0 UNIVERSIDADE DO VALE DO TAQUARI PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM ENSINO ENSINO PARA DEFICIENTES VISUAIS MEDIANTE A UTILIZAÇÃO DE UM GUIA DE SAÚDE ORAL Artur Fernandes de Paiva Neto Lajeado/RS, dezembro de 2020 1 Artur Fernandes de Paiva Neto ENSINO PARA DEFICIENTES VISUAIS MEDIANTE A UTILIZAÇÃO DE UM GUIA DE SAÚDE ORAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino, da Universidade do Vale do Taquari - Univates, como parte da exigência para a obtenção do grau de Mestre em Ensino, na linha de pesquisa Recursos, Tecnologias e Ferramentas de Ensino. Orientador: Prof. Dr. Rogério José Schuck Lajeado/RS, dezembro de 2020 2 Artur Fernandes de Paiva Neto ENSINO PARA DEFICIENTES VISUAIS MEDIANTE A UTILIZAÇÃO DE UM GUIA DE SAÚDE ORAL A Banca examinadora abaixo aprova a Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Ensino, da Universidade Vale do Taquari - Univates, como parte da exigência para a obtenção do grau de Mestre em Ensino, na linha de pesquisa Recursos, Tecnologias e Ferramentas no Ensino. ______________________________________________ Dr. Rogério José Schuck – Univates Orientador ______________________________________________ Dra. Silvana Neumann Martins – Univates ______________________________________________ Dra. Marli Teresinha Quartieri – Univates ______________________________________________ Dr. Lúcio Jorge Hammes – Unipampa Lajeado/RS, dezembro de 2020 3 O EQUILÍBRIO Distante percebo alguém se aproximar suavemente Em uma das mãos vejo uma espada que brilha E absorve toda a ignorância que me aprisiona nessa escuridão Como uma suave brisa Vejo seus passos passarem diante dos meus olhos E sinto que tenho que segui-lo. Apresso meus passos ao tentar acompanhar seu compasso Diante desse horizonte de luz Onde minha mente flutua Ao ser envolvida pelas ondas do conhecimento. Aos poucos o tempo me torna semelhante Com aquele que me tirou das trevas da ignorância E me trouxe para luz do saber. Porém percebo que não é o mesmo Há guerra e paz em seu coração E vejo surgir um abismo escuro entre nós Onde ecoa a canção do ego Sem poder salvá-lo da canção que o aprisiona Numa doce ilusão. Corro para a beira do abismo sem temer tamanha escuridão E atiro a flecha que segue rasgando silêncio a Ambiciosa canção. Ao segurá-lo nos braços Percebo cravada em seu peito A flecha partindo seu coração em dois Ao me pedir perdão Vejo surgir em seu coração Um fruto Uma balança dourada: O equilíbrio. Dedico a todos os mestres: Que em seus corações frutifique o senso da justiça e da honra, ecoando no peito como um sopro que irá guiá-los entre a emoção e a razão. Artur Fernandes de Paiva Neto 4 AGRADECIMENTOS A Nosso Senhor que iluminou o caminho de todos nós durante essa bela experiência. Aos meus familiares, amigos e colegas de trabalho pela compreensão nos momentos em que tive que estar ausente para me dedicar ao mestrado, principalmente no momento atual. Agradeço ao Prof. Dr. Rogério José Schuck, meu orientador, pelas caminhadas no horizonte do conhecimento, por me guiar e acreditar no meu potencial frente à proposta do trabalho. Nunca me esquecerei de ti, mestre. Muito obrigado. A todos os professores e à coordenação do PPGEnsino da Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES, pela nobre dedicação ao promover momentos ímpares de compartilhamento de conhecimento. Gostaria de agradecer à Fernanda Kochhann, Secretária de Pós-Graduação Stricto Sensu, que sempre manteve uma comunicação sensível e equilibrada. E à Profa. Dra. Ieda Maria Giongo, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ensino, por acreditar nesse projeto. Agradeço à toda equipe da APAE de senhor do Bonfim, por receberem a proposta da pesquisa e por contribuírem o seu desenvolvimento. Agradeço a todos que estiverem lendo esse trabalho, por darem a oportunidade de lerem algo que foi, é e será motivador para um ensino inclusivo. 5 RESUMO A presente dissertação tem como tema o ensino para Deficientes Visuais mediante a utilização de um Guia de Saúde Oral. Teve como motivação o seguinte problema: como estudantes universitários com deficiência visual percebem o desenvolvimento de uma proposta de ensino em saúde bucal por meio do Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais? A pesquisa buscou analisar, a partir da mediação do Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais, como estudantes universitários com deficiência visual percebem o desenvolvimento de uma proposta de ensino em saúde bucal. Os sujeitos da pesquisa são universitários com algum grau de deficiência visual, que estudam em instituições de Ensino Superior no interior do estado da Bahia. No que diz respeito aos procedimentos metodológicos, trata-se de uma pesquisa de campo, aproximando-se de pressupostos do estudo de caso. Os dados foram analisados com base na categorização proposta por Moraes e Galiazzi (2015). Dentre os autores que fundamentaram a pesquisa estão Sassaki (1997), Moreira (2017), Moran (2015), Vidal e Coelho JR. (2013), Michelotti (2018), entre outros. Constatou-se que o conhecimento prévio dos estudantes identificando seus hábitos em relação à saúde bucal foi de valor ímpar para que fosse possível significar tais informações durante o desenvolvimento da proposta de ensino em saúde oral. O referido Guia mostrou-se uma ferramenta de ensino eficiente ao olhar dos estudantes universitários, por ser um recurso pedagógico organizado em forma de manual de instruções, com exercícios que devem ser executados pelo leitor na própria boca, de modo a auxiliar no reconhecimento de tais estruturas. Além disso, evidenciou-se que a ferramenta pôde ser transformada em mídias digitais, o que auxiliou na realização de uma proposta de ensino inclusivo, principalmente mediante uso das tecnologias digitais. Palavras-chave: Ensino. Teconolgias Digitais. Deficiência Visual. Guia de Saúde Oral. Percepções discentes. 6 ABSTRACT The present dissertation has as its subject the teaching for the Visually Impaired through the use of an Oral Health Guide. It was motivated by the following problem: how do university students with visual impairments perceive the development of a teaching proposal in oral health through the Guide to Oral Health for the Visually Impaired? The research sought to analyze, based on the mediation of the Oral Health Guide for the Visually Impaired, how university students with visual impairment perceive the development of a teaching proposal in oral health. The research subjects are university students with some degree of visual impairment, who study at Higher Education institutions in the interior of the state of Bahia. With regard to methodological procedures, it is a field research, approaching the assumptions of the case study. The data were analyzed based on the categorization proposed by Moraes and Galiazzi (2015). Among the authors who supported the research are Sassaki (1997), Moreira (2017), Moran (2015), Vidal and Coelho JR. (2013), Michelotti (2018), among others. It was found that the prior knowledge of students identifying their habits in relation to oral health was of unparalleled value so that it was possible to signify such information during the development of the oral health teaching proposal. This Guide proved to be an efficient teaching tool in the eyes of university students, as it is an educational resource organized in the form of an instruction manual, with exercises that must be performed by the reader in his own mouth, in order to assist in the recognition of such structures. In addition, it became evident that the tool could be transformed into digital media, which helped in the realization of an inclusive education proposal, mainly through the use of digital technologies. Keywords: Teaching. Digital technologies. Visual impairment. Oral Health Guide. Student perceptions. 7 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Resultado da pesquisa realizada no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes ................................................................................................................ 44 Quadro 2 - Descrição das etapas da atividade pedagógica que compõe a proposta de ensino ................................................................................................................ 51 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 9 2 APROXIMAÇÕES TEÓRICAS ............................................................................ 17 2.1 O que é deficiência? ........................................................................................ 17 2.2 Percepção, Consciência, Emoção e Deficiência Visual ................................... 21 2.3 A Percepção Tátil e o Método Braille ............................................................... 28 2.4 Saúde, Escola e Inclusão social ...................................................................... 31 2.5 Ensino e O Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais ............................... 38 2.6 Estado da Arte ................................................................................................. 43 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ........................................................... 47 3.1 Caracterização da Pesquisa ............................................................................ 47 3.2 Contexto do Campo da Pesquisa .................................................................... 48 3.3 Os Sujeitos da Pesquisa .................................................................................. 48 3.4 Procedimento para a produção de dados ........................................................ 50 4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS ............................................................. 55 4.1 Percepção do Entrevistado sobre Saúde Bucal ............................................... 57 4.2 Proposta de ensino utilizando o Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais ............................................................................................................................... 60 4.3 Percepção do Entrevistado frente ao Processo de Ensino .............................. 64 5 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 67 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 70 ANEXO A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ....................... 78 ANEXO B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) - APAE ........... 80 ANEXO C - Entrevista semi estruturada ................................................................ 81 APÊNDICE A - Livro: Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais ..................... 83 APÊNDICE B - Boneca do livro: Guia de Saúde Oral para Deficiêntes Visuais edição em braile, em fonte ampliaca com desenhos em relevo .......................... 125 9 1 INTRODUÇÃO O interesse em realizar um trabalho destinado ao ensino em saúde oral para pessoas com necessidades especiais surgiu durante a graduação, quando prestava trabalho voluntário no Instituto Psicopedagógico de Bonfim (IPPB), ministrando aulas de reforço escolar para estudantes recém-incluídos na escola regular. Na instituição, minhas atividades eram destinadas aos estudantes com deficiência visual, atendidos no Centro de Atendimento aos Portadores de Deficiência Visual (CAPDV). Durante o intervalo entre as atividades, algumas questões me foram colocadas pelos estudantes, dentre elas era indicar qual seria, na minha opinião, a melhor escova de dentes a ser utilizada. Particularmente, essa questão me fez refletir sobre o fato de que as imagens que complementam as informações apresentadas nos materiais pedagógicos relacionados à saúde bucal eram destinadas a videntes. Devido a isso, percebi que o uso de imagens para comunicar a melhor escova dental era um obstáculo para estudantes deficientes visuais. Estava, nesse momento, criada uma questão a se resolver: como ensiná-los a escolher a escova de dentes ideal? Buscando uma forma apropriada de explicação, percebi que a dificuldade em realizar a comunicação e o processo de ensino se concentrava em mim e não no estudante que fizera o questionamento. Este estava atento e questionava as informações do nosso diálogo. Naquela ocasião, a partir de uma simples pergunta, surgia a necessidade de uma reflexão sobre inclusão social, sobre ensino e sua repercussão na saúde e na qualidade de vida de pessoas portadoras de necessidades especiais. No diálogo com a coordenação do CAPDV, informei sobre a pretensão de elaborar um guia sobre saúde bucal voltado para os deficientes visuais. Fui informado que os recursos disponíveis na instituição eram limitados, mas que se poderia produzir o guia em forma de texto, já que estava disponível uma impressora para Braille. Lancei-me, então, no segundo desafio: transformar informações visuais em informações descritivas, já que a maioria dos produtos destinados à promoção de ações educativas em Odontologia são basicamente visuais. 