CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA A ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA NO 1º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO NA ESCOLA MUNICIPAL AGRÍCOLA, FLORESTAL E AMBIENTAL DE ILÓPOLIS/RS Mateus Lorenzon Lajeado, Junho de 2016 Mateus Lorenzon A ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA NO 1º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO NA ESCOLA MUNICIPAL AGRÍCOLA, FLORESTAL E AMBIENTAL DE ILÓPOLIS/RS Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, do Curso de Pedagogia, do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para obtenção do título de licenciado em Pedagogia. Orientadora: Dra. Jacqueline Silva da Silva Lajeado, Junho de 2016 AGRADECIMENTOS Ao final de uma etapa é necessário olharmos os caminhos percorridos. Certamente, alguns trechos percorremos sozinhos, entretanto, na maior parte fomos acompanhados e encorajados por outras pessoas. Foram nesses encontros que mudamos e modificamos os nossos modos de ver e compreender o mundo. Assim, quero agradecer imensamente a todos aqueles que me acompanharam. Agradeço, primeiramente, aos meus pais e meu irmão pelo apoio incondicional, não apenas neste momento, mas durante toda minha vida. Agradeço a professora Jacqueline Silva da Silva que sempre esteve presente ao longo desta caminhada, seja como orientadora, como docente ou como amiga. Agradeço a professora Daiani Clesnei da Rosa pela dedicação na leitura e avaliação do meu trabalho. Agradeço imensamente a comunidade da Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental de Ilópolis/RS, em especial o diretor Marcelo Rabaiolli pela receptividade, a Coordenadora Pedagógica Ivanir Cappelati pela atenciosidade, ao professor Nédio Ghelen pela solicitude, a professora Teresinha Tomasini pela confiança e, sobretudo, às crianças do 1º Ano do Ensino Fundamental, “coautores” desse trabalho. “Debulhar o trigo Recolher cada bago do trigo Forjar no trigo o milagre do pão E se fartar de pão” Chico Buarque e Milton Nascimento (1977) RESUMO Na contemporaneidade, documentos de organismos internacionais, salientam a necessidade do desenvolvimento de uma Educação Científica como condição essencial para o crescimento econômico das nações. Entretanto, muitas vezes, o resultado dessas orientações, são currículos organizados em torno de princípios tecnocráticos e na supervalorização da eficiência e da racionalidade. O Ensino de Ciências organizado em torno desse paradigma conduz a desumanização do sujeito, o levando a adotar uma postura celebratória frente aos acontecimentos cotidianos. Nessa perspectiva, nesse estudo de caráter qualitativo, investiguei de que modo as estratégias de ensino empregadas por uma professora do 1º Ano do Ensino Fundamental contribuem para favorecer uma Alfabetização Científica que permita aos sujeitos uma compreensão crítica dos fenômenos naturais e sociais. O estudo foi desenvolvido junto a Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental de Ilópolis/RS. O corpus da pesquisa foi produzido por meio de entrevistas com profissionais que atuam na gestão da escola (Diretor, Coordenadora Pedagógica, Coordenador da Área Técnica), entrevista com uma professora do 1º Ano do Ensino Fundamental, observações às práticas pedagógicas, registros fotográficos, filmagens e gravações de áudio esporádicas, sendo que os dados produzidos foram analisados por meio da técnica de Análise Textual Discursiva (MORAES; GALIAZZI, 2011) e dispostos em categorias, dentre as quais destaco o uso de de temas geradores como método de organização do planejamento, a realização de projetos de investigação, o uso de diferente espaços com finalidades pedagógicas e a concepção do trabalho como princípio educativo. Essas estratégias pressupõem que os estudantes detêm uma determinada leitura de mundo que precisa ser evidenciada, discutida e superada. Essas estratégias de ensino possibilitam as crianças o desenvolvimento de um exercício de superação do próprio pensamento, e sobretudo as levam a uma compreensão crítica da realidade na qual estão inseridas. Palavras-chave: Alfabetização Científica. 1º Ano do Ensino Fundamental. Estratégias de Ensino. SUMÁRIO 1. A DECISSÃO DO PLANTIO................................................................ 5 2. FERRAMENTAS PARA O PLANTIO.................................................. 10 2.1 Instrumentos da coleta de dados................................................... 2.2 A abordagem de Análise do corpus da pesquisa......................... 2.3 O contexto do estudo...................................................................... 2.4 O 1º Ano do Ensino Fundamental.................................................. 2.5 A professora titular e a sua prática pedagógica........................... 11 14 14 17 17 3. PREPARO DO SOLO.......................................................................... 20 3.1 Alfabetização Científica................................................................... 3.2 Estratégia de Ensino........................................................................ 20 22 4. DAS SEMEADURAS........................................................................... 25 4.1 Documentos norteadores da Educação e Alfabetização Científica................................................................................................. 4.2 Planejamento Pedagógico e Alfabetização Científica.................. 4.2.1 Temas Geradores................................................................ 4.2.2 Projetos de Investigação.................................................... 4.3 Espaços Pedagógicos e o desenvolvimento da Alfabetização Cientifica................................................................................................. 4.4 Estratégias de Ensino e o desenvolvimento da Alfabetização Científica................................................................................................ 4.4.1 Práticas de Educação Ambiental....................................... 4.4.2 O trabalho como princípio educativo................................ 4.4.3 O trabalho de espiritualidade............................................. 26 30 31 34 36 39 39 41 44 5. A HORA DA COLHEITA..................................................................... 47 REFERÊNCIAS....................................................................................... 51 APÊNDICES............................................................................................ 57 5 1. A DECISSÃO DO PLANTIO A estrofe do Cio da Terra – canção que serve de epígrafe deste trabalho – é uma composição de Chico Buarque e Milton Nascimento inspirada no trabalho de camponesas coletoras de algodão. Ao descrever a transformação do trigo em pão, a música descreve o trabalho como um processo criativo e formativo do homem, apresentando as possibilidades de fazer com que os grãos escuros do trigo transformem-se em fartura de pão. A transformação do trigo em pão não é uma tarefa simples ou que possa ser reduzida a uma receita. Mesmo possuindo uma explicação racional, os processos de fermentação e a elaboração do pão são uma tarefa ritualística que demanda da cozinheira o domínio das diversas nuances do preparo. A metamorfose do trigo evidencia a polifasia existente entre o saber científico, os ritos e o saber popular. Tal como em seu sentido místico e religioso, o pão pode ser entendido como um elemento de comunhão dos distintos modos de saber. Essa transformação assemelha-se também ao trabalho de pesquisa, visto que ambas exigem tempo, paciência, esforço, e sobretudo, acreditar nas possibilidades da semente - após ser cuidadosamente plantada e cuidada – ser transformada em pão. Como o agricultor que confia que o seu trabalho será recompensado pela fartura, o pesquisador também precisa acreditar que seu esforço resultará em bons frutos. Assim, o pão não nasce do acaso, mas sua produção começa no momento em que o camponês escolhe a semente que plantará e essa decisão não envolve um único motivo. Freire (2011b, p. 25) afirmava que “nunca um acontecimento, um fato, um feito, um gesto de raiva ou de amor, um poema, uma tela, uma canção, um livro, têm 6 por trás de si uma única razão”. Assim também são os frutos de nosso trabalho, eles têm em si justificativas provenientes de distintas razões. Ao buscar as motivações que me fizeram realizar este trabalho, sinto necessidade de retomar brevemente minha própria história de vida. Nasci em uma pequena localidade no interior de Nova Bréscia/RS. Assim, minha infância foi marcada pelo brincar na terra molhada, pelas expedições que fazíamos pelas matas próximas e pelas brincadeiras de extrair cor das flores. As conversas com as crianças vizinhas giravam sempre em torno de nossas hipóteses sobre o mundo. Lembro-me que nos reuníamos em uma pequena sala de minha casa que se tornou, com o tempo, o nosso laboratório. Nesse espaço, nossa imaginação fazia com que as misturas fossem líquidos explosivos e que pedaços de madeira se transformassem em grandes máquinas. Entretanto, essas brincadeiras foram dando lugar às responsabilidades. Desde criança, revezava um turno na escola e outro em casa auxiliando meus pais em pequenas tarefas, como o cuidado da horta e o trabalho na agricultura. Foi nesse mundo que tive meus primeiros contatos com a agricultura. Primeiro, aos cinco anos, plantei algumas mudas de tomates na “minha horta” e no ano seguinte, com ajuda do meu pai, foi a vez de cultivar alho e feijões e me arriscar a criar coelhos e algumas galinhas. Quando ingressei em uma escola do campo que existia próxima a nossa casa, descobri uma seção da biblioteca destinada a livros que ensinavam técnicas de agropecuária. Folheando o material ilustrativo, aprendi sobre germinação das sementes e técnicas de plantio de árvores que aplicava em casa com auxílio dos meus pais. Assim, produzi meus primeiros pés de macieira. Ao final do Ensino Fundamental, possuía sonhos distintos. O primeiro, era estudar em uma escola agrícola para ser técnico em enologia. Contudo, prevaleceu o gosto pela docência, o que me fez realizar o Curso Normal. Antes de concluí-lo, eu já trabalhava em uma Escola Municipal de Educação Infantil. Ao me formar e receber a habilitação de Professor de Educação Infantil e Anos Iniciais, comecei a cursar Pedagogia no Centro Universitário UNIVATES. Estar em um curso superior e, concomitantemente trabalhar em uma escola de Educação Infantil, me fez questionar profundamente as práticas pedagógicas que realizava para e com as crianças, fazendo com que eu percebesse uma divergência entre o que eu realizava e o que eu sonhava ser uma educação ideal. Isso fez com que me inscrevesse para uma seleção 7 de bolsistas da pesquisa “Iniciação a Pesquisa, às TICs e ao Ensino: Do Sul ao Norte e Nordeste do Brasil”. Na semana seguinte ao processo seletivo eu me tornava um integrante desse grupo de pesquisa, sendo orientado pela Professora Jacqueline Silva da Silva. Ao analisar os caminhos percorridos, saliento que o meu interesse pela pesquisa é resultante do meu gosto pela docência. Por meio da iniciação à pesquisa e das disciplinas do curso de graduação, reli de modo mais crítico as obras de Paulo Freire, a quem eu já tinha sido apresentado no Curso Normal. Essas leituras fizeram com que eu olhasse novamente a minha própria história e ressignificasse as minhas lembranças, percebendo que as atividades que realizei desde criança eram parte da minha busca por ser-mais. Quando essa percepção tornou-se evidente, me senti instigado a investigar como a leitura de mundo de crianças que vivenciam experiências similares às que presenciei na minha infância era contemplada no currículo escolar. Desse modo, no Trabalho de Conclusão de Curso busquei investigar de que modo as estratégias de ensino empregadas por uma professora do 1º Ano do Ensino Fundamental contribuem para favorecer uma Alfabetização Científica que permita aos sujeitos uma compreensão crítica dos fenômenos naturais e sociais. Parti, assim, do pressuposto de que a alfabetização é um processo que envolve a leitura do mundo e leitura da palavra, levando a uma compreensão crítica dos fenômenos naturais e sociais e a ação transformadora do mundo no qual vivemos (FREIRE, 1988, 2011c). Nessa perspectiva, o problema orientador desse estudo foi “Como as estratégias de ensino utilizadas por uma professora do 1º Ano do Ensino Fundamental favorecem o desenvolvimento da Alfabetização Científica que permita aos sujeitos uma compreensão crítica dos fenômenos naturais e sociais? ”. A fim de responder a esta pergunta, os objetivos específicos desta pesquisa consistiram em: - Conhecer as estratégias de ensino empregadas por uma professora do 1º Ano do Ensino Fundamental que favorecem a Alfabetização Científica. - Analisar a organização dos diferentes tipos de planejamento utilizados pela professora participante do estudo. 