CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DOS MONUMENTOS HISTÓRICOS: A CASA DO MORRO DE CRUZEIRO DO SUL/RS Júlia Leite Gregory Lajeado, novembro de 2016 Júlia Leite Gregory O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DOS MONUMENTOS HISTÓRICOS: A CASA DO MORRO DE CRUZEIRO DO SUL/RS Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, do Curso de História, do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para obtenção do título de Licenciatura em História. Orientadora: Profª. Dra. Márcia Solange Volkmer Lajeado, novembro de 2016 Júlia Leite Gregory O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DOS MONUMENTOS HISTÓRICOS: A CASA DO MORRO DE CRUZEIRO DO SUL/RS A Banca examinadora abaixo aprova a Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, do Curso de História, do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para a obtenção do grau de Licenciada em História. Profa. Dra. Márcia Solange Volkmer Centro Universitário UNIVATES Prof. Me. Sérgio Nunes Lopes Centro Universitário UNIVATES Lajeado, novembro de 2016 Dedico este trabalho a todos os professores e estudantes que, assim como eu, ainda acreditam que a educação, seja ela em ambiente escolar ou não, pode contribuir para um mundo que respeite a diversidade, que lute contra o preconceito e que seja mais humano. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente à minha família, mãe Ana, pai Mauro e irmão Daniel, pelo carinho e amor de sempre e por me apoiar em todas as minhas decisões. Ao meu amor, Ernesto Pereira Bastos Neto, namorado e colega de curso, por acompanhar todo este processo auxiliando na escrita, contribuindo com as discussões teóricas, e por oferecer carinho, amor, conforto e compreensão nas horas difíceis. À minha orientadora, Professora Draª Márcia Solange Volkmer, por aceitar orientar este trabalho aos quarenta e cinco do segundo tempo, pela motivação de cada orientação, por sempre me desafiar e incentivar e por respeitar minha escrita. Ao professor Luís Fernando da Silva Laroque e às colegas bolsistas Ana Paula, Tuani, Marina, Jana, Fabi e Emeli, que no ano de 2015 me orientaram no campo da pesquisa e contribuíram para minha caminhada acadêmica. Às amigas que fiz durante a graduação, Sabrina Fabiola Hüther, Ana Paula Castoldi, Tuani de Cristo, Marina Invernizzi, Marina Johann, Paula Dresch dos Santos, Élin Westenhofen e Simone Elisa Weber, entre tantos outros que tornaram esta graduação muito mais divertida e especial. Aos amigos Paulo e Fabrine e às meninas da Quarta Sagrada, Paulinha, Érica, Fê, Jé Becker, Jé Franz, Vitória e Karol, por compreenderem minha ausência e me apoiarem sempre. Às pessoas que concederam entrevistas para esta pesquisa. Aos funcionários da Câmara Municipal de Vereadores de Cruzeiro do Sul, Dani, Fabrine e Israel, por deixarem as portas sempre abertas durante este ano e por me auxiliarem na pesquisa sempre que precisei. Aos Amigos da Casa do Morro, em especial à professora Marcia Raquel Krein, por participarem desta pesquisa voluntariamente e de certo modo, por inspirarem e provocarem este trabalho. Se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares. Não haveria lugares porque não haveria memória transportada pela história. Cada gesto, até o mais cotidiano, seria vivido como uma repetição religiosa que sempre se fez, numa identificação carnal do ato e do sentido. Desde que haja rastro, distância, mediação, não estamos dentro da verdadeira memória, mas dentro da história. Pierre Nora (1993, p. 8) RESUMO O Patrimônio Cultural contempla todas as formas de expressão e manifestação das culturas. Vinculado à identidade e memória da população, constitui-se a partir de escolhas e processos que determinam o que será preservado em cada contexto. Esta monografia apresenta os resultados obtidos a partir do desenvolvimento da pesquisa sobre a Casa do Morro de Cruzeiro do Sul. Objetivou-se realizar um estudo aprofundado no que concerne ao patrimônio histórico da cidade de Cruzeiro do Sul, com destaque ao processo de patrimonialização da Casa do Morro, amparado por um referencial teórico sobre patrimônio, memória e identidade. Inicialmente apresentamos uma contextualização histórica sobre a construção da Casa do Morro e da história de Cruzeiro do Sul, e logo após analisamos o processo de patrimonialização da Casa do Morro a partir do estudo das atas da Câmara Municipal de Vereadores de Cruzeiro do Sul e de questionários feitos com o grupo Amigos da Casa do Morro. O prédio foi construído por Primórdio Centeno de Azambuja, filho de Laura Centeno de Azambuja, matriarca da família fundadora do município de Cruzeiro do Sul. A Casa foi construída entre os anos de 1873 e 1878, aproximadamente, no alto do morro para que ficasse protegida das frequentes enchentes do rio Taquari. A Casa foi sendo reutilizada de várias maneiras ao longo de sua história, como por exemplo, já abrigou inquilinos, um restaurante, museu municipal e biblioteca. Hoje se encontra fechada ao público. A pesquisa possui caráter qualitativo com análise de conteúdo e utilizou como procedimentos metodológicos a pesquisa bibliográfica e documental, além da utilização da História Oral e de questionários. Por fim, este estudo demonstrou que a Casa do Morro se tornou patrimônio municipal devido a uma escolha política realizada pelos vereadores do município, e que é interpretada como lugar de memória por uma parcela da população, que luta por sua preservação. Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Casa do Morro; Cruzeiro do Sul; Lugares de memória. LISTA DE ILUSTRAÇÕES LISTA DE FIGURAS Figura 1- Os municípios da Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul em 1809............23 Figura 2 - Colonização no Vale do rio Taquari.........................................................................25 Figura 3 – Propriedade de Primórdio Centeno de Azambuja na margem direita do arroio Sampaio.....................................................................................................................................30 Figura 4 – Propriedade do Poço Grande...................................................................................31 Figura 5 – Casa do Morro em 2016..........................................................................................35 Figura 6 – Casa do Morro em 1926..........................................................................................36 Figura 7 – Casa do Morro danificada (fotografia registrada aproximadamente entre as décadas de 1920 e 1940).........................................................................................................................37 Figura 8 – Bandeira de Cruzeiro do Sul com o Brasão de Armas............................................55 LISTA DE SIGLAS AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAE – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................12 2 O CONTEXTO HISTÓRICO DA CASA DO MORRO............................................ ......21 2.1 O Vale do Taquari e a família Azambuja.......................................................................21 2.2 “Feita de pedra e cal, coberta com telhas de barro”: a Casa do Morro de Primórdio Centeno de Azambuja............................................................................................................29 3 O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA CASA DO MORRO........................41 3.1 Patrimônio, Identidade e Memória.................................................................................41 3.2 O símbolo histórico de Cruzeiro do Sul......................................................................... 54 3.3 Os Amigos da Casa do Morro......................................................................................... 64 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................70 5 REFERÊNCIAS...................................................................................................................72 APÊNDICES........................................................................... ................................................77 APÊNDICE A – Questionário aplicado com integrantes do grupo Amigos da Casa do Morro.......................................................................................................................................78 APÊNDICE B – Fachada da Casa do Morro em 2016........................................................79 12 1 INTRODUÇÃO Cruzeiro do Sul está situado no Vale do Taquari, localizado na porção centro-leste do Rio Grande do Sul. Dentro do Vale do Taquari, o município se encontra na microrregião centro-oeste e faz fronteira com os municípios de Bom Retiro do Sul, Estrela, Lajeado, Santa Clara do Sul, Venâncio Aires e Mato Leitão. O Vale do Taquari, atualmente com 36 municípios, possui grande diversidade cultural, reflexo da habitação de diferentes grupos étnicos no território, tais como indígenas, africanos e imigrantes europeus. Dentre os últimos são identificados açorianos, alemães, italianos e seus descendentes. A cidade de Cruzeiro do Sul também possui uma grande variedade cultural, iniciando pela ocupação indígena guarani e pelo grupo heterogêneo denominado lavradores nacionais, que trabalhavam nos ervais do município. Após a imigração europeia, também ocorreu a presença de africanos escravizados, açorianos, alemães, italianos e seus descendentes. Durante o final do período colonial brasileiro e no transcorrer do período imperial, o governo português concedia sesmarias a quem ocupasse territórios ameaçados de invasão espanhola, no caso da região sul do Brasil. No Vale do Taquari não foi diferente, e em 1798, foi concedida uma sesmaria a José da Silva Lima e seus irmãos, num total de 60 mil e 421 hectares, que iniciava na barra do Arroio Castelhano e ia até a barra do Arroio Sampaio, no atual território de Cruzeiro do Sul. Esta Fazenda, denominada de Desterro, já estava sendo ocupada por essa família, a qual utilizava as terras para plantar diversos produtos servindo-se de escravos. 1 1 SCHIERHOLT, José Alfredo. Cruzeiro do Sul e sua história. Porto Alegre: Evangraf, 2010. 13 Além desta, várias outras famílias passaram a ocupar o território que hoje pertence a Cruzeiro do Sul, adquirindo propriedades e fazendas. Em sua grande maioria, são famílias de descendência açoriana e alemã. No entanto, uma família acabou se destacando na história do município, a família Azambuja, que é a fundadora do núcleo urbano de Cruzeiro do Sul. João Xavier de Azambuja e Laura Centeno de Azambuja adquiriram a Fazenda São Gabriel no ano de 1835, mesmo ano em que iniciou a Revolução Farroupilha. A propriedade continha mil e quinhentas braças de frente e seis mil de fundo, confrontando pelo Leste com o rio Taquari, pelo Oeste com a Serra Geral, pelo Sul com o Arroio Sampaio e terras de José da Lima Silva e seus irmãos, pelo Norte com terras de Valentim Soares de Saibro. 2 No período da compra, a família era residente de Porto Alegre, e logo após, se dirigiu para a nova propriedade para construir um grande sobrado na localidade de Santarém. O casal teve onze filhos, os quais foram Rafael Fortunato Xavier de Azambuja, Bento Manuel de Azambuja, Bento Gonçalves Xavier de Azambuja, Primórdio Centeno de Azambuja, Francisca Centeno de Azambuja, João Xavier de Azambuja Júnior, Marcolino Centeno de Azambuja, Josefina Centeno de Azambuja, Maria José de Azambuja, Cândida Centeno de Azambuja e Maria Tomázia Centeno de Azambuja. 