UNIVERSIDADE DO VALE DO TAQUARI – UNIVATES CURSO DE DESIGN AS RAÍZES DE DANDÁ: LITERATURA INFANTIL E DESIGN EDITORIAL PARA O EMPODERAMENTO DE MENINAS NEGRAS Ana Laura de Paoli Costa Lajeado/RS, junho de 2021 Ana Laura de Paoli Costa AS RAÍZES DE DANDÁ: LITERATURA INFANTIL E DESIGN EDITORIAL PARA O EMPODERAMENTO DE MENINAS NEGRAS Monografia apresentada à disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, do curso de Design, da Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES como parte da exigência para a obtenção do título de Bacharel em Design. Orientador: Prof. Me. Rodrigo de Azambuja Brod Lajeado/RS, junho de 2021 Ana Laura de Paoli Costa AS RAÍZES DE DANDÁ: LITERATURA INFANTIL E DESIGN EDITORIAL PARA O EMPODERAMENTO DE MENINAS NEGRAS A banca examinadora abaixo aprova a Monografia apresentada à disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, do Curso de Design, da Universidade do Vale do Taquari – Univates, como parte da exigência para a obtenção do título de Bacharel em Design: Prof. Me. Rodrigo de Azambuja Brod Orientador Universidade do Vale do Taquari Prof. Me. Bruno da Silva Teixeira Avaliador 1 Universidade do Vale do Taquari Profa. Ma. Raquel Barcelos de Souza Avaliador 2 Universidade do Vale do Taquari Lajeado/RS, junho de 2021 AGRADECIMENTOS À minha família, por acreditar em mim e me ensinar sobre o valor das minhas raízes. Ao meu namorado, por todo apoio e afeto durante este período. Aos meus professores, os quais durante toda a graduação me inspiraram a buscar mudanças positivas por meio do design. Em especial ao meu orientador Rodrigo, por despertar em mim a vontade de explorar novos caminhos na área. Obrigada por dividir tuas experiências, conhecimento e por me tranquilizar em todo este processo. Aos meus amigos, obrigada pelas palavras de conforto. A todos que se dispuseram a ajudar no desenvolvimento deste projeto, muito obrigada. Por fim, deixo a minha admiração à todas as mulheres que me inspiram por meio de suas vivências e sua força. “As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar.” (Chimamanda Ngozi Adichie, 2009) RESUMO A vida de mulheres negras é marcada por um cruzamento de opressões nos âmbitos de raça, gênero e classe. Desde suas infâncias, precisam lidar com a exclusão social, falta de direitos básicos e o racismo, tendo um impacto direto na construção da sua identidade e de sua autoestima. Os padrões estéticos estabelecidos socialmente e a estereotipação do corpo negro podem dificultar o processo de autoaceitação da menina negra, fazendo com que ela negue seus traços e suas origens. Desta forma, o empoderamento e a representatividade possuem grande relevância para que a criança desenvolva uma imagem positiva sobre si mesma e seu grupo social. Neste contexto, o design assume um papel ativista ao buscar soluções para problemas enfrentados pelas minorias, por meio do desenvolvimento da narrativa e do projeto gráfico do livro As Raízes de Dandá que, em suas 32 páginas, busca valorizar as raízes do povo negro. Este trabalho guiou-se pela metodologia Human Centered Design (IDEO, 2009), complementada por ferramentas projetuais de Bruno Munari (1981) e influência do trabalho do designer e autor Gustavo Piqueira. Para compreender as vivências de meninas negras realizou-se entrevistas com profissionais, pesquisa qualitativa com adolescentes e mulheres pretas e atividade artística com crianças. Buscou-se verificar como as linguagens verbal e visual se relacionam no livro ilustrado, por meio de uma análise de similares. Em relação à construção do projeto, desenvolveu-se a narrativa e o conceito visual das personagens, seguidos pela definição de aspectos do projeto gráfico e sua prototipação. O projeto editorial passou por duas etapas de validação, uma delas com uma especialista em literatura e outra com uma criança. Por fim, desenvolveu-se um plano de implementação para que, futuramente, o livro auxilie o empoderamento de meninas negras e inspire crianças por todo país. Palavras-chave: Design editorial. Livro infantil ilustrado. Empoderamento. Representatividade. Meninas negras. ABSTRACT Black women's lives are marked by an intersection of oppression in terms of race, gender and class. Since their childhood, they have to deal with social exclusion, lack of basic rights and racism, which has an immediate impact on the construction of their identity and self-esteem. The aesthetic standards socially established and the stereotyping of the black body can hinder the black girl's self-acceptance process, causing her to deny her features and her roots. Thus, empowerment and representativeness have great relevance for children to develop a positive image about themselves and their social group. In this context, design assumes a social an activist role by seeking solutions to problems faced by minorities, through the development of the narrative and graphic project of the book As Raízes de Dandá, which, in its 32 pages, seeks to value the roots of black people. This work was guided by the Human Centered Design methodology (IDEO, 2009), complemented by Bruno Munari's design tools (1981) and influence of the work of the designer and author Gustavo Piqueira. To understand the experiences of black girls there were made interviews with professionals, qualitative research with black teenagers and women, and artistic activities with children. The aim was to verify how verbal and visual languages relate to each other in the illustrated book, by means of an analysis of similarities. Regarding the construction of the project, the narrative and visual concept of the characters were developed, followed by the definition of aspects of the graphic design and its prototyping. The editorial project went through two validation stages, one of them with a literature specialist and the other with a child. Finally, an implementation plan was developed so that in the future the book will help empower black girls and inspire children across the country. Keywords: Editorial design. Illustrated children's book. Empowerment. Representativeness. Black girls. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Evelyn Barbosa e Isadora de Souza participam do projeto ....................... 25 Figura 2 - A ativista Angela Davis, com seu imponente black power ......................... 29 Figura 3 - Vídeo da música Menina Pretinha, de MC Soffia ....................................... 33 Figura 4 - Vídeo da música "Raízes", de MC Soffia.................................................... 34 Figura 5 - Ilustração de Pevê Azevedo em homenagem à Ágatha Félix, 8 anos ...... 39 Figura 6 - Ilustração de Angela Davis, por Cristiano Siqueira .................................... 40 Figura 7 - Imagem representativa do entreletras ........................................................ 47 Figura 8 - Imagem representativa do espaço entrelinhas ........................................... 47 Figura 9 - Onde vivem os monstros (1963) ................................................................. 51 Figura 10 - Diagramação associativa no livro A Libélula e a Tartaruga (2016) ......... 51 Figura 11 - Capa do livro O mundo no black power de Tayó ..................................... 63 Figura 12 - Diagramação associativa no livro O mundo no black power de Tayó ..... 64 Figura 13 - Diagramação dissociativa no livro O mundo no black power de Tayó .... 64 Figura 14 - Capa do livro Amoras ................................................................................ 66 Figura 15 - Diagramação do livro Amoras ................................................................... 67 Figura 16 - Brincadeiras com a tipografia no livro Amoras ......................................... 68 Figura 17 - Capa do livro Bucala ................................................................................. 70 Figura 18 - Diagramação do livro Bucala. ................................................................... 71 Figura 19 - Capa do livro Amor de cabelo ................................................................... 73 Figura 20 - Diagramação do livro Amor de cabelo ...................................................... 74 Figura 21 - Capa do livro Sulwe ................................................................................... 76 Figura 22 - Diagramação do livro Sulwe...................................................................... 77 Figura 23 - Capa do livro Dandara seus cachos e caracóis ....................................... 79 Figura 24 - Diagramação do livro Dandara seus cachos e caracóis .......................... 80 Figura 25 - Comentário pertinente de participante em relação ao seu cabelo .......... 88 Figura 26 - Comentários das participantes sobre os padrões estéticos..................... 89 Figura 27 - Depoimentos sobre o relacionamento com o cabelo na infância ............ 90 Figura 28 - Comentários das participantes sobre personagens ................................. 91 Figura 29 - Relatos sobre a importância do empoderamento e representatividade .. 92 Figura 30 - Falas sobre a importância do empoderamento e da representatividade 93 Figura 31 - Comentários e mensagens das participantes para meninas negras ....... 94 Figura 32 - Convite e instruções para a atividade com crianças sobre diversidade .. 95 Figura 33 - Instruções para a atividade ....................................................................... 96 Figura 34 - Representação da personagem Lelê ........................................................ 97 Figura 35 - Uso de lã na representação do cabelo ..................................................... 98 Figura 36 - Uma das crianças optou por desenhar sua professora ........................... 99 Figura 37 - Representação de criança a respeito da autora..................................... 100 Figura 38 - Um dos participantes optou por desenhar um jogador de futebol ......... 101 Figura 39 - Representação do Pantera Negra .......................................................... 102 Figura 40 - Uso de movimentos espiralados para representar os cachos ............... 102 Figura 41 - Desenho de participante de 5 anos ........................................................ 103 Figura 42 - Participante representa uma menina negra com cabelo cacheado ....... 103 Figura 43 - Informações questionário: a mulher negra e seu cabelo ....................... 107 Figura 44 - Insights questionário: a mulher negra e seu cabelo ............................... 108 Figura 45 - Insights: livros das análises de similares ................................................ 109 Figura 46 - Insights: entrevistas e vídeos de Emicida ............................................... 110 Figura 47 - Mapa mental a partir da palavra raiz ...................................................... 112 Figura 48 - Pesquisa visual: ilustrações .................................................................... 115 Figura 49 - Pesquisa visual: ilustrações parte 2 ........................................................ 116 Figura 50 - Pesquisa visual: tipografia ....................................................................... 118 Figura 51 - Pesquisa visual: diagramação ................................................................ 120 Figura 52 - Pesquisa visual: capas de livros ............................................................. 121 Figura 53 - Pesquisa visual: materialidade ................................................................ 123 Figura 54 - Pesquisa visual: paleta de cores............................................................. 125 Figura 55 - Pesquisa visual: personagens negras .................................................... 126 Figura 56 - Pesquisa visual: representação dos cabelos crespos e cacheados...... 128 Figura 57 - Pesquisa visual: mulheres negras .......................................................... 129 Figura 58 - Pesquisa visual: elementos culturais ...................................................... 