CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM ENSINO EXPERIÊNCIAS VISUAIS DE SUJEITOS SURDOS: ENCONTROS COM A FOTOGRAFIA Aline Rodrigues Lajeado, junho de 2015 Aline Rodrigues EXPERIÊNCIAS VISUAIS DE SUJEITOS SURDOS: ENCONTROS COM A FOTOGRAFIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Ensino do Centro Universitário Univates, como parte da exigência para a obtenção do grau de Mestre em Ensino na linha de pesquisa Ciência, Sociedade e Ensino. Orientadora: Profa. Dra. Angélica Vier Munhoz Coorientadora: Profa. Dra. Morgana Domênica Hattge Lajeado, junho de 2015 Ficha catalográfica elaborada por Maristela Hilgemann Mendel – CRB-10/1459 R696d Rodrigues, Aline Experiências visuais de sujeitos surdos: encontros com a fotografia / Aline Rodrigues. Lajeado, 2015. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ensino) – Centro Universitário Univates, Programa de Pós-graduação Stricto Sensu, 2015. Orientação: Dra. Angélica Vier Munhoz Coorientação: Dra. Morgana Domênica Hattge 1. Educação – Surdez – Filosofia. 2. Sujeito surdo – Experiências visuais. Fotografia I.Título CDU:376.353:1 Aline Rodrigues EXPERIÊNCIAS VISUAIS DE SUJEITOS SURDOS: ENCONTROS COM A FOTOGRAFIA A Banca Examinadora abaixo aprova a Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino, como parte da exigência para obtenção do grau de Mestre em Ensino, na linha de pesquisa Ciência, Sociedade e Ensino. ______________________________________________________________ Profa. Dra. Angélica Vier Munhoz – Orientadora ______________________________________________________________ Profa. Dra. Morgana Domênica Hattge – Coorientadora ______________________________________________________________ Profa. Dra. Betina Silva Guedes – UNISINOS ______________________________________________________________ Prof. Dr. Cristiano Bedin da Costa – Centro Universitário UNIVATES ______________________________________________________________ Profa. Dra. Suzana Schwertner – Centro Universitário UNIVATES/PPGEnsino Lajeado, 15 de junho de 2015 AGRADECIMENTOS Inicialmente, agradeço à professora Angélica Vier Munhoz, que, sem medir esforços e horários, respondia meus e-mails e minhas dúvidas e corrigia minhas escritas sempre com palavras de estímulo, incentivando-me a caminhar. Agradeço também à professora Morgana Domênica Hattge, minha coorientadora, que, em meio a todas as exigências que uma coordenação do curso de Pedagogia demanda, sempre leu com carinho meus escritos, fazendo as devidas correções e observações. Da mesma forma, agradeço aos mestres com quem convivi durante este curso de Mestrado, por movimentarem meu pensamento e ajudarem-me a fazer escolhas. Um agradecimento especial ao professor Cristiano Bedin da Costa, que, nos encontros em aulas e em grupos de estudos, me apresentou o apaixonante Barthes. Falando em mestres, não posso me esquecer de agradecer ao professor Luciano Bedin da Costa, que sempre me encanta pela escrita poética e pelo charme intelectual que carrega consigo. Agradeço também, com carinho, aos funcionários da Secretaria do Pós da UNIVATES, que sempre estiveram dispostos a ajudar a sanar as minhas dúvidas. Obrigada à CAPES por financiar esta pesquisa por meio da bolsa PROSUP/TAXA. Agradeço aos meus parceiros mestrandos que comigo dividiram angústias, alegrias e apresentações em eventos, os de longe e os aqui de perto, em especial à Cris, com quem sempre dei boas risadas, e à Cláudia, com quem estabeleci uma especial parceria. Obrigada também à Ana e à Fran, com quem experimentei um lugar novo, um país diferente, trilhos pelos quais jamais pensei que passaria, lugares encantados que, juntas, exploramos. Pois é, meninas, como ouvimos um dia, “La conparsa final” chegou. Por falar em colegas e amigas, agradeço à Adri e à Goia, com quem também dividi minhas angústias e dificuldades e de quem sempre recebi palavras de apoio. Obrigada aos colegas do grupo de pesquisa Currículo, Espaço, Movimento (CEM/CNPq/Univates) e do projeto de extensão Formação Pedagógica e Pensamento Nômade, dos quais participei neste período de Mestrado. Agradeço aos bolsistas, pesquisadores e, em especial, às professoras Fabi e Cláudia, com quem compartilhei escritas e comemorei quando estas foram publicadas. Agradeço à família. À minha irmã e a meus pais, pelos puxões de orelhas; ao meu noivo, agradeço pela confiança que sempre depositou em mim e pela paciência que sempre teve, a cada vez que eu sentava no sofá para tomar chimarrão com o computador no colo, escrevendo ou estudando para a dissertação, muitas vezes com o pensamento longe das conversas que permeavam nosso espaço. Também um agradecimento especial aos caminhantes que comigo trilharam pelas estradas nebulosas desta dissertação. Enfim, obrigada a todos que, de uma maneira ou de outra, contribuíram para que esta dissertação pudesse ser concluída. RESUMO Um clique. Uma luz. Um registro. Um afecto. A fotografia a partir das experiências visuais. O que registrar surge do inesperado. Uma caminhada por instantes. Diante do sol, da chuva, do dia, da noite: uma vida. Caminhadas carto(foto)grafadas, buscando dar passagem ao que captura, na leveza dos acontecimentos, sob tentativas de desviar o tempo. Experiência que se faz e desfaz, entre meu corpo, sujeitos surdos, uma máquina fotográfica e movimentos. Nessa medida, o propósito desta pesquisa foi articular uma relação entre o caminhar como prática permeada por afectos e um olhar para as singularidades de sujeitos surdos, em meio a teorizações de filósofos da diferença, entre eles, Gilles Deleuze e Roland Barthes. Nesse trajeto, alguns rastros foram traçados, percebendo-se que um sujeito surdo pode ser pensado pela sua imprevisibilidade. O que o toca, toca-o de maneira singular, na potência da sua diferença, como um gesto criador de Caminhando, obra de Lygia Clark (1964). Às vezes, um sujeito inacabado, em movimento de constante recusa à fixação. Em muitas outras, apenas um sujeito capturado por linhas estratificadas. Ao finalizar a pesquisa, percebe-se que a entrega do sujeito é sempre algo difícil, de modo que, ao rastrear definições e representações, fixa-se mais na objetividade e brevidade. Palavras-chave: Sujeito surdo. Experiência visual. Fotografia. ABSTRACT A click. A light. A record. Affectio. Photography regarded from visual experiences. The unexpected determines what must be recorded. Walking for a while. Before the sun, the rain, the day, the night: a life. Carto(photo)graphed walking, trying to give way to what captures in the lightness of the events, in attempts to deviate time. Experience that does and undoes between my body, deaf subjects, a camera and movements. The purpose of this research is to articulate a relationship between walking as a practice permeated with affectios and a look at the singularities of deaf subjects amidst theorizations by philosophers of difference, such as Gilles Deleuze and Roland Barthes. Along this way, some trails have been traced, and deaf subjects can be thought from their unpredictability. That which touches them, does it in a singular way, in the potency of their difference, as a creating gesture in Walking, by Lygia Clark (1964). Sometimes, an unfinished subject in a movement of constant refusal to fixation. In many other times, just a subject captured by stratified lines. By concluding the research, it is possible to perceive that subject surrender is always something difficult; by tracking definitions and representations, it is more fixed on objectivity and brevity. Keywords: Deaf subject. Visual experience. Photography. LISTA DE IMAGENS Imagem 1 - A palavra sujeito em LIBRAS ................................................................. 14 Imagem 2 - Caminhando ........................................................................................... 44 Imagem 3 - O instante ............................................................................................... 48 Imagem 4 - A fisgada ................................................................................................. 49 Imagem 5 - Fotografia produzida pela caminhante A ................................................ 53 Imagem 6 - Fotografia produzida pela caminhante A ................................................ 54 Imagem 7 - Fotografia produzida pela caminhante A ................................................ 54 Imagem 8 - Fotografia produzida pela caminhante B ................................................ 56 Imagem 9 - Fotografia produzida pela caminhante B ................................................ 56 Imagem 10 - Fotografia produzida pela caminhante B .............................................. 57 Imagem 11 - Fotografia produzida pela caminhante C .............................................. 59 Imagem 12 - Fotografia produzida pela caminhante C .............................................. 60 Imagem 13 - Fotografia produzida pela caminhante C .............................................. 61 Imagem 14 - Fotografia produzida pela caminhante C .............................................. 62 Imagem 15 - Fotografia produzida pela caminhante C .............................................. 63 Imagem 16 - Fotografias produzidas pela pesquisadora ........................................... 64 Imagem 17 - Fotografias produzidas pela caminhante C .......................................... 64 Imagem 18 - Fotografias produzidas pela caminhante C .......................................... 65 Imagem 19 - Fotografia produzida pela caminhante C .............................................. 66 Imagem 20 - Emaranhado ......................................................................................... 66 Imagem 21 - A dança diante dos olhos ..................................................................... 79 Imagem 22 - O banco ................................................................................................ 81 Imagem 23 - Linhas de vida ...................................................................................... 82 SUMÁRIO 1 APROXIMAÇÕES COM A TEMÁTICA, EXPERIÊNCIAS E CAMINHOS PERCORRIDOS: BREVES AFECÇÕES .................................................................. 10 2 TRILHOS JÁ DELINEADOS HISTORICAMENTE: AS REPRESENTAÇÕES DA SURDEZ.................................................................................................................... 14 2.1 Passos históricos, sociais e culturais da surdez ........................................... 14 2.2 Percalços da caminhada ................................................................................... 27 3 DOS SUJEITOS SURDOS ..................................................................................... 32 3.1 Sujeitos surdos atravessados pela experiência visual .................................. 32 4 TRAJETOS ERRANTES... ..................................................................................... 41 4.1 Atravessamentos metodológicos .................................................................... 43 5 INTENSIDADES ..................................................................................................... 52 6 ALGUMAS COSTURAS POSSÍVEIS .................................................................... 68 7 DOS DESENCONTROS, DAS ENCRUZILHADAS ............................................... 73 8 DEVANEIOS FINAIS .............................................................................................. 79 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 83 APÊNDICE ................................................................................................................ 91 APÊNDICE A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............................. 