3 Os Azambuja pertenciam à elite sul-rio-grandense e se utilizaram da política dos casamentos, da carreira militar e do comércio de terras para manter seu status social. Com a morte do marido, Laura vendeu uma parte do latifúndio para José Ferreira Guimarães e transferiu-se para o atual centro urbano do município. A família Azambuja possuía escravos que trabalhavam na propriedade servindo à família no trato com os animais, no trabalho na lavoura e no engenho de serrar madeira. O primogênito do casal, Primórdio Centeno de Azambuja, acabou herdando as posses e deu continuidade às atividades, no entanto, também passou a comercializar lotes coloniais. Primórdio, quando voltou da Guerra do Paraguai, iniciou a construção de sua casa em 1872, ao lado da casa de sua mãe, a qual estava situada onde hoje se encontra o prédio da prefeitura de Cruzeiro do Sul. Durante a construção da casa, uma enchente atingiu a obra, e Primórdio resolveu erguer sua moradia no alto do morro, concluída por volta do ano de 1878. 2 Ibidem. 3 CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Litígios ao sul do Império: a Lei de Terras e a consolidação política da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). 353 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2010. 14 Sua casa ficou conhecida primeiramente como a Casa Branca dos Arcos do Morro, sendo que atualmente é denominada de Casa do Morro. O prédio contém 305,30m² de área construída e possui uma arquitetura característica da época, tendo em sua fachada sete arcos, que eram muito comuns no período e podem ter sido influenciados por várias obras arquitetônicas de destaque, como o Arco do Triunfo de Paris e os Arcos da Lapa no Rio de Janeiro. Após a morte de Primórdio, em 1898, a casa foi comprada por sua cunhada Leocádia Vilanova de Azambuja, que era casada com Rafael Fortunato de Azambuja. Até 1914 o prédio permaneceu sob a tutela de Leocádia e a partir daí, foi ocupada por inquilinos, e mais tarde, serviu de abrigo a um restaurante e a uma Casa de Cultura que continha museu e biblioteca municipal. Ao longo dos anos, a Casa sofreu intensa degradação causada pelo tempo e pela ação humana, mesmo passando por alguns processos de reforma. A Casa está fechada desde o ano de 2003, mas é de fácil acesso a vândalos. O monumento histórico se encontra no centro do Brasão de Armas do município e está tombado a nível municipal desde 2006. Somente após dez anos do tombamento é que a Casa passou a receber intervenções em sua estrutura, que buscam salvaguardar o prédio, o qual estava prestes a ruir. Recentemente, um grupo de alunas do Ensino Médio elaborou um trabalho de pesquisa em que ressaltaram a importância do patrimônio histórico para o município e solicitaram a restauração do prédio e organização de um espaço cultural no mesmo. A solicitação foi levada ao Poder Legislativo municipal, e a partir daí, foi criado o grupo Amigos da Casa do Morro, em março de 2015. O objetivo do grupo de voluntários é angariar fundos para a restauração do monumento e a disposição de um espaço cultural que ofereça variadas atividades, como teatro, música, artesanato e dança. Atualmente a Casa está passando por um processo de reestruturação, que começou em decorrência do movimento dos Amigos da Casa do Morro, mas ainda não está definido para qual propósito a Casa será utilizada. A partir deste contexto, a problemática desta pesquisa é saber como se deu o processo de patrimonialização da Casa do Morro, entendendo a eleição deste símbolo como uma escolha política e como um lugar de memória que legitima o sentimento de pertencimento de determinada parcela da população. Parte-se do princípio de que a transformação da Casa do Morro em símbolo do município pelos representantes do legislativo foi uma escolha política e, portanto, passível de análise e interpretação. Na construção dos sentidos e representações associados ao monumento, acontece o processo de exclusão de vários setores da sociedade. 15 Sendo assim, parece que não foi uma escolha democrática e participativa, o que acarreta a não preservação do monumento por uma parcela da sociedade, que parece não se sentir representada pela Casa do Morro. Entretanto, há uma parcela significativa que se identifica com o símbolo e busca sua preservação, temendo que sua destruição acarrete na destruição da própria história do município. Por conseguinte, o principal objetivo do trabalho é o de analisar o processo de patrimonialização da Casa do Morro, entendendo-a como um lugar de memória, fruto de uma escolha política, sendo que os objetivos específicos são: a) Estudar o Patrimônio Cultural e os seus referentes em Cruzeiro do Sul, contextualizando as diferentes interpretações que o assunto já suscitou em diversos espaços e temporalidades; b) Apresentar um histórico da Casa do Morro a partir do referencial bibliográfico e documental encontrado; c) Discutir o processo de patrimonialização da Casa do Morro a partir da interpretação dos dados históricos levantados com a aplicação do referencial teórico estudado. Como justificativa temos a necessidade do estudo tendo em vista que não existem trabalhos a respeito do tema, a não ser a obra de José Alfredo Schierholt, “Cruzeiro do Sul e sua História”, a qual, no entanto, não aborda especificamente a Casa do Morro, e sim, a história do município como um todo. Além desta, há uma obra organizada por Cesar Locatelli, Fabrício de Saibro e Leani Schneider, que apresenta a história do município através de fotos, nos auxiliando na visualização do monumento ao longo do tempo. A Casa do Morro também é mencionada em uma lenda publicada no livro de Antonio Augusto Fagundes, “Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul”. Cristiano Luís Christillino, em sua dissertação e tese, menciona aspectos da história de Cruzeiro do Sul e da família Azambuja, porém não aborda a Casa do Morro. Além disso, a recente mobilização do grupo Amigos da Casa do Morro evidencia a importância do monumento para a população, e indica que para que esse lugar de memória seja utilizado adequadamente, é necessário um estudo aprofundado e um envolvimento maior de diferentes grupos sociais. Para isso, realiza-se uma pesquisa bibliográfica a respeito do tema patrimônio, discutindo as diversas interpretações que o assunto já suscitou ao longo do tempo, principalmente em se tratando de Brasil. Pontua-se a trajetória de preservação dos 16 monumentos históricos na Antiguidade até o surgimento do conceito de patrimônio imaterial no Brasil na segunda metade do século XX. Entende-se a cultura como patrimônio, e este interpretado a partir do conceito de referência cultural. Ao estudar os bens culturais, a principal pergunta que se faz é “os mesmos são referência a quem?” ou “são representativos para quem?”. Quando se fala em referências culturais, se pressupõem sujeitos para os quais essas referências façam sentido (referências para quem?). Essa perspectiva veio deslocar o foco dos bens - que em geral se impõem por sua monumentalidade, por sua riqueza, por seu “peso” material e simbólico - para a dinâmica de atribuição de sentidos e valores. Ou seja, para o fato de que os bens culturais não valem por si mesmos, não têm um valor intrínseco. O valor lhes é sempre atribuído por sujeitos particulares e em função de determinados critérios e interesses historicamente condicionados. 4 Estuda-se o conceito de patrimônio como resultado de uma escolha política, que tem o objetivo de contribuir para a construção da identidade dos grupos sociais, e, por conseguinte, o conceito de identidade será analisado como uma construção social, não estática, que sofre alterações ao longo do tempo. A Casa do Morro de Cruzeiro do Sul será interpretada como um lugar de memória, que faz referência ao passado histórico da cidade, mas que também desperta em muitas pessoas o sentimento de representatividade e pertencimento a uma coletividade. Neste sentido, pensemos a Casa do Morro como um monumento histórico tombado pelo Poder Público, no entanto, que num primeiro momento, não parece despertar o sentimento de representatividade por parte da totalidade dos cidadãos cruzeirenses. Escolhida como o principal símbolo do município, a Casa do final do século XIX representa o poder e prestígio social da família Azambuja. Logo, percebemos uma escolha política na definição do patrimônio do município, que neste caso, ocorreu por parte dos vereadores. Sendo assim, não foi uma escolha democrática e participativa de toda comunidade, princípios fundamentais que caracterizam a definição e a preservação do patrimônio cultural atualmente. A partir dessa constatação é possível compreender a dificuldade que existe em manter preservado este monumento histórico, tanto pelo Poder Público, que necessita de suporte financeiro, quanto pela sociedade em geral, que necessita ter despertada sua memória e identidade para que se sinta representada por determinado patrimônio. Portanto, fica evidente que políticas públicas como o tombamento, não garantem a preservação do patrimônio cultural, é preciso haver relação da sociedade com o mesmo constantemente. 4 FONSECA, Maria Cecilia Londres. Referências culturais: base para novas políticas de patrimônio. Políticas Sociais: acompanhamento e análise, n.2, 2001, p.112. 17 O grupo Amigos da Casa do Morro, que tem o objetivo de buscar a restauração da Casa e sua preservação é oriundo da própria comunidade e não possui vínculos políticos. Esse intuito coletivo de preocupação com o patrimônio parece estar intimamente relacionado com a teoria de Pierre Nora sobre os lugares de memória. Entendendo a Casa do Morro como um lugar de memória construído pela sociedade, a atuação da comunidade sugere uma busca pela sua origem e legitimação de identidade, para que consiga restituir sua memória. Discutiremos as relações estabelecidas acima utilizando pesquisa bibliográfica e documental para compreender o processo de patrimonialização da Casa do Morro, bem como sua utilização e representação por parte dos grupos sociais ao longo do tempo. A metodologia utilizada na pesquisa consiste em uma abordagem qualitativa com análise de conteúdo. Sendo assim, os procedimentos metodológicos contaram com a revisão bibliográfica de trabalhos sobre o patrimônio histórico e cultural, o levantamento documental, aplicação de questionários e entrevistas e pesquisa com fotografias da Casa do Morro. Pesquisamos em todas as atas da Câmara de Vereadores de Cruzeiro do Sul com o propósito de estudar como a Casa do Morro foi interpretada ao longo desses anos pelos representantes políticos, analisando desde a sua escolha como símbolo municipal até a movimentação atual que busca sua restauração, assim como utilizamo-nos de projetos de lei referentes à Casa do Morro. Analisamos Autos de Medição no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e Inventários no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul para obtermos mais informações a respeito da família Azambuja e compreendermos o posicionamento social desta família no século XIX. Do Arquivo Municipal de Cruzeiro do Sul foram utilizados diversos documentos, como leis, decretos, editais, escrituras e fotografias concernentes à Casa do Morro para auxiliar na organização da pesquisa e para reconhecer mudanças e permanências na sua estrutura arquitetônica ao longo do tempo. Além disso, entrevistamos um antigo morador da Casa do Morro que nos ajudou a identificar aspectos arquitetônicos do prédio na década de 1960, tendo em vista que o mesmo já sofreu várias alterações, e entender o imaginário criado sobre o local. Também realizamos uma entrevista com a Secretária de Educação que elaborou a proposta de Casa de Cultura e Museu Municipal implantada na Casa do Morro durante a década de 1990, que possibilitou a compreensão sobre o que foi planejado e como essa proposta foi organizada. Aplicamos questionários (APÊNDICE A) com o grupo Amigos da Casa do Morro com o objetivo de saber como este se organiza, quais são suas reivindicações, o que a Casa do Morro representa e o que entendem como patrimônio. 