131 Figura 59 - Naming da personagem principal ........................................................... 133 Figura 60 - Características de Dandá ........................................................................ 134 Figura 61 - Narrativa do livro antes e depois de revisão .......................................... 136 Figura 62 - Esboços da personagem Dandá ............................................................. 140 Figura 63 - Ilustração conceito da personagem Dandá ............................................ 141 Figura 64 - Esboços da personagem Vó Zezé .......................................................... 142 Figura 65 - Ilustração conceito da personagem Vó Zezé ......................................... 143 Figura 66 - Esboços da personagem Luísa ............................................................... 144 Figura 67 - Ilustração conceitual da personagem Luísa ........................................... 145 Figura 68 - Esboços da personagem João ................................................................ 146 Figura 69 - Ilustração conceitual da personagem João ............................................ 147 Figura 70 - Formato escolhido para o livro ................................................................ 149 Figura 71 - Exemplo de lombada canoa com grampo .............................................. 150 Figura 72 - Paleta de cores escolhida para o projeto gráfico ................................... 152 Figura 73 - Trabalho de tipografia vernacular, de Irmão Ramos .............................. 153 Figura 74 - Esboços do lettering para a capa............................................................ 154 Figura 75 - Alternativa escolhida para o lettering da capa ........................................ 155 Figura 76 - Lettering finalizado para a capa do livro ................................................. 156 Figura 77 – Esboços de lettering das páginas internas ............................................ 157 Figura 78 - Finalização do lettering das páginas internas ........................................ 158 Figura 79 - Tipografia Museo Slab............................................................................. 158 Figura 80 - Tipografia Museo Slab nos parâmetros estabelecidos .......................... 159 Figura 81 - Estrutura de páginas do projeto gráfico .................................................. 160 Figura 82 - Grid desenvolvido para a diagramação .................................................. 161 Figura 83 - Diagramação da folha de rosto ............................................................... 162 Figura 84 - Páginas da ficha técnica e dedicatória ................................................... 163 Figura 85 - Diagramação das páginas do glossário .................................................. 164 Figura 86 - Diagramação da página final do livro...................................................... 165 Figura 87 - Pincéis digitais utilizados para texturas e sombras ................................ 166 Figura 88 - Capa e contracapa do livro ..................................................................... 167 Figura 89 - Diagramação da primeira página dupla do livro ..................................... 169 Figura 90 - Diagramação da segunda página dupla do livro .................................... 170 Figura 91 - Diagramação da terceira página dupla do livro ...................................... 172 Figura 92 - Diagramação da quarta página dupla do livro ........................................ 173 Figura 93 - Diagramação da quinta página dupla do livro ........................................ 175 Figura 94 - Diagramação da sexta página dupla do livro ......................................... 176 Figura 95 - Diagramação da sétima página dupla do livro ....................................... 178 Figura 96 - Diagramação da oitava página dupla do livro ........................................ 180 Figura 97 - Diagramação da nona página dupla do livro .......................................... 182 Figura 98 - Diagramação da décima página dupla do livro ...................................... 183 Figura 99 - Diagramação da décima primeira página dupla do livro ........................ 185 Figura 100 - Diagramação da décima segunda página dupla do livro ..................... 187 Figura 101 - Diagramação da décima terceira página dupla do livro ....................... 188 Figura 102 - Exemplo de organização das páginas para impressão ....................... 189 Figura 103 - Modelo feito em miniatura para guiar a organização das páginas ...... 190 Figura 104 - Capa dos primeiros exemplares de As Raízes de Dandá ................... 191 Figura 105 - Detalhes das primeiras páginas do livro impresso ............................... 191 Figura 106 - Detalhes da impressão da terceira página dupla do livro .................... 192 Figura 107 - Detalhes da impressão da sexta página dupla do livro ........................ 192 Figura 108 - Detalhes da ilustração da sétima página dupla do livro ....................... 193 Figura 109 - Ane, participante da coleta de feedback, com o livro ........................... 195 Figura 110 - Aplicação da ferramenta Roadmap for Success .................................. 197 Figura 111 - Calendário do plano de implementação ............................................... 198 Figura 112 - Conjunto de produtos para doadores de R$25 ou mais ...................... 201 Figura 113 - Conjunto de produtos para doadores de R$ 45 ou mais ..................... 201 Figura 114 - Conjunto de produtos para doadores de R$65 ou mais ...................... 202 Figura 115 - Conjunto de produtos para doadores de R$85 ou mais ...................... 202 Figura 116 - Conjunto de produtos para doadores de R$115 ou mais .................... 203 Figura 117 - Conjunto de produtos para doadores de R$135 ou mais .................... 203 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Parâmetros estabelecidos por Burt (1959 apud Lourenço, 2011) ........... 48 Quadro 2 - Classificação da diagramação de livros infantis, segundo Linden ........... 50 Quadro 3 - Ficha técnica do livro O mundo no black power de Tayó......................... 62 Quadro 4 - Ficha técnica do livro Amoras ................................................................... 65 Quadro 5 - Ficha técnica do livro Bucala. .................................................................... 69 Quadro 6 - Ficha técnica do livro Amor de cabelo ...................................................... 72 Quadro 7 - Ficha técnica do livro Sulwe ...................................................................... 75 Quadro 8 - Ficha técnica do livro Dandara seus cachos e caracóis .......................... 78 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Orçamento de impressão de livros e confecção de produtos ................. 200 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 9 1.1 Problematização................................................................................................. 12 1.2 Objetivos............................................................................................................. 15 1.2.1 Objetivo Geral.................................................................................................. 16 1.2.2 Objetivos específicos..................................................................................... 16 1.3 Justificativa......................................................................................................... 16 2 REVISÃO TEÓRICA........................................................................................... 19 2.1 A infância de meninas negras no Brasil.......................................................... 19 2.1.1 O processo de construção da identidade..................................................... 22 2.2 Cabelo, aceitação e identidade......................................................................... 26 2.3 Empoderamento e representatividade na infância......................................... 29 2.4 O movimento feminista negro e a interseccionalidade.................................. 34 2.5 Design social e ativismo.................................................................................... 37 2.6 Design gráfico editorial contemporâneo do livro............................................41 2.6.1 O livro infantil ilustrado ..................................................................................42 2.6.2 Projeto gráfico e aspectos materiais e visuais do livro...............................43 2.6.2.1 Formato e suporte ........................................................................................44 2.6.2.2 Imagem e cor ................................................................................................45 2.6.2.3 Tipografia e diagramação ............................................................................46 2.6.3 A importância da leitura na infância ..............................................................52 3 METODOLOGIA .................................................................................................55 4 LEVANTAMENTO DE DADOS...............................................................................61 4.1 Análise de similares ...........................................................................................61 4.1.1 O mundo no black power de Tayó .................................................................62 4.1.2 Amoras .............................................................................................................64 4.1.3 Bucala: a pequena princesa do quilombo do Cabula ..................................68 4.1.4 Amor de cabelo................................................................................................71 4.1.5 Sulwe ................................................................................................................74 4.1.6 Dandara seus cachos e caracóis ...................................................................77 4.1.7. Discussão........................................................................................................80 4.2. Entrevistas com especialistas .........................................................................81 4.2.1 Psicopedagoga Cristina Duarte Anderle.......................................................81 4.2.2 Pedagoga Franciele Vanzella .........................................................................83 4.2.3 Profa. Dra. Rosane Maria Cardoso ................................................................85 4.3 Questionário com adolescentes e mulheres negras ......................................87 4.4 Atividade com crianças sobre diversidade......................................................94 5 CONCEITO E NARRATIVA ..................................................................................105 5.1 Identificação do público-alvo ..........................................................................105 5.2 Seleção de insights ..........................................................................................106 5.3 Definição do conceito ......................................................................................111 5.3.1 Pesquisa visual..............................................................................................113 5.4 Construção da narrativa ..................................................................................132 5.4.1 Desenvolvimento visual das personagens .................................................138 6 PROJETO GRÁFICO............................................................................................ 