10 Para justificar a elaboração do guia como trabalho de conclusão de curso, pareceu-me necessário aprofundar os estudos, buscando mais informações a respeito de saúde pública e de dados demográficos e epidemiológicos. Através de uma revisão de literatura, busquei conhecimentos científicos, estruturais e funcionais da anatomia, histologia, fisiologia, bioquímica, microbiologia e patologia da cavidade bucal, das estruturas nela encontradas e das estruturas anexas, com o objetivo de atenuar a discriminação ou a segregação de qualquer ordem ou natureza aos envolvidos nos ambientes de ensino e de atenção à saúde, tendo em vista o processo de ensino em saúde coletiva e preventiva. Nesse sentido, observei, na ocasião do referido estudo, que a literatura disponível em Braille destinada à prevenção e à orientação em saúde é escassa e muito pouco direcionada à concepção, à existência e à essencialidade dos domínios cognitivo, psicomotor, emocional. Dessa forma, a literatura não envolve e não amplia as práticas básicas de higiene e saúde bucal da população aqui em evidência. Diante disso, na elaboração do guia, busquei torná-lo o mais abrangente possível, não contemplando somente as informações de como higienizer os dentes, mas também todas as estruturas localizadas na cavidade oral, considerada, holisticamente, parte integrante do corpo humano. Assim, foi necessário lançar um olhar integral sobre o ser humano. Tal olhar foi aprimorado ao longo do estudo sobre a inclusão social. Esse tema é constante em debates políticos, mas ainda há pouca atenção e ações concretas acerca de como a inclusão pode ser relevante em campanhas preventivas em saúde e como pode influenciar o desenvolvimento da autoidentidade positiva das pessoas com necessidades especiais. A questão tornou-se ainda mais relevante ao se observar os dados desatualizados referente às deficiências, o que implica de forma negativa no planejamento de estratégias para a elaboração de políticas públicas que visem ao processo de inclusão social. A primeira investigação de deficiências na população brasileira ocorreu em 1972, porém apenas em 1989, sob a Lei Federal 7.853 (art. 17), é que se tornou obrigatória a coleta de dados sobre deficiência nos censos demográficos. Segundo dados apresentados pelo IBGE no Censo de 2010, 24% da população nacional é formada por Pessoas com Necessidades Especiais (PNE), representando 12,5 milhões de pessoas com algum tipo de necessidade especial 11 (IBGE, 2010). Esses dados revelam que existiam 190.755.799 pessoas com algum tipo de deficiência visual no Brasil, sendo 84,37% dessa população domiciliada na região urbana e 15,63% domiciliada na região rural. O Censo informa ainda que, dessas pessoas, 97.348.809 eram mulheres e 93.406.990 eram homens. De acordo com o Censo, 506.377 pessoas não conseguem ver de modo algum (amaurose), 6.056.533 pessoas possuem grande dificuldade de enxergar (baixa visão) e 29.211.482 pessoas possuem alguma dificuldade visual. Em relação à distribuição geográfica, podemos observar que a Região Sudeste apresenta um total de 80.364.410 pessoas com algum tipo de deficiência visual, seguido pela Região Nordeste, com 53.081.950 pessoas. A Região Sul apresenta um total de 27.386.891 pessoas com deficiência visual, e a Região Norte possui 15.864.454. O menor índice de pessoas está na Região Centro-Oeste, que possui 14.058.094 pessoas com deficiência (IBGE, 2010). Além desses dados, também se evidenciou, segundo o Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas da Coordenação Geral de Saúde da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2018), uma prevalência de 3,6% de deficiência visual, sendo que 3,3% adquiriram a deficiência por doença ou acidente e 0,4% a possuíam desde o nascimento. O relatório de dados ainda apresenta os desafios e as expectativas para o Censo que ocorrerá em 2021, entre os quais está: incluir questões que abarquem o conceito de Deficiência da Lei Brasileira de Inclusão; manter questões sobre deficiência e a outras doenças, relativas ao perfil sociodemográfico (acesso à escola, renda e outras, diretamente relacionadas à participação social e inclusão); qualificar o módulo G (Deficiência) do Censo com informações sobre uso de órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção, e incluir um instrumento que considere a funcionalidade da pessoa com deficiência. Além desses dados, também foram fundamentais para a elaboração do guia alguns temas relevantes como a estrutura da boca, a dieta e a doença cárie, o dente, a cavidade bucal, as técnicas de escovação, dentre outras questões. O trabalho também procurou valorizar, enaltecer e potencializar a participação do cidadão na aquisição de hábitos e estilos de vida que promovam a saúde bucal e sistêmica. Seguindo orientações da equipe do CAPDV, o texto do guia deveria ser descritivo, em forma de revisão de literatura, devidamente transcrito em Braille. Assim, surgiu o Guia de Saúde Bucal para Deficientes Visuais (PAIVA NETO, 2011), apresentado 12 à comunidade acadêmica como trabalho de conclusão de curso para obtenção do título de bacharel em Odontologia pela Universidade Tiradentes, no ano de 2006. Após a conclusão do curso, 25 cópias do guia impressas em Braille foram viabilizadas com o apoio financeiro da Universidade Tiradentes. Tais cópias foram distribuídos em instituições que realizavam atendimento às pessoas com deficiência visual nos estados da Bahia e de Sergipe. Depois disso, tive a oportunidade de trabalhar como voluntário no CAPDV, no período de 2007 a 2011, como odontólogo, com o objetivo de buscar informações sobre o processo de inclusão social, além do desenvolvimento de habilidades clínicas direcionadas ao processo educacional na promoção da saúde coletiva. Nesse mesmo período, foram realizados estudos clínicos dos estudantes cegos, tendo como foco a avaliação da relação entre o nível da quantidade e o biofilme bacteriano antes e após a leitura do guia. Participaram desse estudo cinco estudantes do CAPDV do Instituto Psicopedagógico de Bonfim de ambos os sexos, de diferentes faixas etárias. Nessa etapa do estudo, o índice de biofilme bacteriano foi coletado por meio da técnica de O’Leary. O índice de O’Leary baseia-se na presença ou na ausência de biofilme bacteriano nas superfícies vestibular, mesial, distal e lingual ou palatina das unidades dentárias presentes (ROVIDA et al., 2010). O resultado é fornecido em percentuais de superfícies coradas pelo gel evidenciador em relação ao total das superfícies examinadas. Convém referir que o biofilme bacteriano é um dos fatores predisponentes para o desenvolvimento da doença cárie, a qual, até o presente momento, é a doença transmissível de maior prevalência na cavidade bucal. Também foi solicitado que os participantes respondessem a um questionário contendo perguntas relacionadas ao livro, com o objetivo de coletar dados relativos ao processo de aprendizagem durante a leitura. É importante citar que os estudantes não receberam nenhum tipo de informação acerca de saúde bucal, apenas leram e interpretaram o livro como fonte de dados. Tal estratégia foi utilizada para poder, de alguma forma, observar a validade do conteúdo apresentado no livro. Sendo assim, a coleta de dados baseou-se no levantamento quantitativo do índice de biofilme bacteriano, antes e após a leitura do livro. Em relação ao índice de biofilme bacteriano, antes da leitura do livro/guia, os resultados, segundo o índice de O’Leary, foram os seguintes: 90% dos alunos apresentaram índice de biofilme 13 bacteriano entre 48% e 100%. Após a leitura do livro/guia, num intervalo de tempo de três meses, o índice apresentado pela maioria dos alunos foi inferior a 48%, havendo momentos de apresentação inferior a 30% (ROVIDA et al., 2010). Na entrevista estruturada, realizada após o atendimento clínico, 90% dos estudantes relataram que não tiveram dúvidas em relação aos assuntos apresentados; 100% consideraram que, após a leitura do livro, passaram a ter um cuidado maior com sua saúde e hábitos de higiene bucal; 90% dos alunos sentiram- se motivados em relação à saúde bucal e à saúde num contexto geral; 100% dos entrevistados gostariam que houvesse mais materiais de orientação disponíveis, em Braille, sobre saúde. Com base nos dados clínicos colhidos com o estudo descrito, concluiu-se que a cárie e outras doenças que acometem a cavidade oral podem ser controladas com os trabalhos voltados para a educação em saúde através da leitura. Desde o princípio, teve-se o propósito de oferecer condições ao deficiente visual de obter informações básicas sobre a cavidade oral, dieta, higiene bucal e prevenção do câncer oral. Além disso, buscou-se informá-los sobre os materiais de higiene oral e dotá-los de maior autonomia em relação à saúde oral, bem como motivá-los a procurar e manter uma melhor qualidade de vida. Sendo assim, o acesso restrito e a falta de recursos tecnológicos motivaram a realização de um projeto que previu a implantação do Guia no Sistema Único de Saúde (SUS) e em demais instituições de ensino público, o que estaria em sincronia com o debate da 3ª Conferência Nacional de Saúde Bucal, cujo tema era o acesso, a qualidade e a superação da exclusão social. Porém, o projeto não teve a aceitação esperada na esfera pública, no que direcionei os esforços para a iniciativa privada. No mesmo ano, 2011, o Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais foi inscrito para participar do Prêmio Saúde, promovido pela Revista Saúde, Editora Abril. O evento teve 474 trabalhos inscritos, desenvolvidos por 673 instituições e assinados por 1.941 profissionais de saúde: médicos, odontólogos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, biólogos, educadores físicos, farmacêuticos, assistentes sociais, biomédicos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais. Foi uma mostra importante da produção científica da maioria dos estados brasileiros. O júri, formado por 74 docentes da Universidade de São Paulo (USP), selecionou três finalistas na categoria Saúde Bucal. Um desses trabalhos foi a Avaliação Técnica para Desfluoretação de Águas no Nordeste, assinado por seis 14 pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba, da Universidade Federal de Campina Grande, Funasa e da Prefeitura Municipal de São João do Rio do Peixe – PB. O outro constitui-se em uma pesquisa sobre a proteção da boca no combate ao câncer, com o uso do laser de baixa potência, assinada por doze cientistas do Instituto Nacional do Câncer/RJ. E o terceiro trabalho, que foi o vencedor na categoria, foi o Guia de Saúde Bucal para Deficientes Visuais, produzido e aperfeiçoado durante os estudos no Instituto Psicopedagógico de Bonfim. Esse reconhecimento ratifica a importância do trabalho, especialmente para a comunidade de deficientes visuais. Em decorrência desse prêmio, em dezembro de 2011, tive a oportunidade de conhecer a Fundação Dorina Nowill, que editou a amostra de uma nova edição do guia, na qual, além