8 - Verificar como os interesses e as necessidades das crianças são contemplados no Planejamento Pedagógico. - Observar as práticas desenvolvidas pela professora que favorecem o desenvolvimento da Alfabetização Científica. - Identificar os espaços que são utilizados no decorrer das práticas pedagógicas. Dessa forma, as questões norteadoras do estudo foram: - Quais as estratégias de ensino empregadas pela docente investigada para favorecer o desenvolvimento da Alfabetização Científica das crianças? - Como a professora participante da pesquisa elabora o planejamento pedagógico das situações de aprendizagem desenvolvidas para e com as crianças? - De que modo os interesses e as necessidades das crianças são contemplados em seu Planejamento Pedagógico? - Quais as práticas desenvolvias pela professora que favorecem o desenvolvimento da Alfabetização Científica? - Quais espaços são utilizados no decorrer das práticas pedagógicas? Saliento que essa pesquisa, além das motivações subjetivas sobre as quais dissertei anteriormente, justifica-se pelo fato de que o conhecimento científico vem sendo apontado em documentos da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) como chave para o desenvolvimento econômico das nações. Quando este pressuposto é operacionalizado, leva a um ensino apoiado em princípios tecnocráticos, no qual preza-se a eficiência e a racionalidade. Uma Educação Científica apoiada na perspectiva tecnocrática leva a uma adoção de uma postura celebratória frente aos acontecimentos, dissociando o conhecimento de princípios éticos, estéticos e existenciais. Salienta-se que esse modelo de Educação Científica resulta em um processo de desumanização do sujeito, processo este pelo qual cultua-se a racionalidade científica em detrimento de outros modos de saber produzidas pelos sujeitos. Nesse sentido, enfatizo a necessidade de buscar a organização de um currículo para o ensino de Ciência que valorize os saberes provenientes da cultura dos educandos. Pressuponho que o ensino de 9 Ciências voltado para a humanização do sujeito pode iniciar já na primeira infância, visto que é na tenra idade que as crianças começam a revelar seus interesses para compreender acontecimentos cotidianos (RODEN, WARD, 2010). Assim, diante do exposto, apresento a organização da monografia que se encontra estruturada em cinco capítulos. Neste primeiro capítulo, intitulado “A Decisão pelo plantio”, busquei, por meio de um breve memorial, justificar a escolha pelo tema de pesquisa e delinear os objetivos da investigação. No capítulo intitulado “Ferramentas para o plantio”, caracterizo a investigação apresentando os instrumentos utilizados para a geração do corpus da pesquisa e as técnicas de análise dos dados, bem como contextualizo a Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental de Ilópolis/RS, instituição na qual o estudo foi realizado, apresentando sua história e os seus objetivos. Nesse mesmo capítulo, apresento os sujeitos participantes da pesquisa: a professora do 1º Ano do Ensino Fundamental e as crianças dessa etapa de ensino. O capítulo “O Preparo do Solo” assume um caráter mais teórico. Nele apresento os conceitos centrais do estudo: Alfabetização Científica e Estratégias de Ensino. Por sua vez, no capítulo intitulado “Das semeaduras” apresento e disserto sobre as categorias emergentes da pesquisa realizada. A monografia finaliza com o capítulo “A hora da colheita?”, no qual destaco algumas considerações decorrentes do trabalho investigativo. 10 2. FERRAMENTAS PARA O PLANTIO Todo o plantio demanda certas ferramentas. São elas que mediam a relação homem-mundo e permitem que o primeiro intervenha em sua realidade. No caso do homem do campo, possuir os instrumentos é uma condição essencial para que ele possa realizar as suas tarefas. Também o pesquisador, quando vai para o seu campo de estudo, apropria-se de alguns instrumentos que permitem intervir e interpretar a realidade. Uma vez que essa investigação visou investigar de que modo as estratégias de ensino empregadas por uma professora do 1º Ano do Ensino Fundamental contribuem para favorecer uma Alfabetização Científica que permita aos sujeitos uma compreensão crítica dos fenômenos naturais e sociais, optei por empregar uma abordagem qualitativa. As pesquisas qualitativas, segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 16) privilegiam “a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação”. Assim, as informações obtidas nesse processo não visam ser generalizadas, mas voltam-se sobretudo para elucidar como ocorre o processo de Alfabetização Científica em uma realidade específica. Uma vez que, com esse estudo qualitativo, objetivei compreender o fenômeno estudado, contemplando na investigação todas as suas especificidades e a sua complexidade, realizei um Estudo de Caso e uma Pesquisa Documental. Yin (2005, p. 19) defende que o estudo de caso é uma estratégia de pesquisa empregada “quando o pesquisador tem pouco controle sobre os acontecimentos e quando o foco se encontra em fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da vida real”. O Estudo de Caso possui validade para estudar fenômenos que acontecem no tempo presente e sobre o qual incidem muitas variáveis. Justifico, assim, o uso desse 11 tipo de pesquisa, pois ela permite desvelar os fatores que incidem em temáticas complexas, além de permitir explorar de modo mais aprofundado a temática em estudo. Com o objetivo de qualificar os dados obtidos no Estudo de Caso, concomitante a este, realizei também uma Análise Documental. Para Gil (2009, p. 76) “a consulta a fontes documentais é imprescindível em qualquer estudo de caso”, pois ela pode “corroborar evidências coletadas por outros instrumentos e outras fontes, possibilitando a confiabilidade de achados através de triangulações de dados e de resultados” (MARTINS, 2006, p. 46). A análise destes documentos permitiu identificar o histórico da escola, objetivos e os fundamentos que orientam a sua organização. Foram analisados os seguintes documentos: Projeto Político Pedagógico, Planos de Estudo, Plano de Trabalho, Planos de Aula, Plano Individual Pedagógico e reflexões produzidas pela docente em decorrência de suas práticas. 2.1 Instrumentos de coleta de dados Para o desenvolvimento do estudo, foram realizadas observações participantes, uso do diário de itinerância, registros fotográficos e filmagens, gravações de áudio e entrevistas. As observações participantes consistem em uma estratégia de coleta de dados na qual o pesquisador, quando imerso nas situações em estudo, faz a retenção de dados de forma direta (BIKLEN; BOGDAN, 1994). As observações participantes permitem ao pesquisador analisar e observar diretamente a ocorrência do fenômeno. Justifica-se a realização de observações neste projeto, pois “as ações podem ser melhores compreendidas quando são observadas no seu ambiente habitual de ocorrência” (BIKLEN; BOGDAN, 1994, p. 48). Nas observações participantes, analisei a organização dos espaços e os modos pelos quais eles são usados. Foram realizadas cinco observações com quatro horas cada, totalizando assim, vinte horas de observação. As informações das observações participantes foram registradas em um diário de itinerância em sua forma de diário rascunho, no qual são registrados “tudo o que 12 ele [pesquisador] tem vontade de anotar no fervilhar da ação ou na seriedade da contemplação” (BARBIER, 2004, p. 138). Neste diário escrevi narrativas, descrições, mas também problematizações e devaneios, visto que essa leitura assumirá um caráter íntimo. O uso do diário de itinerância, segundo Silva (2011), possibilita aos pesquisadores reflexões posteriores e, consequentemente, a construção de novos conhecimentos. Além do diário de itinerância, realizei registros fotográficos. Para Achutti (2004, p. 10) [...] a fotografia nos ajuda a recolher mais rapidamente certos detalhes próprios a rituais ou à cultura material: adornos, vestimentas, ferramentas de trabalho, etc. Ela pode também representar uma grande fonte de inspiração para o pesquisador, após ter deixado seu trabalho de campo, permitindo-lhe chegar a novas conclusões. Os registros fotográficos permitiram que fora do ambiente de estudo eu tivesse insights e rememorasse os momentos que ocorreram na estadia em campo. Esse exercício oportunizou uma descrição dos fenômenos ocorridos. Da mesma forma, realizei filmagens das situações de aprendizagem que as crianças estavam desenvolvendo. Com o objetivo de qualificar o corpus da pesquisa, realizei gravações de áudio com o intuito de gravar diálogos ou narrativas das crianças. Essas gravações, segundo Martins (2006), contribuem para a compreensão de determinados eventos, bem como permitem capturar as percepções e intencionalidades que os sujeitos possuem em determinados acontecimentos. Realizei também uma entrevista com a professora titular da turma, cujos roteiros encontram-se no Apêndice A, uma entrevista com o Coordenador da Área Técnica, que seguiu o roteiro do Apêndice B, uma entrevista com a Coordenadora Pedagógica, de acordo com o Apêndice C e uma entrevista com o Diretor da Escola, consoante com o Apêndice D. Para Biklen e Bogdan (1994) uma entrevista é uma conversa que possui um objetivo a priori, e para os autores a intencionalidade das entrevistas na pesquisa é permitir “ao investigador desenvolver intuitivamente uma ideia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 134). 13 Partindo do pressuposto de que as “as boas entrevistas caracterizam-se pelo facto de que os sujeitos estarem à vontade e falarem livremente sobre os seus pontos de vista” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 136), realizei entrevistas semiestruturadas gravadas e transcritas para posterior análise. Esse modelo de entrevista caracteriza- se por ter um roteiro de perguntas definidas antecipadamente. Entretanto, não há necessidade de segui-las fielmente, pois novas perguntas podem ser acrescentadas ou eliminadas do roteiro. Com o intuito de manter o caráter ético da pesquisa, encaminhei ao diretor da escola o Termo de Anuência. Por meio deste documento o responsável legal pela instituição autorizou a realização do estudo e, em contrapartida, me comprometi a seguir as normas éticas quanto à identificação nominal dos participantes do estudo, conforme o Apêndice E. Também foram encaminhados Termos de Consentimento Livre Esclarecido - TCLE para a professora participante do estudo e para os demais professores entrevistados em conformidade com o Apêndice F. Para Spink (2000), o TCLE é um contrato firmado entre pesquisador e participante da pesquisa pelo qual se estabelece os direitos e deveres de cada parte. Além destes, foram enviados Termos de Consentimento Livre e Esclarecido para as famílias dos estudantes conforme o Apêndice G. Mesmo que as crianças não sejam o foco da pesquisa, encaminhei esses documentos aos pais e/ou responsáveis solicitando a autorização de uso de imagens e excertos de falas de seus filhos obtidos no decorrer da investigação. Seguindo as ideias da Sociologia da Infância, pela qual as crianças são concebidas como sujeitos e produtoras de cultura (COHN, 2005), na primeira Observação Participante apresentei a pesquisa às crianças e fiz um convite para que as mesmas participassem do estudo. Por meio desta conversa informal, perguntei a elas se aceitavam ser fotografadas, filmadas e ter suas falas gravadas. 