148 6.1 Formato, suporte e acabamento .....................................................................148 6.2 Identidade visual: cores, lettering e tipografia ..............................................150 6.3 Estrutura e diagramação .................................................................................159 6.4 Ilustrações.........................................................................................................166 6.5 Prototipação......................................................................................................189 6.6 Coleta de Feedback..........................................................................................193 7 IMPLEMENTAÇÃO ...............................................................................................196 7.1 Planejamento de custos ..................................................................................199 7.2 Planejamento da divulgação ...........................................................................200 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................205 REFERÊNCIAS ........................................................................................................209 APÊNDICES.............................................................................................................230 9 1 INTRODUÇÃO A infância compreende o momento em que a criança assume um papel de sujeito e ator social (REICHERT, 2008). Em seu desenvolvimento, ela tem como base o que vê e escuta, e por meio de exemplos e referências, passa a construir a sua própria identidade. Para Cavalleiro (1999), o processo de socialização na infância envolve conhecer os comportamentos e atitudes dos seus próximos. Porém, a criança é influenciada, também, pelo conjunto de normas e crenças que permeiam o seu grupo social. Desta forma, o seu desenvolvimento depende tanto da educação formal, representada pelo ambiente escolar, quanto da educação proporcionada pelo grupo familiar. Para a criança negra, as relações sociais podem ter um impacto direto sobre sua autoestima. Apesar de ser atribuída pelo indivíduo, ela é construída junto às representações coletivas. Desta forma, ela é resultado da assimilação da percepção que o indivíduo tem de si mesmo, proveniente da forma como os outros as veem (CAVALLEIRO, 2006). No Brasil, a infância negra é vulnerável à violência, exclusão social, acesso precário à direitos básicos e falta de representatividade. Como complementa Cavalleiro (2006), a criança constrói a sua identidade em meio a estereótipos negativos sobre si e seu grupo social. O desenvolvimento deste projeto busca salientar a importância de uma educação antirracista, que auxilie o processo de construção da identidade da menina negra de forma positiva. Neste sentido, a leitura possui papel importante na formação da mesma, pois estimula a sua capacidade criativa, crítica e expressiva ao tempo que 10 auxilia o seu processo de socialização (PERUZZO, 2016). Por meio dos livros, ela pode desenvolver linguagens e hábitos que levará para a vida toda. Deste modo, o hábito de ler se torna um importante meio de aprendizado e conscientização sobre questões raciais e culturais. A introdução de livros que englobem personagens negros e valorizem seus traços possibilita que as crianças reconheçam e respeitem as diferenças. Ainda, podem auxiliar o processo de empoderamento por meio da representatividade. Joice Berth (2019) o define como um processo de autoafirmação, autoconhecimento e autovalorização de si mesmo, sua herança histórico-cultural e posição social. A autora complementa que o individual e o coletivo são indissociáveis deste processo, portanto, o indivíduo não consegue estar empoderado se o seu grupo não está. Berth utiliza o movimento feminista negro para afirmar que mulheres negras sempre adotaram uma conduta de resistência e posicionamento crítico, de forma a enfrentar o sistema racista e promover redes de solidariedade. Assim, percebe-se que o empoderamento tem sido uma estratégia utilizada por elas ao longo da história, em busca de movimentos sociais que beneficiem a comunidade (BERTH, 2019). Um dos aspectos do pilar psicológico do processo de empoderamento é a questão da autoimagem. As imposições estéticas sociais são um meio de opressão para a mulher negra (BERTH, 2019). Fortalecendo a afirmação de Joice Berth, Djamila Ribeiro (2019) conclui que os padrões hegemônicos e eurocêntricos são nocivos para a construção da autoestima da criança negra, pois estas crescem com uma sensação de não pertencimento. Assim se reitera a importância de apresentar pessoas negras como referências. Como forma de criar uma rede de representatividade, a elaboração de um livro infantil ilustrado que compartilhe histórias de personagens negras de forma lúdica e natural possibilita que os leitores se identifiquem e se aceitem como são. Com esta finalidade, a autora utilizará uma abordagem experimental para escrever uma narrativa que valorize características culturais e traços negros, especialmente o cabelo, que consiste em um símbolo de identidade e resistência para a negritude (GOMES, 2003). O design entra neste contexto assumindo uma função social e ativista, valorizando minorias e criando oportunidades para esses grupos. Manzini (2017) 11 defende que, ao assumir um papel de ativismo, o designer mostra maneiras diferentes de resolver os problemas. Neste sentido, o design gráfico editorial assume uma nova abordagem, a qual vai além da criação do projeto gráfico do livro, e que garante ao profissional a possibilidade de selecionar os conteúdos e construir a proposta verbal de acordo com suas aspirações (ZUGLIANI, 2020). Para ser possível desenvolver este projeto, foi necessário entender o lugar da menina negra no Brasil e como acontece o processo de construção da sua identidade na infância. Portanto, no capítulo 2 deste trabalho, foi feita uma revisão teórica com autores que auxiliaram a compreensão da situação destas crianças e estudaram formas e movimentos para ajudá-las a se sentir representadas e empoderadas. Realizou-se, também, uma pesquisa sobre a importância do cabelo para a cultura negra, visto que esse tema será abordado na construção da narrativa. O capítulo buscou tratar, também, do design social e ativista, e como ele pode auxiliar o projeto editorial de um livro infantil ilustrado. A metodologia escolhida para o desenvolvimento deste trabalho está descrita no capítulo 3. As etapas e as ferramentas que foram utilizadas durante este trabalho estão ali especificadas. Para o desenvolvimento de um livro infantil ilustrado, que tem como objetivo auxiliar o processo de empoderamento de meninas negras, foi necessário compreender determinados aspectos em relação a elas. Para tanto, realizou-se uma pesquisa qualitativa por meio de entrevistas com profissionais das áreas da psicopedagogia, educação infantil e literatura, além de um questionário com adolescentes e mulheres negras. Visando conhecer a percepção de crianças em relação à diversidade e ao cabelo afro, foi realizada uma atividade de forma remota, envolvendo literatura e desenho. Para observar a conexão das linguagens visual e verbal, foi realizada uma análise de similares de livros infantis ilustrados. Tais etapas do projeto estão descritas no capítulo 4, denominado Levantamento de Dados. A partir dos dados levantados, foi iniciado o desenvolvimento da narrativa do livro, com o auxílio da seleção de insights, pesquisa visual e criação do conceito. Posteriormente, a construção da história aconteceu em conjunto com a realização do conceito das ilustrações das personagens, buscando a conexão das linguagens verbal e visual. Neste processo, ocorreu a validação do texto com uma especialista em 12 literatura, de forma a tornar o projeto mais seguro para ser encaminhado aos pequenos leitores. Posteriormente, foram definidos os aspectos do projeto gráfico, como formato, suporte, acabamento, identidade visual, diagramação e ilustrações. Por fim, o objeto editorial foi prototipado e passou por uma segunda etapa de validação, desta vez para coletar o feedback de uma criança. No capítulo 7, o qual se denomina Implementação, foi desenvolvido um plano para que o projeto chegue a crianças em todo o Brasil e auxilie o empoderamento de meninas negras. Por meio de um planejamento de custos e de divulgação, foram definidos aspectos para que o livro seja divulgado futuramente em uma plataforma de financiamento coletivo. 1.1 Problematização O cabelo é considerado uma importante forma de expressão e linguagem em diversas culturas. O cabelo crespo, por sua vez, torna-se símbolo da presença africana e negra na história de quem o possui, além de fazer parte do processo de resistência (GOMES, 2019). Visto que ele também se relaciona com a personalidade e aparência, está intimamente ligado a questões de autoestima, confiança e aceitação. No Brasil, apenas 42% das mulheres que possuem cabelo crespo ou cacheado se sentem confortáveis com seus cachos quando pequenas (DOVE, 2017 apud MIRANDA, 2017). Desde criança, a menina negra sofre com ofensas, apelidos e comparações relacionadas ao seu cabelo, justamente por não se encaixar no padrão de beleza socialmente imposto. Berth (2019) afirma que o estigma racial afeta as mulheres negras desde a sua infância, visto que os cabelos são alvo constante de manifestações racistas. Como afirma Gomes (2019), o cabelo é pensado pela cultura e consiste em um grande símbolo identitário, principalmente quando se fala em identidade negra. Essa identidade é um processo que se dá na relação com o olhar do outro e das condições externas ao indivíduo (GOMES, 2001). Não basta o próprio negro olhar sobre si 13 mesmo e seu corpo, ele recebe conceitos preconcebidos acerca de sua raça1, justamente por ser historicamente dominado social, cultural, política e economicamente. Por ter condicionado a si a visão dele mesmo pelos olhos do dominador, o desenvolvimento de uma consciência de identidade se torna muito mais complexo. Para Gomes (2001), o cabelo e a cor da pele são usados como preceito de classificação racial e tornam a diferenciação de indivíduos por um critério superficial muito expressiva. O embranquecimento da identidade negra é mais perceptível à mulher, pois como afirma Kilomba (2012), ela é o outro do outro. Além de levar em conta à posição que ocupa como negra em uma sociedade racista, é importante notar a sua posição por simplesmente ser mulher, o que a faz sofrer julgamentos constantes devido à ideologia de gênero. Segundo pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mulheres negras são o maior contingente de pessoas empregadas em trabalhos domésticos, muitas vezes precários2. São a antítese da branquitude e da masculinidade, ou seja, uma carência dupla (KILOMBA, 2012). É importante ressaltar que os estereótipos impostos à mulher negra são consequência de medidas ideológicas e violência material, e a confinam em um local de subalternidade e de exotização de seu corpo. No Brasil, cerca de 51,4% das mulheres possuem os cabelos naturalmente crespos ou cacheados (UNILEVER; KANTAR WORLDPANEL, 2012), sendo que uma em cada três diz já ter sofrido preconceito por conta deles (GOOGLE BRAND LAB, 2017). Considerando que a identidade do indivíduo é construída, em grande parte, por processos de socialização, ao deparar-se com um padrão de beleza corporal predominantemente branco, a mulher negra se sente insatisfeita com o seu cabelo e acredita na necessidade de adequar-se a estes estereótipos. É evidente o grau de opressão e o modo como a exploração racista e sexista afeta o grau em que a mulher 1 Neste trabalho, o conceito de raça é usado no sentido sociológico. De acordo com Munanga e Gomes (2006 apud SILVA, 2009, p.15), é "uma construção social, política e cultural produzida no interior das relações sociais e de poder ao longo do processo histórico". 