92 10 1 APROXIMAÇÕES COM A TEMÁTICA, EXPERIÊNCIAS E CAMINHOS PERCORRIDOS: BREVES AFECÇÕES Escrever. Ah, a escrita. Lugares. Onde poderia sentar? Onde me concentrava mais? O que me tirava a concentração? Escrever no balanço, no banho? Em quais horários? As ideias fluíam à noite, à tarde? Existia um lugar correto? Assim se deu a escrita, em meio a desanimadas e levantadas de cabeça – levantar a cabeça, no sentido apontado por Barthes (2012), como um movimento que produz fluxos de ideias, excitações, associações entre acontecimentos experienciados ou enquanto cortes do texto e retornos a ele com ideias nutridas. Interrogava a escrita, buscando conexões no "texto que escrevemos em nossa cabeça quando a levantamos" (BARTHES, 2012, p. 27). Estes movimentos pulsavam, dispersavam, disseminavam meu pensamento, que levava a "outras ideias, outras imagens, outras significações" (Ibidem, p. 28). Sentar e/para escrever. O quê? Sobre o quê? Infância, escola, alunos? Não, estes temas já fizeram parte das trajetórias do curso Normal e da graduação de Pedagogia. Outros desejos, outros ares. Em busca de ampliação de conhecimentos e permissão de novas experiências. Muitas possibilidades, uma escolha: surdos. Convivendo com alguns sujeitos surdos no Centro Universitário Univates há quatro anos, perguntas e dúvidas sobre eles foram surgindo. A multiplicidade dos sujeitos surdos com quem entrava em contato na instituição instigava-me a pensar suas relações com o mundo. Entendo essa multiplicidade não como um sinônimo de organismo, mas de potência, força que 11 permeia a vida. Nos encontros anteriores a esta pesquisa, discordava da imagem que alguns colegas estudantes demonstravam ter em relação aos surdos e do olhar que alguns professores lançavam sobre eles. Certos professores, por vezes, pareciam referir-se aos surdos como sujeitos sem singularidades, sob a ótica da normalização, enquadrando-os como seres anormais, sem possibilidades, incapazes de aprender. Ressalto que alguns poucos docentes, nos encontros, proporcionavam aos surdos momentos para que estes manifestassem suas singularidades, o que lhes proporcionava satisfação por poderem externar suas potencialidades. Pensava nas forças a que esses sujeitos eram submetidos e como algumas mudanças que ocorriam em suas vidas eram singulares e, ao mesmo tempo, controladas. Escolhi escrever sobre sujeitos que nem sempre são olhados, nem sempre são ouvidos, melhor dizendo, sujeitos que são percebidos, em grande parte das vezes, enquanto uma identidade. Tema escolhido. A escrita, desafiadora. E, então, o que fazer neste momento? Comecei a mapear leituras em alguns bancos de dados a respeito da temática. Busquei Lume e Scielo, entre outros. Ao pesquisar sobre surdos em referenciais acadêmicos, encontrei estudos voltados para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e intérpretes. Uma intenção – pista – desejo: sair do já dito. Inicialmente, pensei em estudar a escrita do surdo. Escolha feita, orientações marcadas, leituras sugeridas e questionamentos surgindo: desejo possibilidades para enquadrar e normalizar os sujeitos ou potencializar as singularidades? A segunda opção. Algumas poucas leituras se fechando, e muitas se abrindo. O que escolher neste momento? Mais e mais possibilidades abriam-se; a cada encontro, aproximava-me mais dos filósofos da diferença, entre eles, Deleuze, Guattari e Barthes. Outras tessituras que cruzam a vida, o quanto cada signo ressoa em nós – sujeitos, rizomas, ligações, tramas, e não cópias ou moldes. Um clique: sujeito surdo + experiências visuais. Novas buscas nos sites “científicos”. Poucas pesquisas sobre esta temática foram localizadas1, o que me levou a questionar e me 1 Da busca realizada, as pesquisas encontradas sobre a temática foram: A experiência visual e a arte produzindo subjetividades surdas (BATAGLIN, 2012); Letramento visual com professores surdos (LEBEDEFF, 2010); Experiência visual como elemento facilitador na educação em ciências para alunos surdos (PINTO et al., 2011) e Educação física e surdez: a experiência visual nas práticas corporais escolares (ZIBENBERG, 2008). 12 desafiar a pensar sujeitos que experienciam a vida visualmente. O intuito não era buscar respostas, mas o desejo de saber mais a respeito. O interesse em refletir sobre questões relacionadas à vida tem incessantemente me acompanhado, levando-me, neste momento, a aproximar-me de estudos acerca dos surdos. O encontro com sujeitos surdos ampliou meus conhecimentos, e aprendi uma forma de comunicação por meio da LIBRAS. Os contatos mantidos com os surdos transformaram-se em encontros potentes, já que sempre procurei sair do lugar e das ideias historicamente construídas, criando outros movimentos. Inserida nesse contexto e aberta ao fluxo do pensamento, e não ao seu congelamento, aproximei-me das teorias de Gilles Deleuze e Roland Barthes sobre conceitos que se cruzam com a vida, relacionando- os às experiências vivenciadas junto a um grupo de surdos. Parecia que algumas pistas estavam sendo traçadas. Leituras continuavam sendo feitas, e cada conceito que surgia parecia cruzar com a escrita que estava fazendo. Resultado: excesso de conceitos. Banca de qualificação. Eleição, escolhas, diminuição dos conceitos a serem explorados e aprofundados na dissertação. Caminhos abrindo-se, sugestões de leituras de colegas, professores, amigas e da banca de qualificação, ligações, aproximações e inquietudes. Como um sujeito surdo é afectado por outras vias que não a representação? Essa questão logo me intrigou, e passei a entendê-la como problema de pesquisa, que se desdobrou no objetivo: compreender os modos pelos quais alguns sujeitos surdos se singularizam e como potencializam sua vida. De forma mais específica, outro objetivo foi criado: carto(foto)grafar os afectos produzidos pelos sujeitos surdos em encontros com a fotografia. Palavras como brechas e escapes aguçavam os sentidos. Diferentemente de uma sociedade que nos obriga a viver de acordo com determinadas regras, pensei em linhas de fuga2 que possibilitam abrir caminhos às singularidades de cada sujeito, não os aprisionando, mas abrindo espaços para suas singularidades, para 2 Deleuze e Guattari (1996) referem-se às linhas de fuga como um rompimento de raízes, pensando em novas conexões. Nas palavras do filósofo, “quanto às linhas de fuga, estas não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes em fazê-lo fugir...” (DELEUZE GUATTARI, 1996, p. 72). 13 mostrar suas afecções. Sobre afectos, Deleuze (2006) afirma que se trata de algo pluralista, uma vez que cada sujeito é afectado de forma diferente, percebendo a vida de maneira singular. Nesse sentido, Cada sujeito exprime o mundo de um certo ponto de vista. Mas o ponto de vista é a própria diferença, a diferença interna e absoluta. Cada sujeito exprime, pois, um mundo absolutamente diferente e, sem dúvida, o mundo expresso não existe fora do sujeito que o exprime (DELEUZE, 2006, p. 40). Esta dissertação compõe-se de um primeiro capítulo, que aborda as representações do sujeito surdo, trazendo alguns trilhos delineados historicamente. No segundo capítulo, busca-se pensar os sujeitos surdos e seus atravessamentos visuais. No terceiro capítulo, o objetivo é tecer uma aproximação de sujeitos surdos com a carto(foto)grafia enquanto método escolhido, operando com a fotografia como experiência do olhar, experiência visual. No capítulo quarto, são tramadas algumas intensidades em torno da pesquisa, seus encontros e seus fluxos. Já no capítulo que o sucede, algumas costuras são realizadas, mostrando as experiências dos encontros com os sujeitos surdos - caminhantes. Ao final, apresenta-se um capítulo sobre os desencontros, os descaminhos e as encruzilhadas encontradas no decorrer da produção da dissertação. 14 2 TRILHOS JÁ DELINEADOS HISTORICAMENTE: AS REPRESENTAÇÕES DA SURDEZ Imagem 1 – A palavra sujeito em LIBRAS Fonte: Montagem realizada pela autora a partir de arquivo pessoal. Neste capítulo, busco um resgate histórico, social e cultural do que marcou a surdez, entre discursos médicos, sociais e educacionais. Algumas representações culturais tecem a história dos surdos e são aqui mapeadas, problematizando-se os discursos que produzem as identidades dos surdos. A intenção não é somente apresentar estes discursos, mas mostrar os tensionamentos que eles vão produzindo. 2.1 Passos históricos, sociais e culturais da surdez Percebemos que, até o século XVI, o surdo era classificado e identificado como marginalizado e anormal, geralmente sendo preso e escondido em casa pela família, que se envergonhava de mostrar para a sociedade que havia uma pessoa surda em seu meio. Nesse período, o surdo era denominado e visto apenas como 15 deficiente auditivo. Os surdos eram considerados pelas famílias como um castigo de Deus e, para a sociedade, eram improdutivos, por isso, inúteis. Thoma (2006, p.11) afirma que “[...] os filhos defeituosos de tais famílias eram retirados da visão pública pela vergonha que causavam, pois eram considerados resultados das depravações ou pecados cometidos por seus pais”. Nas sociedades antigas, os surdos eram castigados devido à sua condição de não-ouvintes e não-falantes. Essa condição colocava-os no lugar de não-normais ou não-perfeitos. Sobre esta prática, Lunardi (2004, p. 23) diz que “tanto loucos, doentes mentais, criminosos e populações marginais quanto qualquer outro ‘anormal’ deveriam ser isolados [...]”. No século XVI, ou no período moderno, na Espanha, surgem os primeiros educadores de surdos. O monge Pedro Ponce de Leão (1520-1548) inicia a educação dos surdos com uso da língua de sinais e do alfabeto manual, além de fundar uma escola de professores surdos. Nas palavras de Thoma (2006, p. 11), “[...] D. Pedro Ponce de Leão, na Espanha, inicia um trabalho voltado a desenvolver a fala (oral) nos então denominados surdos-mudos”. Ainda de acordo com Thoma (2006), com estas iniciativas do monge, os trabalhos foram ganhando força, tanto que o século XVIII ficou marcado como o período mais fértil da educação de surdos, devido ao aumento do número de escolas e do ensino da língua de sinais. Estas práticas sobre a língua foram se disseminando também na Inglaterra, Portugal e França, tendo como destaque, em 1750, o abade francês Michel de L’Epée, que criou os Sinais Metódicos. O método criado por ele foi uma combinação da língua de sinais com gramática sinalizada francesa, além de definir a mímica como linguagem materna e concluir que os gestos são os meios de comunicação dos surdos. Este educador transformou sua casa em escola pública e acreditava que todos os surdos deveriam ter acesso à educação. Pode-se perceber aqui um discurso de salvação religiosa, com um caráter de caridade. Segundo Lopes (2007, p. 45), O método de L’Epée consistia em ensinar sinais que correspondiam a objetos específicos e mostrar desenhos quando queria que os surdos compreendessem algumas ações, depois procurando associar o sinal com a palavra escrita em francês. Quando não havia um sinal para expressões abstratas, L’Epée buscava diretamente na visibilidade da escrita uma explicação. Diferentemente da compreensão da língua de sinais 16 estabelecida e utilizada pelos surdos quando estão próximos de outros surdos, os métodos do abade encerravam a operacionalização da aprendizagem. De acordo com Thoma (2006), L'Epée iniciou o trabalho de instrução formal com duas surdas, a partir da língua de sinais falada nas ruas de Paris. Sua instrução foi baseada na datilologia/alfabeto manual e sinais criados, obtendo grande êxito, de modo que, a partir dessa época, a metodologia por ele desenvolvida se tornou conhecida e respeitada, assumida pelo então Instituto de Surdos e Mudos (atual Instituto Nacional de Jovens Surdos), em Paris, como o caminho correto para a educação dos seus alunos. Thoma (2006, p. 11) mostra-nos que [...] L’Epée, na França, inicia a instrução formal de duas crianças surdas, com grande êxito. Em 1760, transforma sua casa na primeira escola pública para surdos (Instituto de Surdos e Mudos, em Paris), utilizando uma abordagem denominada “gestualista”. No mesmo século, a Alemanha e os Estados Unidos realizavam seus estudos, e, em 1754, o alemão Samuel