2.2 Abordagem de Análise do corpus de pesquisa A análise dos dados obtidos ocorreu por meio de uma aproximação de alguns princípios da Análise Textual Discursiva proposta por Moraes e Galiazzi (2011). A 14 Análise foi composta por três momentos distintos: a unitarização ou processo de criação de unidades de análise; a categorização; e o momento de captura das interpretações emergentes. Na primeira etapa do trabalho analítico, o corpus da pesquisa foi desmontado, sendo que esse procedimento implicou no exame minucioso do texto e de seus detalhes, a fim de evidenciar as unidades constituintes. A unitarização permite atribuir sentido e significado aos dados produzidos pelo pesquisador. É nesse momento que se realiza um processo de seleção de textos que atendem aos objetivos e finalidades da pesquisa. Posteriormente à unitarização, iniciei o processo de categorização, isto é, organização das unidades de significado em categorias para que elas adquirissem sentidos. Moraes e Galiazzi (2011, p. 75) afirmam que as categorias são “conjuntos lógicos abstratos, possibilitando o início de um processo de teorização em relação aos fenômenos investigados”. Assim, é a partir da análise das categorias produzidas que se inicia o processo de produção de novas compreensões dos fenômenos investigados. Na terceira etapa do estudo produzi os metatextos, isto é, as categorias produzidas foram descritas e interpretadas. Para Moraes e Galiazzi (2011) é nessa etapa da pesquisa que emergem novas possibilidades de teorizações, ou seja, o desordenamento do texto ocorrido nos passos anteriores dá lugar a uma nova ordem. Nesse sentido, as categorias produzidas foram emergentes da estadia em campo. 2.3 O contexto do estudo O município de Ilópolis está localizado na Mesorregião do Nordeste do Rio Grande do Sul e tem uma população aproximada de 4.100 habitantes. A economia do município está baseada na agropecuária, que responde por 60% da economia interna do município (IBGE, 2015). Segundo dados do Censo Agropecuário do IBGE (2006, 2015), o setor primário do município está estruturado em pequenas propriedades, nas quais predominam a produção de erva mate. Entretanto, do mesmo modo que outros pequenos municípios, Ilópolis vem enfrentando altos índices de êxodo rural de jovens. Esse fenômeno pode ser explicado tanto por justificativas econômicas e produtivas, 15 quanto por fatores culturais, tais como a existência de uma estrutura familiar patriarcal e o célibait paysan, que incidem significativamente na evasão do jovem do meio rural. Além disso, é necessário reconhecer que os currículos escolares contribuíram para legitimar uma cultura urbanocêntrica. Ao reforçar o meio urbano como modelo de vida, a escola estimula o êxodo rural (DEGASPERI, 2006). Nessa perspectiva, acredito que se pensarmos em uma educação que se volte a resolver os problemas existentes no meio rural por meio da promoção do desenvolvimento econômico e social e da difusão de tecnologias sociais que permitam a melhoria das condições de vida, é possível reduzir os índices de abandono do campo. Frente a isso, no ano de 1995 foi construída a Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental de Ilópolis/RS, que atendia estudantes das séries finais1 do Ensino Fundamental provenientes de comunidades do interior do município. O Gestor da instituição afirma que a proposta inicial era criar uma instituição onde os alunos “aprenderiam melhor a trabalhar com as questões de produção, de como produzir respeitando o meio ambiente e voltando para as suas propriedades e aplicar aquilo” (Entrevista com Gestor, 29/02/2016). O Coordenador da Área Técnica foi um dos fundadores da EMAFA e idealizadores de seu projeto pedagógico. Em entrevista realizada, ele afirma que “Em primeiro lugar nós queríamos segurar o pessoal no meio rural, mas vivendo dignamente. Ficar em Ilópolis, mas ficar no campo com qualidade de vida” (Entrevista com Coordenador da Área Técnica, 15/03/2016). Assim, percebe-se que ideias como desenvolvimento econômico local, diminuição de êxodo rural e promoção da dignidade de vida estavam muito presentes nos idealizadores do projeto e perpassam o PPP da escola. Neste documento, encontramos que um dos objetivos da educação escolar deve ser “incentivar desde pequenos para que permaneçam na área rural, utilizando técnicas adequadas para o sucesso da agricultura” (ILÓPOLIS, 2006, p. 45). Por meio desse objetivo, esperava- se que a escola se tornasse um polo para a difusão de boas práticas de cultivo e produção agropecuária. 1 Optou-se por, nesse parágrafo, adotar a antiga nomenclatura. Foi somente no Ano de 2006, com a inserção de crianças de 6 anos no Ensino Fundamental, que se passou a adotar a nomenclatura de “Anos Finais e Anos Iniciais”. Logo, a EMAFA, até o ano de 2005, atendia crianças com idade entre 11 e 14 anos. 16 Entretanto, concomitante à preocupação com o desenvolvimento econômico local, a promoção de condições dignas de vida e a diminuição dos índices de êxodo rural, uma das metas estabelecidas pelo Projeto Político Pedagógica da escola consistia em “preservar o pinheiro araucária e a mata nativa existente em nosso município (...), via formação de consciência ambientalista e profissional a partir da juventude, tendo como público alvo o filho do pequeno agricultor” (EMAFA, 2015, p. 7). Por fim, o terceiro objetivo dos idealizadores da escola consistia na criação de um polo de produção de mudas de árvores que pudessem ser comercializadas. Contudo, o Gestor da Instituição afirmou que, atualmente, são produzidas apenas mudas de espécies nativas e que estão ameaçadas de extinção: “esse objetivo, não funcionou muito bem porque estávamos entrando no comércio, que é uma área que não é nossa” (Entrevista com Gestor, 29/02/2016). O Coordenador da Área Técnica corrobora com essa afirmação, afirmando ainda que a ideia foi abandonada, pois poderia configurar-se como exploração da mão de obra infantil. Em um primeiro momento, a instituição atendia alunos da 5ª a 8ª série. Entretanto, no ano de 2004 iniciou o processo de nucleação das escolas do campo, sendo que no ano seguinte foi emitido o parecer definitivo para o funcionamento do ensino fundamental na Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental/Ilópolis/RS. A escolha dessa instituição como local de agregação ocorreu não apenas devido à estrutura física da instituição, mas fundamentalmente pela sua filosofia “voltada à preservação ambiental e florestal, bem como, a agricultura sustentável preservando e mantendo o equilíbrio natural” (ILÓPOLIS, 2006, p. 32). Pensou-se, assim, que a nova escola poderia formar um sujeito que agisse como multiplicador dos conhecimentos aprendidos junto aos seus familiares. 2.4 O 1º Ano do Ensino do Fundamental Neste subcapítulo apresento a docente e a turma do 1º Ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental – EMAFA com a qual essa investigação foi realizada. Mesmo que os documentos, orientações e 17 normativas vigentes abordem especificamente a Alfabetização em Língua Portuguesa e Matemática, corroboro com Ferreira e Leal (2015, p. 78) no momento em que compreendem que “[...] a alfabetização na perspectiva do letramento é um processo em que o aluno aprende a ler e a escrever, mas também aprende por meio da leitura e da escrita”. Assim, a aquisição da leitura e da escrita e o domínio do conhecimento matemático permitem que as crianças aprimorem as compreensões que possuem acerca do seu mundo. Justifico, assim, o desenvolvimento desta pesquisa com o 1º Ano do Ensino Fundamental, pois, em consonância com o pensamento de Lorenzetti e Delizoicov (2001), acredito que Alfabetização Científica pode ocorrer concomitante aos processos de letramento linguístico e matemático da criança e até mesmo em fases anteriores ao domínio da escrita e da leitura. Na Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental – EMAFA, no ano de 2016, há apenas uma turma de 1º Ano do Ensino Fundamental. O objetivo dessa etapa de ensino, segundo o Plano de Ensino, consiste em: Oportunizar aos alunos o acesso ao mundo letrado e lógico, construindo gradativamente o processo de alfabetização e letramento, com uma ação pedagógica voltada para situações concretas significativas à realidade dos alunos, de forma prazerosa e lúdica (EMAFA, 2016a, p. 1). Mesmo que a legislação brasileira oriente que as crianças tenham até o 3º ano do Ensino Fundamental para desenvolveram a leitura e a escrita, a Coordenadora Pedagógica da instituição participante do estudo afirma que, ao final do 1º ano, quase a totalidade das crianças dominarão a linguagem escrita ou estarão pré-alfabetizadas. Uma vez que a Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental – EMAFA não possui Educação Infantil, o 1º Ano do Ensino Fundamental é o primeiro contato que as crianças, e muitas vezes os pais, possuem com a proposta pedagógica da escola. Neste ano, a turma possui 12 crianças, sendo que nem todas são provenientes do meio rural. 2.5 A professora titular e sua prática pedagógica 18 A professora titular do 1º Ano do Ensino Fundamental é formada no Curso Normal e exerce a profissão docente há 38 anos, tendo sempre atuado no 1º Ano do Ensino Fundamental. Em entrevista concedida, ela afirmou que “trabalho na escola EMAFA desde o ano de 2005, após as escolas do interior do município terem sido nucleadas em uma única escola [...] Trabalho na escola por organização da Secretaria Municipal de Educação que sempre organiza o quadro docente” (Entrevista com Professora Titular da Turma, 15/03/2016). Em relação aos aspectos de formação profissional, registrei a seguinte informação no Diário de Campo “Em conversa informal mantida com a professora, ela afirma que não sabe se está trabalhando do modo mais correto, mas que o método que ela usa para alfabetizar costuma ‘dar certo’” (Diário de Campo, 15/03/2016). Ao analisarmos que o trabalho docente consiste na mobilização de saberes profissionais que provém de distintas fontes (TARDIF, 2012), percebe-se que nas práticas pedagógicas acompanhadas havia predominância de um saber experiencial. O saber experiencial, conforme Gauthier et al (2013), ocupa um lugar central em todas as práticas profissionais e é decorrente da própria ação do docente. Para os autores, “aprender por meio de suas próprias experiências significa viver um momento particular, momento esse diferente de tudo o que se encontra habitualmente, sendo registrado como tal em nosso repertório de saberes” (GAUTHIER et al, 2013, p. 33). O saber experiencial é decorrente da própria prática profissional, assim os modos de ação e as estratégias são constituídas pelo docente por meio da sua ação sobre o mundo. Entretanto, por ser um saber próprio e funcional no contexto em que trabalha, os docentes, muitas vezes, têm medo de que esse saber não seja correto. Quando questionada sobre a sua percepção da filosofia adotada pela instituição, a docente afirma que: Acredito que a filosofia da escola, voltada à preservação ambiental e florestal, bem como à agricultura sustentável, preservando e mantendo o equilíbrio natural seja o nosso diferencial. Além da escola propor um ensino onde os alunos desenvolvem a capacidade de ler o mundo com outros olhos, também visa atingir um ensino de qualidade, e essa é para mim, uma proposta sonhada na educação de qualquer educando (Entrevista com Professora Titular da Turma, 15/03/2016). 