2 Estudo do IPEA publicado em 2019 revela que as desigualdades no Brasil são maiores para mulheres negras. Mais de 6 milhões de brasileiros dedicam-se a serviços domésticos; desse número, 92% são mulheres, sendo a sua maioria negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda. 14 negra se sente capaz de se amar e de afirmar uma presença autônoma que seja aceitável a ela mesma (HOOKS, 2005). Este conflito estético marca profundamente a trajetória feminina e preta, e deixa marcas desde a infância. Pode-se afirmar que nesse período é iniciada a construção da personalidade, sendo baseada em exemplos, experiências, influências culturais e também no contexto social e econômico no qual o indivíduo está inserido. Assim, a criança tem como base o que enxerga e escuta. Neste período também é iniciado o ciclo de aprendizagem, que possui grande importância na vida da criança. É o momento em que ela descobre o mundo por meio da leitura e da escrita e que possui grande relevância para a construção de sua própria identidade. No Brasil, os negros têm menos acesso à educação e a oportunidades3. Quando na escola, as crianças negras ainda sofrem com o racismo e com a exclusão. É importante que, no âmbito da educação, as crianças negras se sintam parte do universo social, mediante a representatividade em livros, brinquedos e histórias. Em um contexto racista, as mulheres negras foram construídas ligadas ao corpo, e não ao pensar (HOOKS, 1995). As meninas negras brasileiras crescem em meio à uma construção social na qual são pouco encorajadas a decidir sobre si mesmas. Segundo pesquisa realizada pela Dove, em 2017, apenas quatro entre dez meninas aceitam o seu cabelo crespo ou cacheado. Junto à insegurança do seu valor em relação à sociedade, vem a obsessão de ter o cabelo liso, com o intuito de se enquadrar nos parâmetros tidos como referência de beleza. Como afirma bell hooks4 (2005), cenas cotidianas transmitem à mulher negra a condição de que ela só será bonita e atraente caso realizar mudanças nela mesma, especialmente no cabelo. A visão que se tem há anos acerca do cabelo crespo deixa claro a opressão e o impacto do passado escravocrata brasileiro. Assim, mudar o cabelo seria uma tentativa de sair da inferioridade em que é subjugada. Alisar o cabelo está associado historicamente a um sistema de dominação racial imposto aos negros, 3 Segundo pesquisa promovida pelo movimento Todos pela Educação, em 2018, revela que 76% dos jovens brancos estão matriculados no Ensino Médio, enquanto para a população negra, o número cai para 62%. 4 Pseudônimo de Glória Jean Watkins, autora americana e teórica feminista, ativista e artista. A letra minúscula tem como objetivo dar enfoque à sua escrita, e não à sua pessoa. 15 especialmente as mulheres (HOOKS, 2005). Os processos químicos usados para alisar o cabelo são dolorosos e muitas vezes utilizam métodos torturantes e inseguros. Uma situação que meninas com cabelo crespo e cacheado vivenciam diariamente é a violência através de comentários maldosos. O racismo afeta inclusive o âmbito escolar, espaço que deve prezar pela inclusão de todos e promover diálogos sobre questões raciais. De acordo com a Lei nº 10.639/03, é obrigatório o ensino o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira na sala de aula, um direito que deve ser garantido principalmente aos alunos de descendência africana. Porém, ainda são encontradas práticas na escola que fortalecem a segregação racial, que fazem com que os alunos encarem o racismo como uma prática natural. Casos racistas relacionados à cor da pele e ao cabelo são relatados constantemente por meninas, e acontecem por meio da diferença no tratamento, violência verbal e não- verbal e humilhações. Mais um fator que contribui para a falta de autoestima e aceitação. O processo histórico-cultural do Brasil fez com que as mulheres negras desenvolvessem uma rejeição e negação a respeito da sua identidade corporal e cultural. Principalmente no processo evolutivo, quando crianças, têm a sensação de não pertencimento e acabam se afastando de si e de sua própria consciência. A representatividade é um conceito essencial para que meninas de cabelo crespo ou cacheado se libertem dos padrões sociais e reivindiquem o seu direito à humanidade. Para a Dove (2017), meninas rodeadas por pessoas que também amam seus cachos, possuem sete vezes mais chances de amar os seus. Nesse contexto, o empoderamento consiste em mudanças sociais em uma perspectiva antirracista, antielitista e antissexista por meio de mudanças das instituições sociais e das consciências individuais (HOOKS, 2000). Logo, atitudes desse valor são necessárias para remover o medo enraizado, a insegurança e os problemas de autoestima que perseguem as meninas negras brasileiras, principalmente na infância. Desta forma, como o design pode auxiliar o processo de empoderamento de meninas negras? 1.2 Objetivos 16 1.2.1 Objetivo Geral Desenvolver um livro infantil ilustrado que auxilie o processo de empoderamento de meninas negras. 1.2.2 Objetivos específicos ● Contribuir para a valorização do cabelo como identidade cultural. ● Analisar e compreender a infância de meninas negras no Brasil e a construção de suas identidades. ● Compreender o conceito de interseccionalidade e valorizar o movimento feminista negro. ● Analisar como as mulheres negras se sentem em relação ao seu cabelo. ● Compreender os processos de desenvolvimento de um projeto editorial infantil. ● Comprovar a importância do design para um projeto de cunho social e ativista. 1.3 Justificativa Ações que visam a educação para o empoderamento de meninas negras são essenciais. Grande parte das brasileiras, que possuem cabelo crespo ou cacheado, alisam-no ou o mantém preso por uma boa parte de sua vida, pressionadas por um padrão socialmente imposto. Ajudá-las no processo de aceitação na infância vai muito além da estética. Compreende um processo de construção e conhecimento da sua identidade e de libertação dos seus desejos e vontades próprias. O desenvolvimento deste projeto se justifica ao demonstrar vantagens psicológicas, culturais e sociais, através da criação de uma solução de design editorial que auxilie o empoderamento destas meninas e que também promova a valorização da identidade negra no Brasil. Paralelo a isso, contribui para a necessidade de educar a sociedade sobre questões racistas, sendo benéfico tanto em âmbito individual quanto coletivo. Quando relacionado a questões psicológicas, o projeto promove a criação de um livro infantil ilustrado que visa a representatividade negra, com personagens que 17 compartilhem das mesmas histórias, anseios e lutas que as meninas que irão ler ou escutar a história. Desta forma, a linguagem empática permite a discussão e a reflexão, fatores importantes para o desenvolvimento psicológico e de uma identidade na infância. Como defende Berth (2019), a menina negra passa a se reconhecer e a se valorizar por meio de estímulos externos de representatividade. Ao perceber que é representada, a menina de cabelo crespo não se sente mais sozinha e entende que não é certo tratá-la como inferior devido à suas características físicas. Através do projeto, é encorajada a se expressar, se afirmar, a falar e a ser ouvida. O compartilhamento de experiências sobre cabelo e temas relacionados a ele formam uma rede de apoio e empatia, o que auxilia no processo de valorização da menina acerca de si mesma e no processo de aceitação sobre seu cabelo. Assim, o trabalho em questão impacta positivamente na autoestima e na redução de problemas psicológicos causados por situações e comentários racistas. O projeto consiste no desenvolvimento de um livro infantil ilustrado, por meio de uma abordagem experimental. Com texto e ilustrações próprias, a autora deste trabalho busca traduzir, por meio do design, sentimentos vivenciados por si mesma em sua infância e adolescência e por familiares durante a vida. Por meio de ilustrações e de uma história descontraída, o livro busca empoderar meninas negras que se encontram no período de aprendizagem. O propósito do projeto é levar a literatura a crianças de todo o país, para que o livro possa auxiliá-las no processo de construção da sua própria identidade. Para a viabilização da produção, há a possibilidade de sua divulgação em plataformas de crowdfunding. O diferencial destes espaços de financiamento virtual, que buscam a arrecadação de interesses e recursos, está no desenvolvimento de recompensas criativas para os colaboradores e em doações do produto. Portanto, ao colaborar com o lançamento do livro, a pessoa estará doando determinado número de livros para instituições e escolas no Brasil. O desenvolvimento deste trabalho busca difundir valores positivos sobre o cabelo afro, cuidados com a autoaceitação, valorização da própria identidade e da cultura negra, para que possa contribuir com a mudança dos padrões impostos pela sociedade e pelo racismo. Da mesma forma, a leitura e o livro representam uma etapa importante na vida de uma criança, pois através deles é possível conhecer novas 18 possibilidades. Acredita-se que o design editorial possa contribuir para a formação e o empoderamento de meninas negras, para que acreditem em seus cabelos, suas histórias e sua capacidade. 19 2 REVISÃO TEÓRICA Os conceitos e discussões apresentadas neste capítulo são importantes para o desenvolvimento deste trabalho. Foram abordados aspectos da infância da menina negra no Brasil, a construção da identidade e como esse processo se relaciona com o cabelo e a autoestima. Em seguida, foram apresentados conceitos sobre o feminismo negro, a interseccionalidade, o empoderamento e a representatividade, que consistem em aspectos importantes para desenvolver um projeto que auxilie a autoaceitação. Ao falar sobre design, destaca-se a importância do design social relacionado ao ativismo, e como ocorre o desenvolvimento de um projeto editorial de um livro infantil ilustrado. Por fim, é analisado o papel da leitura e da literatura na infância. 2.1 A infância de meninas negras no Brasil A infância é o período da vida humana relacionado ao crescimento e à construção de conhecimentos. De acordo com Castro (2010), a criança deve ser entendida como um ser social ativo, capaz de produzir sua própria cultura. Diferentes espaços estruturais, como raça, gênero, local onde vivem e classe social diferenciam profundamente as experiências infantis e os processos de criação de identidade. Em um período de construção social, influenciado por forças externas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) idealiza a rede de proteção em torno da criança por meio de um bom "desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e 20 social" (Brasil, 1990). Entretanto, em um país marcado por desigualdades sociais, violência e racismo, a criança negra é, muitas vezes, negligenciada. Ser criança negra no Brasil significa crescer sob grandes riscos de violência, falta de representatividade e acesso precário à direitos como educação e saúde. A história da criança negra está vinculada ao passado escravista brasileiro, e sua trajetória é marcada por discriminação e exclusão. Sobre isso, Cavalleiro (2006) afirma que a infância da criança negra é composta por indivíduos que se constituíram histórica, ideológica e culturalmente como maioria inferiorizada, marginalizada e silenciada. A autora afirma que para a criança negra, "a identidade estruturada durante o processo de socialização terá por base a precariedade de modelos satisfatórios e a abundância de estereótipos negativos sobre os negros" (CAVALLEIRO, 2006, p. 19). Além da exclusão social, a negligência em relação à criança negra transparece na atualidade através do genocídio da população negra. De acordo com o estudo Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência (2017), realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, antes de completar 15 anos uma criança negra tem quase três vezes mais chances de ser morta que uma criança branca. Neste sentido, a violência tem impacto direto no desenvolvimento da criança negra. Segundo o psicólogo Marcos Amaral (2020 apud SOUZA; LACERDA, 2020), ela perde a possibilidade de descansar, brincar e imaginar. Como ela poderá fantasiar e criar histórias, ponto importante para o desenvolvimento, se precisa viver em estado de alerta constante? A criança tem sua possibilidade de sonhar cortada. Além disso, crianças negras são as mais vulneráveis à pobreza e privação de direitos no Brasil5. Segundo pesquisa da Unicef (2018), seis a cada dez crianças brasileiras não têm acesso a pelo menos um dos seguintes direitos básicos: educação, informação, moradia, saneamento, água e proteção contra o trabalho infantil. As desigualdades sociais destacam-se ainda mais quando é pensado na questão de gênero. 