Heinick trabalhou a filosofia oralista. Em 1815, Thomas Hopkins Gallaudet e Laurent Clerc adaptam os estudos da língua de sinais francesa para o inglês, sendo então fundada a primeira universidade para surdos nos Estados Unidos em 1864. Neste período, houve uma elevação no grau de escolarização dos surdos, que podiam aprender com facilidade as disciplinas ministradas em língua de sinais. Porém, o oralismo passa a ter força, e surgem oposições à língua de sinais. No ano de 1880, em Milão, na Itália, ocorreu o 1º Congresso Mundial dos Surdos, que passou a considerar que o uso simultâneo da fala e dos gestos mímicos tinha a desvantagem de impedir o desenvolvimento da fala da leitura labial e da precisão das ideias. É declarado, então, que o método oral puro deveria ser preferido de forma definitiva e oficial. Dos 164 representantes presentes, apenas cinco dos Estados Unidos não votaram em favor do oralismo. Assim, a língua de sinais foi proibida, o que provocou tensões na educação de surdos. Sobre as tentativas de fazer as pessoas surdas falarem, Lopes (2004, p. 41) diz que [...] sempre diferentes dos outros e de si mesmas, nessa lógica ouvintista e normalizadora, as pessoas surdas deviam, para poder estar incluídas, aprender a falar, pois estariam mais próximas de um lugar de normalidade tido e inventado como sendo o referente. Neste momento da história, a cultura surda foi vista como reduzida a déficits 17 sensoriais, que deveriam ser corrigidos mediante o treino da fala, sendo ela indispensável quando se trata de aceitação social. Assim, a surdez é vista como uma patologia e por isso precisa de tratamento médico. Neste contexto, surgem as pedagogias corretivas, e na escola os surdos deveriam sentar sobre as mãos para que não tivessem nenhuma possibilidade de usar os sinais. Apesar de tal mudança, os códigos de sinais não chegaram a ser eliminados, mas simplesmente foram conduzidos à marginalização. O atendimento aos surdos ficou voltado à filantropia e ao assistencialismo: os indivíduos eram entregues pelas famílias às instituições e aos asilos, em regime de internato. Existiram tentativas de resgate dos surdos do anonimato durante o século XX, contudo, o ouvintismo cada vez mais ganhava força e legitimidade pelos discursos científicos, sobretudo pela visão clínica, que, de modo geral, encarava a surdez como uma doença. Sobre esta visão, Gesser (2009, p. 67) afirma que “o discurso médico tem muito mais força e prestígio do que o discurso da diversidade [...]”. Nos Estados Unidos, Gallaudet, influenciado por L’Epée, nunca aceitou a imposição do Congresso de Milão e não concordou com a mudança para uma metodologia oral; por isso, em 1960, é implantada a filosofia da Comunicação Total naquele país. William Stokoe prova que a linguagem gestual, de natureza visual- espacial, tem estrutura e aspectos próprios, como qualquer língua. A partir destes estudos, começou a modificar-se a visão dos surdos pela sociedade e surgiram diversas pesquisas sobre a língua de sinais e sua aplicação na educação e na vida do surdo. As décadas de 1980 e 1990 marcaram o desenvolvimento da filosofia bilíngue, que, a partir de então, se popularizou pelo mundo. De acordo com Klein (2004, p. 90), falar de bilinguismo é um “reconhecimento do direito das crianças que usam uma língua diferente da língua majoritária de receber a educação na sua língua”. No Brasil, percebemos a convivência, mesmo que conflituosa, das três principais abordagens pedagógicas: Oralismo3, Comunicação Total4 e Bilinguismo5. A 3 Contrário à língua de sinais, o oralismo acreditava que a língua oral era a única forma possível de comunicação. 4 A Comunicação Total foi desenvolvida em meados de 1960, após o fracasso do oralismo puro para muitos sujeitos surdos, que não tiveram o sucesso esperado na leitura de lábios e emissão de 18 educação surda iniciou no Brasil durante o Segundo Império, quando Dom Pedro II trouxe o professor surdo francês Eduard Huet para ser diretor do Instituto Nacional de Surdos-Mudos (atual Instituto Nacional de Educação dos Surdos – INES), fundado em 1857 no Rio de Janeiro. Segundo Thoma (2006, p. 12), A educação dos surdos no Brasil foi fortemente influenciada por um professor surdo francês que veio ao país em 1857 a convite de D. Pedro II. Eduard Huet cria, nesse mesmo ano, o Instituto Nacional dos Surdos-Mudos (INSM) e começa suas atividades em uma sala do Colégio Wassiman (centro da cidade do Rio de Janeiro), atendendo duas crianças surdas. O atendimento desse Instituto priorizou a educação oralista durante um longo período por acreditar que era inútil tentar ensinar os surdos a escrever, já que o analfabetismo era condição da maioria da população brasileira. Por isso, a fala era o único modo pelo qual os surdos poderiam integrar-se na sociedade e no mercado de trabalho. Em 1873, ocorre a publicação do mais importante documento da época sobre a Língua Brasileira de Sinais, Iconographia dos Signaes dos Surdos-Mudos, de autoria do aluno surdo Flausino José da Gama, ex-aluno do Instituto Nacional de Educação de Surdos-Mudos, com ilustrações de sinais separadas por categorias (animais, objetos). Esta linguagem não é mais usada atualmente. No ano de 1930, o Dr. Armando Paiva Lacerda, ex-diretor do INES, exige que os alunos não usem a língua de sinais, podendo apenas utilizar o alfabeto manual e um bloco de papel com lápis no bolso para escrever as palavras que quisessem comunicar. Esse movimento perdurou até 1947, quando os surdos já não conseguiam mais se adaptar a essa imposição do Oralismo e continuaram a usar a língua de sinais e o alfabeto manual. No entanto, alguns professores e inspetores burlam as ordens na comunicação com os alunos surdos. Em 1957, é totalmente proibida a utilização da língua de sinais no INES. O termo deficiência auditiva começa a surgir em 1950, com o crescente poder palavras. A Comunicação Total consistia no uso simultâneo de palavras e sinais, ou seja, no uso simultâneo de uma língua oral e de uma língua sinalizada. Disponível em: <http://www.pead.faced.ufrgs.br/sites/publico/eixo7/libras/unidade3/comunicacao_total.htm>. Acesso em: 06 abr. 2015. 5 O bilinguismo, como proposta para a educação de surdos, surgiu na década de 80. Esta linha teórica defende que o aprendizado da língua sinalizada deve preceder o da língua oral, utilizada na comunidade à qual o surdo pertence. Nesta proposta, entende-se a língua sinalizada como materna para o sujeito surdo, devido às suas características, por primazia visual, que compensam eficazmente a falta de comunicação, situação imposta pela deficiência auditiva. Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/bilinguismo-e-a-educacao-de-surdos/67821/#ixzz3eawrkavI>. Acesso em: 06 abr. 2015. http://www.pead.faced.ufrgs.br/sites/publico/eixo7/libras/unidade3/comunicacao_total.htm http://www.webartigos.com/artigos/bilinguismo-e-a-educacao-de-surdos/67821/#ixzz3eawrkavI 19 do método oralista francês, que cresce em todo o Brasil, sob a responsabilidade da professora Alpia Couto, que, dentro do Centro Nacional de Educação Especial, realiza projetos em torno desta nomenclatura. O desconhecimento e a falta de convivência com os surdos provocam prejuízos à cultura da comunidade surda, o empobrecimento da língua de sinais e a falta de acesso às informações sociais. As questões da Educação Especial tornam-se vinculadas a interesses político- econômicos. Passados alguns anos, chega ao Brasil, em 1975, a Comunicação Total. Dois anos depois, é criada, no Rio de Janeiro, a Federação Nacional de Educação e Integração dos Deficientes Auditivos, FENEIDA, com diretoria de ouvintes. No entanto, tanto o Oralismo quanto a Comunicação Total procuram ajustar os surdos à ordem padrão vigente: sujeitos ouvintes. Mais tarde, por volta de 1980, chega ao Brasil o Bilinguismo. Em seguida, são iniciadas pesquisas sistematizadas sobre a língua de sinais no Brasil. Em 1983, é criada a Comissão de Luta pelos Direitos dos Surdos, e, três anos depois, o Centro SUVAG (PE) (Sistema Universal Verbotonal de Audição Guberina)6 faz sua opção metodológica pelo Bilinguismo, tornando-se o primeiro lugar no Brasil em que efetivamente esta orientação passou a ser praticada. Em 1987, é criada a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), sob a direção de surdos. Pereira e Marostega (2002, texto digital) afirmam: O bilingüismo considera que, primeiramente, o Surdo deve adquirir a (LS) e, como segunda língua, a língua do país a que pertence. A abordagem bilíngüe coloca em evidência a (LS), porque esta é a forma espontânea de comunicação no mundo das pessoas Surdas. A LIBRAS é reconhecida oficialmente pelo Governo do Estado de Minas Gerais em 1991 (lei nº 10.397 de 10/1/91). Esse momento também foi de extrema importância para o fortalecimento e visibilidade dos surdos. Assim, os surdos mostraram para a sociedade o rompimento com a cristalização da deficiência. Em 6 Trata-se de um método oral multissensorial, pois visa à habilitação do indivíduo para a fala e à constante reabilitação da audição deficiente. Este método, criado por Peter Guberina, na Iugoslávia, pode ser e é aplicado em indivíduos surdos de todas as idades, desde a estimulação precoce (0 ano) até a estimulação para a manutenção da linguagem em pessoas adultas que ensurdeceram e em pessoas com dupla ou múltiplas deficiências. O objetivo básico do método é treinar o cérebro para utilizar até mesmo uma mensagem acústica distorcida para a percepção da fala, aproveitando áreas mais sensitivas da audição. Disponível: <http://suvagnarede.blogspot.com.br/2009/04/o-que-significa- suvag.html>. Acesso em: 06 abr. 2015. 20 1994, começa a ser exibido na TV Educativa o programa Vejo Vozes (out/94 a fev/95), usando a Língua de Sinais Brasileira. Em 1995, é criado por surdos, no Rio de Janeiro, o Comitê Pró-Oficialização da Língua de Sinais. Um ano depois, são iniciadas, no INES, em convênio com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisas que envolvem a implantação da abordagem educacional com Bilinguismo em turmas da pré-escola, sob a coordenação da linguista Eulália Fernandes. No ano de 1998, a TELERJ (Telecomunicações do Estado do Rio de Janeiro), em parceria com a FENEIS, inaugura a Central de Atendimento ao Surdo. Pelo número 1402, o surdo, em seu TS (TeleSync – método de gravação de som), pode comunicar-se com o ouvinte em telefone convencional. A educação de surdos vai se expandindo, e, em março de 1999, começam a ser instaladas, em todo o Brasil, telessalas com o Telecurso 2000 legendado. Por volta do ano 2000, o ClosedCaption, ou legenda oculta, passa a ser utilizado e, após três anos de funcionamento no Jornal Nacional, é disponibilizado aos surdos também nos programas Fantástico, Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Jornal da Globo e Programa do Jô. Também neste ano, a TELERJ lança telefone celular para surdos com a opção de SMS (serviço de mensagens curtas, em inglês: Short Message Service), um serviço disponível em telefones celulares. Em 2002, é promulgada a lei 10.436, reconhecendo a LIBRAS como língua oficial das comunidades surdas do Brasil. Com este reconhecimento, começou-se a pensar em formação para os professores. Sobre isso, Quadros e Campello (2010, p. 36) afirmam: [...] considerando a determinação do Decreto 5626 quanto à inclusão da disciplina de LIBRAS nas instituições e ensino de nível superior, nos cursos de formação de professores e nos cursos de fonoaudiologia em um prazo de dez anos, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) passou a incluir a LIBRAS nos currículos dos cursos de graduação na modalidade à distância em 2006, estendendo essa ação aos cursos presenciais. Os educadores com formação para atuar com surdos não podem ser confundidos com intérpretes, pois são profissionais com atuações e formações específicas e distintas. Em relação à formação dos professores, Pires e Nobre (2004, p. 168) dizem que Há necessidade de legislação que