19 Por meio da entrevista realizada, torna-se perceptível que, pelo tempo que trabalha na instituição, a docente compreende e percebe os diferenciais do currículo da escola. Carbonell (2002), ao estudar propostas curriculares diferenciadas, destaca a importância de o docente compreender as mudanças que estão sendo propostas, uma vez que “a mudança e a inovação são experiências pessoais que adquirem um significado particular na prática” (CARBONELL, 2002, p. 21). Assim, as mudanças curriculares iniciam pelo desenvolvimento profissional dos envolvidos e pela modificação dos referenciais teóricos que sustentam suas práticas. 20 3 O PREPARO DO SOLO Após decidir que sementes irá plantar, escolher o melhor local para o plantio e adquirir as ferramentas necessárias para o cultivo, o agricultor começa a preparar a terra. O preparo do solo antecede o plantio das sementes, é um anúncio do que será realizado. Nesse capítulo apresento os conceitos de Alfabetização Científica e de Estratégias de Ensino que orientam a organização do estudo. 3.1 Alfabetização Científica Nesse subcapítulo apresento o meu entendimento do conceito de Alfabetização Científica. Sabemos que esse conceito surge em meados do Século XX, quando educadores e representantes de grandes companhias industriais passaram a perceber o valor do Ensino de Ciências desde a mais tenra idade para o desenvolvimento econômico e tecnológico do país. Essa percepção provocou uma série de reformas nos currículos para o ensino de Ciências. Entretanto, nas produções científicas decorrentes dessas reformas, houve uma falta de clareza em torno do conceito de Alfabetização Cientifica. Auler e Delizoicov (2001, p. 3) destacam que sob a égide do conceito de Alfabetização Científica podem ser encontrados “um espectro bastante amplo de significados traduzidos através de expressões como popularização da ciência, divulgação científica, entendimento público da ciência e democratização da ciência” (AULER; DELIZOICOV, 2001, p. 3). Assim, na literatura nacional por vezes deparamo-nos com a ideia de Alfabetização Científica, por outras com o termo Letramento Científico – conceito proveniente da linguística e que parte do pressuposto 21 de distinção entre letramento e alfabetização – e também com o conceito de Enculturação Científica – que parte da ideia de que a Ciência é uma cultura. Para discutirmos o conceito de Alfabetização Científica neste trabalho utilizamos as teorizações de Paulo Freire (1981, 1988) e Chassot (2013). Para Freire (1981, 2011c) não há distinção entre leitura de mundo e leitura da palavra, assim, a Alfabetização não poderia ser entendida apenas como a capacidade de decodificação de códigos. Para o educador brasileiro a alfabetização: Implica, não uma memorização visual e mecânica de sentenças, de palavras desgarradas de um universo existencial – coisas mortas ou semimortas – mas numa atividade de criação e de recriação. Implica numa autoformação de que possa resultar uma postura interferente do homem sobre seu contexto (FREIRE, 1981, p. 111). Ainda, para o mesmo autor, a leitura da palavra e a leitura do mundo são processos indissociáveis. Partindo desse pressuposto, destaca-se que “toda leitura é sempre a partir de minha realidade, do contexto em que me encontro, e não do discurso abstrato do emissor” (FREIRE; BETTO, 2003, p. 77). Por ser o homem um sujeito social (FREIRE, 2011a), as suas experiências de vida e a sua formação cultural influenciam o modo e as interpretações que ele realiza da leitura. Os fenômenos naturais e sociais que acompanhamos são sempre objetivos, não possuindo significado em si. Essa significação só se dará no momento em que os compreendermos, sendo que as nossas compreensões e interpretações são sempre influenciadas pelas concepções que possuímos sobre o mundo. A ação de alfabetizar um sujeito, na perspectiva apresentada, não consiste em apresentar um conjunto de códigos ou ensino de um saber historicamente sistematizado, isto é, compreender mecanicamente o funcionamento de um objeto (FREIRE, 2011). Assim, um sujeito Alfabetizado Cientificamente é aquele que tem autonomia para buscar compreender o mundo que está inserido, percebendo que os fenômenos vivenciados sempre são inter-relacionados. Chassot (2003) corrobora com o exposto anteriormente ao defender que a Alfabetização Científica deve ser compreendida como um exercício de leitura do mundo por meio do conhecimento científico. Contudo, esse mesmo autor defende que é necessária uma Alfabetização Científica que não apenas ensine conteúdos, mas sim uma educação pela qual os sujeitos entendessem a necessidade de transformar o mundo que habitam para melhor. 22 Justifica-se a necessidade de possibilitar a Alfabetização Científica ao sujeito uma vez que é fundamental o entendimento de que a Ciência é necessária para “tomar consciência das complexas relações entre ciência e sociedade, de modo a permitir- lhes participar na tomada de decisões e, em definitivo, considerar a ciência como parte da cultura do nosso tempo” (CACHAPUZ et al, 2005, p. 31). A compreensão da relação entre Ciência, Tecnologia e Sociedade permitiria o controle social da ciência. Os sujeitos poderiam perceber que o uso de determinado conhecimento é condicionado a distinções como fatores sociais, culturais e econômicos. Ler o mundo por meio da Ciência, ou empregar o conhecimento para a tomada de decisões possui uma série de vantagens, entre as quais a de que “entender a ciência nos permite também controlar e prever as transformações que ocorrem na natureza. Assim, teremos condições de fazer que essas transformações sejam propostas para que conduzam a uma melhor qualidade de vida” (CHASSOT, 2013, p. 82). Assim, o domínio do conhecimento científico oportunizaria uma melhor compreensão e transformação do mundo, o que possibilitaria a melhoria nas condições de vida dos homens. 3.2 Estratégias de Ensino O conceito de estratégias de ensino nos remete a pensar uma série de atitudes e ações combinadas que nos possibilitam atingir determinados fins. Uma estratégia difere-se, assim, de uma tática de jogo, visto que essa é determinada a priori e é mantida independente das situações emergentes. Em contrapartida, destaca-se que a estratégia é uma ação pontual organizada pelo professor para atender determinados objetivos. Fortunatti (2009, p. 83) afirma que: [...] a estratégia, ao contrário do que acontece no ‘programa’, que é constituído por uma sequência pré-estabelecida de ações, se constrói no curso da ação, modificando, conforme se apresentem os acontecimentos ou se recebam informações, a conduta da ação considerada. A atuação estratégica é o motor do planejamento. A ideia de estratégias de ensino encontra-se fundamentada no princípio da criança como um sujeito que aprende de múltiplas formas. Reconhecer a criança 23 “como um sujeito rico significa uma criança que é competente e curiosa, sociável e forte, e ativamente engajada na criação de experiências e na construção de sua própria identidade e de seu próprio conhecimento” (FORTUNATI, 2014, p. 20). A imagem da criança como receptáculo da cultura adulta é substituída por uma concepção de criança que negocia ativamente o seu significado e estadia no mundo (SILVA, 2011). Logo, a ideia de criança como um sujeito que deveria ser treinado e instruído a fim de romper com o estado de minoridade no qual se encontra é substituída por uma criança concebida como protagonista ativa de suas próprias aprendizagens, uma criança que é ávida para a realização de perguntas e questionamentos e que tem como um de seus objetivos desvelar o mundo no qual está inserida (RINALDI, 2012). Assim, essa imagem de criança rica e potente não se adapta a um currículo ou a uma abordagem curricular específica. Rinaldi (2012, p. 238) defende que os planejamentos fechados são “inadequados para representar as múltiplas e complexas estratégias necessárias para a sustentação dos processos de construção do conhecimento das crianças”. As crianças, para desenvolverem a sua aprendizagem, necessitam estar com os outros e, sobretudo, ter experiências significativas. Além disso, pressuponho que a aprendizagem da criança não pode ser concebida como uma relação linear, mas sim como um processo de contínua construção e reconstrução. Para Tognetti (2014, p. 26) há “diferentes tempos e trajetórias individuais de crescimento e de aprendizagem”. Acredita-se que essas singularidades devem ser contempladas no currículo escolar, isto é, os professores devem ser propositores de situações de aprendizagem que contemplem as especificidades, os interesses e as necessidades de grupos específicos de crianças. Dessa forma, as estratégias de ensino consistem em ações pontuais dos professores para contemplar os interesses e as necessidades das crianças em seu planejamento pedagógico. Schneider (2015, p. 52) entende que as estratégias de ensino “são ações que não estão baseadas exclusivamente em hipóteses iniciais, de modo que as escolhas subsequentes são elaboradas a partir do que emerge do trabalho e dos próprios objetivos”. A opção por determinadas estratégias de ensino exige, então, a elaboração de um Planejamento Emergente, isto é, um planejamento que não seja fixo e imutável, mas um conjunto de atividades que esteja aberto ao 24 inusitado e ao inesperado (RINALDI, 1999). Na perspectiva apresentada, as estratégias de ensino não são escolhidas aleatoriamente, mas são decorrentes da escuta sensível desenvolvida pelos docentes e pela investigação que realizam sobre a sua própria prática. 25 4 DAS SEMEADURAS O momento da semeadura não é a primeira etapa do cultivo, uma vez que ela requer a decisão para o plantio, ferramentas adequadas, escolha do solo e preparo do terreno. Entretanto, ao nos depararmos com a figura do semeador, muitas vezes supervalorizamos a sua tarefa, pensando que o sucesso da colheita resume-se ao cuidado com o plantio. Por outras vezes, podemos pensar: Aquele sujeito não sabe jardinagem, ou como plantar legumes. Não vejo nenhum legume. Tudo o que eu vejo é ele botando uma sementinha no chão. Ele é um falso jardineiro porque não planta nada. Eu o vi e não havia nada lá (FREIRE; MYLES, 2003, p. 113). O plantio, mesmo sendo uma ação fundamental, não é uma totalidade do processo de produção. Talvez seja o momento de maior esperança, visto que ao colocar cada semente na terra, o agricultor sonha com os frutos que a terra possa gerar. É o momento de confiar na potência. Da mesma forma, no momento que o pesquisador está em campo, em cada registro, cada fotografia, cada linha escrita em seu diário de campo ele deposita esperança, acreditando que cada excerto é uma semente que germinará produzindo análises e reflexões fartas. Nesse capítulo da Monografia apresento o corpus produzido em decorrência das observações das práticas pedagógicas, analiso as entrevistas concedidas pela docente e retomo elementos das demais entrevistas realizadas com o Coordenador da Área Técnica, com o Coordenador Pedagógico e com o Gestor da Escola, bem como elementos que se encontram nos Planos de Estudo e no Projeto Político Pedagógico da escola. 