5 Dados da Pesquisa "Pobreza na Infância e na Adolescência" publicada em 2018 pela Unicef, revelam que os mais vulneráveis à pobreza e privação de direitos são as crianças negras: 58% contra 38% da população branca. 21 Meninas negras ocupam os maiores níveis de vulnerabilidade quando se trata de violência6 e mais de metade das vítimas de estupro de vulnerável7, no Brasil, são crianças negras8. Uma das razões de crianças negras serem mais suscetíveis a sofrer violência sexual no país é a hipersexualização precoce do corpo. Em um estudo realizado pela Georgetown Law School, em 2017 nos Estados Unidos, revela que adultos tendem a ver meninas negras como menos inocentes e com mais características de adultos do que as brancas com a mesma idade (NASCIMENTO, 2017). Essa hipersexualização do corpo negro, como explica bell hooks (1995), é resultado da série de estupros e exploração branca sobre o corpo da mulher negra, justificados então pela estereotipação do corpo das mesmas. Além do sexismo, o racismo ganha força na infância da menina negra. A imagem desqualificada do negro na sociedade brasileira repercute nas relações e na construção social (ALMEIDA, 2015). De acordo com Almeida (2015, p. 65), "a criança negra não parece querer ser ligada ao que não é aceito. A negação do corpo negro é uma das vertentes que se evidenciam e dão indícios da necessidade de rompimento com processos hegemônicos identitários". A sensação de não pertencimento, experienciada pela menina negra na sociedade brasileira, dialoga com o mito da democracia racial9. Como afirma Munanga (2008), esta prática de embranquecimento revela o processo de fugir das características fenotípicas do negro. A pessoa negra passa, então, pelo processo de negação e assimilação cultural. Ao contrário, deveria buscar sua identidade por meio da tomada de consciência da sua resistência cultural e histórica (MUNANGA, 2008). Percebe-se, então, a necessidade de discutir o processo de identidade negra de modo plural e que não negligencie dimensões sociais, pessoais, históricas e culturais. Pensar na infância da menina negra a partir de uma abordagem 6 Dados do Disque 100 (2017) indicam que, das crianças que sofreram violência em 2017, 47% eram meninas e 41% eram negras. 7 Crime de violência praticado contra pessoas de até 14 anos, com deficiência ou que, independente da idade, estejam sob efeito de drogas ou enfermas. 8 Dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), informam que considerando o crime de estupro a vulnerável, mais da metade das vítimas são crianças negras (50,9%), do sexo feminino (81,8%) e com até 13 anos (53,8%) 9 O mito da democracia racial é um conceito que afirma que as questões raciais não constituem um fator de exclusão (Skidmore, 2011), negando o passado brasileiro ao maquiar as atitudes racistas. 22 interseccional permite o desenvolvimento de ações que deem a elas o sentimento de pertencimento e autoestima em uma sociedade racista e sexista. 2.1.1 O processo de construção da identidade Na infância, o indivíduo se encontra em processo de desenvolvimento emocional, cognitivo e social. A identidade da criança é construída por meio do convívio social, da cultura, de sua interação com as pessoas em sua volta e com o mundo. No período da infância, a criança tem como base o que enxerga e escuta, através de exemplos e referências. Por meio das relações entre si e os outros, ela constrói a sua identidade. Em sua obra, Piaget afirma que que o desenvolvimento cognitivo da criança compreende 4 estágios: sensório-motor (nascimento aos 2 anos), pré-operacional (2 aos 7 anos), estágio das operações concretas (7 aos 12 anos) e estágio das operações formais (12 anos em diante). Cada um deles constitui o desenvolvimento da criança como um todo e abrange a aquisição de determinadas estruturas de cognição (PALANGANA, 2015). Neste projeto, é dada uma atenção especial para o terceiro estágio, visto que compreende a possível faixa etária dos leitores. O estágio das operações concretas compreende o desenvolvimento da capacidade de pensar de forma lógica, no qual a criança busca tanto compreender o pensamento alheio quanto em transmitir as suas próprias ideias. Piaget observa a tendência para socialização e para a tentativa de entender o mundo, evoluindo de uma atitude egocêntrica para uma mais socializada (PALANGANA, 2015). Em relação ao processo de desenvolvimento da identidade da criança, Amaral (2013) explica que o indivíduo é influenciado pelos meios externos. A autora afirma que a identidade consiste no modo como cada um se vê, considerando que esse olhar é moldado por um "par de lentes" que reflete o modo de ver do outro sobre si mesmo. Desta forma, a sociedade estabelece contornos que irão influenciar a identificação do indivíduo. Este processo se desenvolve ao longo de toda a vida e está em constante movimento. Como afirma Gomes (2005), A identidade não é algo inato. Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os outros. É um fator importante na criação das redes de relações e de 23 referências culturais dos grupos sociais. Indica traços culturais que se expressam através de práticas linguísticas, festivais, rituais, comportamentos alimentares e tradições populares, referências civilizatórias que marcam a condição humana (GOMES, 2005, p.41). O desenvolvimento da identidade é um processo pessoal e social. Para a criança negra, as relações sociais servem como instrumento de observação de semelhanças e diferenças entre ela e os outros (SOUZA; LOPES; SANTOS, 2007). O primeiro contato da criança com a socialização acontece no grupo familiar, onde ela adquire uma cultura e linguagem própria do mesmo. Segundo Gomes (2019), a relação do negro com o corpo e o cabelo é intensificada nos ciclos da infância e da adolescência. Nestes momentos, é necessária uma conscientização dentro da casa da criança, em que a família assuma a negritude e a transmita para ela, de forma que não construa uma visão distorcida de si mesma (GOMES, 2019). É importante que o ambiente familiar proponha diálogos sobre o racismo, desconstrução de estereótipos, mitos e estigmas racistas, que podem ser reproduzidos por gerações. Existem espaços sociais, frequentados pelos negros desde criança, em que representações reforçam alguns estereótipos e afetam a relação com os seus traços. Na escola, a criança pode experienciar a rejeição do seu corpo, pela imposição de comportamento e aparência, ou também ao ser alvo de comentários e piadas racistas (GOMES, 2019). O ambiente escolar consiste em um local onde a criança aprende, além de conteúdos didáticos, a compartilhar crenças, atitudes e até preconceitos (GOMES, 2003). Ao pensar nessa instituição como um local de ensino e aprendizagem amplo, percebe-se mais do que testes, normas e disciplinas escolares. Ela é considerada um dos espaços que interferem na construção da identidade negra, tanto de forma positiva, ao valorizar as identidades e diferenças, quanto de maneira negativa, ao discriminá-las e negá-las (GOMES, 2003). Quando na escola, a criança passa a conhecer a diversidade social e passa a conviver com outras culturas e a experienciar pontos de vista diferentes do que os dos seus semelhantes. Nessas situações, a criança negra pode perceber também que há uma certa resistência do outro em relação à sua herança cultural (SOUZA; LOPES; SANTOS, 2007). Os livros didáticos utilizados nas escolas brasileiras raramente 24 contam a real história do povo brasileiro e seus heróis negros. O conteúdo ensinado para as crianças e adolescentes precisa ser descolonizado, para que sejam conhecidas as histórias de negros que se destacaram em áreas como ciência e literatura, da mesma forma que a expressões culturais africanas e afro-brasileiras sejam valorizadas. Para a filósofa Sueli Carneiro (2017), a educação sempre foi um campo de batalha para os negros. Felizmente, a luta do movimento negro brasileiro pelo acesso à educação viabiliza a criação de políticas e leis que abordam práticas educacionais antirracistas. A lei de 2003, que obriga a implementação do tema "História e Cultura Afro-brasileira e Africana" nos conteúdos e disciplinas escolares passou a incentivar a valorização de culturas e aumentou a representatividade para as crianças negras. Sendo os afro-brasileiros mais da metade da população negra, a lei procura contribuir para superar os preconceitos e discriminações através de práticas pedagógicas, programas e atividades de qualidade, para que a nova geração se sinta parte da sociedade e conheça a história do seu povo. Para a construção de uma educação antirracista, é necessário valorizar as histórias de todos os indivíduos que se encontram no ambiente escolar (UNIBANCO, 2020). Ao apresentar múltiplas abordagens, a escola deve ser um espaço que celebre as diversidades e transmita para as crianças o sentimento de amor-próprio e representatividade, essenciais para que o indivíduo desenvolva uma identidade positiva. O projeto Empoderando Crianças Negras através da Literatura mostra como a escola pode contribuir para elevar a autoestima de crianças negras. Desenvolvido em Canoas, Rio Grande do Sul, o projeto tem como objetivo valorizar a beleza negra e diminuir o número de agressões verbais e apelidos maldosos. Através de diálogos sobre situações de racismo, obras literárias com heróis e heroínas negras e peças de teatro, as dinâmicas realizadas no ambiente escolar (FIGURA 1) resgatam o amor próprio das crianças e valorizam a história de cada uma. 25 Figura 1 - Evelyn Barbosa e Isadora de Souza participam do projeto Fonte: GaúchaZH (2019). As interações sociais podem significar, para meninas negras, momentos de comentários racistas sobre suas características físicas, que acabam por influenciar o desenvolvimento da sua autoimagem. Mediadas por padrões e normas de toda sociedade, elas podem determinar a forma como a criança percebe o mundo a sua volta, interferindo na formação da sua identidade. Esses padrões não consideram as singularidades sociais, culturais e cognitivas. Na medida em que não correspondem à eles, as crianças podem abandonar o seu jeito de ser e de se expressar, ao adotar condutas estereotipadas pela sociedade. De maneira geral, as relações sociais de crianças negras se cercam do preconceito, da discriminação e no silêncio das práticas racistas (CHISTÉ, 2012). Em relação ao grupo familiar, Gomes (2019) afirma que a forma como a criança é vista neste ambiente pode lhe possibilitar a construção de uma autorrepresentação positiva sobre a sua identidade cultural e seu cabelo. Portanto, percebe-se a importância de que a discussão sobre a construção da identidade negra 26 inicie na infância, por meio do diálogo, da representatividade e da luta às práticas racistas que permeiam os espaços sociais. 