do texto em Braille, as imagens estavam em negrito e em alto- relevo. Essa formatação ampliaria o público-alvo do guia, visto que poderia ser utilizado por leitores com diferentes graus de deficiência visual. Tratava-se de uma oportunidade ímpar para sugerir a inserção do livro na rede de ensino e na de saúde pública. Com o objetivo de oferecer uma oportunidade de aprimorar os laços entre a odontologia social e preventiva, esperava-se um aproveitamento do instrumento por aqueles que ensinam e uma mudança de hábitos de saúde oral por parte daqueles que aprendem. Porém, por ser um projeto sem fins lucrativos e por falta de apoio privado e/ou público, a inclusão do guia nas unidades de saúde e nas escolas da rede pública não se concretizou. Busquei, então, percorrer outro caminho para efetivá-lo. Considerando todo o esforço para a inclusão do guia nas unidades de saúde e nas escolas da rede pública, a proposta continua sendo motivadora, levando o desenvolvimento de habilidades de ensino e de aprendizado no contexto político, econômico e cultural. Acredita-se que, ao compartilhar o projeto no meio acadêmico, ele poderá ser visto por outro prisma, sensibilizando outras faculdades a promoverem sua inclusão através da interdisciplinaridade e humanização das faculdades de saúde e educação. Essa percepção foi um fator motivador para que, no mestrado em Ensino, o Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais fosse escolhido como um instrumento de pesquisa Nesse sentido, a presente pesquisa teve como tema a utilização de um guia para o ensino em saúde oral, sendo esse uma ferramenta usada pelos deficientes visuais. Dessa forma, o trabalho enquadra-se na linha de pesquisa Recursos, 15 tecnologias e ferramentas de ensino. O tema tem sua relevância no fato de, além de tratar de ensino, trazer à tona uma reflexão sobre a inter-relação entre inclusão social e o processo de ensino como medida preventiva em saúde. Como pesquisador, fui motivado pela seguinte questão: Como estudantes universitários com deficiência visual percebem o desenvolvimento de uma proposta de ensino em saúde bucal por meio do Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais? Sendo assim, o objetivo geral do trabalho foi analisar como os estudantes universitários com deficiência visual percebem o desenvolvimento de uma proposta de ensino em saúde bucal a partir da utilização e interação com o Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais. Para um pesquisador, a percepção dos sujeitos da pesquisa tem um valor inestimável, principalmente quando se trata de um trabalho qualitativo. Para que fosse possível obter os dados, estabeleci três objetivos específicos, considerando que o desenvolvimento do ensino proposto foi baseado em metodologias ativas: (i) conhecer os hábitos e obter as informações prévias sobre a saúde oral de universitários com deficiência visual na cidade de Senhor do Bonfim, Bahia; (ii) perceber quais recursos e ferramentas de ensino podem ser utilizadas para dar maior ênfase ao processo de ensino para prevenção em saúde oral no público-alvo; e (iii) verificar as implicações e percepções junto a alunos universitários no desenvolvimento de uma proposta de ensino desenvolvida junto a deficientes visuais mediante a utilização do Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais. Este trabalho está organizado em capítulos. No primeiro, apresenta-se ao leitor o conceito de deficiência e sua evolução no decorrer do tempo. No segundo capítulo, intitulado Percepção, Consciência, Emoção e Deficiência Visual, discute- se a percepção e o processo sensitivo visual, bem como os sentidos remanescentes e como estes constroem a consciência e modulam as emoções nas pessoas com deficiência visual. Esse breve conhecimento serve para que o leitor possa entender a percepção tátil e o método Braille, assunto abordado no terceiro capítulo. Em seguida, temos o capítulo quatro, que trata da inter-relação entre saúde, escola e inclusão social. Por fim, no quinto capítulo, apresenta-se o Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais e sua relevância no processo de ensino. Os capítulos aprofundam e expandem a discussão sobre as políticas públicas de inclusão em vigor e o processo de ensino inclusivo, levando em conta as tecnologias e os recursos pedagógicos disponíveis. 16 17 2 APROXIMAÇÕES TEÓRICAS Esse capítulo tem o objetivo de imergir o leitor no ambiente que envolve a deficiência visual, o ensino e a saúde. Antes de realizar um aprofundamento teórico das questões de inclusão social e o processo de ensino, são apresentadas informações sobre o que é deficiência e sobre como a pessoa com deficiência visual percebe e tem consciência do meio em que vive, e como essa consciência modula o seu aprendizado. Em seguida, são apresentadas informações sucintas sobre a percepção tátil e o método Braille, pois esse é o sistema utilizado pelos deficientes visuais para realizar a leitura e escrita, proporcionando um meio de educação/ensino. Após essa abordagem, o leitor é trazido para um ambiente macro e interligado, fazendo-o refletir sobre saúde, ensino e a inclusão social. Por fim, o trabalho se desenvolve mediante uso do Guia de Saúde para Deficientes Visuais como ferramenta no processo de ensino, destacando e sua relevância no processo de inclusão social. Também é apresentado um estado da arte acerca do tema em questão, revelando a excassez de estudos realizados acerca do tema proposto neste trabalho. 2.1 O que é deficiência? O ponto de partida para o estudo sobre o ensino inclusivo está em conhecer o conceito de deficiência. Ao entendê-lo, segundo Sassaki (1997, p. 27), podemos não só compreender nossos atos, como também perceber como eles podem moldar as experiências sociais. Além disso, ao compreender o conceito de deficiência, podemos refletir sobre o desenvolvimento e o aprimoramento das políticas públicas, bem como sobre a evolução dos valores éticos. No século XVIII, a deficiência era vista como uma alteração corporal anormal da espécie humana, sendo considerada uma doença, uma tragédia social. Era comum os próprios familiares segregarem os deficientes, por motivo de vergonha ou ignorância. Atualmente, graças aos avanços que tivemos ao longo da história, observamos uma realidade mais humanizada, em que a deficiência, para muitos, é vista como um estilo de vida, aproveitando as mudanças sociais que oportunizam 18 seu crescimento pessoal, intelectual e profissional. É de fundamental importância que cada pessoa compreenda o que é deficiência e se coloque no lugar do outro para perceber que deficiência pode não ser sinônimo de incapacidade, pois existem os sentidos remanescentes que auxiliam no processo de independência, autonomia e superação. Lima (2006, p. 40) traz, primeiramente, a diferença entre deficiência e incapacidade. Para estabelecer essa diferença, a autora ancora-se nos conceitos da Convenção da Guatemala e da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF).: Através do decreto de número 3.956/01, a Convenção da Guatemala define deficiência como uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. Já a Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) aborda o conceito de deficiência como sendo uma perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica temporária ou permanente. Ela aborda a incapacidade como sendo uma restrição resultante de uma deficiência da habilidade para desempenhar uma atividade considerada normal, que surge como consequência direta ou resposta do indivíduo a uma deficiência (LIMA, 2006, p.40). Nessa perspectiva, entende-se que os conceitos de deficiência e incapacidade não são sinônimos absolutos. A deficiência deve ser compreendida como uma “limitação” sensorial, mental ou física, quando comparada ao desempenho realizado por pessoas que não apresentam nenhum tipo de deficiência. Por outro lado, incapacidade está ligada às barreiras arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais, filosóficas, históricas que podem impossibilitar o desenvolvimento da pessoa com deficiência. Vidal e Coelho Jr. (2013, p. 15) consideram difícil chegar ao conceito de deficiência, visto que ele varia conforme concepções e conceitos relacionados com a época e com a cultura: Muitos dos termos utilizados no passado para definir pessoas com deficiência, como “anormal”, “incapaz”, “defeituoso”, “retardado”, ainda permanecem vivos no dia a dia da maioria da população, principalmente, no público leigo, apesar dos esforços para se evitarem esses termos e padronizar o conceito. Tais termos refletem o caráter preconceituoso e discriminatório ao ser “diferente”, favorecendo a construção e a sedimentação de estigmas, estereótipos e padrões de beleza (VIDAL; COELHO JR., 2013, p.15). 19 Na História Antiga e Medieval, via de regra, as pessoas com deficiência ao longo dos anos receberam dois tipos de tratamento: de um lado, a rejeição e a sumária eliminação, e por outro lado o assistencialismo como proteção e piedade. Na Roma Antiga, tanto os plebeus como os nobres tinham permissão para sacrificar os seus filhos que nascessem com algum tipo de deficiência. Já em Esparta, os bebês ou as pessoas que adquirissem algum tipo de deficiência eram lançados ao mar ou em precipícios. Em Atenas – por influência de Aristóteles, que definiu a premissa jurídica até hoje aceita de que “tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em justiça” –, as pessoas com deficiência eram amparadas e protegidas pela sociedade (SILVA, 1987, p. 20). Diniz (2007, p. 08) complementa os conceitos anteriores, ao trazer algumas redefinições em substituição aos termos agressivos anteriormente utilizados, indicando assim que a deficiência passou a ser um conceito político: […] nesse movimento de redefinição da deficiência, termos como “pessoa portadora de deficiência”, “pessoa com deficiência”, “pessoa com necessidades especiais”, entre outros agressivos, como “aleijado”, “débil mental”, “retardado”, “mongolóide”, “manco” e “coxo” foram colocados na mesa de discussões. Exceto pelo abandono das expressões mais claramente insultantes, ainda hoje não há consenso sobre quais os melhores termos descritivos (DINIZ, 2007, p. 08). O movimento político voltado para a pessoa com deficiência coincide com a abertura política em Brasília, nos anos 80, quando as associações fizeram uma pauta de reivindicações de direitos. Segundo Figueira, “se até aqui a pessoa com deficiência caminhou em silêncio, excluída ou segregada em entidades a partir de 1981, Ano Internacional da Pessoa Deficiente, promulgada pela ONU, passou a se organizar politicamente”. Vidal e Coelho Jr. (2013, p.17) relatam que, nacionalmente, os conceitos de deficiência e de incapacidade estão baseados no: [...] Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999 e adotados pela Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência. A política considera (i) deficiência: “toda perda ou anormalidade de uma estrutura e/ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gere incapacidade para o desem- penho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”; (ii) deficiência permanente: “aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de ser alterada apesar de novos tratamentos”; e (iii) incapacidade: “uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, 20 adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa com deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida (VIDAL; COELHO JR., 2013, p.17). Ao longo deste e de outros estudos, encontrei certa dificuldade em relação à nomenclatura adequada a ser utilizada, já que alguns trabalhos e textos oficiais diferem o termo empregado. Segundo Diniz (2007, p. 09), exceto pelo abandono das expressões mais claramente insultantes, ainda hoje não há consenso em relação aos termos descritivos mais adequados. Alguns termos, como “deficiente”, “pessoa deficiente”, “pessoa com deficiência”, “pessoas portadoras de deficiência”, “portadores de necessidades especiais”, “pessoa com necessidade especial”, trazem certa uniformidade e clareza ao classificar os sujeitos. No presente texto, utilizarei a expressão “pessoa com necessidade especial”. Conforme Sassaki (1997, p. 13), o termo “necessidades especiais” não deve ser compreendido como sinônimo de “deficiente”. Apesar de concordar com esse posicionamento atualmente, em 2006, quando o Guia de Saúde Oral para Deficiêntes Visuais foi escrito, utilizei a terminologia “deficiente”, já que seguíamos o modelo biomédico dentro de uma faculdade de Odontologia. Hoje, entende-se que o conceito biomédico de deficiência influencia a discriminação, ao igualar a deficiência a uma doença. Consequentemente, forma-se um paradigma social. Nas palavras de Sassaki (1997, p. 28): O modelo médico da deficiência tem sido responsável, em parte, pela resistência da sociedade em aceitar a necessidade de mudar suas estruturas e atitudes para incluir em seu seio as pessoas com deficiência e/ou com outras condições atípicas para que essas possam, aí sim, buscar o seu desenvolvimento pessoal, social, educacional e profissional. (…) A pessoa com deficiência é que precisa ser curada, tratada, reabilitada, habilitada etc, a fim de ser adequada à sociedade como ela é, sem maiores modificações (SASSAKI, 1997, p. 28). Sob essa perspectiva, o referido modelo fica limitado à medicalização ou reabilitação entendidas apenas como concessões de próteses, órteses ou intervenções terapêuticas para possibilitar a independência e a produtividade dessas pessoas. O movimento de inclusão social visa a não adequar a pessoa ao ambiente, mas adequar o ambiente à pessoa. Ao refletir sobre o tema, surgem questionamentos como: Onde se encontra a deficiência? Nós, enquanto sociedade, 21 não seríamos limitados, em função da dificuldade de nos comunicarmos com o meio ambiente que nos cerca? Quem realmente consegue enxergar o que está diante dos seus olhos? 2.2 Percepção, Consciência, Emoção e Deficiência Visual Ao longo desse estudo, várias vezes, o ponto de partida para conceituar a deficiência visual foi a apresentação de estruturas anatômicas e a fisiologia da visão, buscando a resposta apenas em materiais de anatomia e de fisiologia humana. No entanto, transcrever somente as estruturas anatômicas e seu funcionamento não levaria a alcançar os objetivos, conforme descrito acima. Nesse sentido, cabe uma breve revisão da fisiologia do sistema sensitivo da visão: A visão é responsável pela maior parte das informações que recebemos do meio externo. Desde o nascimento, a capacidade visual se desenvolve e atinge a maturação em torno dos 6 a 7 anos de idade, sendo o olho humano um dos principais órgãos relacionados à visão, que representa um sentido notável para a vida no que se refere à relação do ser humano com o ambiente. A partir de um complexo sistema, detecta e interpreta estímulos luminosos, sendo, portanto, uma estrutura fotossensível com alto grau de evolução, que possibilita a análise detalhada da forma e da cor dos objetos, além da intensidade de luz refletida (ANTONIO, 2012, p. 109). Conforme Amiralian (1997), a visão é responsável por 75% a 80% da percepção do vidente. Os outros sentidos, denominados de sentidos remanescentes, entre os quais está o olfato, a audição, o paladar e o tato, colaboram com 15 a 20% da percepção (AMIRALIAN, 1997, p. 23). O sistema sensitivo da visão faz parte do sistema nervoso periférico, sendo uma atividade reflexa do organismo humano. Segundo Marieb e Hoehn (2008 p. 440): A nossa sobrevivência não depende apenas da sensação (atenção às variações dos meios interno e externo), mas, também, da percepção (interpretação consciente dos estímulos). Por exemplo, uma pedrinha incomodando no meu sapato causa a sensação de uma intensa pressão, mas minha percepção é uma consciência do desconforto. A percepção determina como responderemos aos estímulos. No caso da “pedra no meu sapato”, eu vou retirar o sapato para livrar-me da pedrinha desagradável. A citação acima é reforçada por Lima (2006), em seu estudo sobre deficiência visual. A autora explica que, para que o sistema visual possa atingir o nível de 22 acuidade visual normal, ele deve ter interação com o meio. Para a autora, “as pessoas não nascem sabendo ver, aprendem a ver desenvolvendo as estruturas dos olhos e do córtex visual” (LIMA, 2006, p.7 3). Ainda: [...] ao nascer, a criança apresenta baixa acuidade visual (capacidade da retina de discriminar estímulos visuais) [...] [...] a criança percebe a luz de maneira precária, pois seus órgãos estão em desenvolvimento, e seus olhos podem realizar movimentos descoordenados. Aos três meses, ela começa a fixar os olhos e, aos nove, a desenvolver a visão de relevo, por meio da qual consegue ter noção de distância e de formas. Aos dois anos, a criança discrimina 50% do campo visual; aos quatro, aproximadamente, 70% e, aos cinco, adquire visão igual à do adulto (LIMA, 2006, p. 73). Nesse caso, pode-se dizer que a visão depende de um estímulo para que possamos obter uma sensação, que, por sua vez, realiza a modulação da nossa percepção e estimula a interpretação final do meio ambiente através da consciência. Mas, qual a “pedrinha” que estimula a sensibilidade da visão? Dantas (2011, p. 61), ao descrever a estrutura anatômica macro e microscópica do olho, faz a seguinte colocação em relação ao processo do fenômeno da visão: [...] a radiação eletromagnética, com comprimento de onda entre 400 e 700 nm (luz visível), é absorvida por milhões de cones e bastonetes presentes no estrato nervoso da retina. Essas células são capazes de emitir impulsos nervosos inibitórios e excitatórios que serão modificados bilhões de vezes até chegarem às fibras nervosas que compõem o nervo óptico. Do nervo óptico, o sinal segue pelo quiasma e pelo trato óptico até o cérebro, onde é processado por mais de 30 centros visuais, que, por sua vez, interagem com mais de 300 centros no córtex cerebral, a fim de criar as imagens visuais do mundo que nos cerca (DANTAS, 2011, p. 61). Guyton (2011) complementa as informações de Dantas (2011), afirmando que as imagens enviadas pela retina ao nervo óptico não transmitem o padrão verídico de mosaico da imagem visual, mas um tipo de sinal capaz de indicar a intensidade geral da iluminação e as variações de contrastes e cores. O processamento da cena visual do mundo que nos cerca, que chega até o córtex visual, deve-se ao estímulo neuronal, pela presença das bordas de contrastes entre uma área clara e uma área escura, determinando assim a forma das imagens. A via visual anterior e a via geniculocalcarina têm como objetivo transmitir informações visuais que chegam à consciência. Assim, podemos discriminar a forma, o tamanho, a textura, as cores e o movimento dos objetos. 23 A relação entre a luz e a estrutura ocular é descrita de forma sucinta por Dantas (2011). Para o autor, a óptica ocorre em dois ambientes, um claro e um escuro, tendo como base o percurso da luz pelo globo ocular. Também descreve, conforme explicitado a seguir, quando e como ocorre a transformação da energia luminosa em potencial elétrico para a sensibilização das células nervosas: A luz que atinge a retina estimula dois fotorreceptores: os cones e os bastonetes que apresentam propriedades diferentes. Os bastonetes são eficazes quando o fluxo de fóton é fraco (ambiente noturno ou escotópico). Os cones funcionam com um fluxo de fótons mais fortes (ambiente diurno ou fotópico). Eles são de três tipos, apresentando sensibilidades diferentes para os componentes de onde compõem a luz visível. O fluxo de energia que chega ao olho por luz se exprime em watts. A sensação do fluxo luminoso se exprime em lúmens. Os bastonetes transformam um watt de luz a 505 nm em 1.750 lúmens quando a retina está adaptada ao escuro. Os cones transformam um watt de luz a 555 nm em 680 lúmens em ambiente diurno. O olho não apresenta a mesma eficácia para todos os comprimentos de onda. Isto não está ligado ao fato de que um fóton de luz azul tenha mais energia que um fóton de luz vermelha. Adaptada à luz, a retina é mais sensível no amarelo-verde (555 nm). Adaptada à obscuridade, os bastonetes são mais sensíveis que os azul-verde (505 nm). Assim, se determina: (1) 50% dos cones L (long wavelenghth cone) – sensíveis ao vermelho; (2) 40% dos cones M (medium wavelenghth cone) – sensíveis ao verde e (3) 10% dos cones S (short wave- lenghth cone) – sensíveis ao azul. O olho como transformador de energia apresenta dois sistemas: (1) o sistema fotópico que está ligado funcionalmente aos cones. Corresponde à visão de cores e diurna; e (2) o sistema escotópico, que está ligado funcionalmente aos bastonetes. É o suporte para a visão noturna. O olho como receptor de imagens apresenta uma visão central e uma visão periférica. A visão central apresenta uma resolução espacial elevada (percepção de altas frequências espaciais), a acuidade visual e visão cromática. A visão periférica apresenta uma resolução espacial fraca (percepção de baixas frequências espaciais), campo visual e percepção ao movimento (DANTAS, 2011, p. 691). A partir dessa perspectiva, surgem os seguintes questionamentos: Como podemos determinar e classificar se uma pessoa apresenta ou não deficiência visual? Parte das repostas estão num manual do Ministério da Saúde, organizado por Gil (2000, p. 08). A autora esclarece, primeiramente, que os graus de visão abrangem um amplo espectro de possibilidades, desde a cegueira total até a visão perfeita. A autora ainda ressalta que a expressão “deficiência visual” refere-se ao espectro que vai da cegueira até a visão subnormal. Para investigar a sensibilidade visual, as clínicas médicas realizam um teste de acuidade visual para obterem dados referentes ao processo de percepção visual do indivíduo. Conforme Moreira (2013, p. 29), o exame objetiva avaliar não somente a integridade do sistema óptico visual, mas também a via neurológica da visão. 24 Segundo o autor, é necessário que ambos os sistemas funcionem apropriadamente, a fim de que haja uma boa percepção visual. A acuidade visual é utilizada para demonstrar o status da visão central, existindo teoricamente três tipos de medida de acuidade visual: acuidade de detecção, acuidade de resolução e acuidade de identificação. A acuidade de detecção refere-se ao menor estímulo visual provocado por um objeto ou parte de um elemento que pode ser distinguida de um campo uniforme. A acuidade de resolução determina a menor quantidade de detalhe espacial, que possibilita a distinção de um objeto de outro ao seu lado. Em termos práticos, seria a menor distância entre dois objetos que permite à fóvea identificá-los como dois objetos distintos e não somente um. Pode ser testada através de listras claras e escuras alternadas, em que o observador deve relatar a orientação das listras, se verticais ou horizontais. A acuidade de identificação, por sua vez, é representada pelo menor detalhe espacial que possibilita o reconhecimento de um objeto, como, por exemplo, uma letra. É o tipo de medida de acuidade visual que se realiza nos consultórios através das tabelas de optótipos (MOREIRA, 2013, p. 29). Conde (2021), professor do Instituto Benjamin Constant, descreve a pessoa cega e a portadora de baixa visão da seguinte forma: A visão corrigida do melhor dos seus olhos é de 20/200 ou menos, isto é, se ela pode ver a 20 pés (6 metros) o que uma pessoa de visão normal pode ver a 200 pés (60 metros), ou se o diâmetro mais largo do seu campo visual subentende um arco não maior de 20°, ainda que sua acuidade visual nesse estreito campo possa ser superior a 20/200. Esse campo visual restrito é, muitas vezes, chamado “visão em túnel” ou “em ponta de alfinete”, e a essas definições chamam alguns de “cegueira legal” ou “cegueira econômica”. Nesse contexto, caracteriza-se como portador de visão subnormal ou baixa visão aquele que possui acuidade visual de 6/60 e 18/60 (escala métrica) e/ou um campo visual entre 20° e 50° (CONDE [19-2021]). O autor compara