18 Foi empregada a abordagem qualitativa devido à escolha das fontes e da elaboração do problema, já que esta abordagem permite a utilização das informações coletadas de maneira qualitativa, ou seja, não baseada em números e estatísticas. Segundo Godoy 5 , a pesquisa qualitativa é caracterizada pelo estudo feito a campo, ou em outras palavras, um estudo no qual o pesquisador está em contato direto com objeto que será estudado. O trabalho com documentos (como relatório, revistas, jornais, entre outros), por exemplo, apresenta uma rica fonte de dados, já que permite o acesso a informações de um contexto social, político e econômico diferente do atual, que auxiliam na análise da pesquisa, considerando que em uma pesquisa qualitativa, todo o processo é importante, e não apenas os resultados. Segundo Moraes 6 , a análise de conteúdo constitui uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos. Essa análise, conduzindo a descrições sistemáticas, qualitativas ou quantitativas, ajuda a reinterpretar as mensagens e a atingir uma compreensão de seus significados num nível que vai além de uma leitura comum. Portanto, este método se aplica muito bem a esta pesquisa, visto que são utilizados diversos documentos e textos. Conforme Sá Silva, Almeida e Guindani 7 , a pesquisa documental deve ser valorizada dentro do campo científico, pois quando os pesquisadores se utilizam de documentos, o fazem respeitando uma série de procedimentos e etapas, utilizando técnicas apropriadas para seu manuseio e análise. Os documentos são utilizados como fontes de informações, indicações e esclarecimentos que trazem seu conteúdo para estabelecer determinadas questões e servir de prova/questionamento para outras, de acordo com o interesse do pesquisador. A pesquisa documental trabalha com informações que ainda não receberam tratamento científico, enquanto a pesquisa bibliográfica procura justamente tratar de fontes que já possuem reconhecimento científico. 5 GODOY, Arlinda Schmidt. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. São Paulo-SP: Rev. adm. Empresas, 1995. 6 MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, 1999, p. 7-32. 7 SÁ-SILVA, Jackson Ronie; ALMEIDA, Cristóvão Domingos de; GUINDANI, Joel Felipe. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. n. 1, jul. 2009, p. 1-15. 19 A História Oral, através da utilização de entrevistas, fornece a possibilidade da produção de uma história do tempo presente, fugindo deste modo, do tradicional estudo do passado somente através de documentação, tão enraizado na historiografia 8 . Essa ação gera uma produção da história a partir do ponto de vista daquele componente social que não gera fontes oficiais, ou seja, as camadas populares ou marginalizadas da sociedade. No caso do presente trabalho, a História Oral auxiliará na busca dos elementos de muitas memórias que não estão nos documentos, como a relação dos moradores e demais sujeitos envolvidos com a Casa do Morro. A respeito da fotografia, Mauad 9 esclarece que a fotografia é uma fonte histórica que demanda um tipo de crítica histórica diferente daquela empregada aos documentos e bibliografias. É preciso entender o processo de produção da fotografia a ser analisada, para que seja possível compreender o contexto que circunda a mesma, bem como o sentido que o fotógrafo quis dar à fotografia. Além disso, é importante perceber o significado que será dado à imagem por quem a observa. Os procedimentos metodológicos citados foram fundamentais para a realização da pesquisa, auxiliando na contextualização histórica do município de Cruzeiro do Sul, dando suporte para compreendermos quem era a família Azambuja e como se deu sua atuação, bem como para esclarecermos a trajetória da Casa do Morro, tanto em relação à sua história propriamente dita quanto ao exercício empregado pela legislação sobre este patrimônio histórico. Além disso, foi possível analisar o processo de patrimonialização da Casa do Morro por meio do referencial teórico e bibliográfico, atas e documentos da Câmara de Vereadores e questionários. No primeiro capítulo deste trabalho, faremos uma contextualização histórica da Casa do Morro, percorrendo a história do Vale do Taquari e do Rio Grande do Sul. Iniciaremos com a introdução dos Campos de Viamão na economia do Império com a atividade dos tropeiros, passando pela atuação da família Azambuja no Vale do Taquari até chegar na construção da Casa do Morro na Fazenda São Gabriel por Primórdio Centeno de Azambuja, traçando um histórico do monumento até a emancipação do município de Cruzeiro do Sul. 8 POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Rio de Janeiro-RJ: Estudos Históricos, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. 9 MAUAD, Ana Maria. Através da Imagem: fotografia e história interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1996, p. 73-98. 20 No segundo capítulo, analisaremos o processo de patrimonialização da Casa do Morro. Primeiramente, nos debruçaremos sobre os conceitos de patrimônio, identidade e memória, expondo nossa perspectiva de estudo, a qual entende patrimônio como uma escolha política, identidade como uma construção social e memória como um processo vivo e dinâmico vivenciado por todos os grupos étnicos e sociais, diferenciando-se da história, que é a representação do passado. Portanto, interpretaremos a Casa do Morro como um lugar de memória que representa a memória e identidade de uma parcela da população cruzeirense, tomando como fonte central de pesquisa as atas da Câmara Municipal de Vereadores de Cruzeiro do Sul e os questionários dos Amigos da Casa do Morro. Apresentaremos como a legislação foi utilizada para preservar ou não a Casa do Morro e como o grupo Amigos da Casa do Morro foi criado e como busca alcançar seus objetivos. 21 2 O CONTEXTO HISTÓRICO DA CASA DO MORRO A Casa do Morro foi erguida no final do século XIX e sobrevive até hoje com as duras e cruéis marcas do tempo. Marcas que contam não apenas uma história, mas uma infinidade delas, guardadas principalmente na memória de pessoas que viveram nas redondezas ou que estavam de passagem pelo Vale do Taquari. Esta obra centenária jamais terá todos os seus mistérios esclarecidos, porém, enquanto existirem fontes a serem pesquisadas, sempre haverá a possibilidade de escrever mais um capítulo dessas histórias. 2.1 O Vale do Taquari e a família Azambuja Cruzeiro do Sul, antiga São Gabriel da Estrela, foi uma fazenda criada por meio de doação de sesmaria à família Azambuja, pertencente à elite social da então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. A prática de doação de sesmarias foi uma política adotada pela Coroa portuguesa durante o período colonial brasileiro que tinha como objetivo ocupar o território e explorá-lo com fins econômicos, sendo que os sesmeiros que não cumprissem o acordo de cultivar a terra corriam o risco de perder a propriedade. 22 O período de doação de sesmarias ocorreu entre 1530 e 1822 10 . No entanto, somente por volta de 1732 é que foram feitas concessões de sesmarias no território do Rio Grande do Sul, mais precisamente nos Campos de Viamão, os quais abrangiam uma imensa área no nordeste do atual estado do Rio Grande do Sul. “Os tais campos correspondiam às terras situadas ao sul do rio Mampituba, tendo ao leste o oceano Atlântico e a oeste e a sul a baliza fluvial do Guaíba e da lagoa dos Patos” 11 . Os Campos de Viamão, nos anos iniciais da ocupação açoriana, estavam povoados por portugueses, luso-brasileiros, uma grande quantidade de indivíduos de origem hispânica ou hispano-americana, bem como uma boa parcela de povos indígenas e escravos de origem africana. Esses dois últimos grupos étnicos compunham praticamente a metade dos indivíduos que moravam na região em questão 12 . Os Campos de Viamão se tornaram atraentes economicamente no cenário brasileiro após a descoberta das Minas Gerais, as quais demandavam abastecimento e transporte para a atividade de garimpo na região Sudeste. Os Campos de Viamão possuíam ricas reservas de gado, passando a fornecer bovinos, equinos e muares para as regiões mineradoras. Sendo assim, Viamão passou a ter integração com o Sudeste através da atividade dos tropeiros, que levavam o gado até o centro do país 13 . O intenso povoamento dos Campos de Viamão ocorreu em virtude do interesse da Coroa portuguesa em ocupar e proteger o espaço ameaçado pelos espanhóis, que invadiram a península de Rio Grande em 1764. Além disso, devia-se efetivar o estabelecimento de imigrantes açorianos como cumprimento das concessões prometidas, eliminar a escravidão indígena (proibida em 1758), ocupando os nativos em atividades produtivas e de defesa. Também era necessário fomentar a agricultura, com incentivo ao cultivo de trigo e do linho- cânhamo 14 . O Vale do Taquari integrou essa região desde o início de sua povoação, fazendo parte do município de Viamão e, posteriormente, ao de Porto Alegre. A Vila de Taquari foi fundada na década de 1760, e somente em 1849 foi emancipado o município de Taquari, que 10 FILHO, José Luiz Alcantara; FONTES, Rosa Maria Olivera. A formação da propriedade e a concentração de terras no Brasil. Revista de História Econômica & Economia Regional Aplicada. v. 4. n. 7. 2009. p. 63-85. 11 KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. 4. ed. Porto Alegre: Leitura XXI, 2011, p. 45. 12 Ibidem. 13 Ibidem. 14 Ibidem. 23 compreendia todo o atual território do Vale 15 . Em 1876 foi emancipado o município de Estrela, em 1891, Lajeado, e em 1963, Cruzeiro do Sul. Em 1809, o Rio Grande do Sul era composto por quatro municípios. Figura 1- Os municípios da Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul em 1809. Fonte: ZARTH apud CHRISTILLINO, 2004, p. 26. 15 CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Estranhos em seu próprio chão: o processo de apropriações e expropriações de terras na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (o Vale do Taquari no período de 1840- 1889). 374 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, 2004. 24 O atual território do município de Cruzeiro do Sul era ocupado por grandes fazendas desde o final do século XVIII, as quais eram fruto de doações de sesmarias. A primeira delas foi concedida em 1798, a José da Silva Lima e seus irmãos, num total de 60 mil e 421 hectares, que iniciava na barra do Arroio Castelhano e ia até a barra do Arroio Sampaio, no atual território de Cruzeiro do Sul. Esta Fazenda, denominada de Desterro, já estava sendo ocupada por essa família, que utilizava as terras para plantar diversos produtos servindo-se de escravos 16 . A Fazenda São Gabriel, de José Ignácio Teixeira, que ocupava o atual território do centro urbano de Cruzeiro do Sul foi adquirida por João Xavier de Azambuja e Laura Centeno de Azambuja no ano de 1835 (mesmo ano em que iniciou a Revolução Farroupilha). No entanto, somente ocuparam a Fazenda após o término da revolta, por volta de 1847. A propriedade continha mil e quinhentas braças de frente e seis mil de fundo, totalizando 4356 hectares de terra, confrontando pelo Leste com o rio Taquari, pelo Oeste com a Serra Geral, pelo Sul com o Arroio Sampaio e terras de José da Lima Silva e seus irmãos, pelo Norte com terras de Valentim Soares de Saibro. “A principal atividade desenvolvida [na Fazenda] era a pecuária bovina e muar, junto às margens do arroio Sampaio e seus afluentes, nas quais existiam alguns campestres de ótima qualidade.” 