resguarde a verdadeira dimensão que o intérprete possui frente à participação da pessoa surda no meio educacional e fora dele. Uma legislação que garanta serviços de interpretação gratuitos, 21 bem como oportunidades de os intérpretes obterem formação em nível superior, similares aos cursos para a formação de intérpretes em outros idiomas. A partir do novo espaço conquistado pelos surdos, torna-se essencial a perspectiva de o intérprete integrar o cenário cotidiano da pessoa surda, através de bases legais constituídas por vontade política e da criação e manutenção de cursos para formação de intérpretes. Em estudo realizado com professores, Rechico e Marostega (2002, texto digital) identificaram que “a inquietação em torno da prática que o educador especial exercia envolvendo alunos surdos incluídos vai ao encontro de um conhecimento que se torna básico e necessário em relação à formação que cada profissional recebe”. Por outro lado, sobre estudos que estão sendo realizados abarcando a temática dos surdos, Lopes (2007, p. 29-30) afirma que, [...] no Brasil, muitos foram e ainda são os pesquisadores surdos e ouvintes que se agregaram e se agregam na busca de produção acadêmica, formação profissional, inserção na escola de surdos e na comunidade surda. Entre os grupos que podem ser citados, temos: Grupo de Estudos Surdos (GES), formado na Universidade de Campinas/SP; Grupo de Estudos sobre Linguagem e Surdez (GELES), na Universidade Federal do Rio de Janeiro; Núcleo de Pesquisa em Políticas de Educação de Surdos (NUPPES), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Grupo de Estudos Surdos (GES), na Universidade Luterana do Brasil; Grupo de Estudos Surdos (GES), na Universidade Federal de Santa Catarina; Grupo de Pesquisa em Educação de Surdos (GIPES), formado por pesquisadores de sete universidades localizadas no Estado do Rio Grande do Sul. Destes grupos citados, a autora enfatiza o NUPPES – Núcleo de Pesquisa em Políticas de Educação para Surdos –, que desenvolve “projetos de pesquisa de onde saíram muitas publicações na forma de dissertações, teses, livros e artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, que hoje circulam amplamente” (LOPES, 2007, p. 31). Tal Núcleo é pertencente ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Contribuiu muito para alguns avanços sociais, educacionais e políticos no que concerne à causa surda, no Brasil. Tendo como aliada a Linha de Pesquisas Estudos Culturais em Educação daquele mesmo programa de pós-graduação, o NUPPES, durante muitos anos, funcionou como um centro tanto produtor e irradiador de conhecimentos e formador de especialistas no campo dos Estudos Surdos quanto catalisador de ações políticas em prol dos direitos dos surdos (Ibidem, p. 31). Guedes (2009) acrescenta que este Núcleo teve como foco a necessidade de repensar os currículos das escolas de surdos, defendendo que estes currículos deveriam contemplar e possibilitar estudos em torno da história surda, e não referentes à história da surdez. O NUPPES foi extinto, e alguns pesquisadores que faziam parte dele criaram, em 1999, o GIPES (Grupo Interinstitucional de Pesquisa 22 em Educação de Surdos), onde estudos e pesquisas em torno de surdos são realizados. Ainda em se tratando de formação de profissionais, no ano de 2006, foi criado o exame de Certificação Tradutor Intérprete de Libras – ProLIBRAS7, instrutor de LIBRAS, e o curso de Letras-LIBRAS Bacharelado e Licenciatura EaD. Também em 2006, surge o curso superior de Letras-LIBRAS Licenciatura, na modalidade em EAD - UFSC, e, após dois anos, o curso superior de Letras-LIBRAS Bacharelado, na modalidade em EAD – UFSC. Em 2010, foi promulgada a lei 12.319, que regulamenta o exercício da profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Sobre esta questão, Pires e Nobre (2004, p. 162) afirmam que a presença de um intérprete é [...] uma das necessidades reais no meio escolar e extra-escolar do surdo, é fruto da reivindicação das pessoas surdas e não mais da deliberação dos ouvintes, como ocorria comumente no passado. Agindo como mediador na comunicação com as pessoas ouvintes e auxiliando o surdo na aquisição de informações sobre o universo ouvinte, o intérprete é um elemento fundamental nessa interação. Apesar de a presença do intérprete para a interação dos surdos ser uma necessidade, merecem destaque alguns pontos importantes sobre sua função. Pires e Nobre (2004) dizem que existe um grande desafio quanto à velocidade de transmitir as informações para o surdo, uma vez que o ouvinte fala muito rápido e, por vezes, o intérprete tem dificuldades na tradução. Outro aspecto refere-se à validade das informações, pois o intérprete ouve a informação dada por um ouvinte, processa e repassa, ou seja, faz uma tradução entre esse processo de ouvir e repassar, já que “a interpretação não pode ser idêntica ao texto original, porque os sistemas linguísticos são diferentes” (PIRES; NOBRE, 2004, p. 165). Ao pensar a tradução, torna-se importante destacar a ideia de Corazza (2013, p. 190) quando diz que “a tradução didática compartilha línguas heterogêneas e simultâneas, modificando e desfazendo identidades sedentárias dos elementos 7 De acordo com Quadros e Campello (2010, p. 34 e 35), “O ProLIBRAS é um programa promovido pelo Mistério da Educação e desenvolvido por instituições de Educação Superior (IES) com o objetivo de oferecer certificado de proficiência em tradução e interpretação de LIBRAS, por meio de uma prova visual e nacional (vídeo sinalizado). [...] Os certificados obtidos por meio da prova visual de ProLIBRAS poderão ser aceitos e admitidos pelas Instituições de Ensino Superior, assim como nas esferas estaduais e municipais, como documentos que aprovam o domínio, habilidades, competências e fluência no uso e no ensino de LIBRAS ou na tradução e interpretação dessa língua”. 23 originais”. Em seus apontamentos, a tradução é a conexão entre pensamento e vida, por meio da qual distintas linhas de criação se atravessam e se entrelaçam em “sensações que transitam entre uma língua de chegada e outra de saída” (DALAROSA, 2012, p. 1). A tradução transita pelo plano intensivo da diferença, pelas vias das afecções e das sensações. Neste limiar entre uma língua e outra, há possibilidades de trocas “da língua para a qual o texto é traduzido” (CAMPOS, 1972, p. 110). À interpretação também cabe a possibilidade do inusitado, da falha, criando outros e múltiplos modos de se viver e pensar a linguagem. Trata-se de uma criação, enquanto desvio do modelo conhecido, numa tentativa de visibilizar a diferença. Uma pedagogia da tradução, portanto, faz conexões com obras inacabadas e falhadas em meio à vida: em meio a produções e velocidades que expandem, contemplam, sugam, contraem, condensam, dispersam e invertem posições textuais em novas afecções (DALAROSA, 2012, p. 4). Uma tradução, desse modo, pode ser pensada como tentativa de escapar às formatações dos sentidos, fugir do controle, da ordem, da domesticação e da estratificação da vida, criar meios e condições para traduzir e resistir à mesmice e à igualdade. “Uma pedagogia da tradução, ao ocupar-se das sensações, portanto, sugere a imanência da vida, o seu infinito conjunto de todas as imagens, para além do orgânico e da pessoalidade” (Ibidem, p.9). Dessa maneira, não há fidelidade ao original, mas uma ruptura platônica, com possibilidades de criação. Os elementos de uma tradução atravessam, portanto, o plano do impossível, o plano de imanência da arte, ao comporem uma obra de sensação como obra que faz passar aquilo que nos escapa, que está fora da representação, mas que fica, em nós, como feixe de forças (Ibidem, p.8). Na tradução, há um dinamismo vital, com corpos vivos, imersos em sentidos e sensações. Na tentativa de resistir aos signos reducionistas, aos clichês e aos moldes, a tradução coloca-se enquanto força de afectos que invade, contamina e violenta formas de representação. Durante o encontro da tradução, marcas e signos podem ser inventados e reinventados por várias vezes, deformando o já conhecido. A este respeito, Dalarosa (2012, p. 10) afirma que [...] uma pedagogia da tradução ocupa-se do olhar, da escuta e da invenção de corpos sensíveis; ocupa-se das forças que acompanham as formas de expressão criadas no mundo e as cria de novo no mesmo, potências invisíveis de isolamento, de deformação e de dissipação que acompanham os problemas. 24 Uma tradução enquanto algo inacabado, interrompendo clichês, realizando experimentações fronteiriças entre as conexões com o fora das formas estruturadas, provoca o desordenamento destas formas. Trata-se de um encontro da ordem do “impossível, para a qual não há receituário, mas a necessidade de inventar-lhe um possível a cada novo processo de tradução” (DALAROSA, 2012, p. 10). Neste movimento, perpassam afectos, “logo, os procedimentos tradutórios não compreendem ou referem-se a sistemas prontos de interpretação; mas desenvolvem experiências, que têm relação com modos de desterritorialização do existente” (CORAZZA, 2013, p. 192). O tradutor, nestes movimentos, atravessa-se “por uma poética do traduzir” (CORAZZA, 2015, p. 321). Ele coloca seu próprio corpo imerso neste encontro, dando à tradução uma permissão de subjetivação; por isso, Campos (2004) afirma que as traduções podem ser mais ou menos inventivas, variando de acordo com a sensibilidade e a capacidade de criação de cada sujeito. Esta forma de pensar a tradução, além de ser uma “forma privilegiada de leitura” (CAMPOS, 1972, p. 115), também baila, segundo Campos (1978), entre corpos por tramas criativas. Destaca- se que a tradução é compreendida aqui enquanto construção, processo de criação e experimentação. Tomando como ponto de partida os estudos do surdo, percebe-se que tais sujeitos interagem com o mundo, principalmente a partir de uma experiência visual, e que grande parte de suas construções mentais são mediadas pela sua língua materna: a língua de sinais. Contudo, ao compartilharem uma língua comum – a língua de sinais –, os surdos se reconhecem e são reconhecidos como membros de uma comunidade singular que ao mesmo tempo se torna uma categoria identitária. Voltando ao percurso histórico, é no século XX, conforme já apresentado, que tem início a preocupação em “tirar o surdo do esconderijo”, já que até então os sujeitos ficavam escondidos em suas casas. Surgem, então, algumas normas voltadas para esses sujeitos, vistos como diferentes dos demais, como, por exemplo, o reconhecimento de LIBRAS como sua primeira língua. Se, por um lado, medidas como essa possibilitaram a inserção dos surdos em espaços antes não ocupados por eles, por outro, contribuíram para o aprisionamento do surdo em uma identidade. 