2.2 Cabelo, aceitação e identidade O corpo se tornou uma característica marcante e uma linguagem para diversos povos durante a história (GOMES, 2003). O cabelo, sendo um dos elementos mais visíveis do corpo, é um importante veículo de comunicação, e sua simbologia pode variar de cultura para cultura. Durante o processo de construção de identidade, o corpo é considerado um suporte da cultura negra, assim como o cabelo crespo ou trançado representam um importante símbolo identitário. Porém, como afirma Gomes (2003), é um verdadeiro desafio construir uma identidade negra positiva no contexto de uma sociedade que sempre ensinou ao negro que o caminho para a aceitação é negar a si mesmo. O racismo estrutural que persiste no Brasil relaciona-se com o colorismo, uma vertente do racismo que consiste na discriminação de pessoas negras baseada na cor da pele. O termo afirma que o tom de pele determina que uma pessoa tenha mais privilégios e facilidade de acesso à espaços sociais. Portanto, negros de pele clara, traços finos e cabelos mais lisos enfrentam menos dificuldades do que os de pele mais retinta. No Brasil, o colorismo também se manifesta em outros aspectos físicos além da cor da pele, como cabelo crespo e nariz largo (DJOKIC, 2015). Neste contexto, Gomes (2019) afirma, em seu livro Sem perder a raiz, que a textura crespa do cabelo é vista com negatividade mesmo que a pele seja mais clara. Portanto, "quanto mais preta é a cor da pele e mais crespo é o cabelo, mais as pessoas que possuem tais características são ensinadas a se desvalorizar, não só esteticamente, mas também enquanto seres humanos" (GOMES, 2019). Este conflito estético e identitário ocorre desde o período escravocrata, em que meninas e mulheres negras eram obrigadas a alisar seus cabelos para apagar sinais da negritude (KILOMBA, 2012). Geralmente eram utilizadas hastes ou ferros levados à brasa, para que o calor modificasse a textura dos fios. Elas enfrentavam um processo muito doloroso, tanto em seu corpo físico quanto em sua autoestima. De acordo com Kilomba (2012), por estas opressões que o cabelo afro se tornou um 27 instrumento de consciência política. O cabelo natural e penteados africanos transmitem a mensagem de resistência e fortalecimento racial. Mulheres negras passaram a assumir as características da negritude em seus cabelos como uma forma de afirmação identitária. Cortar os cabelos alisados e realizar a transição capilar10 não é uma transformação física, apenas. Representa a libertação de um conflito no qual o indivíduo afirma seu "eu" pelo olhar do outro. Apesar de técnicas de alisamento remeterem à uma negação da identidade negra, Gomes (2019) afirma que nem todos que se submetem a esses processos deixam de se posicionar diante de questões raciais. Assim, independente de ser alisado ou natural, a mulher negra deve usar o seu cabelo da forma que se sentir melhor. De acordo com Gomes (2019), "julgar que por ser negra uma pessoa só possa adotar penteados e estilos de cabelo pautados em padrões estéticos socialmente considerados “afros” revela inflexibilidade, intolerância e a negação do direito à escolha". Porém, é importante que estas técnicas não representem um apagamento da negritude para estas mulheres, em virtude de opressões impostas a elas. Para o negro, a manipulação do cabelo não acontece sem conflitos. Como afirma Gomes, Esses embates podem expressar sentimentos de rejeição, aceitação, ressignificação e até mesmo de negação do pertencimento étnico/racial. As múltiplas representações construídas sobre o cabelo do negro no contexto de uma sociedade racista influenciam o comportamento individual (Gomes, 2019, p. 221). Felizmente, existem espaços em que o cabelo é visto com revalorização e orgulho, como em famílias que valorizam a herança cultural negra, em grupos presenciais ou virtuais de militância de mulheres negras, redes sociais e salões étnicos. A profissão de Cabeleireiro Étnico e Trancista tornou-se fonte de renda para muitas mulheres negras no Brasil. Através de um conhecimento passado de geração a geração, estas mulheres realizam técnicas e penteados que representam uma herança cultural e da ancestralidade afro. Desta forma Gomes (2002) ressalta que os salões étnicos contribuem para que o cabelo crespo seja transformado em símbolo de orgulho. Para ela, 10 Consiste na passagem dos cabelos quimicamente tratados para a textura natural, principalmente os cabelos cacheados e crespos. 28 A manipulação do cabelo do negro e da negra, nessa perspectiva, pode ser vista como continuidade de elementos culturais africanos ressignificados no Brasil. Parafraseando Munanga (2000, p. 99), quando este autor escreve a respeito da arte afro-brasileira, podemos dizer que descobrir a africanidade presente ou escondida na manipulação do cabelo do negro e da negra da atualidade, e nos penteados por eles realizados, constitui uma das preocupações primordiais para a definição da força histórica e cultural desse segmento étnico/racial (GOMES, 2002, p. 50) O processo de formação de uma identidade individual ou coletiva acontece com a interação social. Por isso, o contato com outras negras faz com que a mulher negra tome consciência identitária do grupo, transformando os valores que lhe são transferidos em outras esferas da sociedade em afirmações positivas sobre si mesma e que criam um pertencimento em relação à sua cultura (FERREIRA, 2004). Assim, percebe-se a importância da representatividade e da empatia entre e para mulheres negras, a fim de que a busca pelo direito de respeito aos seus cabelos cresça e conscientize cada vez mais suas semelhantes e a sociedade em geral. Um movimento em busca da afirmação da identidade negra através do cabelo foi o Black Power, que ocorreu na década de 60. Por meio do slogan Black is Beautiful, os negros viam nele um símbolo da luta de seus antepassados e a determinação de manter viva a identidade de quem tanto lutou pelos seus direitos, além de ser uma forma de, finalmente, ir contra os padrões europeus. Sempre condicionadas a alisar o cabelo, as mulheres decidiram andar com seu cabelo natural, dentre elas, a ativista Angela Davis (FIGURA 2). A norte-americana tornou-se uma referência na luta pelos direitos da população negra, e ao exibir o seu cabelo afro, intimidava ainda mais a comunidade branca (VIEIRA, 2015). 29 Figura 2 - A ativista Angela Davis, com seu imponente black power Fonte: Afreaka (2015). A busca pela afirmação da estética como identidade e meio de resistência, demonstra que o cabelo é um símbolo de respeito à cultura negra. A luta continua por meio de um crescente movimento de aceitação do cabelo natural, de penteados de origem africana e da valorização da diversidade. 2.3 Empoderamento e representatividade na infância O empoderamento é um conceito complexo e muitas vezes mal interpretado. Para o feminismo negro, ele consiste em uma ação coletiva que promove o fortalecimento das mulheres como sujeitos de mudança. Desta forma, o empoderamento busca transformações sociais, em uma visão antirracista, antielitista e antissexista, por meio de mudanças nas instituições sociais e na consciência de cada mulher negra (HOOKS, 2013). 30 O empoderamento significa o comprometimento com a luta pela equidade. De acordo com Ribeiro (2015), quando uma mulher empodera a si, ela pode fazer o mesmo a outras mulheres. Portanto, não se trata de uma pessoa de forma isolada, mas como ela pode promover o fortalecimento de outras através de uma ação coletiva de consciência dos direitos sociais (RIBEIRO, 2015). Ao pensar na luta dos grupos minoritários, o empoderamento é um instrumento de emancipação política e social. Quando se está imerso em uma realidade opressiva, o indivíduo pode perder a consciência de quem ele realmente é. Desta forma, o processo de empoderamento é compreendido por estágios de autoafirmação, autorreconhecimento, autoconhecimento e autovalorização de si mesmo, sua história, cultura, posição social e política (BERTH, 2019). Para a feminista negra Joice Berth (2019), a pessoa passa a perceber o que acontece ao seu redor: Seria estimular, em algum nível, a autoaceitação de características culturais e estéticas herdadas pela ancestralidade que lhe é inerente para que possa, devidamente munido de informações e novas percepções críticas sobre si mesmo e sobre o mundo em volta, e, ainda, de suas habilidades e características próprias, criar ou descobrir em si mesmo ferramentas ou poderes de atuação no meio em que vive e em prol da coletividade (BERTH, 2019, p.14). Para compreender a noção de empoderamento e a rede de solidariedade e valorização entre mulheres negras, é necessário percorrer as obras de intelectuais e feministas negras. Lélia Gonzalez e Patricia Collins reconhecem na autodefinição da mulher negra, na ação coletiva e no empoderamento da comunidade negra, uma possibilidade de resistência e superação. Mulheres podem criar maneiras de empoderar umas às outras. As negras compartilham, além de histórias de opressão, lindas experiências de luta e resistência, como afirma Gonzalez (1988). Portanto, olhar para trás e perceber a força de suas ancestrais e companheiras, assim como olhar para si e reconhecer o seu potencial, possibilitam que a mulher negra valorize sua história, sua luta e sua cultura. A socióloga Patricia Collins (2016) afirma, em seu livro Black Feminist Thought, que a autodefinição e autovalorização de mulheres negras é uma estratégia para combater a visão imposta pelo colonialismo sobre as mesmas. Enquanto a 31 autodefinição desafia as imagens estereotipadas criadas sobre a condição desta mulher, a autoavalorização envolve a apreciação destes mesmos aspectos: Quando mulheres negras definem a si próprias, claramente rejeitam a suposição irrefletida de que aqueles que estão em posições de se arrogarem a autoridade de descreverem e analisarem a realidade têm o direito de estarem nessas posições. Independentemente do conteúdo de fato das autodefinições de mulheres negras, o ato de insistir na autodefinição dessas mulheres valida o poder de mulheres negras enquanto sujeitos humanos (COLLINS, 2016, p.104). Ao valorizar traços que são estereotipados, ridicularizados e criticados nas instituições sociais, a mulher negra questiona concepções básicas usadas para controlar grupos dominados (COLLINS, 2016). A autora entende a situação dessa mulher, apesar de marginalizado, como um lugar de potência (BERTH, 2019). Através deste processo, ela desenvolve um novo ponto de vista acerca de si mesma, da família e da sociedade (COLLINS, 2016). É essencial que este processo de autodefinição e autoaceitação comece na infância, para que a menina se sinta preparada para lutar contra as pressões sociais a si direcionadas. O uso do prefixo "auto", indica que o processo de empoderamento é uma tomada de consciência interna (BERTH, 2019). Com estímulos externos, como cultura, arte, educação, vivências do cotidiano, exemplos e representatividade, a menina negra é capaz de reconhecer e valorizar o seu potencial, para enfrentar o sistema de dominação machista e racista (BERTH, 2019). O processo de empoderamento na infância da menina negra requer que ela tenha alguém próximo que se valorize e que a encoraje a fazer o mesmo. Da mesma forma, é preciso também apresentar mulheres fortes para a criança e que tenham alguma ligação com ela, seja na cor, cabelo ou idade, fazendo com que ela se sinta representada e encorajada (IADO, 2015). A representatividade, para Farias (2018), consiste no sentimento de um indivíduo se sentir representado por um grupo, expressão humana, ou outra pessoa, que compartilhe das mesmas características físicas, comportamentais ou socioculturais. Na infância, esta representatividade pode se manifestar através dos brinquedos, os quais afetam a criança no seu jeito de ser mediante suas formas, estilo e estética (SOUZA; LOPES; SANTOS, 2007). É visível que o padrão estabelecido pela 32 sociedade perpassa para as brincadeiras, através de bonecas que representam apenas uma parcela das crianças brasileiras. A Barbie, por exemplo, está presente no imaginário infantil como a boneca dos sonhos, ditando um modelo de beleza a ser seguido. Para mudar esse padrão pré-definido, é preciso desenvolver brinquedos relacionados à cultura negra. O brinquedo, porém, é apenas um meio de representatividade negra para a criança. Desenhos animados, livros infantis, arte e filmes são, também, maneiras importantes de levar a identidade negra até ela. No momento em que o indivíduo reconhece alguém semelhante a ele de alguma forma, em uma posição de destaque, sente-se representado. E é nesse sentido que a rapper brasileira, MC Soffia, luta pela representatividade e inspira crianças negras através de suas músicas. Criada em uma família de mulheres negras e militantes, a adolescente transmite mensagens de resistência desde os dez anos de idade (VIEIRA, 2018), questionando padrões de beleza e encorajando crianças negras a aceitarem suas raízes. Soffia revela que "consciência racial é quando você tem consciência do que é o seu cabelo, a sua boca e o racismo. Quando você sabe que cada pedaço seu tem uma herança" (SOFFIA apud HUNGRIA, 2016). Com a sua arte, MC Soffia ajuda outras meninas no seu processo de aceitação e autoconhecimento. Ela comenta a importância de se comunicar com esse público, visto que as crianças estão em um estágio de aprendizado e precisam de alguém que as encorajem e as inspirem a se aceitarem (MONTEIRO, 2019). A música Menina Pretinha, de 2016, celebra a cultura negra e questiona os padrões de beleza impostos pela sociedade. Símbolo de representatividade, a adolescente inspira outras meninas através da letra e do vídeo da música, que traz várias crianças negras que se aceitam como são (FIGURA 3). 