17 No mapa abaixo podemos identificar as respectivas sesmarias no território do Vale do Taquari, bem como a sesmaria Ubatuba, que compreendia as atuais Linhas Sítio e Boa Esperança, em Cruzeiro do Sul 18 . 16 SCHIERHOLT, 2010. 17 CHRISTILLINO, 2010, p. 293. 18 CHRISTILLINO, 2004. 25 Figura 2 - Colonização no Vale do rio Taquari. Fonte: AMSTAD apud CHRISTILLINO, 2010, p. 154. 26 João Xavier de Azambuja e Laura Centeno de Azambuja, os donos da Fazenda São Gabriel, provinham de famílias de estancieiros e militares. O casal morava na Vila de Triunfo quando adquiriu a Fazenda no Alto Taquari. Laura Centeno de Azambuja era oriunda de uma família tradicional da Campanha, e o ten.-cel. João Xavier de Azambuja provinha de uma família de militares estabelecida na Vila de Triunfo, aliada ao Império 19 . João Xavier de Azambuja era filho do ten.-cel. Antonio Xavier de Azambuja, que foi um dos inventariados mais ricos do Rio Grande do Sul entre 1765 e 1825 20 . Antonio Xavier de Azambuja era neto de Jerônimo de Ornellas, um dos mais antigos povoadores dos Campos de Viamão, representante do topo da escala social, que podia ser considerado como membro da elite em qualquer lugar do Brasil colonial 21 . No início da segunda metade do século XIX, a elite local do Vale do Taquari estava passando por uma crise econômica, pois suas atividades tradicionais não estavam mais assegurando a lucratividade obtida em outras épocas. As principais atividades econômicas da região eram o trigo, a erva-mate, a pecuária, a cana-de-açúcar, o algodão, a extração de lajes e pedras e o ramo madeireiro. A sua decadência era em decorrência de desastres naturais, concorrência de outros mercados e pela diminuição do trabalho escravo 22 . Além da crise econômica, a falta de prestígio social da elite local também contribuiu para a decadência desse grupo. Os militares da campanha passaram a ser mais necessitados que os do Vale do Taquari, acarretando maiores vantagens do governo àqueles. Sendo a carreira militar um pressuposto para o recebimento de prestígio e regalias, a secundarização dessa atividade no Vale do Taquari acabou acentuando a estagnação da elite 23 . 19 Durante a Revolução Farroupilha os Azambuja lutaram ao lado do Império. 20 CHRISTILLINO, 2010. 21 KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa – século XVIII. In: GRIJÓ, Luiz Alberto; KÜHN, Fábio; GUAZZELLI, César Augusto Barcellos; NEUMANN, Eduardo Santos (org.). Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. 22 CHRISTILLINO, 2004. 23 Ibidem. 27 No entanto, como as grandes explorações agropecuárias do país não estavam voltadas à agricultura de subsistência, isso possibilitou o desenvolvimento de lavouras voltadas ao abastecimento interno. Desse modo, as terras do Vale do Taquari voltaram a ser valorizadas com a produção de alimentos para o mercado interno, desenvolvida em pequenas lavouras familiares. Esta produção facilitava a compra de terras por parte dos pequenos agricultores, especialmente de imigrantes alemães e seus descendentes. É devido a essa valorização das terras do Vale do Taquari que vários latifundiários passaram a desenvolver o comércio de terras como atividade econômica. Entre os grandes possuidores de terras estava a família Azambuja 24 . João e Laura de Azambuja tiveram onze filhos, os quais foram Rafael Fortunato Xavier de Azambuja, Bento Manuel de Azambuja, Bento Gonçalves Xavier de Azambuja, Primórdio Centeno de Azambuja, Francisca Centeno de Azambuja, João Xavier de Azambuja Júnior, Marcolino Centeno de Azambuja, Josefina Centeno de Azambuja, Maria José de Azambuja, Cândida Centeno de Azambuja e Maria Tomázia Centeno de Azambuja. O ten.-cel. João Xavier de Azambuja faleceu na década de 1860, o que comprometeu, em parte, o futuro dos seus herdeiros, pois perderam o elo principal de suas relações sociais 25 . A fazenda São Gabriel não oferecia condições à formação de um patrimônio familiar que assegurasse a essa descendência o mesmo status e fortuna de seus pais. [...] Foram três então as estratégias de inserção e ascensão social dos Azambuja: a carreira militar, a ocupação de patentes na Guarda Nacional e, principalmente, a política do casamento 26 . A respeito dessa última, Fábio Kühn 27 afirma que as alianças matrimoniais apresentavam-se como uma das mais importantes, senão a mais relevante estratégia familiar das elites para ascensão social e estabelecimento de alianças, garantindo a manutenção do ciclo familiar. No entanto, isso não assegurou por muito tempo a permanência dos descendentes de João e Laura Centeno de Azambuja no âmbito da elite sul-rio-grandense, pois como eram muitos filhos, que não se ativeram a uma atividade econômica específica, quando a herança foi repartida, não restou uma grande quantia para cada um. 24 Ibidem. 25 CHRISTILLINO, 2010. 26 Ibidem, p. 293. 27 KÜHN, 2010. 28 Maria Tomázia Centeno Azambuja casou-se com o cel. Bento Gonçalves da Silva Filho, primogênito do líder da Revolta Farroupilha e rico estancieiro de Camaquã. Josefina Centeno Azambuja casou com Antonio Fialho de Vargas Filho, que era sócio de seu pai, Antonio Fialho de Vargas, o maior negociante de terras em Taquari e, na década de 1870, fez sociedade com os Azambuja, em torno de algumas colônias. [...] Cândida Centeno de Azambuja casou-se com um importante aliado dos Azambuja em suas afirmações de propriedade, o agrimensor Henriques von Reichenbach 28 . Rafael Fortunato e Bento Gonçalves Xavier de Azambuja casaram-se com as irmãs Leocádia e Leopoldina Vilanova, filhas de Ricardo Azambuja Vilanova, um membro da Guarda Nacional que possuía grandes extensões de terras em Taquari. [...] Rafael Fortunato Xavier Azambuja, além de cultivar suas terras na fazenda São Gabriel, participou, ativamente, do comércio de terras e também no empréstimo de dinheiro a juros aos colonos. Na década de 1870, ele ocupou o cargo de juiz municipal em Taquari, o que aumentou o prestígio familiar dos Azambuja. Rafael Fortunato constituiu uma família numerosa, tendo mais de 10 filhos com sua esposa, Leocádia Vilanova Azambuja, e outros dois com suas escravas 29 . A fortuna da família Azambuja não se manteve por tanto tempo, não acompanhando o prestígio social alcançado através dos vínculos matrimoniais e ocupação de cargos importantes. Nesse contexto, alguns filhos se voltaram para a atividade do comércio de terras, uma prática que se torna muito lucrativa no Vale do Taquari. Ao longo do século XIX, quando as primeiras colônias criadas no estado já não oferecem mais terras suficientes para o desenvolvimento da agricultura para as famílias de imigrantes, estas se deslocam para o interior do estado, e as férteis terras banhadas pelo rio Taquari atrairão muitos destes europeus e seus descendentes. O primogênito do casal João e Laura de Azambuja utilizou-se desta atividade por algum tempo, tornando-se um grande comerciante de lotes coloniais no Vale do Taquari. 28 CHRISTILLINO, op.cit, p. 293-294. 29 Ibidem, p. 294. 29 2.2 “Feita de pedra e cal, coberta com telhas de barro”: a Casa do Morro de Primórdio Centeno de Azambuja Primórdio Centeno de Azambuja era o filho primogênito do casal João e Laura Centeno de Azambuja. Casado com Juliana Carolina de Azambuja (falecida em 1876 30 , bem antes de Primórdio), fez carreira na Guarda Nacional, assim como seu irmão Rafael 31 . A Guarda Nacional foi criada pelo Império em 1831 com o objetivo de manter a unidade nacional, que era ameaçada pelo choque entre nacionais e lusos após a Independência do Brasil. Além disso, como a Guarda Nacional tinha um caráter local, o poder político e econômico dos grupos locais era reconhecido pelo Governo Central, e fazia com que estes grupos defendessem a ordem e a tranquilidade pública em todo território brasileiro 32 . A Guarda Nacional auxiliava principalmente nos problemas internos, porém, atuava também nas questões externas, ao lado do Exército. A Guarda era composta apenas por cidadãos eleitores e seus filhos, o que alimentava o sentimento nacionalista buscado pelo Império, e podia ser dissolvida por tempo indeterminado pelo governo, se não cumprisse o seu papel. A Constituição do Império previa que só se tornava eleitor o cidadão que tivesse entre vinte e um e sessenta anos, e que auferisse a quantia de cem mil réis. Portanto, usava-se o critério da renda mínima como instrumento de seleção entre os brasileiros que poderiam ser eleitores 33 . Os responsáveis pela criação da Guarda Nacional em cada município eram os Juízes de Paz, que se reuniam nos Conselhos de Qualificação para avaliar quais indivíduos preenchiam as condições para serem qualificados como praças da Guarda Nacional 34 . Primórdio Centeno de Azambuja alcançou o cargo de Tenente Coronel da Guarda Nacional, lutou na Guerra do Paraguai, assim como seus irmãos, provando que a família Azambuja pertencia à elite e possuía prestígio perante a sociedade 35 . Primórdio acabou herdando a Fazenda São Gabriel dos pais, e também era fazendeiro em outra área de 466 hectares, na margem direita do arroio Sampaio. 30 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Lageado nº 4, de 1877. 31 CHRISTILLINO, 2010. 32 RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava: os milicianos e os guardas nacionais gaúchos (1825- 1845). Santa Maria: Ed. Da UFSM, 2005. 33 Ibidem. 34 Ibidem. 35 CHRISTILLINO, op. cit. 30 Figura 3 – Propriedade de Primórdio Centeno de Azambuja na margem direita do arroio Sampaio. Fonte: AHRS. Auto de Medição nº 643. Autor: Primórdio Centeno de Azambuja, Taquari, 1875. No mapa, percebe-se que a propriedade ficava próxima aos cursos de água, o que valorizava a terra e possibilitava melhor cultivo. Da mesma forma, a terra era contígua à propriedade do seu cunhado, o que evidencia uma possibilidade de exploração familiar de uma grande área de terras no Vale do Taquari. Além dessas duas propriedades, o ten.-cel. 31 também possuía dez lotes coloniais no município de São Luiz Gonzaga, os quais só foram devidamente pagos após a morte de Primórdio 36 . Isso indica que uma das atividades econômicas de Primórdio era o comércio de terras. Primórdio também conseguiu legitimar uma área de 1327 hectares em uma terra de matos no lugar denominado Poço Grande, conhecido mais tarde como Corvo. Essa propriedade podia proporcionar cerca de 20 lotes coloniais, sendo muito vantajoso para Primórdio. Ele conseguiu legitimar a área de maneira fraudulenta, prática comum no período. “A Coroa tinha vastas extensões de terras públicas para medir e demarcar, mas o seu principal objetivo na Província de São Pedro, o Calcanhar de Aquiles do Império, era apoio político e militar. Algo que os Azambuja sabiam, desde outrora, negociar em troca de beneplácitos” 37 . Primórdio conseguiu legitimar essa área de terras devido à sua rede de alianças. Figura 4 – Propriedade do Poço Grande Fonte: AHRS. Auto de Medição nº 696. Autor: Primórdio Centeno de Azambuja, Taquari, 1876. 36 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Lageado nº 371, de 1902. 37 CHRISTILLINO, 2010, p. 322. 