25 Percebe-se que algumas identidades foram historicamente atribuídas aos surdos, das quais advinham dispositivos que capturavam socialmente as vidas dos sujeitos, ou seja, a partir das nomenclaturas “recebidas” (e realmente “recebidas”, uma vez que elas foram criadas por ouvintes), as regras do jogo iam sofrendo modificações. Desse modo, o surdo, enquanto categoria identitária, foi sendo constituído ao longo da história. Thoma (2006, p. 67) afirma que [...] a alteridade surda é narrada e mostrada através de lentes “ouvintes” que capturam olhares dos que ouvem sobre os sujeitos surdos, sobre sua existência, sobre a necessária correção/normalização de seus corpos mutilados. Essas lentes, entretanto, nos interpelam de variadas formas, segundo nossas posições de sujeito e flutuam quanto às representações e discursos que apresentam. Alguns surdos, participantes de organizações, movimentos e discussões sobre seus direitos, lutaram para que essas nomenclaturas fossem modificadas, já que o fato de ser surdo não significa a impossibilidade de comunicação, mas o uso de uma língua própria e oficial. Ströbel (2007) elaborou um quadro, ilustrando um comparativo entre como a sociedade representa as pessoas surdas e como estas se descrevem. Quadro 1 - Comparativo entre representação social e povo surdo Representação social Representação de povo surdo Deficiente. Ser surdo. A surdez é deficiência na audição e na fala. Ser surdo é uma experiência visual. A educação dos surdos deve ter um caráter clínico-terapêutico e de reabilitação. A educação dos surdos deve ter respeito pela diferença linguística cultural. Surdos são categorizados em graus de audição: leves, moderados, severos e profundos. As identidades surdas são múltiplas e multifacetadas. A língua de sinais é prejudicial aos surdos. A língua de sinais é a manifestação da diferença linguística relativa aos povos surdos. Fonte: Ströbel (2007). Com relação às informações apresentadas, é importante ressaltar que as bases das representações históricas são constituídas em torno do discurso médico (clínico e terapêutico) e do discurso antropológico-cultural. O discurso médico foi criado por ouvintes especialistas da saúde, que visualizavam os surdos como sujeitos “da falta”. Este discurso procurava sempre diversas formas de enquadrar ou aproximar os surdos dos sujeitos ouvintes, desconsiderando qualquer tipo de potência. Por sua vez, o discurso cultural sobre a surdez passa por uma questão de 26 identificação, percebendo que a deficiência auditiva também é uma possibilidade de vida; passa por um olhar do sujeito enquanto potência, força de vida. Nessa perspectiva, o surdo identifica-se como parte de um grupo com características linguísticas e culturais específicas. A partir do quadro acima, percebe- se também uma diferença nas nomenclaturas utilizadas por ambos os grupos, reflexo de uma luta por direitos na qual alguns surdos estão engajados a fim de serem vistos como sujeitos surdos, e não com surdez ou com deficiência auditiva. Esse grupo relaciona-se com uma cultura surda8, que utiliza uma comunicação visual como principal meio de relacionar-se com a vida, acessando o mundo pela experiência do olhar e habitando, assim, diferentes espaços mediante a exploração dessa linguagem. A este respeito, Lopes e Veiga-Neto (2010, p. 126) dizem que Vivemos em uma cultura ocularcentrista, mas não é disso que falamos quando trazemos o olhar como um marcador surdo. O olhar, para o surdo, muito mais do que um sentido, é uma possibilidade de ser outra coisa e de ocupar outra posição na rede social. O olhar, entendido como um marcador surdo, é o que lhe permite contemplar um modo de vida de diferentes formas, o cuidado de uns sobre os outros, o interesse por coisas particulares, o interpretar e ser de outra forma depois da experiência surda. Enfim, o olhar como uma marca é o que permite a construção de uma alteridade surda. Ressalto que não será utilizada nesta pesquisa a visão dualista e comparativa apresentada pela autora do quadro acima, que marca, de um lado, a visão do surdo por uma leitura de ouvintes e, de outro, a partir de uma leitura de surdos. Assim, segue-se uma discussão em torno de alguns desafios e conquistas que movimentaram a história dos surdos e construções que marcam alguns fatores que hoje ainda ressoam em suas vidas. 8 De acordo com Perlin (2004), “a cultura também assume centralidade na constituição da subjetividade e da identidade da pessoa como ator social. Essas marcas internas da diferença moldam as identidades surdas. As identidades surdas são constituídas dentro das representações possíveis da cultura surda, elas moldam-se de acordo com a maior ou menor receptividade cultural assumida pelo sujeito. E, dentro dessa receptividade cultural, também surge aquela luta política ou consciência oposicional pela qual o indivíduo representa a si mesmo, se defende da homogeneização, dos aspectos que o tornam corpo menos habitável, da sensação de invalidez, de inclusão entre os deficientes, de menos valia social. A cultura surda é o lugar para o sujeito surdo construir sua subjetividade de forma a assegurar sua sobrevivência e a ter seu status quo diante das múltiplas culturas, múltiplas identidades” (PERLIN, 2004, p. 77-78). 27 2.2 Percalços da caminhada Várias representações foram criadas sobre os surdos por ouvintes. Palavras como mudo, deficiente, anormal e doente, entre outras, fizeram parte dessa construção. Nesses discursos, a falta da audição produz impactos na sociedade ouvinte, que passa a identificar esses sujeitos com diferentes nomenclaturas negativas, já que a fala e a audição parecem ser necessárias para a vida “normal” e em sociedade. A busca por novas denominações reflete a intenção de rompimento com as premissas de menos-valia que até então embasavam a visão sobre a deficiência. Termos genéricos como “inválidos”, “incapazes”, “aleijados” e “defeituosos” foram amplamente utilizados e difundidos até meados do século XX, indicando a percepção dessas pessoas como um fardo social, inútil e sem valor (LANNA JÚNIOR, 2010, p. 14-15). Quem afirma que não estar enquadrado nos parâmetros da normalidade é sinônimo de não ter potência? Neste mundo contemporâneo, parece que o discurso sobre a diferença é afirmado a cada dia, implicado em tentativas de explicação e representação, por meio de políticas sobre as identidades culturais. Proponho, nesta dissertação, pensar em outras narrativas para além das tradicionalmente descritas pelo pensamento da representação, as quais geralmente partem de olhares ouvintes. Mergulhada nesta produção histórica, política e cultural, traz-se, mesmo que rapidamente, a problematização da língua. LIBRAS, Língua Brasileira de Sinais. Mãos. Gestos. Expressão facial. Comunicação. Troca. Uma língua? Duas línguas? Português? Língua enquanto dispositivo9. Dispositivo que produz sujeitos que oralizam e escutam palavras. Surdos que criam outros dispositivos, que os capturam ou não. LIBRAS é a língua que se utiliza das mãos para comunicar, “a partir de um olhar maior, de uma língua maior, de uma cultura maior [...] a ‘diferença’ passa a ser mais uma fabricação maior [...]” (SOUZA; GALLO, 2010, p. 112). LIBRAS surge como o principal elemento que dá visibilidade à cultura e comunidade surda, como uma língua não sem valor, mas uma língua que está à margem, no entorno. Uma língua enquanto diferença linguístico-cultural em uma sociedade que é identitária 9 O conceito de dispositivo advém das ideias de Foucault (2013). Um dispositivo compreende a relação entre elementos discursivos e não-discursivos, ou seja, esta relação se dá por meio de jogos de poder com "mudanças de posição, modificações de funções" (FOUCAULT, 2013, p. 364). O dispositivo é operado enquanto "estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles" (FOUCAULT, 2013, p. 367). 28 quando tratamos de linguagem, cultura, corpo. Mesmo sendo reconhecida e fazendo parte ou não do corpo, alguns surdos negam a comunicação por meio da LIBRAS porque foram constituídos dentro de outra lógica, a partir de outros atravessamentos. Encontram-se, então, outra barreira e outro dispositivo que se compõem: uma língua universal, como se houvesse uma única cultura surda, um único sujeito surdo e uma única LIBRAS. Assim, não podemos definir os surdos como pertencentes a uma comunidade homogênea, pois nem todos vivem a cultura e nem todos utilizam os sinais, neste caso, os deficientes auditivos. Deficientes auditivos enquanto sujeitos que optam por não se comunicar utilizando LIBRAS, desejando uma comunicação oralizada, a partir da leitura labial ou por meio de mímicas, além de abdicarem de situações de acessibilidade que são oferecidas a eles. Os deficientes auditivos muitas vezes recusam qualquer situação relacionada à surdez, como, por exemplo, participar de movimentos envolvendo surdos. Esta tentativa de aproximação do ouvinte pode ser pensada como uma aproximação de um modelo uno. Para Souza e Gallo (2010, p.111), o uno é uma tática de controle, e esta tentativa de relacioná-la a “um modo maior acaba por reduzir a língua a um sistema a ser dominado e a cultura a um conjunto folclórico de corpos físicos [...]”. Os autores acima utilizam o termo folclórico para fazer relação com algo rotineiro, com os mesmos usos, com formatos predefinidos e com enquadramentos estabelecidos, como é o caso, por exemplo, da LIBRAS. Além do uso da língua, também se pode pensar nos discursos inclusivos, sociais e políticos. Comumente, os discursos inclusivos em torno da surdez são vistos como práticas benéficas e salvacionistas, advindos das políticas educacionais e do mercado. Para Thoma (2006, p. 17), Nos discursos pedagógicos, os enunciados falam sobre adaptações curriculares, oferta de serviços e profissionais para o atendimento de alunos com deficiência em situação de inclusão, sobre a arquitetura das salas de aula, sobre mudanças nos planejamentos, didáticas, avaliações e dinâmicas das aulas [...]. Nas instituições de ensino, a inclusão está contemplada na lei maior da Educação – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sob a máxima de uma educação gratuita para todos, a fim de que todos tenham direito a uma educação de qualidade. Juntamente com este discurso inclusivo educativo, emerge 29 um discurso político direcionado a esta “parcela” da população. Trago também esta relação em virtude de estar cursando um Mestrado em Ensino; nesse sentido, uma discussão sobre a inserção dos sujeitos surdos no sistema educacional se faz pertinente. No Capítulo V da LDB, é realizado todo um detalhamento de como deve ser visto o que a lei denomina de Educação Especial, tratando de como devem ser os serviços especializados aos educandos com necessidades especiais (nomenclatura utilizada na lei), bem como das adequações curriculares, físicas e técnicas que devem ser pensadas, em nível educacional, para os ditos incluídos. Sobre a Educação Especial, Lunardi (2004, p. 23-24) diz que [...] a pedagogia corretora virá acompanhada de medidas, controles de provas, observações de corpos e almas. É nessa estreita relação entre Educação Especial e a pedagogia terapêutica que o binômio medicina/psicologia passa a servir de “modelo biomédico” para a descrição e classificação do déficit das pessoas consideradas deficientes. Nesse campo do saber, a ação educativa está centrada no estudo da etiologia do paciente, permitindo estabelecer categorias classificatórias de acordo com cada etiologia com a intenção de localizá-lo nos distintos contextos educativos. Também por existirem escolas de surdos, continua-se mostrando que há dualidade, pois existem escolas especiais para eles. Ou então, se os surdos frequentam escolas regulares, mesmo assim são identificados como alunos incluídos, encarados pela escola diferentemente dos alunos “normais”. No entanto, ressalto que a manutenção das escolas especiais para surdos é uma reivindicação da própria cultura surda; por isso, pergunta-se: o que se atravessa nesta situação? Talvez a desistência de viver junto, a necessidade de afirmação de uma identidade surda ou a aceitação de uma suposta inferioridade. Também podemos pensar que o fato de desejarem um espaço habitado apenas por surdos possa reverberar para eles como um lugar onde se encontram os “iguais”. Ainda sobre a Educação Inclusiva, a Declaração de Salamanca10 ajuda-nos a pensar sobre algumas questões que foram se delineando em termos de princípios, práticas e políticas na área das necessidades educativas especiais, tais como: a 10 De 7 a 10 de junho de 1994, no município de Salamanca, situado na Espanha, reuniram-se mais de 300 participantes, sendo eles representantes de governos e organizações internacionais, com o objetivo de promover a Educação para Todos, visando a modificações que deveriam ser feitas na Educação para uma educação inclusiva. A ideia era pensar as escolas como instituições que aceitam as diferenças. 