26 4.1 Documentos norteadores da Educação e Alfabetização Científica Conforme exposto anteriormente, a compreensão da Ciência permite ao homem a ação crítica no meio no qual está inserido, bem como facilita a sua participação na discussão de temas que requerem o domínio de saberes e conceitos científicos para serem compreendidos. Assim, a Alfabetização Científica favorece os processos de emancipação e humanização do homem. A Emenda Constitucional nº 85/2015, ao alterar a Constituição Federal, determina que é incumbência da União e dos demais entes federados “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação” (BRASIL, 2015, s/p). Mesmo que exista uma série de instituições e programas de extensão financiados por recursos provenientes do poder público que visem democratizar o acesso ao conhecimento científico, acredito que a escola, por sua abrangência, pode contribuir significativamente para a formação científica dos sujeitos e a divulgação científica. Ao analisar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei nº 9.394/1996), percebo que não há nenhuma referência explícita ao ensino de ciências nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Todavia, compreendo que a Alfabetização em Ciências deve estar orientada para atingir os fins da Educação Básica, que, conforme essa mesma legislação, consistem no “pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 2015, p. 9). Ambos conceitos abordados como fins da educação brasileira – exercício da cidadania e qualificação do trabalho – são passíveis de múltiplas interpretações. Contudo, salientamos que tomamos o conceito de cidadania como a capacidade de a pessoa assumir a escrita da sua própria história (FREIRE, 2001a). Assim, a cidadania envolve a compreensão crítica da realidade e a ação ativa para tomada de decisões. Da mesma maneira, a qualificação para o trabalho também é entendida por mim como a preparação do jovem para um emprego que dignifique suas condições de vida e promova a sua emancipação. Mesmo que não haja uma referência explícita, compreendo que em ambos os casos a educação científica deve estar presente, visto 27 que é por meio dela que criar-se-ia possibilidades para o sujeito desvelar o contexto no qual encontra-se inserido. A relação entre Alfabetização Científica e a promoção da cidadania encontra- se explícita nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Neste documento orientador da organização dos currículos, encontramos que “numa sociedade em que se convive com a supervalorização do conhecimento científico e com a crescente intervenção da tecnologia no dia-a-dia, não é possível pensar na formação de um cidadão crítico à margem do saber científico” (BRASIL, 1997, p. 23). O documento prossegue afirmando que o ensino de Ciências nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental deveria estar orientado para superar a lógica cientificista da educação e a perspectiva propedêutica no ensino. Confia-se ao saber científico a contribuição para “a formação da integridade pessoal e da auto-estima, da postura de respeito ao próprio corpo e ao dos outros, para o entendimento da saúde como um valor pessoal e social, para a compreensão da sexualidade humana sem preconceitos” (BRASIL, 1997, p. 24-25). A Base Nacional Curricular Comum, documento que se encontra em fase de elaboração, reforça a necessidade do ensino de ciências em uma sociedade organizada em torno do desenvolvimento científico e tecnológico (BRASIL, 2015): O Ensino de Ciências da Natureza tem compromisso com uma formação que prepare o sujeito para interagir e atuar em ambientes diversos, considerado uma dimensão planetária, uma formação que possa promover a compreensão sobre o conhecimento científico pertinente em diferentes tempos, espaços e sentidos; a alfabetização e o letramento científico; a compreensão de como a ciência se constitui historicamente, a quem ela se destina; a compreensão de questões culturais, sociais, éticas e ambientas, associadas ao uso dos recursos naturais e à utilização do conhecimento científico e das tecnologias (BRASIL, 2015, p. 149). Percebe-se que o que a Base Nacional Curricular Comum estabelece como compromissos do Ensino de Ciências possui similaridades com os eixos estruturantes da Alfabetização Científica apresentados anteriormente. O excerto transcrito acima apresenta também a única referência do documento aos conceitos de alfabetização e letramento científico como dois processos distintos. Esse documento propõe que a área de ciências naturais esteja organizada em quatro eixos: conhecimento conceitual, que abordaria as leis, teorias, modelos e conceitos; contextualização histórica, social e cultural do conhecimento, que englobaria a compreensão das relações entre Ciência e Sociedade e a pertinência social do conhecimento científico; processos e práticas de investigação em Ciências, 28 visando que a criança compreendesse os modos de produção do conhecimento científico; e por fim o quarto eixo, que consistiria na aprendizagem da linguagem científica (BRASIL, 2015). Além disso, o documento propõe a organização do currículo escolar em seis unidades de conhecimento (UC), sendo elas respectivamente: UC1_Materiais, substâncias e processos; UC2_Ambiente, recursos e responsabilidades; UC3_Bem-Estar e Saúde; UC4_Terra, constituição e movimento; UC5_Vida: Constituição e Reprodução; UC6_Sentidos: Percepções e interações. No 1º Ano do Ensino Fundamental, a indicação é para que sejam trabalhadas as seguintes Unidades de Conhecimento: UC1_Materiais, substâncias e processos; UC3_Bem estar e saúde; UC6_Sentidos: Percepções e interações. Mesmo que o texto introdutório aos objetivos da área de Ciências especifique a necessidade de que os conteúdos trabalhados sejam condizentes com a realidade dos estudantes, uma análise dos objetivos apresentados permite identificar que os objetivos para o 1º Ano do Ensino Fundamental acabam induzindo a abordagens de determinadas temáticas, tais como a transformação dos materiais, sensações e meio ambiente. Por fim, destaco que esse documento também não apresenta as habilidades esperadas de um sujeito Alfabetizado Cientificamente. Da mesma forma que os documentos analisados anteriormente, no Projeto Político Pedagógica das escolas da rede municipal de ensino de Ilópolis/RS não há uma referência explícita quanto ao desenvolvimento da Alfabetização Científica. Entretanto, há uma recorrência ao desenvolvimento da criticidade dos estudantes: “[...] trabalha-se para a formação do cidadão capaz de participar da transformação da sociedade em que vive, num processo de reelaboração do conhecimento, a partir das práticas e dos problemas enfrentados pelos sujeitos no seu cotidiano” (ILÓPOLIS, 2006, p. 61). Em outro excerto do mesmo documento encontramos que “aprendizagem supõe transformação, o que equivale dizer que o homem é um ser que busca mudanças na tentativa de construir-se como uma pessoa, contribuir para o bem comum e alcançar a perfeição” (ILÓPOLIS, 2006, p. 72). Percebemos, assim, que o objetivo exposto no Projeto Político Pedagógico da escola consiste na formação de um sujeito capaz de realizar transformações no meio em que está inserido. Entretanto, as ações do sujeito, segundo Freire (1990), são sempre condicionadas à natureza da sua consciência. Se o sujeito possuir uma 29 consciência ingênua, as ações serão orientadas por seu modo de compreensão de mundo. Para Freire (2011c), a transposição da realidade imediata, isto é, superar as situações-limite, exigiria a conscientização crítica da realidade. Assim, para o autor é necessário que “ultrapassamos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica a qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica” (FREIRE, 1990, p. 26). No momento em que o Projeto Político Pedagógico da instituição de ensino estabelece que um de seus objetivos consiste em preparar um estudante que busque a construção de uma “sociedade que supere os modelos econômicos e políticos de hoje, em busca de uma solidariedade entre as pessoas e os povos” (ILÓPOLIS, 2006, p. 73), requer-se um ensino que auxilie na conscientização do mundo e no desvelamento das relações existentes entre os distintos fenômenos da natureza. Ao compreender o mundo no qual está inserido não como realidade acabada mas sim como um elemento mutável, o sujeito está desenvolvendo a sua Alfabetização Científica. Assim, ele passa a compreender que a situação que está vivendo é resultante de determinadas ações e não do acaso. É por meio de uma educação que deflagre uma ação transformadora no mundo que estamos nos aproximando do sentido pleno do conceito de alfabetização. Macedo (1990, p. 105) compreende que ”[...] a alfabetização é encarada como um dos veículos mais importantes pelos quais o povo ‘oprimido’ é capaz de participar da transformação sócio-histórica de sua sociedade”. A Alfabetização Científica seria compreendida, assim, como parte de um processo e não como um produto, muito menos como um conteúdo a ser desenvolvido. A análise do Plano de Estudo (EMAFA, 2015a) e do Plano de Trabalho (EMAFA, 2015c) da turma do 1º Ano do Ensino Fundamental também não evidenciam nenhuma referência explícita ao Ensino de Ciências e à Alfabetização Científica. Mesmo que os documentos analisados não tratem diretamente da Alfabetização Científica, eles referem-se à formação de um sujeito crítico e capaz de exercer sua cidadania. Visto que, conforme Cachapuz et al (2005), a ciência está onipresente no contexto contemporâneo, reitero que a compreensão da ciência tornou-se uma necessidade para o sujeito ser ativo e protagonista nesse contexto. Assim, mesmo 30 que os documentos analisados não tratem diretamente da temática estudada, eles abrem precedentes para o desenvolvimento de um ensino de ciências voltado para a emancipação e a alfabetização dos sujeitos. 4.2 Planejamento Pedagógico e Alfabetização Científica O planejamento pedagógico, conforme Redin (2013), é necessário para que os docentes não adotem uma postura espontaneísta ingênua da educação. Por meio do planejamento eles podem organizar os espaços e materiais que serão necessários para o desenvolvimento, bem como ter clareza dos referenciais que fundamentam sua prática e os objetivos que almejam alcançar. Nessa seção do estudo, analiso como o planejamento desenvolvido pela professora contribui para o desenvolvimento da alfabetização científica das crianças. No subcapítulo “Temas Geradores”, analiso como a organização do trabalho pedagógico da escola interfere no desenvolvimento da Alfabetização Científica das crianças. Destaco que, mesmo investigando a prática pedagógica de uma docente, faz-se necessário compreender como as especificidades do currículo escolar interferem no trabalho pedagógico. Saliento, ainda, que mesmo que nos documentos norteadores da organização da escola não encontremos referência aos temas geradores, percebo uma similaridade entre esse método de planejamento e aquele adotado pela escola. Em seguida, no subcapítulo “Projetos de Investigação”, relato como a pesquisa concebida como um princípio educativo corrobora para o desenvolvimento da Alfabetização Científica das crianças. 