ele, representa uma verdadeira industrialização da experiência do pensamento, pois 44 não é oriunda nem da dedução lógica nem da indução a partir da experiência. Para esse autor, as memórias dinâmicas, substanciadas em documentos digitais ou programas disponíveis na rede, aumentam o potencial de inteligência coletiva dos grupos sociais por poderem ser facilmente compartilhadas. A inteligência coletiva, teorizada por Lévy (2010), diz respeito ao conjunto de conhecimentos que vão se produzindo no/a partir do ciberespaço. Por meio das interações entre os indivíduos nesse lugar, eles vão aprendendo uns com os outros, intercambiando e valorizando os mais diversos saberes, independentemente de serem oficialmente válidos. Em suas palavras, essa é “uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências” (LÉVY, 2010, p. 28). Nessa lógica, defende o autor, o saber-fluxo, a forte transação de conhecimentos como parte do trabalho e as novas tecnologias da inteligência mudam profundamente o cenário da educação. O autor propõe que, no lugar de uma representação em escalas, em níveis, organizada pela noção de pré-requisitos, deva-se vislumbrar espaços de conhecimentos emergentes, abertos, contínuos, não lineares, que podem ser organizados de acordo com os objetivos ou contextos e nos quais cada indivíduo ocupe uma posição singular e evolutiva. Assim, o essencial, de acordo com ele, encontra-se em um novo estilo de pedagogia, que favoreça as aprendizagens personalizadas e, ao mesmo tempo, a aprendizagem coletiva em rede. Nesse contexto, o autor sustenta que é importante que o professor se torne um estimulador da inteligência coletiva de seus grupos de alunos, em vez de um fornecedor de conhecimentos. Percebe-se, dessa forma, que Lévy complementa as ideias de Moran (2012) e Roldão (2007), de que a função primordial do professor não pode mais ser a de difusão de informações, postulando que sua competência deve se deslocar no sentido de incentivar a aprendizagem e o pensamento dos alunos, focar-se no acompanhamento e na gestão de suas aprendizagens, no estímulo à troca de saberes entre eles, na mediação relacional e simbólica, e na condução singularizada de seus percursos de aprendizagem. Esse tipo de condução, Bacich e Trevisani (2015) chamam de personalização do ensino, que ocorre por meio do desenvolvimento de atividades que partam daquilo que o aluno já sabe e tenham como meta 45 o que ele ainda precisa aprender, levando em consideração suas necessidades, dificuldades e evolução. Essas ideias vão ao encontro do que defende Masetto (2013) sobre a docência na contemporaneidade, sobretudo no ensino superior. Para ele, faz-se necessário que o professor estimule os alunos a novas práticas, tais como a pesquisa de novas informações, o exercício da criticidade diante da grande quantidade de informações disponíveis, a comparação e a análise dos dados, de forma que os alunos possam compor seu pensamento próprio e estabelecer colaboração científica entre si. Ele considera fundamental também incentivar os alunos ao domínio das tecnologias digitais como possibilidade de encontro de novos caminhos, como recursos a serviço da pesquisa e da estruturação e comunicação do pensamento. É interessante observar que essas atividades elencadas por Masetto (2013) para o trabalho pedagógico relacionam-se ao que Cescon (2019) entende como produção de conhecimento na contemporaneidade. De acordo com ele, mesmo que hoje exista o que se chama de Inteligência Artificial, que se caracteriza pela capacidade de simulação de atividades do cérebro humano, os processos desempenhados por ela não podem ser considerados como construção de conhecimento, uma vez que: Esse conhecimento miserável de sinais não é, na verdade, conhecimento nenhum. Conhecimento significa reflexão, e não um mero reflexo, e reflexão não significa apenas que alguém funcione, mas também que esse alguém possa refletir sobre tal função e questionar o seu sentido (CESCON, 2019, p. 49). Esse autor defende que o verdadeiro conhecimento não nasce do nada, mas resulta da mobilização de conhecimentos anteriores, que são reelaborados e recompostos pelo sujeito. Dessa forma, para gerar conhecimento novo, é preciso organizar atividades como pesquisar, elaborar, redigir textos, argumentar, contra-argumentar, com o objetivo de chegar a um saber autônomo. Moran (2012) afirma que o ato de conhecer envolve dois processos, um não estruturado, chamado de divergente, e outro organizado, chamando de convergente. O primeiro concerne ao movimento de exploração das possibilidades, de procura, de busca do 46 novo; o segundo, diz respeito à etapa de sistematização, organização, estruturação e seleção daquilo que foi encontrado. Nesse sentindo, o autor defende que o uso de TDICs pode tanto servir ao processo divergente, sendo usadas, por exemplo, como ponto de partida para a abordagem de um assunto, com o intuito de fornecer informações, provocar diferentes reações nos alunos, desestabilizar seus conhecimentos; quanto para o processo convergente, para confirmar uma teoria, ilustrar uma ideia, auxiliar os alunos a sintetizarem a temática anteriormente trabalhada. Esse autor sustenta que, como educar é um processo dialético, o professor deve criar situações para que haja uma alternância equilibrada entre esses dois processos, que ele ajude, dessa forma, o aluno a construir uma lógica para as informações encontradas e também a questionar essa lógica estruturada, para construir novas compreensões. Pode-se dizer que essas importantes ações previstas para docentes e alunos são atividades que podem ser aprimoradas com o uso de TDICs, tendo-se em vista a afirmação de Lévy (2010) de que a apropriação dessas tecnologias pelos indivíduos é passível de construção de novos significados. Eles podem reinterpretar suas possibilidades e deslocar o seu fim técnico pré-determinado por meio da criatividade, ressignificando as suas funções e permitindo que os eles próprios encaminhem as suas dinâmicas de acordo com as suas determinações. Moran (2012) distingue três formas de uso dessas tecnologias no ensino. Elas podem ser usadas para fazer melhor aquilo que já era feito, para promover mudanças parciais e para implementar mudanças inovadoras. O professor faz melhor o que já fazia com o uso de tecnologias quando, por exemplo, utiliza-as para organizar os textos do conteúdo da disciplina, para expor o conteúdo, ilustrar as aulas, criar planilhas de avaliação e quando usa a internet como base de dados para pesquisa. Ele cria novos espaços ao trabalhar com vídeos tirando os alunos da posição de meros espect