30 educação é direito de todos, independentemente das diferenças individuais; a escola é um espaço comum para todas as crianças; e toda a criança que possui dificuldade de aprendizagem pode ser considerada com necessidades educativas especiais. No entanto, percebe-se o quanto estas demandas normativas educativas foram impostas nas instituições, e delas surgem alguns impasses, ocorrendo práticas que demonstram que o que está assegurado na lei não se efetiva na escola ou nas universidades, como, por exemplo, a garantia da presença de intérpretes para os surdos, o que dificulta a comunicação e também a aprendizagem destes sujeitos. A presença de intérpretes tem sua relevância em se tratando da relação comunicativa que se estabelece entre os sujeitos que habitam o mesmo espaço, uma vez que é desta comunicação que partem todas as trocas entre os colegas, bem como as trocas de saberes. A respeito de professores ouvintes que são intérpretes, o GIPES está realizando a pesquisa intitulada “Os Intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) no Rio Grande do Sul (RS)”, a partir da proposta de Pensar e problematizar a relação professor ouvinte e intérprete de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), especificamente em como essa constitui o processo pedagógico e o olhar do professor sobre o desempenho e resposta do aluno surdo às atividades propostas em aula (EBLING, 2013, fonte digital). A falta de intérpretes acaba interferindo na inclusão dos surdos e dificultando- a. Sobre isso, Lopes (2004, p. 43) aponta que A escola parece, ao trabalhar com surdos e registrar seus trabalhos, saber como resolver o impasse do que fazer com os que não ouvem. Eles continuarão não ouvindo, porém, devido a fortes terapias de treinamento oral, poderão dissimular a “deficiência”, fazendo uma boa leitura labial e respondendo com uma fala o mais próximo possível da fala do ouvinte. Cabe citar também a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que trata do apoio às pessoas portadoras de deficiência (nomenclatura utilizada na Lei) e de sua integração social, contemplando a saúde. Quanto à saúde, discursos médicos são muito recorrentes, sempre buscando alternativas na Ciência para transformar o surdo em ouvinte, com os implantes cocleares, os aparelhos auditivos e outros meios que a Medicina vem estudando a fim de que os surdos possam escutar e, desse modo, ser sujeitos normais, que seguem um modelo estabelecido e inventado socialmente. Thoma (2006, p. 16) diz que “os discursos clínico-patológicos são 31 constituídos de enunciados que buscam saber o que o aluno tem, qual o seu diagnóstico, o que lhe falta para ser como os ditos normais”. Podemos ampliar esta citação para todos os sujeitos surdos, não apenas alunos, como Thoma (2006) aborda, pois esta necessidade de encontrar um diagnóstico dado pela Medicina também ocorre nas outras instituições sociais, e não somente nas escolas. Para finalizar este capítulo, destaco a tentativa de expor alguns fatores históricos e peculiares que permeiam marcas em torno dos surdos. No entanto, grifo que este não é o foco de minha pesquisa e apenas serve como maneira de situar cultural e socialmente minha escrita. Nos capítulos que seguem, busco aproximar- me de sujeitos surdos, tentando pensar na possibilidade de eles escaparem destas representações apresentadas. 32 3 DOS SUJEITOS SURDOS 3.1 Sujeitos surdos atravessados pela experiência visual Penso sujeitos surdos e seus atravessamentos com a vida por meio de experiências visuais. Busco, na aproximação com filósofos da diferença - entre eles, Deleuze, Guattari e Barthes -, um aporte para problematizar este tema. Penso sujeitos surdos que, no encontro com sua potência, são capazes de substituir os discursos de negação pelos das sensações. Discursos que não estão dados, mas são criados, na ordem do vivido, do vivenciado, do experimentado e do sensível. Ao pensar nos sujeitos surdos, tentei tecer linhas de um novelo emaranhado que está sempre em busca de escapar dos discursos que querem amarrá-lo à representação. Penso em sujeitos surdos como novelos que rolam, ora abrem, ora atam, encontram alguns nós em seu existir. Corpos em sua potência. O corpo está atrelado às nossas ações, mostra-nos que a vida pulsa e acontece, criando-se a cada encontro. Zourabichvili (2004, p. 61) diz que [...] é na experiência que aprendemos a superioridade intensiva dos afectos – isto é: do encontro com o heterogêneo ou com o fora pelo qual toda a afectividade se vê abalada e redistribuída – sobre as afeições comuns. É nos encontros intensivos, aqueles que lançam tudo para fora do previsível, e nos afectos que provocam o corpo e o pensamento a pensar além do sensório- motor e da consciência, que nos agenciamos à vida. Sousa e Silva (2012, p. 350) afirmam que o encontro “acontece em uma relação permeada pelos afectos, ao passo que nos afectamos e somos afectados por outros corpos. Assim, somos corpos potencializados por uma tecnologia dos afectos”. Também Fogazzi (2013, p. 64) refere-se ao encontro, afirmando: “encontro que é acontecimento, que possibilita 33 a de-formação e a trans-formação, como também a in-venção, e a trans-versão”. Falando de encontros com pessoas, com a vida, com o mundo, lembro ser inegável que, como sujeitos, estamos inseridos em um mundo visual e auditivo, pois vivemos em uma sociedade imagética e sonora. E o sujeito que vive neste mundo auditivo e não ouve? Durante a pesquisa, pensei em mapear encontros de sujeitos surdos agenciados à vida. Não sujeitos que buscam identificar-se com um modelo ou cópia, mas que querem efetuar a sua potência. Vidas mapeadas pelo singular, pelo heterogêneo, não por homogeneidade, categorias ou igualdade. Sujeitos que se movimentam, mãos que não param, sujeitos que experimentam a vida na sua singularidade. Sujeitos surdos que andam pelas ruas, pairando sobre olhares que procuram enquadrá-los, mas querem escapar às categorizações. Sujeitos que são forças, que não buscam uma forma para viver, que criam, que torcem, que se distorcem em gestos, ruídos, acenos, expressões faciais; que não negam, mas afirmam suas singularidades. Assim, os sujeitos surdos não se alienam do mundo, mas desejam desvincular-se da repetição do mesmo. Eles buscam energia nas miudezas, nos acontecimentos, riscos que eles traçam no ar, ou seja, os movimentos que os surdos fazem ao utilizarem a língua de sinais. Tais sujeitos possuem características e singularidades específicas que, ao saltarem aos olhos do outro, passam a ser designadas como fora dos padrões. De que maneira abordá-los? Tocá-los? Chamá- los? Entrar pela via visual, falar olhando para um sujeito surdo, parando, usando as mãos e a expressão facial. Um sujeito talvez queira que você o pare, pois deseja outra velocidade, um estar presente com intensidade. Conversa? O que comunico? Há receitas? Parar e viver o instante. Andar conforme o ritmo da vida, o bailar do vento, o correr do rio. Ir além dos binarismos que distinguem indivíduos, tentando pensar sujeitos surdos múltiplos, que se inventam e se reinventam durante todo o tempo. Para compreender o modo como passamos a instituir o sujeito como modelo, torna-se necessário recorrer a Platão e à ideia de representação. O método da divisão de Platão consiste em distinguir o puro e o impuro, o inteligível e o sensível, 34 o autêntico e o inautêntico, o verdadeiro e o falso. Em tal distinção manifesta, Platão estabelece, em um primeiro momento, a dualidade modelo e cópia. Em uma segunda distinção, Platão cria dois tipos de imagens: a boa cópia e a má cópia. Com Machado (2013, p. 45), podemos compreender que [...] a principal distinção, a “verdadeira” distinção, estabelecida por Platão é entre dois tipos de imagens, dois tipos de cópia: a boa cópia, a cópia bem fundada, o “ícone”, que é uma imagem dotada de semelhança, e a má cópia, a cópia que implica uma perversão, o “simulacro-fantasma”, que é uma imagem sem semelhança. Sendo assim, o simulacro é a má imagem, na medida em que não possui semelhança. É construído sobre uma diferença com relação ao modelo, ou seja, não se constitui como modelo do mesmo. A inscrição dessas dualidades, a busca do mesmo, da identidade, funda o pensamento da representação, de modo que [...] é sempre em relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna objeto de representação (DELEUZE, 2006b, p. 228-229). Deleuze (2006), em uma tentativa de subverter o platonismo, concentra forças na ideia de cópias sem semelhança, em “noções de original e derivado, de modelo e cópia, e a relação de semelhança estabelecida entre esses termos na medida em que tal tipo de pensamento reduz necessariamente a diferença à identidade” (MACHADO, 2013, p. 49). Para Deleuze (2006), o simulacro tem a potência da diferença, que [...] significa afirmar os direitos dos simulacros reconhecendo neles uma potência positiva, dionisíaca, capaz de destruir as categorias de original e de cópia. Há em Platão uma relação de força entre modelo e simulacro, no sentido de que a idéia é pensada como uma potência capaz de excluir, barrar, rejeitar as cópias sem fundamento (Ibidem, p. 48). Assim, para Platão, “a diferença é considerada em si mesma impensável e subordinada às potências do mesmo e do semelhante” (MACHADO, 2013, p. 50). Porém, “o que está no âmago da argumentação de Deleuze é, como sempre, a relação da identidade e da diferença” (Ibidem, p. 51). O conceito de identidade, por sua vez, é constituído a partir da ideia de diferença relativa, que tem o outro como parâmetro e/ou padrão de vida. Sobre esta diferença, Deleuze afirma que 35 [...] a diferença não é o diverso. O diverso é dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. É aquilo pelo qual o dado é dado e como diverso. A diferença não é o fenômeno, mas o número mais próximo do fenômeno (DELEUZE, 2006b, p.313). Durante a pesquisa, a noção de simulacro torna-se importante, no sentido de pensá-lo, na tentativa de fuga às noções de semelhança e identidade. Schöpke ajuda-nos a pensar: Segundo Deleuze, quando Platão condenava os simulacros, ele estava primeiramente condenando todo o qualquer estado de diferença livre, de distribuição nômade – tudo aquilo que recusava, por sua existência, a noção de um modelo prévio. O simulacro contesta tanto a existência do original quanto da cópia. Ele é a instância que compreende, em si, uma diferença (SCHOPKE, 2012, p. 23 - 24). Nesse sentido, busquei pensar as forças de sujeitos surdos pelo olhar da diferença enquanto potencialização de suas singularidades e particularidades, desconfigurando-os do mesmo, da identidade. Sujeitos surdos pensados não sob o prisma da diversidade, mas pelo viés da multiplicidade, pois “toda diversidade e toda mudança remetem a uma diferença que é sua razão suficiente” (DELEUZE, 2006b, p. 313). Trata-se de pensar um sujeito surdo atravessado por intensidades. Intensidades na diferença como razão do sensível, diferença em si mesma, sem preocupação com semelhanças ou igualdades. Uma intensidade diferencial que “designa catástrofes: sejam rupturas de continuidade na série das semelhanças, sejam falhas intransponíveis entre estruturas análogas” (Ibidem, p. 65). A diferença em si não tem relação, nem comparação com o outro; é um exercício de abandonar a identidade para tornar-se um devir-outro. Ao acreditar na potente força da diferença em si e em tentativas de escapar ao idêntico, busco tomar os sujeitos surdos de modo sensível, uma vez que [...] a razão do sensível, a condição daquilo que aparece não é o espaço e o tempo, mas o Desigual em si, a disparação tal como é compreendida e determinada na diferença de intensidade, na intensidade como diferença (Ibidem, p. 314). Contudo, algumas vezes, foi preciso balançar a indagação de Clark (2013, p. 354): “sinto-me sem categoria, onde é meu lugar no mundo?”. No esforço de tentar pensar a diferença fora de suas amarras, duvidando das verdades, fortaleço-me novamente com Deleuze (2006b, p. 315) quando diz que “[...] a diferença só é razão suficiente de mudança na medida em que essa mudança tende a negá-la”. Negar. 