4.2.1 Temas Geradores Enfatizo que nos documentos legais da escola e nas entrevistas realizadas com o Gestor e a Coordenadora Pedagógica não há referências a organização do trabalho por temas geradores. Contudo, ao analisar o modo de organização do trabalho pedagógico da escola, percebo uma aproximação com essa abordagem de 31 planejamento e os temas geradores. Esta metodologia de planejamento encontra-se fundamentada na obra de Freire (2011c), para quem os temas seriam emergentes de uma pesquisa sociológica e empregados como suportes para os programas de pós- alfabetização de jovens e adultos, com o objetivo de dar continuidade ao processo de conscientização (BRANDÃO, 1981; CORAZZA, 1992). Os temas geradores, segundo Brandão (1981), são sempre provenientes da realidade concreta dos educandos e da relação do homem com o mundo. Quando transformados em uma abordagem de planejamento, parte-se do pressuposto de que as datas cíclicas serão transformadas em temas de trabalho. No caso da Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental, o documento norteador da organização escolar destaca que: As práticas de sala de aula partem da realidade dos alunos e os levam a serem sujeitos de seu processo de aprendizagem e a construírem significados para o que aprenderem por meio de múltiplas e complexas interações com os objetos do conhecimento, sendo o professor o mediador. Essas práticas criativas desenvolvendo projetos que partem de eixos temáticos, dinâmicas que valorizam a interpelação, a análise, a pesquisa, a investigação, a troca de experiências, a construção coletiva, levando o aluno a superar sua condição de mera individualidade, alcançando a condição de cidadão (ILÓPOLIS, 2006, p. 59). O gestor da escola afirma que são desenvolvidos quatro grandes trabalhos anuais: “a preservação do solo e água. [...] Após a preservação do solo e da água, lá em abril, a gente já entra no Meio Ambiente. [...] No segundo semestre, trabalhamos a questão da cultura gaúcha e no final do ano, a família” (Entrevista com Gestor, 29/02/2016). Quando questionado sobre os motivos que levam a escola a adotar essa forma de planejamento, ele afirma que o objetivo da instituição é “aproveitar as datas comemorativas, mas dentro de nossa realidade de escola. Então o que seria importante em um primeiro momento: Dia da Água e Dia do Solo” (Entrevista com Gestor, 29/02/2016). Ao trabalhar a água e o solo, por exemplo, o currículo da escola não trata apenas de cuidados que são necessários para a preservação do ambiente, mas também explora técnicas que podem ser empregadas para o cultivo. Em uma visita técnica realizada, o Coordenador de Área Técnica apresentou diferentes espaços existentes na escola para o trabalho experimental de cuidado com o solo, além de 32 destacar que “a escola acompanha e discute as técnicas usadas nas propriedades, porque não temos recursos para fazer aqui na escola. Mas o agricultor tem como fazer, então nós acompanhamos na propriedade dos agricultores e até saímos, então vamos para feiras, buscar coisas novas” (Entrevista com o Coordenador da Área Técnica, 16/03/2016). Ao discutir a importância dos temas geradores, Passos (2013, p. 388) destaca que “por falar das experiências das pessoas, é generativo, criador, porque dialoga com oposições em um equilíbrio instável. Nele há valores significativos adquiridos pelas experiências de vida, os quais contaminam signos que se expressam e parturizam pessoas novas”. O trabalho com temáticas emergentes da realidade dos educandos permite que o currículo escolar transforme-se em um tempo-espaço de reflexão crítica e conscientização da realidade.. A seleção dos temas geradores provém, assim, de um paradigma epistemológico dialético “que supõe partir da prática, teorizar sobre ela e voltar à prática para transformá-la” (CORAZZA, 1992, p. 20). A abordagem e trabalho por temas geradores transforma a escola em um espaço de sistematização de experiências. Mesmo que a escola adote um único tema de trabalho elencado no início de cada ano letivo, os docentes têm autonomia para elencar as estratégias de ensino que serão empregadas para o seu desenvolvimento. Segundo a Coordenadora Pedagógica da escola, “nós damos o tema geral e cada professor, na verdade, acaba elaborando dentro do tema” (Entrevista com Coordenadora Pedagógica, 16/03/2016). Ao buscar perceber as contribuições dos temas geradores para o desenvolvimento da Alfabetização Científica das crianças, percebo que essa importância está diretamente associada à compreensão da relação entre Ciência, Tecnologia e Sociedade – CTS. Sasseron e Carvalho (2008, p. 335) enfatizam que o reconhecimento “de que quase todo fato da vida de alguém tem sido influenciado, de alguma maneira pelas ciências e tecnologias” (SASSERON; CARVALHO, 2008, pp. 335). A análise problematizadora da realidade permite que os indivíduos reconheçam a interação entre a Sociedade, a Tecnologia e a Ciência, percebendo que estas últimas não são neutras, mas sim empregadas com determinados fins. Fourez (1997) corrobora com essa pressuposição quando defende que o sujeito cientificamente alfabetizado é aquele capaz de “comprender que la sociedad ejerce un control sobre las ciencias y las tecnologias, y asimismo que las ciencias y las tecnologías imprimen su sello a la sociedad” (FOUREZ, 1997, p. 26). Por sua vez, 33 Sasseron e Carvalho (2011) defendem que o indivíduo que reconhece a relação entre Ciência, Sociedade e Tecnologia é capaz de participar de debates sobre temas científicos, adotando uma postura ética nas decissões que devem ser tomadas. Assim, o trabalho com temas geradores permite que os sujeitos compreendam que a história e as ações cotidianas não são de caráter puramente objetivo, mas sempre envolvem uma dimensão subjetiva. Compreender essa dimensão permite perceber que a noção de neutralidade de determinadas ações provém de uma perspectiva neoliberal de mundo, no qual as ideologias, os sonhos e as utopias foram eliminados (FREIRE, 2001). Dessa forma, a compreensão da relação entre Ciência, Tecnologia e Sociedade permitiria o controle social da ciência. Os sujeitos podem perceber que o uso de determinado conhecimento é condicionado a distintos fatores sociais, culturais e econômicos. Nessa perspectiva, acredito que o trabalho por temas geradores permite contemplar a realidade dos educandos no currículo escolar. Essa estratégia de trabalho oportuniza uma reflexão crítica da realidade e, sobretudo, oportuniza a transformação da doxa – conhecimento produzido a partir da realidade imediata pelo ontos, isto é, pela captura da essência do objeto. Freire (2011c, p. 98) entende que é por meio da problematização que os estudantes começam a compreender suas próprias ações e a partir de constantes reconstruções passam a desenvolver uma compreensão crítica do meio social. 4.2.2 Projetos de Investigação Além dos temas geradores, decorrentes do projeto pedagógico da escola, a docente realiza projetos de investigação de trabalho. O trabalho por projetos encontra- se embasado nas escritas de Hernandez (1998) e Katz e Chard (1999), para quem um projeto “é o estudo em profundidade de um determinado tópico que uma ou mais crianças levam a cabo” (KATZ, CHARD, 1999, p. 3). Nessa perspectiva, um projeto não tem uma data de início ou de fim, mas é sempre emergente do cotidiano ou organizado a partir dos interesses e das necessidades das crianças. Nessa perspectiva, descrevo e analiso dois projetos desenvolvidos pela docente. 34 O primeiro projeto foi desenvolvido no 1º semestre deste ano e apresentado na Semana de Conservação da Água e do Solo e tinha como foco central investigar o ciclo da água. Por meio deste projeto, as crianças investigarem a mudança de estado físico da água e puderam compreender, por exemplo, como a chuva é formada. Além de atividades que envolviam a investigação teórica, as crianças produziram modelos científicos para apresentarem na Mostra de Iniciação Científica da escola. No ano de 2015, as crianças do 1º Ano do Ensino Fundamental foram corresponsáveis pela produção do livro “Árvores da EMAFA” (RABAIOLLI et al, 2015). Esta produção tinha como objetivo elaborar uma obra de cunho ilustrativo e descritivo que apresentasse as espécies de árvores nativas existentes no paisagismo da escola. Nesse projeto, foi incumbência das crianças realizarem uma pesquisa que identificasse nome popular e científico da espécie, época de floração, origem geográfica e clima adequado para o cultivo da espécie. Além disso, foram elaborados textos de descreviam a importância ecológica e botânica da árvore, curiosidades referentes a espécie e uma poesia. Abaixo, transcrevo uma das poesias elaboradas pela turma e que compõe o livro citado anteriormente: Nosso araçazeiro, É uma árvore bem verdinha, Que não cansa de dar frutos, Para comermos à tardinha. Não é uma árvore grande, Mas é muito importante. Ela nos dá frutos E uma sombra aconchegante. [...] Sua fruta é arredondada, Vermelha ou de cor amarela, Seu saber é doce amargo E eu posso ver aqui da janela. Os frutos ainda são verdinhos, Logo estarão prontos. Quando estão madurinhos, Ninguém resiste aos encantos (RABAIOLLI et al, 2015, p. 33). Percebemos que os projetos de investigação corroboram para a aprendizagem de termos e conceitos científicos. Segundo Sasseron e Carvalho (2008, p. 335), o desenvolvimento desse eixo é necessário, pois em nossa sociedade é preciso “compreender conceitos-chave como forma de poder entender até mesmo 35 pequenas informações e situações do dia a dia” (SASSERON; CARVALHO, 2008, pp. 335). Além disso, no momento em que pressupomos que a Ciência possui uma linguagem própria e de conceitos especializados, percebe-se que mesmo para ler materiais de divulgação científica espera-se que o sujeito possua domínio dos termos utilizados. Diferentemente da linguagem empregada cotidianamente - denominada de linguagem da utensilidade - a linguagem científica, segundo Fourez (1995, 1997) pode ser compreendida como um código restrito e elaborado. O código elaborado corresponde a um conjunto de conceitos e expressões compartilhados por um grupo restrito de pessoas. Para Fourez (1995, p. 18-19) o código elaborado “caracteriza-se pelo fato de que aqueles que a utilizam partilham as mesmas pressuposições de base sobre o sujeito de que falam”. Os sujeitos que compartilham da linguagem científica possuem um modo específico de ler e compreender o mundo, pois, conforme Giordan e Da Vecchi (1996), a Ciência possui uma aura conceptual própria. Compreender a Ciência exigiria, então, o domínio de uma linguagem específica que levaria ao entendimento das metateorias. O ensino de conceitos deve ser inserido dentro de um projeto, não os apresentando como ideias isoladas, mas reconhecendo que “cada conceito se encontra em nó de uma rede complexa que envolve em geral várias disciplinas” (ASTOLFI; DELEVAY, 2005, p. 32). O ensino de conceitos não pode ser restrito a decorar fórmulas ou depositar nos estudantes uma série de informações e definições, o que caracterizaria uma pedagogia bancária (FREIRE, 2011c). Espera-se, assim, que o ensino de conceitos e da linguagem científica auxilie o estudante a desvelar a complexidade da sua realidade (AULER, 2003). No projeto de investigação sobre o ciclo da água as crianças puderam ampliar o seu vocabulário, adquirindo conceitos que remetiam à mudança de estado físico da água. Além disso, reconhecer os diferentes estados físicos da água permitia aos estudantes estabelecer uma compreensão crítica da realidade, entendendo o processo de formação da chuva. Na Visita 4, por exemplo, encontramos no diário de campo, o seguinte episódio: “uma criança dirige-se à janela da sala e observa que a água do lago está evaporando porque tem uma ‘fumacinha’ branca saindo. Olha para 36 o céu e vê que há nuvens, em seguida dirige-se a mim e afirma que irá chover” (Observação 4). Percebe-se que o projeto de investigação foi significativo para as crianças. Chassot (1995) analisa que é necessário que os estudantes vejam sentido naquilo que estão aprendendo e para que isso ocorra é necessário que o saber esteja contextualizado com a realidade. Contudo, salienta-se que buscar essa análise do meio real e a partir disso teorizar não deve tornar-se sinônimo de uma perspectiva reducionista do Ensino de Ciências, no qual ensina-se uma série de conteúdos utilitários. 