32 Primórdio acabou herdando a fazenda São Gabriel, que abrigava um engenho de serrar madeira 38 , uma atividade igualmente lucrativa para o período. Além disso, em sua posse às margens do arroio Sampaio, podia desenvolver a agricultura, a extração da erva-mate ou a exploração da madeira. No entanto, os bens herdados por Primórdio não tinham importância significativa, pois a fortuna de João e Laura Centeno de Azambuja foi dividida entre todos os filhos, restando uma quantia pequena para cada um. Sua esposa provavelmente não era pertencente à elite, diminuindo as chances de Primórdio continuar mantendo sua estabilidade econômica e posição social 39 . É fácil chegar a esta constatação após a análise dos valores do monte mor dos inventários post-mortem em questão. João Xavier de Azambuja deixou uma herança de 6.898,28 libras esterlinas em 1861; a esposa de Primórdio, Juliana, deixou a quantia de 4010,83 libras no ano de 1877; e Primórdio deixou 800,88 libras esterlinas aos seus herdeiros em 1902 40 . Fica evidente a progressiva decadência econômica da família após a partilha dos bens, revelado pela quantia das fortunas. Sabe-se que o estudo de inventários post-mortem permite maior conhecimento das camadas mais abastadas da população, pois não oferecem as mesmas possibilidades para estudar os mais pobres da sociedade, cujos bens praticamente não são significativos para serem inventariados. Portanto, consideramos que a família Azambuja pertenceu à elite econômica do Vale do Taquari durante o século XIX, assim como Antonio Fialho de Vargas, um dos maiores comerciantes de terras do Vale, que deixou uma herança de 7.114,19 libras 41 . Jonas Vargas 42 analisou 256 inventários post-mortem da sociedade pelotense na segunda metade do século XIX, sendo que nestes inventários foi possível encontrar as maiores fortunas de Pelotas nesse período, que eram provenientes das famílias proprietárias de charqueadas escravistas que abasteciam o mercado interno brasileiro. Tendo em vista que durante o século XIX foram os proprietários das charqueadas escravistas os empresários mais 38 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Lageado nº 1, de 1861. 39 CHRISTILLINO, 2010. 40 Como recomenda Gabriel Berute em sua Tese de Doutorado, optou-se utilizar libras esterlinas ao invés de mil- réis tendo em vista a desvalorização deste último relacionada à inflação e as flutuações das taxas de câmbio. A fórmula utilizada para converter os valores também é a mesma utilizada por Berute. BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). 309 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2011. 41 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Taquary nº 475, de 1895. 42 VARGAS, Jonas Moreira. Pelas margens do Atlântico: Um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a partir das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul (século XIX). 505 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2013. 33 ricos do sul do Brasil, tomamos estas fortunas, as quais ultrapassam 50 mil libras, como referência de elite provincial. Sendo assim, não podemos dizer que a elite do Vale do Taquari representava o topo econômico da província, no entanto, sua fortuna era significativa, estando entre as mais altas mesmo quando comparadas às de Pelotas, com exceção, é claro, da fortuna de Primórdio, que já é resultado do período de estagnação econômica que passavam essas elites locais. Primórdio e Juliana tiveram cinco filhos, Primórdio Xavier de Azambuja, Maria Altina de Azambuja Villanova, Candida de Azambuja Villanova, Clarice de Azambuja Braga e Francisca de Azambuja. Destes, Primórdio, Candida, Clarice e Francisca faleceram antes de seu pai Primórdio Centeno de Azambuja. Candida de Azambuja Villanova foi casada com Antonio de Azambuja Villanova, e os dois tiveram uma filha chamada Juliana de Azambuja Villanova 43 . Francisca de Azambuja casou com João de Marsillac, e os dois tiveram Fanor de Azambuja Marsillac. Clarice foi casada com Ataliba da Maia Braga, e os dois tiveram uma filha, Maria Carolina Braga, que se casou com José Luiz Cardoso. Maria Altina de Azambuja Villanova foi casada com Rodrigo de Azambuja Villanova 44 , que era parente da família Azambuja e filho de ricos fazendeiros de Taquari 45 . Rodrigo de Azambuja Villanova foi um aliado muito importante para Primórdio, atuava como médico em Taquari, mas no início da década de 1870 ingressou na política provincial ao lado do Partido Conservador. Rodrigo auxiliou Primórdio no processo de legitimação de posses, após a Lei de Terras de 1850, devido ao seu círculo de relações. Essas legitimações nem sempre ocorriam de acordo com a legislação, sendo comum muitos estancieiros obterem títulos fraudulentos. Rodrigo foi deputado na Assembleia do Rio Grande do Sul e presidente da Província em duas oportunidades: de 25 de abril a 27 de outubro de 1887 e de 27 de janeiro a 9 de agosto de 1888. Foi indicado ao cargo pelo senador Gaspar Silveira Martins 46 . Primeiramente, a família Azambuja construiu um grande sobrado na localidade de Santarém, atual território de Cruzeiro do Sul, e após a morte de João Xavier de Azambuja, que faleceu em 1860 47 , Laura Centeno de Azambuja mudou-se com seus filhos e fundou o núcleo urbano da Fazenda São Gabriel. A casa da família foi construída onde hoje se localiza a 43 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Lageado nº 4, de 1877. 44 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Lageado nº 371, de 1902. 45 CHRISTILLINO, op. cit. 46 Ibidem. 47 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Lageado nº 1, de 1861. 34 prefeitura de Cruzeiro do Sul, próximo às margens do rio Taquari 48 . O casal João e Laura possuíam dezessete escravos, sendo que três deles foram herdados por Maria Tomázia Centeno Azambuja e Bento Gonçalves da Silva Filho, e Primórdio herdou um escravo 49 . De acordo com escritos do padre Miguel Wagner, pároco de Cruzeiro do Sul entre os anos de 1957 e 1977, após 1888, com a Lei Áurea, os escravos da família acabaram se dispersando pelo território 50 . Os filhos de Laura foram lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870), que ocorreu na região do rio da Prata entre Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai, os quais reivindicavam fronteiras neste território. O que estava em jogo era a hegemonia na região e o acesso à navegação na bacia platina, que compreendia dois grandes rios, o Uruguai e o Paraguai. O Paraguai acabou perdendo partes de seu território para o Brasil e Argentina, e o Brasil perdeu milhares de soldados e contraiu muitos empréstimos para financiar a guerra, no entanto, os combatentes sobreviventes saíram fortalecidos e passaram a reivindicar um papel mais importante na vida política do Império 51 . Os filhos de Laura voltaram para a Fazenda São Gabriel após a guerra, e Primórdio começou a construir sua casa em 1872 ao lado da de sua mãe, porém, uma grande enchente acabou inundando a construção. Para não ter mais este problema, afinal as enchentes do rio Taquari são frequentes, Primórdio resolveu construir sua casa no alto do morro da Fazenda São Gabriel 52 , que compreende uma grande área de terra repleta de árvores nativas e rochas, e que tem o início de sua elevação próximo à margem do rio Taquari, encontrando-se no atual centro urbano de Cruzeiro do Sul. Na fotografia abaixo, é possível visualizar a localização da estrutura arquitetônica no morro de Cruzeiro do Sul. 48 SCHIERHOLT, 2010. 49 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Lageado nº 1, de 1861. 50 WAGNER, Miguel. Síntese Histórica de Cruzeiro do Sul. Texto inédito. Câmara Municipal de Vereadores de Cruzeiro do Sul. 51 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 52 SCHIERHOLT, 2010. 35 Figura 5 – Casa do Morro em 2016 Fonte: Do Autor. Primórdio mandou construir uma casa de pedra e cal, coberta com telhas de barro 53 , com arquitetura típica do período imperial, que ficou conhecida primeiramente como a Casa Branca dos Arcos do Morro, sendo que atualmente é denominada de Casa do Morro. O prédio contém 305,30m² de área construída e possui uma arquitetura mista, tendo em sua fachada sete arcos 54 . Arquitetura com arcos é algo característico do período, como por exemplo, o Arco do Triunfo em Paris e os Arcos da Lapa no Rio de Janeiro. Talvez tenha sido esta a influência na construção dos arcos da Casa do Morro. 53 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Lageado, nº 371, de 1902. 54 SCHIERHOLT, 2010. 36 Figura 6 – Casa do Morro em 1926 Fonte: Arquivo Municipal de Cruzeiro do Sul. Nesta fotografia de 1926, a fotografia mais antiga encontrada da Casa do Morro, acima dos arcos existem estátuas e pinhas, no entanto, atualmente as estátuas não existem mais, e no lugar delas foram construídas pinhas. Além disso, há boatos de que em uma forte tempestade, caiu um raio sobre a fachada da casa, destruindo uma parte dos arcos, que foram reconstruídos. Desde a sua construção, que levou em torno de cinco anos, entre 1873 e 1878, a casa já sofreu diversas alterações 55 . No livro de Wolfgang Hoffmann Harnisch, em que descreve o duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires durante a Revolução Farroupilha, ocorrido sob uma grande figueira às margens do rio Taquari, na Fazenda São Gabriel, encontramos o seguinte relato sobre a Casa do Morro: 55 SCHIERHOLT, 2010. 37 E lá no topo do morro, não muito longe da citada figueira, está a “casa mal assombrada”, hoje pertencente à família Lopes. Muitas histórias de lobisomem e fantasma correm pela boca do povo em torno dela. Essa casa dos velhos amigos de Gonçalves é de estilo colonial bem típico, dos primeiros tempos do Primeiro Império, ostentando ainda os restos de estilo arquitetônico usual naquela época. Diante da fachada principal, repartida por numerosas janelas de arco, levanta-se, a pouco mais de metro, uma fileira de colunas, cujos arcos ligam em cima com o telhado, sendo o vão embaixo, à guisa de varanda ou passeio, coberto com lajes. Obteve-se destarte uma fachada dupla. Faz anos, havia uma fileira de estátuas no topo da fachada, correspondendo ao número de colunas. Hoje há apenas uns restos. Diz o povo que o raio abateu as estátuas 56 . Figura 7 – Casa do Morro danificada (fotografia registrada aproximadamente entre as décadas de 1920 e 1940). Fonte: LOCATELLI; SAIBRO; SCHNEIDER (Org.), 2012. 56 HARNISCH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1941. p. 380. 38 Primórdio morou na casa até 1898, quando veio a falecer no dia 17 de maio, de morte natural, sem assistência médica, com 76 anos de idade. Primórdio não deixou uma grande fortuna, a qual foi dividida entre seus netos e sua filha Maria Altina. Além disso, tinha diversas dívidas, que ultrapassavam a metade do monte mor de Primórdio. A casa foi vendida em hasta pública em 1901, para Leocádia Villanova de Azambuja, esposa de Rafael Fortunato de Azambuja, pelo valor de seiscentos mil réis 57 . Até 1914 o prédio permaneceu sob a tutela de Leocádia, sendo que a última herdeira da casa foi Nathercia Raphaela de Azambuja Terra, filha de Rafael e Leocádia. Sárah de Azambuja Neves, neta de Nathercia, relata alguns objetos que existiam na Casa do Morro, como um imenso armário-cristaleira, com espelho de cristal e pedra mármore, castiçais de metal dourado e opalina azul, sopeiras de porcelana inglesa e talheres de prata de lei. Sárah conservou algumas peças do mobiliário, utensílios, livros, roupas e objetos da família Azambuja 58 . Posteriormente, a casa foi ocupada por outras famílias, dentre elas a família Lopes, Souza e Guterres 59 , sendo que no dia 7 de agosto de 1962, por meio de um decreto, a Prefeitura Municipal de Lajeado declara de utilidade pública, para fins de desapropriação, a propriedade da Casa do Morro, que tinha como proprietário Armando Lopes 60 . Este decreto é amparado pelo decreto-lei nº 3365, de 1941, que trata das desapropriações por utilidade pública, e funciona como uma ferramenta infraconstitucional de regulamentação para a realização das desapropriações. Um dos objetivos do decreto é a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza. 61 Mesmo tendo o primeiro amparo legal para sua preservação e conservação como monumento histórico, a Casa do Morro não recebeu nenhum tratamento especial neste primeiro momento. A partir daí foi ocupada por inquilinos e, mais tarde, serviu de abrigo a um restaurante, a um museu municipal e à biblioteca municipal. 