36 Duvidar. Questionar. Movimentar. Sacudir. Misturar. Afirmar “[...] a diferença que não se deixa igualizar ou anular (...)” (Ibidem, p. 321). A diferença em si simplesmente difere. Assim, um sujeito surdo devém, não é. Só de fora o gênero é determinável pela diferença específica, e a identidade dele, em relação às espécies, contrasta com a impossibilidade em que se encontra o ser de formar [...] (DELEUZE, 2006b, p. 64). Tornar visíveis as singularidades de um sujeito surdo, experienciando, experimentando instantes. Não “o” (artigo definido) sujeito como identidade, sujeito da representação, moldado pela e na diferença relativa, mas “um” (artigo indefinido) sujeito que pode borrar, afirmando sua diferença. Frente a isso, parece que somos desafiados a pensar um sujeito outro, uma diferença não minimizada. Uma diferença enquanto produção de singularidades. A tentativa, portanto, é pensar as possibilidades de um sujeito surdo atravessado na vida por meio das sensações, que dança não ouvindo o ritmo da música, mas a partir da vibração que a sonoridade nele produz. Um sujeito surdo experimenta uma língua com sentidos particulares, bem como uma escrita e uma comunicação singular. Um sujeito surdo experiencia uma vida. Mapear linhas tentando ir além da imagem enquanto forma que o espelho nos mostra. Os sujeitos são provocados por interferências que o mundo efetua neles, que os fazem agir, produzir, manifestar ou não suas forças. Assim, a ideia que se apresenta aqui não é a de um corpo surdo sinônimo de motor, nem um suporte que nos relaciona com o ambiente, mas sim uma potência que efetua a vida. Puro movimento, o corpo é o que não sabemos, seu caráter intangível se dá na multiplicidade das verdades que o compõem em instância subjetiva e política. O corpo é o lugar de toda travessia na aventura humana (KEIL; TIBURI, 2004, p. 9). Ao destituir-se das convenções sociais, um corpo pode chegar ao vazio, movimentar-se por encontros, tal qual o Corpo sem Órgãos, de Antoine Artaud11. Em suas palavras, “quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade” (ARTAUD, texto digital, p. 42). 11 Antoine Artaud cria a expressão corpo sem órgãos para pensar o teatro enquanto uma forma de expressão espacial, concreta, física, sensível. Expressão que se dirige ao corpo, desnudando-o de todas as convenções sociais (ARTAUD, 2006). 37 Trindade (2013, texto digital), ao referir-se ao Corpo sem Órgãos de Artaud, afirma que “todas as possibilidades são consideradas, tudo que foge à vida anestesiada, tudo que desfaz o entorpecimento da rotina, tudo que produza intensidade, tudo que gere novos agenciamentos, organizações”. Este corpo deseja tomar o que é dele: a potência de existir, que abandona os órgãos e experiencia a vida, as variações nos acontecimentos. Deleuze e Guattari (1996), ao conceituarem o Corpo sem Órgãos, dão o exemplo da tarefa da mão, que é usada para apertar parafusos, mover alavancas e escrever relatórios no escritório. Perdendo a finalidade que lhe deram, torna-se um corpo sem órgãos. Desse modo, o corpo aprende a [...] dedilhar um violão, pintar um quadro, acariciar uma pessoa. A boca que era usada para dar ordens, organizar, repreender, dar sentido, passa a cantar, beijar, provar. Os pés que levam ao trabalho podem ser usados para dançar (TRINDADE, 2013, texto digital). Em Serres (2004), também encontramos que temos que esquecer o nosso corpo para habitá-lo melhor. Corpos esquecidos, dilacerados, membros separados, instáveis, desorganizados, perturbados. O Corpo sem Órgãos também poderia ser pensado como o corpo vibrátil de Suely Rolnik. Em sua entrevista, Rolnik (2010, texto digital) afirma: [...] chamar de vibrátil é mais jogo que chamar de sem órgãos, porque tem o “sem órgãos” do Artaud, que pode sugerir uma distância da experiência imediata da vibratilidade – você pode não fazer a conexão da experiência com a sua vibratilidade. Segundo, porque ele pode ser muito mal interpretado, que a questão é de se arrebentar, a questão é ficar sem órgãos. Assim, o Corpo sem Órgãos define-se como um conjunto de práticas que não se fixa apenas em uma atividade, mas que move a vida, experimentando diferentes possibilidades de envolvimento, buscando situações que tornam o corpo potente. A este respeito, Serres (2004, p. 116) afirma que “[...] um corpo deixa jorrar maravilhosamente de si uma estrutura própria, um movimento só seu, uma função singular [...]”. Avistam-se novas construções e novos horizontes a partir de um estilo de vida nômade, que não se fixa em apenas uma possibilidade. Uma vida para se viver, não para compreender. O CsO não está preocupado com horários, dinheiro, mercadorias, rótulos, prazos: sua busca é por outras formas de viver e se expressar, em suma, outras formas de sentir a vida. Aumentar o prazer de viver, de sentir, de 38 experimentar, produzir, afetar e ser afetado (TRINDADE, 2013, texto digital). Um corpo sem imagem definida, um vir a ser, atropelando um corpo forma, para vazar. Um “corpo nunca é um organismo [...] é um corpo intenso, intensivo” (DELEUZE, 2007, p. 51). Criando-se um Corpo sem Órgãos, rompe-se com o orgânico do corpo, extrapolando-se seus limites e suas fronteiras, borrando todo tipo de diferença relativa, pois um corpo “possui apenas uma realidade intensiva que nela não determina mais dados representativos” (Ibidem, p. 52). Sensação como vibração que afecta uma vida não-orgânica, pois o organismo é o que aprisiona o corpo. Um encontro entre corpo e forças externas me faz lembrar, novamente, as palavras de Deleuze (2007, p. 53): Uma sensação aparece no encontro de um determinado nível da onda com forças exteriores. Um órgão será, portanto, determinado por esse encontro, mas um órgão provisório, que só dura o quanto durarem a passagem da onda e a ação da força, e que se deslocará para se situar em outro lugar. Nesse sentido, as pinturas de Bacon também surgem aqui: algo que não se programa, não se esboça anteriormente. Sem formas, produzidas em meio a abaulamentos, acidentes, por meio de “uma linha que não pára de mudar de direção, interrompida, quebrada, desviada, voltada sobre si, enrolada ou até prolongada para fora de seus limites naturais [...]” (Ibidem, p. 53). Pintar um quadro sem esboço, da ordem do inusitado, do acaso, do momento. Dessa maneira, Bacon criava suas obras, com um desejo de não copiar, de não representar, de não igualar nada. Um Corpo sem Órgãos a ser criado, inventado, como um corpo que se atira ao caos e que nele varia, se deforma. Deleuze (2007) afirma que, em Bacon, o Corpo sem Órgãos é criado por meio da pintura esfacelada, por pinceladas violentas que efetuam órgãos temporários e transitórios. Tal qual a pintura de Bacon, talvez se possa extrair do corpo a presença da representação, com o desejo de ir além dela, pintando-se singularidades por meio de linhas polivalentes. Um Corpo sem Órgãos passageiro, movente, uma vez que A onda percorre o corpo; um corpo sem órgãos será determinado num certo nível, de acordo com a força encontrada; e esse órgão mudará se a força também mudar [...]. Em suma, o corpo sem órgãos não se define pela ausência de órgãos, não se define apenas pela existência de um órgão indeterminado; ele se define, enfim, pela presença temporária e provisória 39 dos órgãos determinados (Ibidem, p.54). Ainda na tentativa de pensar tal corpo, aproximo-me da potência dos afectos de Spinoza quando afirma que “o corpo humano pode ser afectado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída” (SPINOZA, 2009, p. 97). O corpo é da ordem dos afectos e sofre alterações decorrentes dos encontros experienciados. Para Barbosa e Lopes (2012), na esteira de Spinoza, “afectar e ser afectado são disposições corporais que modificam o próprio corpo, que o fazem variar e que podem disparar a efetuação de algum devir” (Ibidem, p. 179). Em relação aos devires e afectos, Rolnik (2010, texto digital) também nos diz: Se você junta ele com a ideia de corpo sem órgãos e de imanência, a gente sabe que o corpo vibrátil é aquele ponto de interrogação em nós que está sempre levando a uma recriação desse espaço, ele é irredutível ao nosso contorno atual, é a presença do mundo no nosso corpo que nos leva a ser mundo e a criar mundo. Palavras como flexibilidade, movimento, mexer, pluralizar modos de ser, potencializar vidas, movimentam meu pensamento. Experimentar, viver, diferir. Libertar-se como um passarinho, que ora está aqui, ora está lá, movimentando-se, deformando-se, transformando-se, desfigurando-se, variando-se, experienciando, voando, modificando. Pensar a vida como permissão e criação de novas potências, uma vez que “a liberdade se define pelo corpo e este por sua potencialidade” (SERRES, 2004, p. 52). É a partir dessas ideias que busco pensar sujeitos surdos e suas experiências visuais. Sujeitos que experimentam, no equilíbrio, o desequilíbrio; no passo, um descompasso; na reta, uma curva; na forma, uma deformidade; na semelhança, um escape; no exato, uma interrogação; no caos, a fragilidade de uma vida. Na tentativa de escapar ao historicamente construído, Pelbart (2004, p. 47) afirma que [...] por um lado temos as potências da vida que precisam desfazer-se de suas formas cristalizadas para se experimentarem, por outro temos o poder sobre a vida que precisa de um corpo pós-orgânico ou de uma vida pós- orgânica para anexá-los à axiomática capitalística. Uma vida pode emergir à medida que consegue escapar às formas fixas, criando possibilidades outras, que não as da repetição. Ao experimentarem-se, os sujeitos surdos entram em contato com possibilidades que sua realidade produz; por isso, são singulares, já que evidenciam sensações que os diferem de outros. Para Rolnik (2010, texto digital), o “afeto se incorpora à textura do nosso corpo, dessa 40 capacidade vibrátil do corpo, da nossa sensibilidade”. A autora segue afirmando que o afecto é como um movimento que “vem dessa experiência sensível-vibrátil do mundo como um campo de forças e que faz uma pressão, um movimento do vetor de incorporar a cartografia do presente” (ROLNIK, 2010, texto digital). Um corpo frágil que “sabe quando a vida está vingando e quando ela está minguando” (ROLNIK, 2010, texto digital). Um sujeito pode ser assim pensado enquanto potencialidade de vida: visível- invisível. Ora mostra a sua potência, ora a esconde. Provocações apenas. Linhas. Entrelinhas. Ligação. Um traço num dia, um rabisco no outro. Pinceladas imanentes à vida, às possibilidades, aos movimentos. Entre as diferentes maneiras de olhar o tempo presente, concordo com as ideias de Lopes quando afirma que é preciso uma “liberdade para mudar sua condição. Tem também mobilidade para sair das posições, identidades e funções que ocupam” (LOPES, 2009, p. 125). Nesse sentido, um sujeito surdo pode encontrar-se num emaranhado de linhas de vida, passíveis de constante movimento. 41 4 TRAJETOS ERRANTES... No percurso desta pesquisa pelas paisagens até agora descritas, senti a necessidade de dar visibilidade às marcas “duras” instituídas em torno das representações da surdez, social e historicamente construídas. Porém, em meio a essas linhas endurecidas, passa-se por linhas moleculares e de fuga, engendrando- se a vida enquanto potência e possibilitando-se, pela cartografia, alguns escapes, algumas linhas de criação e de invenção de outros territórios, diferentes dos já explorados. Nesta dinâmica das linhas, os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) novamente ajudam-nos a pensar. Para eles, existem três linhas. [...] somos feitos de linhas. Não queremos apenas falar de linhas de escrita; estas se conjugam com outras linhas, linhas de vida, linhas de sorte ou de infortúnio, linhas que criam a variação da própria linha de escrita, linhas que estão entre as linhas escritas (Ibidem, p. 72). As primeiras, denominadas por Deleuze e Guattari (1995) de linhas duras, estão relacionadas ao binarismo, trazendo noções fixas, com fases delimitadas e identidades permanentes. Podemos pensar os sujeitos surdos, historicamente produzidos, como estas linhas, na medida em que são vistos como capazes ou incapazes, normais ou anormais, sem mobilidade para criar ou movimentar-se, estando categorizados em um espaço que permite ou isso, ou aquilo. Estas linhas também podem ser denominadas de molares, demarcam territórios disciplinares e constituem o controle. Quando estas linhas estão fortemente marcadas, existe o perigo da cristalização dos saberes, quando se apaga toda diferença, pensando-se apenas de forma única, emitindo-se juízo de valor, definindo-se o que é bom, o que é ruim, o que é certo e o que é errado, quem está “dentro” e quem está “fora”. 