4.3 Espaços Pedagógicos e o desenvolvimento da Alfabetização Científica Na pedagogia crítica não há referência à necessidade da existência de um espaço pedagógico para o desenvolvimento de uma educação crítica. Autores, entre os quais destacamos Freire (2011c), concebem que o processo de conscientização do sujeito pode ocorrer mesmo na “sombra de uma mangueira”, desde que exista uma abordagem dialógica entre educador e educando. Entretanto, corroboro com Horn (2004), quando afirma que os espaços utilizados nos processos pedagógicos podem agir como um segundo educador. A autora, ao estudar os modelos de educação infantil da região de Reggio Emilia, conclui que o espaço pode agir como um facilitador das aprendizagens infantis. Katz (2016) também defende essa perspectiva, pois para ela são os recursos que existem no ambiente que estimulam e potencializam a relação entre as crianças. Ao analisar o corpus da pesquisa, percebo que a preocupação com o espaço da EMAFA ser condizente com a proposta pedagógica foi um dos temas centrais para os idealizadores da escola. O Coordenador da Área Técnica relatou que em um primeiro momento, as atividades eram realizadas em uma escola do interior do município. Todavia, tornou-se perceptível que “nós precisaríamos ter um lugar mais adequado para trabalhar na 5ª a 8ª série” (Entrevista com Coordenador da Área Técnica, 15/03/2016). Assim, com recursos provenientes do Fundo Nacional do 37 Desenvolvimento da Educação (FNDE) e recursos municipais, foram construídas, ao lado do Lago Verde, as atuais instalações da escola. Imagem 1: Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental - EMAFA Fonte: Prefeitura Municipal de Ilópolis/RS Nas Observações 1 e 3 tive a oportunidade de conhecer alguns espaços e conversar com estudantes dos anos finais que estavam mantendo a horta escola. A escola, segundo o gestor, possui os seguintes espaços: Nós temos na escola uma quadra aberta, um parquinho, a área de grama com plantas frutíferas. Ano passado nós fizemos um trabalho de levantamento das plantas, nós temos dentro da nossa escola 40 espécies diferentes de árvores nativas. Nós temos ainda duas estufas para a produção de flores. Hoje produzimos três mil mudas de flores ao ano, então hoje nós temos uma estufa pequena de 20 metros para a produção de flores e temos uma estufa de 60 metros para a produção de verduras e hortaliças que é para a merenda escolar. Um galinheiro de produção de galinhas, ovos e codornas. Temos também uma roça uns 60, 70 metros que vão desde o plantio de cebola ao plantio de feijão ou batata. Temos também um mini pomar que a gente fez o plantio o ano passado com 30 variedades de frutíferas, temos um pequeno erval. Temos um mini lago dentro da escola para eles trabalharem com a piscicultura e a horta aberta (Entrevista com Gestor, 29/02/2016). Quando questionado sobre a contribuição desses espaços para a Alfabetização Científica das crianças, o coordenador da área técnica citou exemplos de projetos desenvolvido em anos anteriores, dentre os quais destacou um de preservação do papagaio-charão, desenvolvido em parceria com uma universidade comunitária do norte do estado do Rio Grande do Sul. Uma vez que este projeto tinha como objetivo conscientizar a população da importância dessa espécie de papagaio, as crianças dos Anos Iniciais desenvolveram atividades práticas, tais como o plantio e distribuição de mudas de araucária. 38 Na Observação 4 acompanhei um diálogo entre os professores da escola no qual se referiam ao uso do Lago Verde como espaço pedagógico. Uma vez que nesse período – março e abril – estava ocorrendo um surto de mosquitos na região, os professores da área técnica resolveram desenvolver um projeto para capacitar os alunos a controlar focos de mosquito. Para isso, eles usaram o Lago Verde como local de aplicação da técnica. Além disso, o Coordenador da Área Técnica da escola salientou que são firmadas parcerias com as famílias dos estudantes, com o intuito de a escola visitar esses espaços e conhecer procedimentos de cultivo que são empregados. Destacou, ainda, que a escola não possui espaços nos quais podem ser criados animais de grande porte, o que faz com que essa relação entre família e escola seja imprescindível para que sejam realizadas as aulas de Zootecnia. Feiras agropecuárias voltadas para a agricultura familiar e o agronegócio, tais como a Expoagro e a Expointer, são visitadas com o objetivo de os estudantes conhecerem os avanços tecnológicos voltados para a produção em pequena escala. Rabaiolli et al (2015, p. 8) afirma que o uso desses espaços no decorrer das práticas pedagógicas permite que: Os alunos vivenciam situações práticas de ensino, que favorecem o crescimento cultural e formativo, através da valorização do homem e da terra, possibilitando a permanência na zona rural, preservando assim a sua origem e contribuindo para evitar o êxodo rural. É aplicando a teoria adquirida em sala de aula, que ocorre a influência direta sobre as famílias no que tange ao manejo com a terra, respeitando o meio ambiente onde vive buscado sempre novas perspectivas de vida. Assim, para Rabaiolli et al (2015), a existência de espaços adequados para o trabalho pedagógico contribui para o processo formativo dos estudantes, uma vez que oportuniza um processo de reflexão e ação. Ao retomarmos os objetivos da escola, principalmente nos que tangem o desenvolvimento do cuidado com o meio ambiente, torna-se importante destacar a importância do trabalho prático com a terra. Gadotti (2009) destaca que o desenvolvimento do cuidado com a terra requer experiência com a terra. Para o autor “há muitas formas de encantamento e de emoção diante das maravilhas que a natureza nos reserva” (GADOTTI, 2009, p. 86). Por meio dessa ação prática sobre a realidade pode-se permitir que o homem desenvolva uma percepção de pertencente ao meio natural e não apenas de um sujeito que interfere. 39 4.4 Estratégias de Ensino Nesse subcapítulo da minha monografia, irei discutir como as estratégias de ensino utilizadas por uma professora do 1º Ano do Ensino Fundmental favorecem o desenvolvimento da Alfabetização Científica que permite aos sujeitos uma compreensão crítica dos fenômenos naturais e sociais. Este subcapítulo está organizado em três subdivisões que abordam, respectivamente, as práticas de educação ambiental, a concepção de trabalho como um princípio educativo e o trabalho com espiritualidade. 4.4.1 Práticas de Educação Ambiental Desde a sua inauguração, a Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental vem preocupando-se com o cuidado do meio ambiente. Em entrevista concedida pelo Coordenador da Área Técnica, ele afirmou que a escola foi a primeira do país a instituir um momento específico para estudar Educação Ambiental. O professor diretor da escola, em entrevista concedida, afirmou que, no caso dos Anos Iniciais, “nós colocaremos um professor específico para trabalhar Educação Ambiental. O objetivo seria não só trabalhar Educação Ambiental, mas toda essa área diversificada da escola” (Entrevista com Gestor, 29/02/2016). Na Observação 4, acompanhei o desenvolvimento de uma prática de Educação Ambiental: A professora apresenta para as crianças o trabalho que pretende fazer. Em um primeiro momento as crianças discutem muito a realização do trabalho e sobre quem é ajudante do dia. Nesse momento as crianças fazem diversas exposições: “A água não tem outra cor” “Água suja é marrom” “Na água salgada não tem como nadar, porque tem tubarão”. Em um determinado momento a professora dirige a atividade: “Existem folhas amarelas”. O trabalho que as crianças estão realizando é sobre água doce e água salgada. Na aula da professora predomina uma metodologia dialogada, mesmo que as crianças trabalham com folhas xerocadas (Diário de Campo, Observação 4). 40 No excerto transcrito acima, percebe-se uma situação na qual a docente permite que as crianças expressem suas opiniões, isto é, as representações de mundo formadas em seu meio social. Por meio de uma abordagem dialogada, a professora problematiza as explicações das crianças, permitindo a elas perceberem as limitações das suas representações. Nessa perspectiva, percebemos que ocorre um processo de conscientização do sujeito, no qual ele supera uma leitura ingênua da realidade e começa a construir uma interpretação crítica do meio ambiente. Visando a conscientização da comunidade de Ilópolis/RS sobre a importância de destinar o lixo para a reciclagem, os estudantes da EMAFA realizaram projetos de intervenção na realidade local. O primeiro deles consistiu na coleta de óleo de cozinha para a produção de biodiesel. O Coordenador da Área Técnica enfatizou ainda que os estudantes realizaram a coleta do lixo que existia em torno do Lago Verde. Todos esses materiais foram expostos na praça da cidade. Destaco que a Alfabetização Científica pode guiar os indivíduos para uma ação mais cuidadosa com o mundo, mas para que isso ocorra, “[...] a primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir” (FREIRE, 2003, p. 16). Refletir sobre a realidade é condição essencial para a ação sobre ela, isto é, torna-se necessário ter significação profunda no meio no qual se está inserido (FREIRE, 1979). Compreender as relações casuais existentes no meio exige do sujeito uma capacidade de desvelar essa realidade, não compreendendo as ações como algo isolado, mas sim envoltas em complexidade na qual incidem variáveis econômicas, políticas e sociais. A Educação Científica em uma perspectiva de Alfabetização em um primeiro momento deve auxiliar o indivíduo a ler essa realidade. Para transformar o mundo o homem precisa compreender que a realidade não está acabada, mas sim em constante transformação. Nogaro (2015, p. 69) defende que “a ciência e o conhecimento são ensinados para que os estudantes tenham instrumentos para enfrentar os dilemas e obstáculos da emergência do cotidiano, no mundo da produção e do trabalho” (NOGARO, 2015, p. 69). Assim, neste eixo que estrutura a Alfabetização Científica, o sujeito deve ser empoderado para a ação transformadora do meio em que vive. 41 Destaco, ainda, que a escola adota também estratégias para reciclar o lixo que produz. O coordenador da área técnica, afirmou, por exemplo, que no ano passado a escola vinha enfrentando problemas relacionados a sobra de comida dos almoços que são servidos aos estudantes. Uma das soluções encontradas consistiu na criação de galinhas para a produção de ovos que são alimentadas com esses restos. Além disso, era mantida na escola uma composteira para a produção de adubo orgânico que foi desinstalada devido à falta de substrato orgânico. 