57 APERS. Inventário post-mortem do Cartório de Orphãos e Ausentes de Lageado nº 371, de 1902. 58 CADERNO CULTURAL: A “Casa Branca”. Centro Cultural 25 de Julho “Vale do Taquari”, Estrela, n. 03, agosto de 1985. 59 HISTÓRIAS que os cupins podem apagar. Zero Hora, Porto Alegre, p. 26, 3 jan. 1999. 60 LAJEADO, 1962. 61 BRASIL, 1941. 39 Algumas lendas sobre a Casa do Morro ainda permanecem vivas no imaginário da comunidade cruzeirense, como a presença de ouro no porão e de fantasmas. Em entrevista realizada a um inquilino que morou na Casa durante a década de 1960 com sua família, o mesmo faz alguns relatos interessantes: E1 – E daí era aquele correrio ali dentro, oh dava um correrio de noite ali dentro. Porque o quarto nosso era bem no corredor assim e aí, nós não via nada, e disseram que a Casa era mal assombrada. Pode ser, mas aquilo ali... muitos diziam que passava corrente, né correndo ali. 62 E1 – E muita gente as vezes até dizia: mas, vocês nunca cavaram aí, não tem ouro nada? Mas, nunca ninguém achou nada. 63 Além disso, no livro de Antonio Augusto Fagundes, encontramos “A lenda da Casa Branca”, referente à Casa do Morro: Cruzeiro do Sul é um pequeno município, desmembrado de Lajeado. Nos arredores da cidade, quase encostada no morro está a Casa Branca, muito antiga, impressionante em sua solidez, ainda hoje. Dizem que foi erguida ali bem no alto para fugir das enchentes e, como era o tempo da Guerra dos Farrapos, a casa servia também de fortaleza. Aliás, foi um tio do General farrapo Bento Gonçalves da Silva quem mandou erguer a Casa Branca de Cruzeiro do Sul. Diz a lenda que lá os farrapos, quando viram malograr o sonho da República Rio- grandense, esconderam ouro, prata e jóias. E que os fantasmas assombram as noites do casarão, como cuidando do tesouro, que é sagrado: só pode ser usado no interesse supremo do Rio Grande do Sul. 64 No entanto, nota-se um equívoco na lenda, pois a Casa não foi erguida durante a Guerra dos Farrapos, como fala a mesma, e sim após o fim da Guerra do Paraguai. Outro aspecto que a lenda ressalta é o parentesco do dono da Casa e Bento Gonçalves. Sabemos que uma das irmãs de Primórdio casou-se com o filho de Gonçalves, entretanto, não há como garantir se a lenda está se referindo à Primórdio. 62 E1 – Entrevistado 1: depoimento [21 set. 2016]. Entrevistador: Júlia Leite Gregory. Cruzeiro do Sul/RS: 2016. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Júlia Leite Gregory. P. 6. 63 E1 – Entrevistado 1: depoimento [21 set. 2016]. Entrevistador: Júlia Leite Gregory. Cruzeiro do Sul/RS: 2016. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Júlia Leite Gregory. P. 14. 64 FAGUNDES, Antonio A. Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2000. P. 160. 40 Ao longo dos anos, a Casa sofreu intensa degradação causada pelo tempo e pela ação humana, mesmo passando por alguns processos de reforma. A Casa está fechada desde o ano de 2003, mas é de fácil acesso a vândalos. O monumento histórico se encontra no centro do Brasão de Armas do município e teve seu tombamento (que será detalhado no próximo capítulo) reconhecido em 2006 a nível municipal. 41 3 O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA CASA DO MORRO Entende-se como processo de patrimonialização a busca dos grupos sociais em autentificar uma narrativa coletiva de um passado compartilhado 65 , isto é, a reivindicação patrimonial que os grupos efetuam ao autenticarem sua memória e identidade através dos lugares de memória, sejam eles materiais ou imateriais, inserindo-os nessa narrativa, ou seja, patrimonializando-os. Nesta perspectiva, o recente movimento do grupo Amigos da Casa do Morro vem buscando a patrimonialização da Casa, que representa a memória e identidade de boa parte da população cruzeirense, tornando-a um lugar de memória que já sofreu inúmeras modificações estruturais, passou por várias reformas, e suscitou a organização da própria população em prol da sua preservação. 3.1 Patrimônio, Identidade e Memória A palavra “patrimônio” é utilizada em inúmeros contextos e classificações, sendo inclusive, muito utilizada no cotidiano. Ela pode se referir ao patrimônio financeiro e econômico, imobiliário, ou também à noção de patrimônio cultural, arquitetônico, histórico, artístico, etnográfico, ecológico, genético e imaterial. A noção de patrimônio histórico tutelado pelo Estado surgiu no final do século XVIII, no entanto, a noção de patrimônio também está presente em outros períodos, e até mesmo nas sociedades tribais 66 . 65 CANDAU, Joël. Bases antropológicas e expressões mundanas da busca patrimonial: memória, tradição e identidade. Revista Memória em Rede, Pelotas, v. 1, n. 1, 2010. 66 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p. 25-33. 42 José Reginaldo Santos Gonçalves propõe a noção de patrimônio como uma categoria de pensamento, na qual o patrimônio não se restringe a apenas uma categoria específica, mas é, simultaneamente, de natureza econômica, moral, religiosa, mágica, política, jurídica, estética, psicológica e fisiológica. Sendo assim, o patrimônio é uma categoria extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana. De acordo com o autor, é possível transitar de uma a outra cultura com a categoria “patrimônio”, desde que possamos perceber as diversas dimensões semânticas que ela assume e não naturalizemos nossas representações a seu respeito. Em contextos sociais e culturais não modernos, ela coincide com categorias mágicas, tais como mana e outras, e define-se de modo amplo, com fronteiras imprecisas e com o poder especial de estender-se e propagar-se continuadamente. 67 Em relação à interpretação moderna de patrimônio histórico, os monumentos passaram a ser preservados a partir da Idade Média, quando prédios pagãos da Antiguidade eram conservados pela Igreja para serem utilizados de outra forma, como, por exemplo, para moradia. Como se vivia em tempo de crise financeira, isso acabava ocasionando uma redução de gastos. Além do interesse utilitário, o clero também buscava preservar as obras pagãs devido ao interesse e respeito por elas, afinal, o saber clássico representava muito à Igreja. Percebe-se, portanto, que a primeira forma de preservação ocorreu por meio da reutilização dos monumentos pelos cristãos, bem como pela reutilização do material construtivo, que era incorporado às novas construções. Aos poucos, a cultura clássica foi sendo cristianizada. 68 A arquitetura e a escultura clássica eram muito valorizadas por artistas e eruditos por volta dos séculos XIV e XV. Essa arte era considerada superior, fazendo com que uma série de colecionadores guardasse objetos dessas civilizações. Porém, havia uma distinção entre a valorização empregada pelos artistas e a empregada pelos intelectuais letrados. Os artistas analisavam as obras a partir da arte, ou seja, observavam a estética dos objetos, enquanto os intelectuais só davam valor àquilo que fosse escrito, aos vestígios autênticos de um passado que se pretendia conhecer e preservar. É quando essas duas visões se unem que nasce o monumento histórico, levando humanistas, artistas e príncipes italianos a conservar diversos objetos em um espaço que abrigue suas antiguidades. Essas coleções são precedentes aos museus. 69 67 Ibidem, p. 27. 68 CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006. 69 Ibidem. 43 Entretanto, a conservação de edifícios se torna mais complicada, pois depende da paixão pelo saber e do amor pela arte. E devido a isso, muitos monumentos da Antiguidade não foram conservados de forma efetiva e sistemática, mesmo havendo a tomada de consciência do valor histórico e artístico dos mesmos. É necessário a proteção do domínio público e político para que ocorra a preservação. 70 Portanto, a ideia de patrimônio que se tinha na época, antes de haver a tutela do Estado sobre os monumentos, é aquela extremamente conservadora, em que se considera patrimônio apenas os prédios dignos de valor histórico e artístico, ou seja, apenas os patrimônios materiais. Esses monumentos eram legitimados por grupos sociais específicos, os quais pertenciam às camadas superiores da sociedade, como os aristocratas, os monarcas e o clero. A noção oficial de patrimônio e de nação se originou no século XVIII, com a Revolução Francesa 71 . No Brasil, os patrimônios nacionais sempre foram tutelados pelo Estado, pensados por intelectuais, logo, esses patrimônios ditos oficiais dizem respeito às classes dominantes, que buscam criar símbolos nacionais que identifiquem a população com a nação como uma forma de educação. Porém, dessa forma, apenas um setor da população se vê reconhecido, pois consegue se identificar com determinados objetos, os quais são remetidos à memória do grupo. Os outros setores da população acabam sendo excluídos do campo patrimonial, sendo forçados a incorporarem outros objetos às suas concepções de identidade. Embora ao longo dos anos esses grupos comessem a ser representados, suas manifestações culturais ainda têm um longo caminho a percorrer para que sejam realmente reconhecidas. 72 No Brasil, as políticas públicas de preservação do patrimônio nacional também foram pensadas por intelectuais, e no ano de 1936, criou-se o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que tinha como objetivo proteger os bens culturais do país. Seus membros defendiam que o patrimônio cultural da nação não era representado apenas por monumentos e obras de arte. Entretanto, a única prática preservacionista aplicada era o tombamento, o que acabava excluindo do campo patrimonial uma série de outros bens. O Sphan foi criado pelo ministro da Educação e Saúde Pública da época, Gustavo Capanema. 73 70 Ibidem. 71 FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. 72 Ibidem. 73 Ibidem. 44 A partir da década de 1970, já com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), antigo SPHAN, novas práticas preservacionistas começaram a ser pensadas. As manifestações culturais de outros grupos sociais passaram a fazer parte do patrimônio cultural brasileiro, e não somente os monumentos da história oficial, da qual as elites pertenciam. No entanto, somente com o Decreto n.3.551/2000, bens culturais de natureza imaterial passaram a ser registrados pelo órgão 74 . O IPHAN tem a incumbência de identificar, catalogar, restaurar, conservar, preservar, fiscalizar e difundir os bens culturais em todo o território brasileiro. No Brasil, nota-se que as políticas públicas de preservação do patrimônio cultural sempre estiveram relacionadas aos conceitos de identidade nacional dos governos. Durante o período populista, o patrimônio arqueológico passou a ser reconhecido. No período do regime militar, com o Ato Institucional n. 5, alguns impasses foram criados para a preservação do patrimônio cultural. A partir da década de 1970, o governo federal passou a incentivar a criação de vários programas em prol da cultura e da preservação do patrimônio. Entre eles estão o Programa de Reconstrução das Cidades Históricas, Programa de Ação Cultural (PAC), Política Nacional de Cultura, Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), Fundação Nacional Pró-Memória, entre outros. O CNRC (1975) propunha se distinguir das outras instituições oficiais, propondo uma nova forma de atuação na área da cultura. O centro buscava definir um sistema referencial básico para a descrição e análise da dinâmica cultural brasileira. 