42 Em meio a estas linhas territorializadas, algumas brechas ou algumas fissuras podem ser criadas pelos sujeitos surdos, na tentativa de modificar estes espaços que a eles são destinados, a fim de pluralizar as vias já postas, inventando outras possibilidades para as já dadas. Tais linhas poderiam ser denominadas, segundo Deleuze e Guattari (1995), de flexíveis; elas permitem que o fixo sofra algumas pequenas e sutis rachaduras. Estes movimentos são quase imperceptíveis, e as mudanças que eles provocam são pequenas, ou seja, trata-se de linhas que possibilitam criações, rasgaduras e escapes operados minimamente, e não de maneira revolucionária. O terceiro tipo de linhas - lembrando que todas elas se movimentam, sendo umas dependentes das outras, misturando-se, alternando-se, coexistindo - é o das que Deleuze e Guattari (1995) denominam de linhas de fuga, responsáveis por causar rupturas bem marcantes, modificando o território anterior. Há linhas que não se reduzem ao trajeto de um ponto, e escapam da estrutura, linhas de fuga, devires, sem futuro nem passado, sem memória, que resistem à máquina binária, devir-mulher que não é nem homem nem mulher, devir-animal que não é nem bicho nem homem (Ibidem, p. 36). Essas linhas de fuga também podem ser pensadas como linhas de criação. Deleuze e Guattari (1995) dizem que elas podem ser perigosas, justamente por essas mudanças radicais que provocam. Os autores afirmam que as linhas de fuga “saltam de uma linha a outra, entre seres totalmente heterogêneos; fissuras, rupturas imperceptíveis, que quebram as linhas mesmo que elas retomem noutra parte” (Ibidem, p. 36). Deleuze (1998) diz que somos cortados, atravessados, bifurcados por linhas que coexistem, se alternam, se misturam, compõem ou criam fissuras em um território, criam e desmancham geografias. Ele afirma: [...] tento explicar que as coisas, as pessoas, são compostas de linhas bastante diversas, e que elas não sabem, necessariamente, sobre qual linha delas mesmas elas estão, nem onde fazer passar a linha que estão traçando: em suma, há toda uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga etc. (DELEUZE; PARNET, 1998, p.21). Em meio a tais linhas, poderíamos pensar os sujeitos surdos como paisagens em movimento que a cada momento se desfazem para virem a ser outras, também em movimento. São potentes os fluxos capazes de borrar a lógica da repetição do 43 mesmo, possibilitando diferentes modos de existir aos sujeitos surdos, a partir de linhas de vida que se entrelaçam, se misturam e se ramificam. Assim, pensar os sujeitos surdos pelos movimentos que estas três linhas nos sugerem talvez seja uma força para rachar algumas estruturas molares, permitindo problematizar e criar possibilidades inventivas para que os sujeitos surdos sejam potencializados em suas singularidades. 4.1 Atravessamentos metodológicos Ao observar alguns sujeitos surdos em contatos anteriores à pesquisa, passei a interessar-me pelos movimentos emanados por eles, não apenas no contexto de sala de aula, mas na captação da vida. A cada observação, as inquietações aumentavam e elas me levaram ao caminho desta pesquisa de Mestrado, que se configurou na possibilidade de pensar a relação de sujeitos surdos com a vida, por meio de experiências visuais captadas mediante registros fotográficos. Dessa forma, minha posição como pesquisadora consistiu em pensar alguns movimentos de rupturas e provocações aos sujeitos surdos por meio de lentes. Cartografando. Fotografando. Caminhando. Uma lembrança de Lygia Clark12 e sua obra Caminhando. A obra Caminhando foi produzida pela artista Lygia Clark em 1963. Tal obra consiste em pegar uma tira de papel e juntar as pontas para formar um círculo. Antes, é preciso girar uma delas e colá-la do lado contrário, de modo que esse círculo se transforme numa fita de Moebius, da qual não se pode dizer onde é o dentro e onde é o fora. Pega-se uma tesoura, faz-se um furo no papel e começa-se a cortar no sentido do comprimento, circulando por toda a extensão da tira, fazendo uma volta completa. Só não se pode dividi-la em duas. Quando estiver próximo do início, decide-se se continua pela direita ou pela esquerda do corte que se acabou de fazer. 12 A artista brasileira Lygia Clark (1920-1988) inovou radicalmente a relação entre o objeto de arte e o público. Como cofundadora do movimento neoconcretista, trabalhou com a teoria de que a arte deve ser ao mesmo tempo subjetiva e orgânica e que a arte deve ser moldada e manipulada pelo espectador. A trajetória de Lygia Clark faz dela uma artista atemporal e sem um lugar muito bem definido dentro da História da Arte. Tanto ela quanto sua obra fogem de categorias ou situações que podemos facilmente embalar. Disponível em: <http://www.lygiaclark.org.br/defaultpt.asp>. Acesso em: 28 jan. 2015. http://www.lygiaclark.org.br/defaultpt.asp 44 Busco relacionar a obra Caminhando com a experiência descrita nesta dissertação, como obra que se realiza no ato, uma caminhada que tem várias direções, na qual há espaços para voltar atrás. As marcas, as escolhas ficam registradas através das lentes da câmera. Mesmo no procedimento operado pela artista, querendo-se reverter uma escolha, colando-se as tiras ou buscando-se outros recortes, a marca permanecerá como uma cicatriz do gesto, não esquecendo o que passou. Com a obra Caminhando, Lygia Clark tenta transformar o material num gesto, livrando-o das formas estabelecidas, escapando aos moldes e modificando, assim, as estruturas, singularizando-as. Clark (1964) diz que sua obra é apenas uma potencialidade. O sujeito e a ação formarão uma realidade, em uma mistura entre sujeito-objeto, por isso uma fusão, um corpo-a-corpo. As diferentes construções surgirão das escolhas em meio a esta fusão. Entrelaçamentos em transição, experiência por onde se percorre: direita, esquerda, frente, trás, apenas se segue. Imagem 2 - Caminhando Fonte: Lygia Clark. No entremeio de tal fusão, encontrei-me com sujeitos surdos, a quem chamarei de caminhantes. A escolha dessa denominação dá-se, por um lado, devido ao contágio com a obra Caminhando, de Lígia Clark; por outro, porque o contato com esses sujeitos surdos foi realizado através de alguns percursos realizados a pé, 45 ou seja, caminhando. Três foram as caminhantes desta pesquisa. Todas elas mulheres da faixa etária de 30 a 39 anos, moradoras de Lajeado e Estrela, no Rio Grande do Sul - mulheres adultas com quem tive contato em alguns momentos de minha vida. Com a primeira caminhante, tive contato no Centro Universitário UNIVATES, acompanhando-a em parte de seu curso de graduação. A segunda caminhante foi uma mulher que, durante o ano de 2012, foi minha colega de profissão; trabalhamos no mesmo colégio nesse ano, eu com Anos Iniciais e ela com o curso Normal, na disciplina de LIBRAS. Por fim, a terceira caminhante foi minha professora no curso de LIBRAS que realizei em 2007 na Casa de Cultura da cidade de Lajeado em todas as quartas-feiras à tarde. As caminhantes, junto comigo, percorreram trajetos, ora escolhidos por elas, ora combinados com o grupo. Dessa forma, alguns percursos foram realizados somente com uma caminhante, outros, com as três juntas. Foram registradas as sensações experimentadas a cada encontro, utilizando- se diário de campo, conversas e fotografias como ferramentas. Sobre a escolha do diário de campo, parafraseio Bocco (2006) quando comenta que o diário contém notas e experiências, não com o propósito de relatar tudo, mas como uma escrita que traz a intensidade dos acontecimentos com uma linguagem literária, e não técnica ou científica. Utilizei o diário de campo nesta pesquisa não como um relatório de cada passo da caminhada que realizei com cada caminhante, mas como um instrumento que foi sendo produzido concomitantemente com as intensidades dos encontros. Algumas escritas aconteciam entre encontros; mais do que frases elaboradas, eram registradas palavras que emergiam dos instantes. Posteriormente, em casa, quando sentava para escrever, é que as frases eram elaboradas com maiores detalhes. No primeiro encontro, após despedir-me da caminhante, sentei em um banco próximo ao lugar em que caminhamos e fiz alguns rabiscos, ainda imersa nas pulsações que vibravam no ambiente. Já no segundo e terceiro encontros, ao entrar no carro, fiz alguns registros que julgava pertinentes, pois temia deixá-los passar caso esperasse até chegar a casa. Todos os registros eram feitos em um pequeno bloco, do tamanho de meia folha A4, espiralado. As folhas eram utilizadas sem seguir uma sequência, frente e verso, em descompasso. 46 Destas folhas, algumas singelas cartografias iam se delineando. Para Kastrup (2009), a pesquisa cartográfica é uma experiência que aposta no fazer para depois saber. A intenção é transformar (agir) para tentar conhecer, mas não com o propósito de transformar a realidade ou de explicá-la, pois, como afirma Amador (2009, p. 35), “é preciso escapar às tentações explicativas dos movimentos do mundo remetendo a pontos estáticos de sua mutação (...)”. Na cartografia, os critérios de verdade ou juízos de valor ficam suspensos, pois se busca retratar a vida onde ela está: nas pessoas, nas vibrações e nos encontros produzidos. A investigação cartográfica é um Processo a ser acompanhado e construído conjuntamente. Isso exige estar disponível e disposto para deixar-se afetar, porque a única forma de transformar a realidade é nos transformando ao mesmo tempo, nossos preconceitos, nossos medos, nossa rigidez em formas identitárias fechadas (BOCCO, 2006, p. 52). Afectos que permitem tatear, dar visibilidade e experienciar a vida por meio do olhar. Kastrup (2009) menciona o termo rastreio, caracterizando-o como um acompanhamento dos encontros oportunizados. Segundo a autora, “trata-se aí de uma atitude de concentração pelo problema e no problema” (KASTRUP, 2009, p. 40). Para complementar, Rolnik (2007) traz importantes considerações acerca do cartógrafo, como alguém que acredita que “o que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. E o que quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia (...)” (ROLNIK, 2007, p. 66). A partir dos princípios da cartografia, escolho a carto(foto)grafia como ferramenta metodológica de pesquisa, por possibilitar uma abertura aos encontros, por tratar-se de uma proposta que permite que sensações sejam fruídas; experiências, trocadas; e vidas, potencializadas e registradas. Proponho mapear os encontros das caminhantes com a fotografia, acompanhando os processos e estando sensível aos acontecimentos que capturam o olhar. Embora os sujeitos surdos experimentem a vida por vários sentidos, é pela visão que tal relação com o mundo se dá com mais afinco. Na pesquisa, a ideia não era fotografar os sujeitos, mas olhar através das experiências visuais que eles captassem pela fotografia. A escolha de operar com câmeras fotográficas 47 possibilitou que registros fossem realizados a partir do olhar dos sujeitos participantes. A carto(foto)grafia surge da composição entre as palavras cartografia e fotografia, e foi nesse exercício que me lancei: realizar uma pesquisa carto(foto)grafando os encontros pelos quais as caminhantes vão sendo afectadas durante o caminhar. A partir de percursos imprevistos, impensados, sem demarcação de pontos de chegada, criaram-se as possibilidades de caminhar à deriva, trocando-se, experimentando-se os encontros. Carto(foto)grafia, fusão criada entre duas palavras, misturas e meios.