33 Figura 3 - Vídeo da música Menina Pretinha, de MC Soffia Fonte: YouTube (2016). Em outra produção, a rapper celebra a sua ancestralidade. A música "Raízes", feita em parceria com a marca Head & Shoulders e lançada neste ano, transmite uma mensagem de autovalorização e respeito pelo seu cabelo. Em seus versos, Soffia demonstra a força de seus ancestrais e da importância do cabelo para a identidade: "Sou África mãe onde o cabelo tem importância, toda essa força eu trago como herança (...) Eu amo meu cabelo, eu amo ele assim, black, raspado, liso, solto, essa é minha raiz" (MC SOFFIA, 2020). No vídeo da música, percebe-se a valorização da diversidade dos cabelos e a presença forte de elementos gráficos que remetem à cultura africana (FIGURA 4). 34 Figura 4 - Vídeo da música "Raízes", de MC Soffia Fonte: YouTube (2020). O ensino da cultura e da história de seus ancestrais para as meninas negras auxilia o processo de empoderamento e de autoaceitação. A arte, o conhecimento e a ajuda mútua entre mulheres podem transmitir para a criança o sentimento de pertencimento, orgulho e valorização das suas raízes. 2.4 O movimento feminista negro e a interseccionalidade Em 2018, 536 mulheres foram agredidas por hora11. Entre 2015 e 2016, 78% das vítimas de morte devido a intervenções policiais foram negros12. Brancos ganham, em média, 72,5% a mais que negros e pardos13. Os dados apresentados demonstram a tamanha desigualdade que a mulher negra enfrenta na sociedade brasileira. Raça, classe e gênero não podem ser pensados de forma isolada (RIBEIRO, 2016), assim como é necessário um movimento que abranja e lute contra as opressões sofridas por esse grupo. 11 Dados do Fórum de Segurança Pública, publicados no site da Época, em 2019. 12 Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 13 Dados segundo pesquisa realizada pelo IBGE, em 2017. 35 O feminismo negro surgiu com a falta de representação da mulher preta em movimentos sociais hegemônicos. O movimento feminista14 possuía uma face racista, uma vez que privilegiava pautas que contemplavam somente mulheres brancas (FEMINISMO..., 2016). Segundo Angela Davis, em seu livro Mulheres, Raça e Classe (1981), os movimentos visavam a ascensão feminina branca, em detrimento da aquisição de direitos da população negra. Ao explicar sobre o feminismo negro, Andrade (2018) comenta que ativistas e intelectuais negras desenvolveram um pensamento próprio, a partir de suas experiências de luta e resistência contra as opressões de raça, gênero e classe. Através da criação de grupos direcionados à discussão dos papéis sociais das mulheres negras e suas atividades políticas, visavam a mudança de estruturas sociais e a revogação de opressões que eram impostas a elas (MORAIS, 2019). No mesmo sentido, Akotirene (2019) afirma que feministas negras pensaram no conceito de interseccionalidade, ao perceber que suas reivindicações intelectuais não eram observadas pelo movimento feminista nem pelo movimento antirracista. Tal conceito, criado em 1989 por Kimberlé Crenshaw, busca entender as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação (RIBEIRO, 2016). Basicamente, é a intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de discriminação, no qual se registram diferentes experiências de opressão. De acordo com Akotirene, a interseccionalidade defende a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado15. Desta forma, mulheres negras são atingidas pelo cruzamento de raça, gênero e classe (AKOTIRENE, 2019). Djamila Ribeiro (2018), em seu livro Quem tem medo do Feminismo Negro? dialoga com ideias de Simone de Beauvoir e Grada Kilomba a respeito do lugar da mulher. Beauvoir (1980 apud RIBEIRO, 2018) afirma que a mulher é o outro, por não possuir reciprocidade do olhar do homem e se encontrar em uma posição de submissão e dominação. Entretanto, ao pensar em interseccionalidade e feminismo 14 O movimento feminista é um movimento social, político e econômico que reinvindica direitos para as mulheres, como a igualdade de gênero. O feminismo luta contra as opressões que vitimizam a mulher na sociedade. 15 De acordo com Carla Akotirene (2019), o patriarcado é um sistema político modelador de cultura e dominação masculina, que logo na infância impõe papéis de gênero baseados em identidades binárias. A cisgeneridade abrange indivíduos que se identificam, em todos os aspectos, com o gênero atribuído ao nascer em função do seu sexo biológico. A despeito do gênero atribuído socialmente, pessoas não-cis estão fora dos padrões instituídos. 36 negro, a escritora e professora Grada Kilomba (2012 apud RIBEIRO, 2018) entende que a mulher negra é o outro do outro, por apresentar uma carência dupla: não ser homem e não ser branca. Ela discorda de Beauvoir ao considerar a mulher negra como principal elemento deste comparativo. Afirma, também, que o olhar dos homens brancos e negros e das mulheres brancas delimitam à mulher negra um local de subalternidade muito mais difícil de ser ultrapassado (KILOMBA, 2012 apud RIBEIRO, 2018). Ao analisar o pensamento de Crenshaw sobre interseccionalidade, Joice Berth (2019) afirma que é possível compreender que não se pode hierarquizar as opressões. Ao olhá-las através de uma perspectiva interseccional, é possível identificar como essas elas se inter-relacionam e potencializam seus efeitos sobre um grupo de indivíduos. Desta forma, percebe-se a importância desta abordagem ao analisar o movimento feminista negro. No Brasil, o feminismo negro inicia no final da década de 1970. A partir do III Encontro Feminista Latino-americano, mulheres negras se organizaram coletivamente para adquirir visibilidade política no campo feminista (MOREIRA, 2007). Assim, surgem os primeiros coletivos e encontros estaduais e nacionais. O pensamento feminista negro no Brasil buscou confrontar a posição social inferior da mulher negra, em um país com herança escravocrata e segmentária. Nomes importantes ganham visibilidade na produção intelectual, como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Luiza Bairros, que proporcionam discussões sobre a conexão de questões raciais, econômicas e sexuais no Brasil e abrem os caminhos para a representação negra no país (MOREIRA, 2007). Segundo a historiadora Cláudia Cardoso (2012 apud ANDRADE, 2018), as principais características do feminismo negro são a recuperação da história de mulheres negras e sua reinterpretação por meio de uma estrutura teórica construída em oposição aos padrões tradicionais. A visibilidade da contribuição deste grupo em diversas áreas de conhecimento vem crescendo com o fortalecimento do feminismo negro no Brasil. A inserção dessas mulheres em meios acadêmicos, literários e culturais contribui para a reconfiguração de espaços e estruturas sociais. Desta forma, as obras de intelectuais negras contribuem para a descolonização do saber, do gênero e do movimento feminista hegemônico (ANDRADE, 2018). 37 2.5 Design social e ativismo Os termos "design" e "designer" têm sido reconhecidos por cada vez mais pessoas como um modo de pensar e um comportamento aplicáveis a inúmeras situações (MANZINI, 2017). Em um mundo que se encontra em constante transformação, os designers precisam assumir novos papéis, atuando como ativistas e comunicadores capazes de criar oportunidades e apoiar processos culturais e sociais. Através do ativismo, o designer se insere como um importante agente nos movimentos de transição social. Como afirma Manzini (2017), podem evidenciar determinado contexto por meio de discussões e ações produtivas. Nesse sentido, ativistas de design buscam despertar o interesse em problemas da realidade e mostrar que existem maneiras diferentes de olhá-los e resolvê-los. Nestes ambientes, o papel do profissional serve como uma base norteadora para resolução de problemas e sistemas que necessitam de ações concretas (MANZINI, 2017). Porém, cabe lembrar que não existem receitas explícitas no design que possam avaliar e resolver os desafios da atualidade (CARDOSO, 2012). Em seu livro Design para um mundo complexo, Rafael Cardoso (2012) comenta que é preciso analisar profundamente o problema, de forma a entender suas raízes e então propor uma solução para os indivíduos por ele afetados. "Seria cruel, quase obsceno, propor que arejar a mancha de texto de uma página é uma boa maneira de tornar a leitura mais acessível, num país onde não se lê por opção e por falta de opção (CARDOSO, 2012, p. 41). Portanto, é preciso entender que os desafios são compostos por partes interligadas, que nascem de ações individuais e passam a integrar movimentos coletivos (CARDOSO, 2012). No mesmo sentido, Victor Papanek (1971) destaca a responsabilidade moral do designer, afirmando que há poucas profissões mais prejudiciais que o design. Ele encoraja os profissionais a procurar soluções e respostas para os problemas sociais presentes no mundo, ao invés de manter a sua atuação alinhada aos interesses comerciais (PAPANEK, 1971 apud ALMENDRA; FRANZATO; RODRIGUES, 2016). Para Papanek, o designer precisa levar em conta a sua responsabilidade social antes de iniciar a projetar, para saber se o produto que lhe foi passado para o 38 desenvolvimento está ao lado do bem social ou não (PAPANEK, 1971 apud ALMENDRA; FRANZATO; RODRIGUES, 2016). Acreditava na produção de soluções para comunidades e uso coletivo, indo de encontro ao design orientado ao ser humano (ALMENDRA; FRANZATO; RODRIGUES, 2016). A fim de buscar soluções para complexidades do mundo, o design social é uma atividade que lida com problemas nos quais as pessoas envolvidas normalmente não têm voz (MANZINI, 2017). Como afirma Manzini (2017), os indivíduos que se encontram em questões sociais mais delicadas não podem arcar com os custos do design. Desta forma, o designer normalmente atua de forma beneficente, e busca encontrar soluções para custear as iniciativas do projeto social. Neste contexto, o uso de sites de financiamento coletivo é um fenômeno crescente no Brasil, que vem apoiando financeiramente a execução de projetos de baixo orçamento através de redes de colaboração (VALIATI, TIETZMANN, 2012). O objetivo destas plataformas é fazer com que várias pessoas possam contribuir com pequenas quantias. Uma das principais plataformas de financiamento coletivo no país é o Catarse. Com algumas premissas básicas de funcionamento, o interessado encaminha a proposta do projeto e determina o valor e até quando pretende arrecadar o dinheiro. Partindo disso, o autor é responsável pela divulgação e escolha da recompensa que será entregue aos doadores. Caso o valor desejado não seja atingido até o término do prazo, o dinheiro é devolvido e a iniciativa não recebe o financiamento. O Catarse possui um conselho curador que auxilia na escolha dos trabalhos que irão para o ar, sendo que estes devem ser criativos e se enquadrar em uma das categorias apresentadas (VALIATI, TIETZMANN, 2012). Assim, o financiamento coletivo pode auxiliar no desenvolvimento de projetos de design de cunho social. Um grande movimento que alia design e causas sociais no país é o Design Ativista, uma rede de criadores visuais que compartilham a vontade de fazer design voltado para o que se acredita. Através da tag #DesignAtivista, o movimento une profissionais iniciantes, experientes, artistas e pessoas que nem trabalham com design e que participam ativamente, sem fins lucrativos, com o objetivo de difundir informações sobre causas importantes. Com a experimentação de novas linguagens visuais, o Design Ativista chama a atenção para temas que precisam de debate, como 39 o racismo, genocídio da população negra (FIGURA 5) e a importância do antirracismo (NINJA, 2020) representada pela Figura 6, na página seguinte. Figura 5 - Ilustração de Pevê Azevedo em homenagem à Ágatha Félix, 8 anos Fonte: Instagram/Design Ativista (2019). 