a distância visual em pés (metros) e o campo visual (em arco) de uma pessoa com uma visão corrigida por correção padronizada com uso de óculos e/ou lentes ou tratamento cirúrgico, com a distância visual de uma pessoa normal. Porém, algumas pessoas possuem alterações visuais que caracterizam uma visão subnormal, mas não chegam a perder totalmente a visão, apenas havendo um comprometimento da percepção visual. A visão subnormal (ou baixa visão, como preferem alguns especialistas), a alteração da capacidade funcional decorrente de fatores como rebaixamento significativo da acuidade visual, redução importante do campo visual e da sensibilidade aos contrastes e limitação de outras capacidades. Uma definição simples de visão subnormal é a incapacidade de enxergar com clareza suficiente para contar os dedos da mão a uma 25 distância de 3 metros, à luz do dia; em outras palavras, trata-se de uma pessoa que conserva resíduos de visão (GIL, 2000, p. 8). Porém quando o indivíduo não consegue enxergar nem mesmo para distinguir o dia e a noite, ou quando ele não vê vultos, usamos o termo popular cego. Cientificamente, o termo utilizado é amaurose. De acordo com Alves et al. (2013) e com a Sociedade Brasileira de Oftalmologia, a amaurose refere-se à situação em que o indivíduo não percebe a luz, sendo incapaz de ter consciência do processo de percepção pela sensibilidade visual. A pessoa é, então, considerada amaurótica. Os autores ainda reafirmam a posição de Conde (2016), ao considerar que o termo cegueira legal é usado para os casos em que a visão é menor ou igual a 20/200 pés. Conde (2016) comenta ainda que, no jargão oftalmológico, usa-se a expressão “visão zero”. A cegueira apresenta duas origens: pode ser adquirida durante a vida ou pode ser congênita, ou seja, o indivíduo possui a deficiência desde o nascimento. A pessoa vidente que, por algum motivo, perde esse sentido especial continua tendo suas memórias visuais e consegue lembrar-se de algumas imagens, luzes e cores que conheceu. Essas memórias são utilizadas no processo de ensino e de readaptação do indivíduo. Como vimos, a deficiência visual, na maioria das vezes, afeta o desenvolvimento social e cognitivo do indivíduo, já que é o sistema sensitivo de maior relevância para poder interagir com o meio ambiente. Além de afetar o desenvolvimento social e cognitivo, a deficiência visual pode desencadear alterações emocionais, afetar a comunicação, a mobilidade e a orientação espacial. A combinação desses efeitos influencia o funcionamento e o potencial de aprendizagem da pessoa com deficiência visual. Dessa forma, não é coerente debruçar-se apenas em um ou outro aspecto da inclusão, mas trabalhar a pessoa com deficiência visual de forma holística. Deve-se estar atento e focar no desenvolvimento de instrumentos que, além de favorecerem a autonomia do individuo, propiciem-lhe a autonomia. Essa é a perspectiva que motiva a continuidade desse estudo, focando a inclusão social, a saúde e o ensino. Acredita- se que apenas com o equilíbrio entre diagnóstico, reabilitação e estratégias de utilização das técnicas de aprendizado é que se poderá alcançar um nível de assistência em relação à inclusão social como um todo. 26 O impacto da deficiência visual (congênita ou adquirida) sobre o desenvolvimento individual e psicológico varia muito entre os indivíduos. Depende da idade em que ocorre, do grau da deficiência, da dinâmica geral da família, das intervenções que forem tentadas, da personalidade da pessoa – enfim, de uma infinidade de fatores. Além da perda do sentido da visão, a cegueira adquirida acarreta também outras perdas: emocionais; das habilidades básicas (mobilidade, execução das atividades diárias); da atividade profissional; da comunicação; e da personalidade como um todo. Trata-se de uma experiência traumática, que exige acompanhamento terapêutico cuidadoso para a pessoa e para sua família. Quando a deficiência visual acontece na infância, pode trazer prejuízos ao desenvolvimento neuropsicomotor, com repercussões educacionais, emocionais e sociais, que podem perdurar ao longo de toda a vida, se não houver um tratamento adequado, o mais cedo possível (GIL, 2000, p. 10). Ao longo dos estudos sobre inclusão social e na convivência com pessoas com deficiência visual, percebe-se que elas aperfeiçoam os sentidos remanescentes, a fim de suprir a carência que a visão lhes impõe. Em alguns casos, surpreende o nível de autonomia adquirida. Sassaki (1997), ao abordar os conceitos inclusivistas (autonomia, Independência, empowerment, equiparação de oportunidades e inclusão social), esclarece que os termos autonomia e independência têm significados diferentes no movimento de pessoas com deficiências. Segundo o autor, […] autonomia é condição de domínio no ambiente físico e social, preservando ao máximo a privacidade e a dignidade da pessoa que a exerce. Ter maior ou menor autonomia significa que a pessoa com deficiência tem maior ou menor controle nos vários ambientes físicos e sociais que ela queira e/ou necessite frequentar para atingir seus objetivos. Independência é a facilidade de decidir sem depender de outras pessoas, tais como: membros da família, profissionais especializados ou professores. Uma pessoa com deficiência pode ser mais independente ou menos independente em decorrência não só da quantidade e qualidade de informações que lhe estiverem disponíveis para a melhor decisão, mas também da sua autodeterminação e/ou prontidão para tomar decisões numa determinada situação (SASSAKI, 1997, p. 35). Entre os sentidos remanescentes, o que mais se aproxima da visão é o tato. A pessoa com deficiência visual utiliza o tato para realizar parte do reconhecimento do que está ao seu redor. O tato é fisiologicamente representado pelo sistema sensorial somático, ou somatossensorial, que difere dos sistemas sensoriais especiais, como a visão. Segundo Antônio (2012), os receptores sensoriais somestésicos estão distribuídos pelo corpo, isto é, não estão restritos à cabeça. Esses receptores respondem a estímulos de diversas subunidades sensoriais, entre 27 as quais as mais importantes são os sentidos do tato, da propriocepção, da termossensibilidade e da dor. Os receptores sensoriais gerais, que são amplamente distribuídos, estão envolvidos na sensibilidade tátil (uma mistura de tato, pressão, estiramento e vibração), no monitoramento da temperatura e na nocicepção, bem como, no “sentido muscular”, fornecido pelos proprioceptores. Anatomicamente, esses receptores são terminações nervosas não encapsuladas (livres) ou terminações nervosas encapsuladas (MARIEB; HOEHN, 2008, p. 443). Isso explica como o tato é responsável pela obtenção das informações sensitivas relacionadas à forma, à textura, à consistência e à temperatura dos objetos, favorecendo a percepção e a consciência do ambiente em que se encontra. Desse modo, o tato é de extrema importância para o comportamento não só do ser humano como também de outros animais, visto que a investigação tátil fornece uma rica variedade de informações importantes para a sobrevivência. Uma característica interessante de todos os receptores sensoriais é a capacidade de adaptação a um estímulo sensorial após um determinado tempo. Por exemplo, quando a pele é seguidamente estimulada, alguns mecanorreceptores, como os corpúsculos de Meissner e de Pacini, tendem a responder de maneira vigorosa no início, diminuem gradualmente e rapidamente seus disparos e, por fim, cessam os impulsos; esses receptores são denominados receptores de adaptação rápida (RA). Em contraste, receptores como os discos de Merkel (SA1) e os corpúsculos de Ruffini (SA2) são denominados receptores de adaptação lenta, uma vez que continuam enviando os impulsos ao Sistema Nervoso Central enquanto houver estímulo ou, pelo menos, por muitos minutos ou horas. Essa característica de adaptação é relevante para que o deficiente visual mantenha o controle emocional frente aos estímulos oriundos do ambiente (ANTONIO, 2012, p. 108). Quando as superfícies teciduais dos dedos são estimuladas por algum objeto, como, por exemplo, as elevações das impressões em Braille, ocorrem deformações físicas de mecanorreceptores locais que resultam em alterações da permeabilidade da membrana, permitindo maior fluxo de íons para dentro do receptor, promovendo assim o surgimento de potenciais de ação ao longo dos axônios aferentes primários (principalmente pelas fibras do tipo A), em direção ao Sistema Nervoso Central (ANTÔNIO, 2012, p. 106). Ao abordar a percepção, Lima (2006, p. 91) esclarece que a mobilidade requer o funcionamento de processos diferentes, como o perceptivo, o motor, o associativo, o mnésico ou mnemônico (relativo à memória). Segundo o autor, do 28 ponto de vista psicológico, esses elementos são fundamentais para a compreensão do universo interno do sujeito. Para Martins (2000), o processo de leitura configura-se em três níveis básicos: sensorial, emocional e racional. Tais níveis seguem um dinamismo que se relaciona à prioridade do leitor e das condições gerais em que ele está inserido. Eles modulam as emoções, quando adquirimos uma nossa consciência. As pesquisas atuais da neurociência comprovam que o processo de aprendizagem é único e diferente para cada ser humano, e que cada pessoa aprende o que é mais relevante e o que faz sentido para si, o que gera conexões cognitivas e emocionais (MORAN, 2018) Um dos pontos que mais chama a atenção é que as pessoas com deficiência visual total leem e escrevem pelo método tátil, ou seja, a percepção ocorre por meio de receptores sensoriais cutâneos até o nível de consciência somatossensorial, diferente de pessoas sem deficiência visual que adquirem a consciência através do sentido especial, a visão. De um lado, uma percepção de leitura especial; do outro, uma percepção somática. Surge então um questionamento, ainda em aberto para posterior aprofundamento: Como ocorre o processo neurológico de consciência e memória do deficiente visual ao utilizar a leitura através do sentido somático? 2.3 A Percepção Tátil e o Método Braille Nesta seção, o objetivo é apresentar de forma sucinta a origem e o sistema Braille, a fim de estabelecer uma relação entre a percepção tátil e o processo de leitura e de escrita de pessoas com deficiência visual. Com certeza, o sistema Braille é um marco importantíssimo para a educação das pessoas com deficiência visual. A partir da invenção desse sistema de leitura e escrita, seu autor desenvolveu estudos que resultaram, no ano de 1837, na proposta que definiu a estrutura básica do sistema ainda hoje utilizado mundialmente. Comprovadamente, o sistema Braille teve plena aceitação por parte das pessoas cegas, tendo sido registradas algumas tentativas de mudanças que não foram bem-sucedidas, mantendo-se assim a criação original de Luis Braille. Apesar de algumas resistências mais ou menos prolongadas em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, o sistema Braille, 29 por sua eficiência e vasta aplicabilidade, impôs-se definitivamente como melhor meio de leitura e de escrita para as pessoas cegas. O sistema Braille consta do arranjo de seis pontos em relevo, dispostos em duas colunas de três pontos configurando um retângulo de seis milímetros de altura por aproximadamente três milímetros de largura. Os seis pontos formam o que se convencionou chamar de cela Braille. Para facilitar a sua identificação, os pontos são numerados da seguinte forma: do alto para baixo, coluna da esquerda, pontos 1, 2 e 3; do alto para baixo, coluna da direita, pontos 4,5 e 6 (CANEJO, 2005). O sistema Braille contribui para a construção da identidade da pessoa com deficiência visual, sendo essencial para sua independência no dia a dia. Tecnologias assistivas, como computadores, celulares com leitores de tela, canetas com programas de voz, dentre outras, são muito importantes, porém nunca poderão substituir a relevância do sistema Braille na comunicação escrita das pessoas que possuem amaurose. O