75 A partir da década de 1980, com a queda do regime militar, novas discussões sobre as práticas preservacionistas ocorreram. Outras manifestações culturais também passaram a ser preservadas, como as indígenas e afro-brasileiras, ou de qualquer outro grupo social. Vários projetos de restauração foram implementados no país, como é o caso do Pelourinho, na cidade de Salvador, Bahia 76 . De acordo com Pedro Funari e Sandra Pelegrini, apesar do valor positivo desses projetos, pautados pela transformação do patrimônio em áreas de interesse turístico, a implantação de programas dessa natureza deve escapar à tentação de reduzir o patrimônio a “cenários” da indústria cultural e à lógica do entretenimento, dissociando toda a fruição dos bens culturais da memória social e histórica. 77 74 FUNARI, Pedro Paulo; PELEGRINI, Cássia Araújo. Patrimônio histórico e cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 75 Ibidem. 76 FONSECA, 2005. 77 FUNARI; PELEGRINI, op. cit., p. 53-54. 45 Foi nas décadas de 1970 e 1980 que os intelectuais responsáveis pelas políticas públicas de preservação do patrimônio passaram a defender a ideia de que o processo de definição dos patrimônios deveria ser realizado em conjunto com a sociedade, de forma democrática 78 . Foi nesse período que a noção de referência cultural foi introduzida no vocabulário das políticas de patrimônio, suscitando “indagações sobre quem tem legitimidade para selecionar o que deve ser preservado, a partir de que valores, em nome de que interesses e de que grupos” 79 . A partir dessas indagações pode-se concluir que a preservação é uma demonstração de poder, pois, grosso modo, são os poderosos que conseguem preservar a representação da sua identidade, em detrimento de outras representações culturais. No entanto, considerava-se que todas as manifestações culturais deveriam incluir o patrimônio cultural brasileiro, representações de todos os grupos que compõem a sociedade brasileira. A expressão referência cultural, baseada em uma concepção antropológica de cultura, enfatiza a diversidade da produção material, dos sentidos e valores atribuídos pelos diferentes sujeitos a bens e práticas sociais. As manifestações culturais só podem ser definidas como referências culturais “quando são consideradas e valorizadas enquanto marcas distintivas por sujeitos definidos” 80 , quando representam a identidade dos sujeitos envolvidos. Referências culturais não se constituem, portanto, em objetos considerados em si mesmos, intrinsecamente valiosos, nem apreender referências significa apenas armazenar bens ou informações. Ao identificarem determinados elementos como particularmente significativos, os grupos sociais operam uma ressemantização desses elementos, relacionando-os a uma representação coletiva a que cada membro do grupo de algum modo se identifica. O ato de apreender referências culturais pressupõe não apenas a captação de determinadas representações simbólicas, como também a elaboração de relações entre elas e a construção de sistemas que “falem” daquele contexto cultural, no sentido de representá-lo. Nessa perspectiva, os sujeitos dos diferentes contextos culturais têm um papel não apenas de informantes como também de intérpretes de seu patrimônio cultural. 81 78 FONSECA, op. cit. 79 FONSECA, 2001, p. 111-112. 80 Ibidem, p. 113. 81 Ibidem, p. 113-114. 46 Nessa perspectiva, com o Decreto nº 3.551/2000, foi criado o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, o qual oficializou outras formas de tombamento do patrimônio histórico nacional. A partir de então, artesanatos, maneiras de pescar, caçar, plantar, cultivar e colher, de utilizar plantas como alimentos e remédios, de construir moradias, a culinária, as danças e músicas, os modos de vestir e falar, os rituais e festas religiosas e populares, as relações sociais e familiares, bem como os objetos históricos e artísticos, monumentos representativos da memória e centros históricos já consagrados e protegidos pelas instituições e agentes governamentais, passaram a constituir o patrimônio cultural nacional. 82 O tombamento é um dos instrumentos utilizados para a salvaguarda de patrimônios materiais brasileiros e foi instituído pelo Dec.-Lei 25, de 1937. O tombamento tem por finalidade proteger bens materiais que fazem parte do patrimônio natural e cultural brasileiro, visando evitar alterações e destruições que eliminem vestígios de fatos ou épocas do interesse da sociedade, ou ainda as áreas de interesse paisagístico. O entorno do imóvel tombado também pode receber restrições administrativas para que não sofra descaracterizações. Os bens materiais tombados, que podem ser móveis ou imóveis, são inscritos separada ou agrupadamente, num dos quatro Livros do Tombo (Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Tombo Histórico, Tombo das Belas Artes e Tombo das Artes Aplicadas), na repartição federal, estadual ou municipal. Desde a Constituição de 1988, a competência e fiscalização do tombamento são divididas entre a União, os Estados, Distrito Federal e os Municípios, sendo que os municípios só possuem ingerência sobre o patrimônio histórico- cultural local 83 . É possível o tombamento de bens públicos e privados, sendo que neste último caso, vários dispositivos constitucionais limitam o direito de propriedade garantindo que o Estado pode intervir e sujeitar o proprietário de um bem de valor para a cultura do país a um regime especial de tutela, usando de seu domínio eminente no cumprimento do dever de proteção à cultura. No caso do tombamento de bens públicos, “a autoridade administrativa que determinar o tombamento deverá notificá-lo à entidade a quem pertencer, ou à pessoa sob cuja guarda esteja a coisa tombada, sob pena de não produzir os efeitos necessários” 84 . 82 FONSECA, 2005. 83 ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. O tombamento como instrumento de proteção ao patrimônio cultural. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, v. 98, 2008, p. 65-97. 84 Ibidem, p. 68. 47 Como o tombamento só diz respeito a bens materiais da cultura, foi necessário criar mecanismos de proteção aos bens imateriais, como o Decreto nº 3.551/2000 já citado anteriormente, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Este Registro “trata-se de uma catalogação especial de manifestações folclóricas, hábitos, práticas sociais, lugares de referência popular, independente de seu valor histórico, paisagístico ou arquitetônico” 85 . Foram criados livros específicos para o registro, os quais são o Registro dos Saberes, Registro das Celebrações, Registro das Formas de Expressão e Registro dos Lugares, sendo que é possível a abertura de outros livros de registro, caso algum bem não possa ser devidamente enquadrado no âmbito dos pré-existentes. A instauração do processo de registro pode ser requerida por sociedades ou associações civis, Secretarias Estaduais, Municipais e do Distrito Federal, instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, e o próprio Ministro da Cultura. O pedido é dirigido ao Presidente do Iphan, que deve submetê-lo ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural mediante parecer publicado no Diário Oficial da União. Se o pedido for aceito pelo Conselho, o bem será inscrito no livro apropriado e receberá o título de Patrimônio Cultural do Brasil, cabendo ao Ministério da Cultura sua promoção e divulgação. No entanto, o registro não é definitivo, sendo que o IPHAN deve reavaliar, no mínimo a cada dez anos, os bens culturais registrados e encaminhar parecer ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural para que este decida sobre a revalidação. Caso não seja revalidado o título, será mantido apenas o registro, como referência cultural de seu tempo 86 . Como exemplos de patrimônios imateriais brasileiros temos a capoeira, o frevo, o maracatu, o samba de roda, o fandango, a chula, o forró, o carnaval e o chimarrão. Além disso, o Brasil também está repleto de patrimônios ambientais como o Corcovado, as cataratas de Foz do Iguaçu e o Pantanal. Os monumentos naturais, os sítios e as paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável dada pela natureza ou pela ação do homem são passíveis de tombamento, portanto, podem ser considerados patrimônios, tanto paisagens autóctones quanto não autóctones, como uma mata virgem ou um jardim botânico. De acordo com Sandra Pelegrini, 85 Ibidem, p. 84. 86 ALVES, 2008. 48 essa exuberância natural e riqueza cultural nos preenchem de um sentimento vigoroso que nos vincula às nossas tradições e nutre o sentido de pertença aos nossos lugares de origem. Todos esses elementos integram a nossa ‘brasilidade’, nossa identidade comum. 87 Porém, apesar de existir a valorização das tradições orais, saberes e ofícios de todas as culturas brasileiras, principalmente daquelas invisibilizadas pelas culturas dominantes, percebe-se que o patrimônio material ainda é mais valorizado que o patrimônio imaterial das cidades. Os conjuntos arquitetônicos são tratados como símbolos da memória oficial das nações, sendo utilizados desta maneira pelos representantes políticos das sociedades, que têm a pretensão de transformá-los em símbolos do poder estatal, das suas instituições e dos setores dirigentes da população. Isto ocorre em detrimento dos bens culturais produzidos por outros setores da população, embora estes venham reivindicando a preservação e o reconhecimento das suas manifestações culturais, tanto materiais quanto imateriais, amparados pela legislação vigente 88 . A estratégia mais comum de preservação dos monumentos históricos empregada pelo poder público, aliada à iniciativa privada, é a reutilização desses espaços de maneira autossustentável e direcionada ao turismo. No entanto, essas estratégias acabam se limitando à restauração das fachadas, à limpeza dos monumentos e à exclusão da população pobre dessas áreas, as quais são transformadas em núcleos com padrões burgueses. Poucos são os casos em que houve um processo de restauração patrimonial concomitante com um projeto de política habitacional para amparar as camadas pobres da sociedade que viviam em locais a serem restaurados. Poucos são os casos também em que essa população foi beneficiada com a atração turística que essas restaurações proporcionaram 89 . 87 PELEGRINI, Sandra C. Patrimônio cultural: consciência e preservação. São Paulo: Brasiliense, 2009, p. 14. 88 Ibidem. 89 Ibidem. 