40 Figura 6 - Ilustração de Angela Davis, por Cristiano Siqueira Fonte: Instagram/Design Ativista (2019). O design possui grande importância na busca de soluções de problemas enfrentados por minorias. Unido ao ativismo, o designer pode se tornar um agente 41 essencial na defesa de causas sociais e culturais e na luta contra sistemas de opressão. 2.6 Design gráfico editorial contemporâneo do livro Para Rafael Cardoso (2000), o design busca materializar conceitos, no princípio de adequar os objetos ao seu propósito. O design editorial é uma especialização do design gráfico direcionado para a produção de materiais impressos e digitais, como livros, revistas, jornais e eBooks. Neste projeto, o objeto editorial a ser desenvolvido é o livro. Ele faz parte do cotidiano e transmite conhecimento à um determinado grupo de leitores. Ao possuir uma tradição literária e artística, destaca-se nos livros a característica de um objeto artesanal (PIVETTI, 2006) que pode transmitir muito além de uma história por entre as páginas. Zugliani (2020) observa como o design editorial se comporta na contemporaneidade, por meio de livros experimentais e independentes. O autor conta que, por muito tempo, a função do designer gráfico no meio editorial esteve atrelada à "articulação técnica de textos e imagens em publicações" (ZUGLIANI, 2020, p. 58). Os produtos gráficos editoriais possuíam departamentos bem divididos, sendo o conteúdo como função exclusiva do escritor ou editor. Assim, o designer era responsável somente por encontrar soluções gráficas que melhor apresentassem as informações pré-determinadas. Ainda que essa estrutura de trabalho seja comum na produção de algumas obras no mercado editorial, a pós-modernidade trouxe a ruptura de algumas regras consolidadas, como a possibilidade da quebra das funções de designer e editor (ZUGLIANI, 2020). Como afirma Zugliani (2020, p. 59), "o autor do projeto gráfico passa a ser responsável também por todo o processo que envolve a prática editorial, desde a seleção dos conteúdos até a construção da proposta verbal". Poynor (2010 apud ZUGLIANI, 2020) comenta que o criador sempre irá transparecer no seu design, de alguma forma, o seu gosto pessoal, sua cultura, crenças sociais e políticas. Porém, para ser considerado um designer autor, é necessário que o mesmo tenha uma conexão estreita com o conteúdo da obra. 42 O designer, escritor e ilustrador Gustavo Piqueira, que carrega mais de 200 prêmios e está à frente da Casa Rex, é um dos exemplos mais notáveis do design brasileiro contemporâneo. Responsável por livros que não se encaixam em uma categoria específica, Piqueira (2013 apud ARBOLAVE, 2013, p. 1) comenta que "design não é o meio, não é o fim. Design é diálogo. Cada projeto é uma possibilidade de se aproximar a um assunto de uma forma diferente". Neste sentido, ele vem revolucionando o mercado editorial ao considerar o trânsito do design em diversas categorias (LINGUAGEM..., 2017). Piqueira, que possui uma trajetória literária com mais de 20 livros autorais publicados, que buscam inovar no suporte e na forma como o objeto editorial é visto (LINGUAGEM..., 2017). Ao pensar no papel do designer no mundo editorial contemporâneo, Paes (2020) afirma que ele passa a observar e compreender a cultura e a sociedade que o cerca. Desta forma, este projeto se questiona sobre as opressões sofridas por mulheres negras desde sua infância. Assim, este produto editorial tem cunho experimental, no qual a autora irá criar tanto a narrativa quanto o projeto gráfico de um livro infantil ilustrado. Nos próximos capítulos, serão discutidos a importância do livro e da leitura para o desenvolvimento da criança, bem como as fases de desenvolvimento de um projeto gráfico para um livro ilustrado. 2.6.1 O livro infantil ilustrado Bruno Munari (2008) afirma em seu livro Das coisas nascem coisas, que o livro ajuda o indivíduo a conhecer e compreender melhor os fatos, além de despertar novos interesses. De acordo com o autor, é importante introduzir o gosto pela leitura ainda na infância, pois nesse período são desenvolvidos hábitos levados para toda a vida (MUNARI, 2008). O livro infantil tem a função de estimular a criança, constituindo o livro ilustrado como um dos principais formatos deste gênero. De acordo com Van der Linden (2018, p.24), ele refere-se à "obras em que a imagem é espacialmente preponderante em relação ao texto, que aliás pode estar ausente. A narrativa se faz de maneira articulada entre textos e imagens". A autora coloca que estas obras são inicialmente concebidas para não leitores, de forma a atingir o público através da mediação que 43 compra o livro e pode lê-lo muitas vezes para a criança. Porém, a abrangência de leitores deste tipo de linguagem é ampla, expandindo-se até crianças e adolescentes (VAN DER LINDEN, 2018). O surgimento dos primeiros livros infantis no Brasil atendeu às solicitações de uma classe média urbana emergente. A ausência da produção literária infantil no país desencadeou na tradução de obras estrangeiras direcionadas à adultos e posterior adaptação para crianças. Ainda seguindo a influência europeia, foram traduzidos contos infantis populares como As Aventuras de João e Maria, A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, entre outros (ZILBERMAN, 2005). Um grande sucessor do gênero no país foi Monteiro Lobato, com obras de grande repercussão e com um papel importante no mercado editorial brasileiro, com a adoção de capas ilustradas e de uma rede de distribuição. Apesar de ser um grande escritor, Lobato demonstra uma atitude racista ao usar estereótipos para se referir à personagens negros. Fica clara a forma como Tia Nastácia é retratada com relação à suas características físicas e de acordo com a teoria de que os negros ocupam apenas lugares e serviços de inferioridade (SILVA, 2010). Como afirma Silva (2010), a obra de Monteiro Lobato deve ser abordada com uma visão crítica, para promover a discussão sobre a visão do negro na literatura da época e pensar em obras literárias infantis como um canal para o diálogo sobre temas como racismo e representatividade. Visto que por meio do livro infantil ilustrado a criança entra em contato com a leitura, o design pode contribuir diretamente para isso (NECYK, 2007). O desenvolvimento do projeto gráfico do livro também influencia na forma como o pequeno leitor irá entender e interagir com a narrativa (NECYK, 2007). 2.6.2 Projeto gráfico e aspectos materiais e visuais do livro Projetar um livro infantil é um desafio para o designer, que precisa fazer com que o projeto gráfico se comunique com a narrativa, proporcione uma boa leitura e transmita para o pequeno leitor novas sensações e descobertas. Constituem este 44 planejamento os elementos visuais e a materialidade do livro, desde a forma como é feita a construção do layout nas páginas internas até os aspectos de materiais de impressão e acabamentos (RAMOS, 2011). O termo projeto gráfico geralmente é designado para projetos editoriais, pois envolve um conjunto de elementos que se relacionam e que devem manter uma identidade geral (DOMICIANO, 2008). Para Hunt (2010 apud MENEGAZZI; DEBUS, 2018) o projeto de um livro influencia diretamente o leitor através de fatores como a capa, ilustrações, legibilidade e blocos de texto. Portanto, para o planejamento gráfico de um livro infantil ilustrado, o designer deve considerar alguns aspectos que serão discutidos a seguir. 2.6.2.1 Formato e suporte Um dos primeiros aspectos que influencia o planejamento do projeto gráfico de um livro é o formato. Segundo Haslam (2007), o formato de um livro é determinado pela relação entre a largura e altura da sua página. Para garantir que o formato seja bom para leitura e manuseio, além de ser economicamente viável, o designer deve considerar aspectos práticos, estéticos e de produção (HASLAM, 2007). Normalmente, os livros são projetados em três formatos básicos: retrato, no qual a altura da página é maior que a largura; paisagem, cuja altura da página é menor que a largura e quadrado (HASLAM, 2007). Ao considerar aspectos práticos para o livro infantil, o uso de um formato retangular pode proporcionar um melhor manuseio para a criança, enquanto esta pode ter mais dificuldade ao segurar livros em formatos horizontais (KLOHN; FENSTERSEIFER, 2012). O designer deve, portanto, adequar o formato da publicação para atender as necessidades do usuário, de forma que ela garanta conforto durante a leitura e manuseio do objeto. No que se refere à aspectos econômicos e de produção do livro, deve-se considerar uma configuração que forneça um melhor custo/benefício. Uma maneira econômica de definir o formato da publicação é basear-se nos tamanhos de papel disponíveis no mercado, uma vez que evita o desperdício de material (HASLAM, 2007). 45 Além do formato, a escolha do suporte mais adequado também é feita no início do projeto gráfico. Segundo Ambrose e Harris (2009), a diversidade de cores, texturas e gramaturas de suportes podem influenciar o impacto do produto final, tornando o livro mais atrativo e também encorajando o leitor a explorar outros sentidos por meio de sua interação com o objeto. Nesse sentido, o designer precisa levar em consideração o conteúdo do livro e o número de páginas. Considerar os aspectos da materialidade do livro, como formato e suporte, no início do desenvolvimento do projeto gráfico facilitam as decisões do designer ao longo do processo, além de definir a viabilidade de produção. 2.6.2.2 Imagem e cor Os elementos visuais possuem grande importância no livro infantil. Guto Lins (2003) afirma que, para a criança, a relação com a linguagem visual ocorre anteriormente à linguagem escrita e falada. Neste projeto editorial, a ilustração será a representação imagética que terá como objetivo se comunicar com o pequeno leitor, de forma que o mesmo se sinta representado e permita-se viajar pela da história. Lins acrescenta que a ilustração permite a caracterização de um personagem, atribuindo- lhe personalidade, expressão e significado. O processo de desenvolvimento das ilustrações deve ser livre e lúdico. É preciso que o ilustrador compartilhe do universo mágico que acontece na imaginação da criança, de forma que possa proporcionar uma imagem que se comunique bem com ela. Como afirma Abreu (2010), o ilustrador precisa descobrir novas formas de sonhar e de proporcionar sonhos, sempre buscando compreender o público infantil. É um trabalho de constante investigação, experimentação e liberdade, para que as ilustrações se identifiquem com a proposta do livro, com a narrativa e com o leitor. Em relação à ilustração, Van der Linden (2018) observa que as técnicas do livro ilustrado vêm se diversificando desde o início de 1990, quando um dos estilos mais utilizados consistia na combinação de um traçado, como lápis e nanquim, e uma cor, como a aquarela. Atualmente, com o aperfeiçoamento digital e de softwares, novas formas de ilustrar são desenvolvidas. 46