Sistema Braille recebe esse nome por ter sido criado por Louis Braille. Lima (2006) ressalta que Braille é um exemplo de superação utilizando estratégias de aprendizado. Ao ficar cego na infância, aprendeu a usar a bengala e se locomover sozinho para frequentar a escola, em uma cidade do interior da França. Tentava memorizar tudo o que ouvia durante as aulas. Aos dez anos, foi estudar em uma escola para cegos, utilizando letras em relevo. Aos 18 anos, em 1825, inventou um sistema de leitura e escrita tátil para cegos. Com seu invento, as pessoas cegas passaram a ter possibilidade de se educar normalmente. Ele organizou um método e o apresentou ao diretor da escola, mas não houve interesse na sua aplicação. O sistema Braille consiste de 63 símbolos em relevo para serem explorados de forma tátil. É formado por pontos que variam de um a seis para cada letra. Os seis pontos são dispostos em duas colunas, com três pontos em cada uma, formando um retângulo, ou ‘cela’ de 6 milímetros de altura por 2 de largura. Para facilitar sua identificação, os pontos são numerados. A maior letra tem dois pontos de largura, no sentido horizontal, e três de altura. Além de formar todas as letras do alfabeto, o sistema Braile pode ser utilizado para formar sinais de pontuação, símbolos matemáticos, físicos, químicos e notas musicais (GIL, 2000). A escrita pode ser feita manualmente, com uma reglete e uma punção. Pode ser feita também à máquina manual ou por impressão. Escreve-se da direita para a esquerda, pressionando os pontos desejados. A leitura é feita da esquerda para a direita, com a colocação do papel pelo avesso, de forma que os pontos fiquem em relevo, para serem lidos com os dedos (NUNES, 2007). Ao abordar a alfabetização da criança com deficiência visual no ensino fundamental, Gil (2000, p. 45) chama atenção para o seguinte: 30 O aprendizado da leitura e da escrita em Braille requer um elevado desenvolvimento das habilidades motoras finas, além de flexibilidade nos punhos e agilidade nos dedos. Se possível, a escola deve oferecer treinamento para desenvolver tais habilidades, em situações concretas. Se a escola não dispuser de meios para isso, a família precisará bucar auxílio especializado. Se tiver um aluno cego em sua sala, o professor precisa sempre: Falar em voz alta o que está escrito no quadro negro; Sempre que possível, passar para esse aluno especial a mesma lição dada aos outros, em classe ou para casa; Buscar apoio com o professor especializado (da sala de recursos, de apoio pedagógico ou do ensino itinerante), que ensinará à criança o sistema braille e acompanhará o processo de aprendizagem e de desenvolvimento do raciocínio; a partir do momento em que a criança estiver alfabetizada, orientá-la para que anote todas as tarefas (Gil, 2000, p. 45). Seguindo essa linha de reflexão, pode-se concluir que, em razão da situação de luto causada pela perda do sentido, as possibilidades de motivação e interação com o meio ambiente e o desenvolvimento tátil são fundamentais para que o deficiente visual tenha sucesso na escrita e leitura em Braille. Alguns estudos apresentados durante o Primeiro Simpósio Brasileiro sobre o Sistema Braille apontam que a falta do estímulo precoce dos sentidos remanescentes em crianças com deficiência visual dificulta a compreensão de conceitos fundamentais para o desenvolvimento da vivência sensório-motora, tanto para o aprimoramento da sensibilidade tátil, como para a internalização de conceitos abstratos futuros. Dessa forma, a percepção tátil é um dos principais sentidos remanescentes para o reconhecimento e adaptação do meio. Segundo Araújo (2001), a mão proporciona nossa independência, por possuir a função de preensão e por ser o órgão de sensibilidade tátil mais desenvolvida. A autora relata que o dedo indicador possui mais terminações sensitivas, sendo fundamental para a leitura e escrita em Braille. E complementa que o movimento proporciona a aquisição das percepções táteis para a elaboração de imagens mentais. Ao pesquisar o sistema Braille, foram encontradas informações a respeito do alfabeto e da numeração Braille a partir das celas, dos recursos utilizados para a escrita em Braille (reglete e punção) e da leitura e escrita em Braille. Além disso, na Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Visuais de Caxias do Sul (APADEV), há um arquivo com informações curiosas sobre o processo de leitura em Braille, conforme explicitado a seguir: 31 Um leitor comum de Braille lê duas ou três vezes mais devagar do que o leitor comum de letras impressas – respectivamente, cerca de cem palavras por minuto e duzentos e cinquenta palavras por minuto. Isso, em parte, porque um leitor de Braile não consegue perscrutar à frente como o leitor visual de letras impressas: não existe um tato periférico equivalente à visão periférica. O ritmo de leitura difere, de maneira semelhante, quando são comparadas crianças que leem palavras impressas e crianças que leem Braile (APADEV, [20--]). Ainda, Gil (2000, p. 56) cita algumas pesquisas que comprovam que a leitura tátil é três vezes mais fatigante que a leitura visual. Diante desse contexto, deve-se lançar mão de estratégias de ensino que motivem o estudante a explorar o ambiente e que supram as lacunas de problemas durante o percurso de ensino. Apesar do avanço na área de informática ter proporcionado recursos valiosos para o processo de ensino, muito pouco tem sido feito para aperfeiçoar a utilização dos recursos tecnológicos já existentes, em relação às ferramentas de ensino e de aprendizado. Conforme Alves et al. (2013, p. 505): Desde a criação do Braille em 1825, provavelmente nenhum avanço tecnológico tem tido maior impacto sobre a qualidade de vida das pessoas com deficiência visual, sob todos os aspectos, do que a tecnologia da informática. As adaptações de sistemas de informática para pessoas cegas ou com baixa visão começaram na década de 1970 com o invento do Optacon, aparelho que permitia a cegos sentir dinamicamente na ponta dos dedos uma representação da imagem em relevo, captado por uma pequena câmera que o usuário deslizava sobre textos ou imagens impressas. Esse aparelho, embora difícil de utilizar, dava pela primeira vez às pessoas cegas acesso aos mesmos objetos de leitura que as pessoas videntes acessam com a visão. Ele foi o precursor das outras adaptações desenvolvidas nas décadas seguintes. Para poder realizar o ensino com o objetivo de que as pessoas com necessidades especiais criem oportunidades para alcançar sua autonomia e sua independência, deve-se investir não somente em recursos tecnológicos, mas, sobretudo, intervir de forma ativa no processo social que viabilize a prática e a criação de políticas públicas destinadas ao desenvolvimento e à inclusão social em todos os contextos. Sob essa perspectiva, é importante considerar que o ensino seja o fator modulador que confere o acesso ao mundo cultural e científico para todos. 2.4 Saúde, Escola e Inclusão social 32 Neste tópico, discuto a inter-relação entre o movimento de inclusão social, o processo de ensino e as campanhas de saúde preventivas no ambiente escolar. Vemos que a necessidade de incluir ações que visem à saúde da sociedade no ambiente escolar vai bem mais além de um compartilhamento de informações. Nesse contexto, a escola é um ambiente e um momento propício para realização de atividades inclusivas. Dessa forma, o fortalecimento da rede de ensino em saúde e a interrelação entre os profissionais das demais áreas é fundamental, para que possamos diluir paradigmas e qualificar as atividades em relação ao ensino preventivo durante as campanhas de saúde. Conforme já foi visto, a deficiência era tratada e continua sendo tratada com resquícios de sinônimo de doença. Durante muito tempo, a conduta social era baseada na exclusão. Segundo Sassaki (2010 p.21), “a inclusão social desenvolve seu movimento sob o princípio do reconhecimento da necessidade de se caminhar rumo à ‘escola para todos’, sendo esta o lugar propício para que ocorra a interação entre todos os alunos, respeitando as diferenças e apoiando a aprendizagem”, a fim de que possamos obter as respostas das necessidades individuais. Uma característica da atualidade é a necessidade emergente de capacitação e de especialização de professores no campo da educação, advinda das alterações dos panoramas nacional e mundial, associada às novas possibilidades de conhecimento, resultado da revolução no campo da informática. Essa demanda encontrou ressonância na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em 1990, em Jomtien, Tailândia, e vem se consolidando nas últimas décadas. Nesse movimento, é imperativa a formação de profissionais para área de Educação Especial, tendo a inclusão como horizonte (LIMA, 2006, p. 17). Para que possamos ter a inclusão como um horizonte a ser desvendado, precisamos aceitar e sanar as dificuldades nos campos filosófico e político. Entre essas questãoes, podemos citar: o preconceito, o desrespeito do direito do indivíduo de ser diferente e o desconhecimento do princípio de normalização. Tais aspectos agravam a segregação, não somente das pessoas com deficiência, mas também das faculdades que tentam isoladamente criar recursos para promover o processo de inclusão. Um dos pontos importantes para promoção do processo de inclusão no cenário brasileiro é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), que introduziu, no capítulo V, as bases da Educação Especial, reafirmando 33 a concepção da Constituição Federal de 1988, no que diz respeito ao direito de todos à educação: O artigo 58 da lei n. 9.394/96 presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional define que a educação dos alunos com necessidades especiais deve ser realizada, preferencialmente, na rede regular de ensino. No entanto, até 1997, os documentos oficiais, enviados às escolas pelo MEC, fundamentavam a Educação Especial na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Declaração de Salamanca e, do ponto de vista legal, no artigo 208, inciso III, da Constituição Federal (LIMA 2006, p. 30). A Declaração de Salamanca é citada por Rodrigues (2013). Para o autor, essa Declaração está em consonância com a elaboração e a reformulação de leis e de políticas públicas, que estejam em harmonia com a filosofia de vida independente e inclusiva. A Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade, realizada em Salamanca, Espanha, no período de 7 a 10 de Julho de 1994, foi organizada pelo governo espanhol, em cooperação com a Unesco e reuniu representantes de 92 governos e 25 organizações internacionais, tendo como objetivo a promoção da educação para todos. Nessa conferência, foi aprovada a Declaração de Salamanca, de princípios, política e prática das necessidades educativas especiais, bem como, uma linha de ação para sua operacionalização. A construção desse documento foi inspirada no princípio de integração e no reconhecimento da necessidade de ação para conseguir escolas para todos. Essas escolas devem incluir, portanto, todas as pessoas, reconhecer as diferenças existentes entre elas, promover a sua aprendizagem e atender às necessidades de cada aluno. Estabelece que as escolas inclusivas implantem as políticas públicas e as seguintes ações: garantir que os estudantes aprendam juntos, sempre que possível, independente das dificuldades e das diferenças que apresentem; elaborar estratégias para a utilização de recursos pedagógicos; garantir boa organização escolar; proporcionar bom nível de educação para todos por meio de currículos adaptados; reconhecer e satisfazer as diversas necessidades de seus estudantes, adaptando-se aos vários estilos e ritmos de aprendizagem (RODRIGUES 2013, p. 27). A inclusão, portanto, é um processo político em processo de libertação. Essa questão tem sido enfoque de muitos debates, mas há poucos elementos concretos em relação à influência da inclusão no desenvolvimento da autoidentidade positiva nas Pessoas com Necessidades Especiais (PNE). Para a escola funcionar como uma instituição plural, em conformidade com o projeto Escola para Todos, há necessidade de buscar outras áreas de conhecimento com o intuito de produzir saberes sobre ensino, medicina, psicologia, entre outros. 