49 Apesar disso, o campo de estudo da Educação Patrimonial vem buscando levar as pessoas a interagirem, conhecerem e a se identificarem com o seu patrimônio cultural, para que ocorra a preservação consciente dos bens culturais, e o reconhecimento da sua própria história cultural, tornando-as sujeitos históricos, e não apenas espectadores. Esse método fortalece os sentimentos de identidade e cidadania, e pode ser aplicado sobre qualquer manifestação da cultura, podendo ser um objeto, um monumento, um sítio arqueológico, uma paisagem natural, uma manifestação popular, ou qualquer outra expressão resultante da relação entre os indivíduos e seu meio ambiente 90 . Horta define a Educação Patrimonial como “um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo” 91 . Portanto, a Educação Patrimonial não se restringe apenas aos ambientes escolares, podendo ser realizada em qualquer espaço que propicie experiências ou contatos com manifestações da cultura por parte da sociedade. Neste trabalho, o conceito de patrimônio será tratado como resultado de uma escolha política que tem o objetivo de contribuir para a construção da identidade dos grupos sociais, por conseguinte, o conceito de identidade será analisado como uma construção social, não estática, que sofre alterações ao longo do tempo. A Casa do Morro de Cruzeiro do Sul será interpretada como um lugar de memória que desperta em muitas pessoas o sentimento de representatividade de sua identidade. Joël Candau 92 define três diferentes manifestações da memória individual. A primeira, a protomemória, é imperceptível e ocorre sem a tomada de consciência. É o primeiro estágio da memória, aquele que desenvolvemos ainda na barriga da mãe, e tem uma estreita ligação com o nosso corpo. Ela é responsável pelo armazenamento de informações que dizem respeito principalmente a ações, as quais são efetuadas sem que tenhamos consciência do que estamos fazendo. O segundo estágio, a memória propriamente dita, é responsável pela capacidade de lembrar, reconhecer e esquecer. Já a metamemória não depende da faculdade de memória, como as duas anteriores, ela é uma representação relativa a essa faculdade, uma representação de como nós interpretamos e descrevemos nossa memória. É nesse estágio que ocorre a construção da identidade, em que a memória se manifesta de maneira ostensiva. Já na 90 HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial, Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999. 91 Ibidem, p. 6. 92 CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. 50 memória coletiva, só é possível uma forma de metamemória, que atua como representação, e não como faculdade, “um enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória supostamente comum a todos os membros desse grupo” 93 . O conceito de memória é apresentado por Duarte como uma função que garante, em toda sociedade, o domínio, a preservação, a transmissão e a continuidade do significado de todas as coisas. E que ao longo do tempo vem sendo sistematizada por várias ferramentas que procuram eternizar a memória, como a escrita e, atualmente, os instrumentos da indústria da informação. Essas ferramentas podem apresentar um perigo à memória coletiva, pois aparecem como um recurso suplementar à mnemotecnia, a arte de desenvolver a memória por meio de exercícios apropriados, ou seja, esses meios podem representar a substituição da elaboração íntima, vivenciada, experienciada da memória 94 . O pensamento de Nora vai ao encontro do de Duarte, quando diz que a memória é um processo vivo e dinâmico vivenciado por todos os grupos, étnicos e/ou sociais, constituindo- se como um fenômeno sempre atual. Diferente da história, que possui caráter universal, comum a todos, e que é uma representação do passado. A respeito dessa diferenciação, e da relação das mesmas, o autor destaca: Aceitemos isso, mas com a consciência clara da diferença entre memória verdadeira, hoje abrigada no gesto e no hábito, nos ofícios onde se transmitem os saberes do silêncio, nos saberes do corpo, as memórias de impregnação e os saberes reflexos e a memória transformada por sua passagem em história, que é quase o contrário: voluntária e deliberada, vivida como um dever e não mais espontânea; psicológica, individual e subjetiva e não mais social coletiva, globalizante. Da primeira, imediata, à segunda, indireta, o que aconteceu? Pode-se apreender o que aconteceu, no ponto de chegada da metamorfose contemporânea 95 . Com o esquecimento da memória tradicional, nos obrigamos a criar lugares de memória como arquivos, museus e bibliotecas, que transformaram a memória em história e acabaram se tornando gigantescos armazenadores de informações que não somos capazes de lembrar. Esta memória contida nos arquivos é interiorizada como uma obrigação individual, e não mais como uma prática social. Os lugares de memória podem ser materiais ou imateriais, desde que sejam simbólicos e funcionais e, principalmente, que incitem uma “vontade de memória”. “A passagem da memória para a história obrigou cada grupo a redefinir sua identidade pela revitalização de 93 Ibidem, p. 24. 94 DUARTE, Luiz Fernando Dias. Memória e reflexividade na cultura ocidental. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). In: Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. 95 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Proj. História. São Paulo, 1993. p. 14. 51 sua própria história” 96 . Sendo assim, os lugares de memória representam o encontro da memória e da história, fazendo com que diversos grupos busquem neles sua identidade e origem. Com o desaparecimento da memória espontânea, os grupos reconstituem sua memória a partir dos lugares de memória para que possam definir sua identidade, criando operações não naturais como celebrações e aniversários para rememorar o passado. Essa necessidade dos grupos de buscarem sua origem é devida, de acordo com Nora, à fragmentação da sociedade contemporânea, que acabou com a história-memória e multiplicou as memórias particulares. Portanto, “os lugares de memória são espaços criados pelo indivíduo contemporâneo diante da crise dos paradigmas modernos, e que com esses espaços se identificam, se unificam e se reconhecem agentes de seu tempo, isto é, a tão desejada volta dos sujeitos” 97 . A busca dos grupos por sua origem também é uma busca para encontrar ou reafirmar sua identidade, seja ela individual ou coletiva. Nesse sentido, entendemos o conceito de identidade como resultado de uma construção social, que acontece em uma relação dialética com o outro. Entretanto, ao contrário do que é discutido no ambiente acadêmico, no cotidiano dos indivíduos, suas identidades continuam a ser representadas em aspectos essencialistas. Ou seja, há a tendência de generalizarmos grupos sociais de acordo com sua “essência”, ao transformar uma característica singular em geral, como por exemplo, os estereótipos cultural e nacional 98 . Entretanto, sabemos que não morremos da mesma forma que nascemos. Ao longo da vida modificamos nossas concepções e atitudes constantemente, e isso se deve ao nosso convívio em sociedade e às diferentes vinculações sociais estabelecidas, como por exemplo, de sexo, de idade, de nação, de classe social, de grupo cultural, etc. Portanto, “cada indivíduo integra, de forma sintética, a variedade das referências identificatórias que estão ligadas à sua história” 99 , sendo detentor de uma identidade sincrética. “Essas variações situacionais da identidade impedem de reificá-la, de reduzi-la a uma essência ou substância” 100 . 96 Ibidem, p. 17. 97 NORA apud ARÉVALO, Marcia Conceição da Massena. Lugares de memória ou a prática de preservar o invisível através do concreto. Ouro Preto: UFOP, 2004, p. 6. ENCONTRO MEMORIAL DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS, 1., 2004, Mariana. Anais. 98 CANDAU, 2010. 99 BERLATTO, Odir. A construção da identidade social. Revista do Curso de Direito da FSG, Caxias do Sul, n. 5, 2009, p. 148. 100 CANDAU, 2014, p. 27. 52 [...] As identidades não se constroem a partir de um conjunto estável e objetivamente definível de “traços culturais” – vinculações primordiais –, mas são produzidas e se modificam no quadro das relações, reações e interações sociossituacionais – situações, contexto, circunstâncias –, de onde emergem os sentimentos de pertencimento, de “visões de mundo” identitárias ou étnicas. Essa emergência é a consequência de processos dinâmicos de inclusão e exclusão de diferentes atores que colocam em ação estratégias de designação e de atribuição de características identitárias reais ou fictícias, recursos simbólicos mobilizados em detrimento de outros provisória ou definitivamente descartados. 101 Nesse sentido, ao mesmo tempo em que nos identificamos também nos diferenciamos dos grupos culturais com que convivemos. Essa capacidade de alteridade também é uma característica identitária, pois por meio do contato com o diferente, aspectos próprios da identidade se manifestam numa rede complexa de significados, que tanto pela aproximação, quanto pela oposição reforçam os valores culturais dos grupos que compartilham deste contato. A identidade está intimamente ligada à memória, sendo que as duas adquirem um caráter de interdependência, pois a memória faz com que a identidade sobreviva ou não ao longo do tempo, podendo ser responsável tanto pelo seu reforço (através da lembrança) quanto pelo seu enfraquecimento (através do esquecimento). Entretanto, a memória também depende da identidade, pois os indivíduos e os grupos fazem suas escolhas memoriais (por exemplo, escolhas patrimoniais) de acordo com aquilo que os identifica (sua identidade). Daí a necessidade dos grupos de preservar aquilo que os representa, de preservar sua identidade com o objetivo de a patrimonializar. Essa preocupação com a patrimonialização vai ao encontro do interesse dos grupos em afirmar sua identidade e reconhecer os elementos que a constituem, obtendo assim, representações identitárias que os diferenciam culturalmente. Representações que podem se constituir em lugares de memória, como afirma Pierre Nora. “Assim, certas ações de patrimonialização estão na origem de memória e identidade. Logo, a patrimonialização desempenha um papel essencial para autentificar uma narrativa coletiva de um passado compartilhado” 102 . Sendo assim, os grupos sociais escolhem os seus patrimônios, tanto materiais quanto imateriais, de acordo com sua memória e identidade. Ou seja, “(...) qualquer patrimônio é entendido como uma escolha política e não como um dado natural, objetivo e incontestável” 103 . O patrimônio cultural é uma construção social e histórica que parte da 101 Ibidem, p. 27. 102 CANDAU, 2010, p. 49. 103 CARVALHO, Aline Vieira de; FUNARI, Pedro Paulo. Memória e Patrimônio: diversidade e identidades. Revista Memória em Rede. v.02, 2010, p.7-16. P. 10. 53 própria sociedade, de forma democrática e participativa 104 . Devido a isso, muitos setores sociais nunca se sentiram representados pelos símbolos nacionais impostos pelo Estado, afinal, esses símbolos sempre representaram as camadas dominantes da sociedade. A constituição de memórias e identidades nacionais a partir da escolha de determinados símbolos afeta intimamente a diversidade cultural de um país, pois deixa desassistidos, invisibilizados e marginalizados vários grupos étnicos e sociais. O reflexo que essa política de patrimônio empregada pelo Estado causou é o pensamento quase que hegemônico da ideia simplista de patrimônio histórico e cultural, a qual evoca “um conjunto de monumentos antigos que devemos preservar, ou porque constituem obras de arte excepcionais, ou por terem sido palco de eventos marcantes, referidos em documentos e em narrativas dos historiadores” 105 . A partir da Constituição Federal de 1988, os bens imateriais também passaram a integrar o patrimônio cultural brasileiro, constituído a partir de então pelas formas de expressão, modos de criar, fazer e viver, criações científicas, artísticas e tecnológicas, obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico- culturais, conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Para