34 Como já mencionado, em 1988, a Constituição Federal abordou a promoção da inclusão social no art. 3º inciso IV, referindo que é “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988). Essa ideia é complementada no art. 205 do mesmo dispositivo legal, que define que a educação é um direito de todos, garantindo o pleno desenvolvimento da pessoa, além do exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Dessa forma, a carta magna prescreve a “igualdade de condições de acesso e permanência na escola” como um princípio a todos. Em 1991, foi instituído o art. 93 da Lei nº 8.213, também conhecida como a “Lei de Cotas” (Lei das Aspas), a qual garante a reserva de vagas para pessoas com deficiência ou reabilitados da Previdência Social, para empresas com cem ou mais funcionários, numa proporção entre dois a cinco por cento dos postos de trabalho existentes (BRASIL, 1991). Apenas em 1994 temos uma abordagem ética, política e educacional em relação à inclusão social, que se deu por meio da Portaria MEC nº 1.793, que sugere a inclusão, nos currículos esculares, de conteúdos relativos aos aspectos ético, político e educacionais da Normalização e Integração da Pessoa Portadora de Necessidades Especiais (BRASIL, 1994). No mesmo ano, ocorreu na Espanha um importante evento que veio a se tornar um divisor de águas em relação à inclusão social: a Declaração de Salamanca. A referida declaração incentiva o compromisso do Estado em relação à educação para todos, além de reconhecer a necessidade e a urgência da educação para crianças, jovens e adultos com necessidades educacionais especiais dentro do sistema regular de ensino. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Lei nº 9.394, de 1996) trata a Educação Especial no capítulo 5. Essa normativa define a educação especial e assegura o atendimento aos educandos com necessidades especiais, além de estabelecer critérios para caracterizar as instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial para fins de apoio técnico e financeiro pelo Poder Público. Em 1999, foi publicado o Decreto nº 3.298, que regulamentou a Lei n.o 7.853 de 1989, abordando a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (BRASIL, 1999a). Dessa forma, a Educação Especial é então definida como uma modalidade transversal a todos os níveis e modalidades de ensino. Nessa linha, ainda, foi publicada a Resolução CEB N.º 4, que institui as Diretrizes 35 Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico (BRASIL, 1999b). No mesmo ano, na Guatemala, foi instituída a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, cujo tema principal era a não discriminação, tendo como slogan: “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais” (BRASIL, 2001). Essa convenção reforçou a necessidade de todos terem direitos iguais em relação à participação social, educacional e profissional. Dessa forma, esse evento indicou que o Estado terá que não apenas fornecer, mas garantir recursos, metodologias e/ou tratamento, objetivando proporcionar condições adequadas para a inclusão do deficiente em seu amplo espectro. Já a Lei nº 10.098 (Lei da Acessibilidade), de 2000, estabeleceu normas e critérios de acessibilidade para todos os edifícios públicos e privados, mediante a utilização de tecnologias assistivas (BRASIL, 2000). Assim, essa lei instituiu a adequação das barreiras arquitetônicas, transporte e comunicação, permitindo e garantindo acessibilidade a todos. Todavia, ainda nos dias atuais observamos muitas dificuldades e desafios em relação à acessibilidade. Em 2001, o Brasil aprovou o texto da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (BRASIL, 2001). No mesmo ano, foi publicado o parecer CNE/CP 9, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena, objetivando a qualificação dos profissionais para atuarem de forma inclusiva em todos os níveis de ensino (BRASIL, 2001). Nos anos seguintes, houve alguns movimentos relevantes para que ocorresse a inclusão e o acolhimento das pessoas com necessidades especiais na escola regular e também em relação aos recursos disponíveis para os professores. Em 2002, foi publicada a Lei nº 10.436, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais, Libras como meio legal de comunicação e expressão (BRASIL, 2002a). No mesmo ano, a portaria do MEC nº 2.678 aprovou o projeto da grafia Braille (Sistema Braille) para a língua portuguesa, recomendando sua utilização a nível nacional, além de estabelecer diretrizes e normas para sua utilização em todos os níveis de ensino, principalmente no que diz respeito à produção de material didático (BRASIL, 2002b). 36 No ano seguinte, a Portaria 3.284/2003 estabeleceu requisitos referentes à acessibilidade de pessoas portadoras de deficiência, com o objetivo de instruir os processos de autorização e de reconhecimento dos cursos e o credenciamento de instituições de ensino (BRASIL, 2003). Apenas em 2004 ocorreu a redefinição dos conceitos sobre deficiência e a inserção do conceito de mobilidade reduzida sob o Decreto nº 5.296 (BRASIL, 2004), que regulamentou as leis nº 10.048, referente à prioridade de atendimento e 10.098, destinada à promoção de acessibilidade. Em 2004, foi implantado o Programa Universidade para Todos (PROUNI), que objetiva a oferta de bolsas de estudo, integrais e parciais (50%), em instituições particulares de Educação Superior (BRASIL, 2004b). Diferentemente do que é exigido dos demais estudantes, os que têm necessidades especiais não necessitam ter cursado todo Ensino Médio na rede pública ou na rede particular na condição de bolsista integral. No ano seguinte, nasceu o Programa de Acessibilidade no Ensino Superior, com o objetivo de propor e realizar ações para a garantia do acesso pleno das pessoas com necessidades especiais às instituições de Ensino Superior. Além disso, o Programa visa à mobilização frente à criação de Núcleos de Acessibilidade, para que o processo de inclusão dos estudantes com necessidades especiais ocorra de forma integral nas instituições de Ensino Superior. A inserção da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como disciplina curricular é um evento relevante em relação à inclusão no ensino, pois amplia e sensibiliza o ensino e a formação de professores e estudantes. Temos também o início da qualificação dos profissionais responsáveis pelo ensino da Libras através da certificação de professores, instrutores e intérprete. Observamos, dessa forma, um efetivo movimento de inclusão, já que temos um ensino bilíngue como forma de alcançar a inclusão no ensino. Percebemos um movimento dinâmico e a celeridade em relação as políticas que visam à inclusão, principalmente as que se destinam às instituições de ensino. No ano de 2007, o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) teve como principais eixos a Educação Básica, Educação Superior, a Educação Profissional, além da alfabetização e diversidade. Através de uma educação sistêmica, da ordenação territorial e do desenvolvimento, o plano buscava alcançar uma interrelação entre educação, território e desenvolvimento, com objetivos de desenvolver qualidade, equidade e potencialidade, ou seja, a redução de desigualdades relativas às oportunidades educacionais. No mesmo ano, o Decreto 37 6.094, que trata da Implementação do Plano de Metas “Compromisso Todos pela Educação”, evidencia a garantia da acessibilidade e a permanência dos estudantes com necessidades especiais no ensino regular nas escolas públicas. No ano seguinte, em 2008, ocorreu a fundamentação da política nacional educacional através do documento intitulado: Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2020). Seu título faz referência a uma educação especial de caráter nacional sob o prisma da inclusão. Apresenta como objetivo o acesso, a participação e a aprendizagem dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e/ou superdotação nas escolas regulares, garantindo: uma transversalidade da educação especial desde a Educação Infantil até a Educação Superior; o atendimento educacional especializado; a continuidade da escolarização nos níveis mais elevados do ensino; a formação de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a inclusão escolar; a participação da família e da comunidade; a acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários e equipamentos, nos transportes, na comunicação e informação; e a articulação intersetorial na implementação das políticas públicas. Nesse mesmo contexto, o Ministério da Educação institui Diretrizes Operacionais, no ano de 2009, frente ao Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, na modalidade Educação Especial. O Atendimento Educacional Especializado deve ser ofertado no turno inverso ao da escolarização, prioritariamente nas salas de recursos multifuncionais da própria escola ou em outra escola de ensino regular. Em 2010, ocorreu a Conferência Nacional de Educação (CONAE), anteposto por Conferências Municipais e Estaduais. Foi um espaço democrático aberto pelo Poder Público para que todos pudessem participar do desenvolvimento da Educação Nacional, objetivando trazer como tema de debate a educação escolar, desde a Educação Infantil até a Pós-Graduação. O evento teve a participação de aproximadamente quatro mil representantes, inclusive pessoas com deficiência e seus representantes, algo inédito na história das políticas públicas do setor educacional no Brasil. O resultado desse evento foi uma versão atualizada do Plano Nacional de Educação (PNE). O Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Viver sem Limite) foi publicado em 2011, tendo quatro eixos principais: Educação, Inclusão Social, 38 Acessibilidade e Atenção à Saúde. Esse foi o primeiro momento em que a saúde foi incluída na interrelação entre o ensino e o movimento político-social inclusivo. O documento aborda os seguintes temas em relação à saúde: identificação e intervenção precoce de deficiências; diretrizes terapêuticas; centros especializados de reabilitação; transporte para acesso à saúde; oficinas ortopédicas e ampliação da oferta de órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção e atenção odontológica às pessoas com deficiência. Todos os pontos abordados em relação à saúde interferem direta ou indiretamente no processo do ensino inclusivo. Vale destacar que o Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais foi apresentado ao Ministro da Saúde, Alexandre Rocha Santos Padilha, no mesmo ano da publicação desse plano, durante o Prêmio Saúde, promovido pela Revista Saúde, da Editora Abril. O Plano Nacional de Educação (PNE) foi aprovado em 2014, definindo as bases da política educacional brasileira para os próximos dez anos, 2014 a 2024. Os dados para o monitoramento das vinte metas estabelecidos pela PNE pelo decreto da Lei nº 13.005/2014 foram coletados por meio da seleção de um conjunto de indicadores originados de fontes oficiais pelo Ministério da Educação e pelo instituto de Estudos e Pesquisa (INEP). Nesse processo, foram gerados relatórios bienais, sendo que o Primeiro Ciclo de Monitoramento das metas do PNE ocorreu em 2016, e o último foi realizado no ano de 2018. Saliento que não tivemos acesso às informações do último relatório. É relevante informar que, em 2016, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) entrou em vigor, garantindo direitos em praticamente todas as áreas da vida, como trabalho, saúde, educação, infraestrutura. Além disso, essa lei garante o combate ao preconceito e a oferta dos mecanismos de defesa de direitos. 2.5 Ensino e O Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais Na especialidade Saúde Coletiva e Odontologia Preventiva, o principal material de trabalho é a educação e a motivação em saúde bucal. Mas, para que se tenha uma evolução positiva na promoção da saúde, é necessário que o conhecimento se efetive de forma clara e direta, a fim de que ocorra uma construção gradual do conhecimento e de que se pratiquem corretamente atividades de saúde bucal. A maioria das pessoas que apresentam uma condição de higiene oral 39 deficiente não realiza corretamente esse processo, principalmente, devido a alguns fatores como a falta de informações sobre como realizar a higiene oral, algum tipo de incapacidade motora ou a ausência de material adequado para realizar a higiene bucal. Sob essa perspectiva, o objetivo do Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais é dar condições ao Deficiente Visual (DV) de obter informações básicas sobre a cavidade oral, a dieta, a higiene bucal e a prevenção do câncer oral, além de informá-lo a respeito dos materiais de higiene oral, para, dessa forma, dotá-lo de maior autonomia em relação à sua saúde oral, como também motivá-lo a procurar ter e manter uma qualidade de vida melhor. O referido Guia foi idealizado no período em que realizei um trabalho voluntário no Instituto Psicopedagógico de Bonfim (IPPB), que auxilia no processo de inclusão dos estudantes com necessidades especiais na escola regular. Na época, eu auxiliava no ensino extraclasse, nas atividades escolares em Química, Física e Biologia. Isso porque, como citado anteriormente, naquela época, as escolas não estavam aptas para receber os estudantes com deficiência e, portanto, toda ajuda no processo era importante. Durante esse processo, um dos estudantes me perguntou qual seria a melhor escova dental a ser usada. Trata-se de uma pergunta fácil para se responder para um vidente, porém configura-se como um desafio para uma pessoa com amaurose. Foi assim que surgiu a ideia de criar um material informativo sobre saúde bucal em Braille. Porém havia poucos recursos e toda informação teria que ser descritiva, já que não possuíamos tecnologia para impressão de desenhos em relevo. A publicação foi organizada em capítulos. O primeiro capítulo traz à tona o tema da inclusão social e a importância do Guia para as campanhas em saúde coletiva e para o desenvolvimento da autonomia em saúde bucal dos deficientes visuais. Já o segundo capítulo tem como objetivo descrever a boca e as suas estruturas para que o deficiente possa identificar e se familiarizar com tais estruturas que servirão como referência para os capítulos posteriores. O capítulo três, por sua vez, aborda sobre a importância da dieta e a relação que ela apresenta no desenvolvimento de doenças bucais, entre as quais a doença cárie, que ainda é uma das principais doenças infectocontagiosas que assolam a sociedade nacional. O capítulo quatro aborda aspectos relevantes acerca da higiene oral, apresentando e ensinando a como utilizar os recursos disponíveis e técnicas para uma correta 40 higiene bucal. Por fim, o capítulo seguinte refere a prevenção do câncer oral e como podemos realizar o autoexame. Após a publicação do livro no modelo de trabalho de conclusão de curso e dos poucos exemplares impressos, a obra foi distribuída a algumas instituições de ensino no ano de 2007. No período de 2007 até 2011, trabalhei voluntariamente como cirurgião- dentista no IPPB. Após algum tempo, iniciei o desenvolvimento do trabalho intitulado: “Avaliação do Nível da Qualidade em Saúde Bucal após a Implantação do Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais”, com o objetivo de avaliar, através de questionários e de exame clínico, a qualidade do Guia. Os resultados desse trabalho estão inseridos na segunda edição do Guia, sendo apresentados no capítulo seis. Sendo assim, a segunda edição foi finalizada em 2011, contando com 42, conforme Apêndice A. Com o apoio da Fundação Dorina Nowill, essa segunda edição foi adaptada para o Braille e com letras ampliadas para as pessoas com baixa visão, além da insersão de algumas imagens em relevo (APÊNDICE B). Convém informar que o referido Guia é um trabalho sem fins lucrativos. Porém, para que fosse impresso e distribuído, a Fundação Dorina Nowill necessitaou de recursos de patrocinadores e apoiadores dessa causa. Dando seguimento ao trabalho “Avaliação do Nível da Qualidade em Saúde Bucal após a Implantação do Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais”, foi produzido um documento com a seguinte proposta: “Implantação do Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais no Sistema Único de Saúde – SUS e Instituições de Ensino Público”, com o objetivo de propiciar, através do ensino, o processo de prevenção e de educação em saúde bucal com enfoque nos temas abordados nos capítulos apresentados anteriormente, a fim de atingir um nível mínimo de qualidade na saúde bucal não só para deficientes visuais, mas também para todos que tenham acesso ao conteúdo apresentado. Cabe referir que o Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais é um instrumento cujo objetivo é que seja utilizado como recurso para minimizar os efeitos adversos da deficiência visual, facilitando o ensino e a aprendizagem. Por ser um livro adaptado para todos os tipos de deficiência visual, pode ser utilizado em casa, na escola ou na unidade de saúde, servindo como um elo entre a escola, a 41 sociedade e a saúde. Nesse sentido, pode-se observar a construção de uma rede, em que a inclusão é de fato instituído no processo de ensino e aprendizagem. Entre os teóricos, quem mais sintoniza com os estudos realizados até o momento e que pode ser uma referência no processo de ensino centrado na pessoa é Carl Rogers. Esse teórico embasa a filosofia da Política Nacional de Humanização (PNH), que visa atender às demandas subjetivas manifestadas pelos usuários, com base na integridade da assistência (BRASIL, 2004a, 2004b). Também propõe o movimento da mudança dos modelos de atenção, fundados na racionalidade biomédica, ou seja, um atendimento fragmentado, hierarquizado, centrado na doença e no procedimento hospitalar (SANTOS FILHO; BARROS; GOMES, 2009). O processo de humanização na saúde implica ceder lugar tanto à palavra do usuário quanto às palavras dos profissionais da saúde, para que possam fazer parte de uma rede de diálogo que pense e promova ações, campanhas e políticas assistenciais com base na dignidade ética da palavra, do respeito, do reconhecimento mútuo e da solidariedade (OLIVEIRA; COLLET; VIEIRA, 2006). O que coloca a visão de ensino de Rogers em harmonia com essa política é o fato de o teórico abordar o ensino com uma visão centrada no humanismo, que apresenta como base o processo de aprender a aprender e a liberdade para aprender. O ensino centrado no aluno e no crescimento pessoal estaá em sintonia com as políticas públicas mencionadas anteriormente, tendo como princípio a autonomia, a liberdade e a atenção ao tratamento holístico da pessoa com necessidades especiais (MOREIRA, 2017). O conceito de processo de ensino de Rogers se fundamenta, em vista de sua experiência como psicólogo, uma terapia “centrada no cliente”. Esse conceito está de acordo com o da proposta de humanização do SUS, que tem como objetivo fomentar a autonomia e o protagonismo dos sujeitos e aumentar o grau de corresponsabilidade na produção de saúde. Rogers pondera que prefere o termo “cliente” em vez de paciente, porque o primeiro enfatiza a participação ativa, voluntária e responsável do indivíduo nas relações terapêuticas, o que está em sintonia com a Política Nacional de Humanização, pois seus valores estão centrados na autonomia, no protagonismo dos sujeitos, na corresponsabilidade e nos vínculos solidários. Rogers também destaca a igualdade entre o terapeuta e a pessoa que procura ajuda, evitando, assim, a impressão de que o indivíduo está 42 doente. Trata-se de um ponto relevante no processo de inclusão e de promoção da saúde (CALDAS; MACHIAVELLI, 2013). Rogers acredita que as pessoas possuem a capacidade de descobrir o que as torna infelizes e de prover mudanças na vida. Para o autor, o terapeuta deve ser capaz de ajudar o indivíduo a mobilizar suas tendências intrínsecas em direção à compreensão de si mesmo e do crescimento pessoal. Esse processo de autoavaliação e de autonomia está em sintonia com o objetivo do presente trabalho, ao se utilizar o livro Guia de Saúde Oral para Deficientes Visuais como um instrumento de ensino. A proposta é propiciar, através da metodologia ativa de ensino, a autonomia da pessoa com necessidades especiais, garantindo-lhe a promoção da saúde e da qualidade de vida (MOREIRA, 2017). Além disso, segundo Moreira (2017), a teoria de Rogers favorece o processo de inclusão social, pois, para o autor, o homem, sob condições favoráveis, não ameaçadoras, procura desenvolver suas potencialidades ao máximo (MOREIRA, 2017). Ou seja, a pessoa com necessidades especiais que esteja num ambiente escolar que propicie um ensino em que ela esteja inserida no processo de educação, poderá utilizar o potencial dos seus sentidos remanescentes para que atinja o desenvolvimento que garanta sua autonomia. Para desenvolver uma proposta de ensino utilizando o Guia como uma ferramenta de ensino, devemos estar atentos para o fato de que a psicologia rogeriana é humanística e fenomenológica, ou seja, para compreender o comportamento de um indivíduo é importante entender como ele percebe a realidade, o que justifica a inserção, no presente estudo, dos tópicos sobre percepção e consciência da pessoa com deficiência visual. Ainda, segundo Rogers, o campo perceptual de um indivíduo é sua “realidade”; cada indivíduo existe em um mundo de experiência continuamente mutável, no qual ele é o centro (MILHOLLAN, FORISHA, 1978, p. 148). Essa percepção de Rogers está em consonância com a metodologia de ensino proposta por Moran (2015), a qual pressupõe uma esfera que envolve não somente a escola, mas a sociedade, pois tem como referência problemas e situações reais que podem ser utilizadas no processo de ensino. De acordo com a perspectiva de Rogers, no processo de ensino, o professor não tem respostas certas para questionamentos como: O que o professor deve ensinar? Para ele, o ensino deve estar voltado para a facilitação da mudança e da aprendizagem, o que se justifica com o comportamento mutável da sociedade atual. 43 Não se deve permitir que o processo de ensino fique obsoleto. Assim, devemos estar atentos às adaptações do homem e à busca de segurança que seu conhecimento lhe proporciona. 2.6 Estado da Arte Com o objetivo de identificar trabalhos referentes aos campos de ensino, inclusão social e saúde, foi consultado o banco de dados da CAPES, denominado Catálogo de Teses e Dissertações. Para esse levantamento, foi utilizada a busca básica e a busca avançada com diferentes palavras-chaves. Nesse sentido, a busca partiu das palavras-chave “ensino”, “inclusão social”, “deficiência visual”, “odontologia preventiva”, “odontologia social e preventiva”, com a inserção dos seguintes filtros: - Tipo: Mestrado (dissertação); - Ano: 2014 a 2018; - Autor, orientador e banca: sem aplicação de filtro; - Grande área de conhecimento: Ciências Humanas, Ciências Saúde e Multidisciplinar; - Área de conhecimento: Ensino; - Área de avaliação: Ensino; - Área de Concentração: Ensino, Ensino de Ciências, Ensino de Ciências da Saúde, Ensino em Saúde, Ensino na Saúde, Ensino na Saúde e suas Interfaces com o SUS, e Ensino na Saúde no Contexto do Sistema Único de Saúde); - Nome do Programa: Ensino; - Instituição e Biblioteca: sem aplicação de filtro. Primeiramente, utilizei apenas duas palavras-chave: “ensino” e “deficiência visual”. Dentre os trabalhos, foram selecionados os que possuíam maior aproximação com o tema proposto, conforme apresentado no Quadro 1: 44 Quadro 1 - Resultado da pesquisa realizada no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes Trabalho Ano Autor A deficiência visual e o mundo microscópico: modelos didáticos - uma metodologia alternativa 2018 MICHELOTTI, Angela Um olhar sobre o ensino de Ciências e Biologia para alunos deficientes visuais 2018 O