4.4.2 O trabalho como princípio Educativo O neoliberalismo, conforme Bauman (2010) pode ser compreendido como um mecanismo predatório que está em constante busca por terras virgens que possam ser exploradas. Na Revolução Verde, o meio rural foi transformado em uma extensão do sistema industrial. O modelo de produção do agronegócio fez com que os processos de desumanização e alienação, até então restritos aos ambientes urbanos e aos operários da indústria, se expandissem para o meio rural. Mesmo as pequenas propriedades foram afetadas por essa reconfiguração nos mecanismos de exploração do sistema neoliberal, inaugurando assim o agronegocinho. Assim, as pequenas propriedades passaram a ser administradas por meio do paradigma de eficiência e produtividade. Para Paludo (2013, p. 73) no ambiente agrícola “o capital se expande tendo como centro o capital financeiro internacionalizado. Na proposta do agronegócio, a agricultura é transformada em um ramo da indústria e a natureza é subordinada aos interesses das empresas capitalistas”. Chassot (2013) destaca, por exemplo, que as sementes crioulas foram substituídas por sementes geneticamente modificadas. Essa mudança teve como intuito aumentar a rentabilidade da produção agrícola, sem se importar com os impactos ambientais decorrentes. No paradigma de produção neoliberal, o ethos entre o homem e o território é substituído por uma relação de mercado e de uso, no qual a terra é concebida como um objeto a ser explorado de modo eficiente, o que extrai do trabalho o seu sentido ontológico (PALUDO, 2013). Em autores marxistas, como Freire (2001a, 2001b, 2011c) e Pistrak (1981) encontramos estudos que remetem à ideia de empregar o trabalho como um princípio educativo. Freire (2011c) entende que é a ação intencional do homem sobre o mundo, 42 isto é, o trabalho, que permite a ele a produção de cultura. Nesse sentido, o trabalho seria um elemento constituinte do homem. Tragtenberg (1981), por sua vez, entende que a escola que objetiva a formação de um sujeito crítico e capaz de intervir no meio social precisa superar o modelo contemplativo de ciência e trabalho. Conforme descrevi no subcapítulo “Espaços Pedagógicos e o desenvolvimento da Alfabetização Científica”, a Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental de Ilópolis/RS possui espaços de produção e experimentação agrícola que são utilizados com objetivo educativo. No caso dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, o diretor da instituição investigada destacou que a escola, por meio da Secretaria Municipal de Educação, fez um convênio com o SEBRAE para desenvolver o Programa Jovens Empreendedores. Uma vez que este programa é financiado por grandes entidades empresariais, a concepção de empreendedorismo implícita nele é uma percepção neoliberal de formação de um sujeito economicamente ativo. Entretanto, afirma que o acordo foi acertado visto que “este programa não vê somente o empreendedorismo, mas todo o respeito com o meio ambiente e o trabalho agrícola” (Entrevista com Gestor, 29/02/2016). Assim, a instituição escolar compreende que esta proposta pode vir ao encontro dos objetivos estabelecidos no currículo escolar: [...] a proposta dos Jovens Empreendedores vem a fechar, a culminar exatamente com o que prega a nossa escola, porque a intenção dele é trabalhar, sim, para ter uma Feira do Empreendedor futuramente. [...] Mas, nós fechamos muito com o SEBRAE na questão do trabalho todo voltado à produção, desde os temperos quando se trabalha com os temperos cheirosos, então toda produção até chegar ao produto final, então se trabalha todo o processo, desde o plantio (Entrevista com Gestor, 29/02/2016). No caso do 1º Ano do Ensino Fundamental, a professora trabalha com as crianças com um projeto de produção de temperos. Assim, em um primeiro momento, as crianças organizam canteiros para o plantio de sementes, acompanham o crescimento das plantas, realizam coleta, secagem e por fim, os comercializam nas Feiras do Empreendedor. Os lucros obtidos, segundo a Coordenadora Pedagógica, são administrados pelas próprias crianças. Diferentemente da concepção de trabalho desenvolvida no sistema neoliberal, a proposta de trabalho realizada na escola envolve os estudantes em todas as esferas de produção. Marx (1996), ao estudar os sistemas de produção econômico, destacava que a divisão de trabalho faz com que 43 os trabalhadores não consigam se reconhecer nos produtos produzidos, o que geraria um processo de alienação. Além disso, o gestor da escola destaca que: Temos um projeto com a Ervateira Chimango e hoje nós temos uma turma onde um aluno foi escolhido pela empresa. Eles fizeram visita e tiveram dias informativos onde a empresa veio colocar algumas ideias para os alunos. Uma propriedade de um familiar de um aluno nosso foi escolhida para ter uma plantação teste junto com a ervateira e com os alunos (Entrevista com Gestor, 29/02/2016). Segundo o Coordenador da Área Técnica, esses projetos em parceria com empresas são desenvolvidos com o objetivo de qualificar e instrumentalizar os jovens com novas técnicas de cultivo e produção. Pistrak (1981, p. 61) também corrobora que aperfeiçoar e inserir novos métodos de trabalho no meio rural requer que a escola seja “colocada na vanguarda deste trabalho, porque ela é o centro cultural que influencia diretamente a criança desde uma tenra idade e indiretamente toda a população camponesa”. Para o pedagogo russo, alcançar esses objetivos requer que seja ensinada às crianças uma bagagem científica e lhes sejam dadas oportunidades de aplicar esse conhecimento. Nesses casos, a Alfabetização Científica é desenvolvida no momento em que são oportunizados aos estudantes momentos de aplicação do conhecimento científico. Oliveira e Machado (2013) afirmam que é necessário as instituições de ensino preocupar-se em criar alternativas aos modelos hegemônicos impostos pelo agronegócio. Nesse sentido, espera-se que a educação desenvolvida na EMAFA auxilie no desenvolvimento de “uma sociedade que supere os modelos econômicos e políticos de hoje, em busca de uma solidariedade entre as pessoas e os povos” (ILÓPOLIS, 2006, p. 73). No caso da EMAFA, ao superar um modelo de contemplação do trabalho e do conhecimento científico, ela coloca-se em uma perspectiva contra hegemônica, não apenas às concepções pedagógicas homogeneizadas pelo sistema macroeconômico “que caminham na direção contrária ao ideário da emancipação humana e a formação humana omnilateral, como também ao projeto de capital que promove/realiza e se nutre da exploração do trabalho” (PALUDO, 2013, p. 68). Nesse sentido, o que se percebe é que a instituição investigada, por meio da perspectiva de adoção do trabalho como um princípio educativo, vem enfatizando a 44 necessidade da formação omnilateral. Esse modo de formação humana coloca-se em uma perspectiva distinta da formação unilateral, pela qual o homem é formado em meio aos mecanismos da sociedade capitalista. 4.4.3 Trabalho de Espiritualidade A crença religiosa e a espiritualidade estão muito presentes nos pequenos municípios colonizados por etnias de origem europeia. Nesses locais, muitas festividades e comemorações são organizadas em torno das datas religiosas. Historicamente, o conhecimento científico e o conhecimento religioso ocuparam posições antagônicas, visto que a Ciência visava desvelar aspectos subjetivos da vida cotidiana, racionalizando muitas crenças humanas. Nessa subdivisão do estudo, discuto como a Alfabetização Científica deve contemplar aspectos religiosos a fim de não produzir a desumanização dos sujeitos. Nas terças-feiras de tarde, a turma de 1º Ano do Ensino Fundamental da EMAFA possui aulas especializadas de Educação Ambiental, Música, Educação Física, Inglês, Informática e Espiritualidade. Nessa seção da monografia, discutirei as contribuições do trabalho com espiritualidade para o desenvolvimento da Alfabetização Científica das crianças. Mesmo que documentos legais, tais como a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional determinem a laicidade do Estado e da educação, o diretor da escola, em conversa mantida na Visita Técnica nº 1 afirmou que a escola optou por trabalhar esse tema, visto que a crença religiosa é muito presente no município e praticada pelas famílias. Essa afirmação, pode ser constatada no momento em que as crianças afirmaram que seus sonhos consistiam em “ser anjo, ter um cavalo, ter uma vida, ter a vovó morando perto, ter Jesus no lado e ter um mamute” (Gravação de Áudio Esporádica, 19 de abril de 2016). Outras frases das crianças que reforçam essa perspectiva de a crença religiosa ser muito presente na vida cotidiana puderam ser gravadas no decorrer da prática da docente: “Gente, não me batam. Eu vou perder a vida que Deus me deu” (Gravação de Áudio Esporádica, 19 de abril de 2016), “É melhor viver que morrer na 45 terra” (Gravação de Áudio Esporádica, 19 de abril de 2016) e “Eu sonho ser um profeta” (Gravação de Áudio Esporádica, 19 de abril de 2016). Segala (2013). Ao analisar a presença do pensamento religioso na teoria de Paulo Freire, destaca-se que alguns conceitos empregados pelo autor assumiram um caráter holístico em decorrência da influência do humanismo cristão para o autor. Freire (2011b) reconhece que além da relação do homem com o mundo, o homem estabelece uma relação com um ser Criador que influencia e condiciona diferentes formas de expressão do homem. Diferentemente do pensamento de Marx, que compreendia “o Deus cristão [...] o ponto culminante da alienação humana: para ele, a religião era o ‘ópio do povo’ e Deus um produto do pensamento mágico, do espírito humano alienado e dominado por sua própria criação fantasmática” (LOIOLA; BORGES, 2013, p. 297), Freire (2011b) e Freire e Betto (2003) encontram na religião possibilidades de emancipação. Nessa perspectiva, no diário de campo encontramos o seguinte excerto, que narra e descreve as situações de aprendizagem desenvolvidas pela docente: O quarto período de aula é espiritualidade. Nesse momento as crianças fazem o sinal da cruz e rezam o Santo Anjo. A professora inicia a aula fazendo uma retomada da aula anterior, na qual as crianças estudaram sobre Jesus abençoar as crianças. O conteúdo da aula é sobre sonhos. A professora explica que não é sonho que acontece no dormir, mas sonho de futuro. A professora relaciona o tema com a música “Sonhar como Jesus Sonhou” (Diário de Campo, 19 de abril de 2016). Penso que o trabalho com espiritualidade, mesmo que contrarie a ideia de estado laico, pode contribuir para o desenvolvimento da Alfabetização Científica das crianças, principalmente no que tange ao eixo que corresponde “a compreensão da natureza da ciência e dos fatores éticos e políticos que circundam a sua prática” (SASSERON; CARVALHO, 2008, pp. 335). O indivíduo cientificamente alfabetizado seria aquele capaz de compreender a distinção da Ciência, das Pseudociências, do Senso Comum e do Conhecimento Religioso. Contudo, o reconhecimento que a Ciência é produzida por uma racionalidade própria e que nela as percepções imediatas passam por um processo de psicanálise (BACHELARD, 1996), não equivale a tomar a Ciência como saber superlativo. Se o indivíduo compreender que a Ciência é produzida no interior de um determinado paradigma enquanto a sua concepção de mundo obedece a outros 46 princípios epistemológicos, poderia não colocá-los em uma hierarquia axiológica, mas reconhecer que ambos podem ser complementares. Em determinamos momentos de nossa vida, conforme Chassot (2013), empregamos o conhecimento científico. Todavia, em outros momentos é mais conveniente empregar os saberes populares, ou até mesmo o saber religioso. Lorenzon, Barcellos e Silva (2015) defendem que reconhecer que o conhecimento científico, o conhecimento popular e o conhecimento religioso possuem princípios epistemológicos distintos, possibilitaria um movimento de humanização do sujeito, pois ele perceberia que o conhecimento produzido por ele em decorrência de suas práticas sociais também possui valor. Assim, é por meio da compreensão das distintas epistemes que os sujeitos possuem a possibilidade “que existem culturas paralelas. E não superiores e inferiores” (FREIRE; BETTO, 2003, p. 60). Entretanto, para que os momentos de espiritualidade contribuam para o desenvolvimento da Alfabetização Científica das crianças, é necessário que eles sejam praticados de modo crítico e possibilitem a discussão e o debate. 47 5. A HORA DA COLHEITA? Neste capítulo, que finaliza meu trabalho de conclusão de curso, sintetizo alguns aspectos emergentes do trabalho investigativo, bem como saliento as contribuições do trabalho para o Ensino Fundamental e as minhas aprendizagens no decorrer do seu desenvolvimento. Reitero que o objetivo do trabalho foi analisar como as estratégias de ensino empregadas por uma professora do 1º Ano do Ensino Fundamental favorecem o desenvolvimento de uma Alfabetização Científica que permita aos sujeitos uma compreensão crítica dos fenômenos naturais e sociais. Pressuponho que a Alfabetização Científica empodera os sujeitos para agirem sobre o mundo, permitindo aos homens e mulheres uma compreensão e transformação crítica da realidade. O estudo foi desenvolvido junto à Escola Municipal Agrícola, Florestal e Ambiental localizada em Ilópolis/RS, pois esta instituição, em sua proposta pedagógica, esclarece que tem como objetivo a formação de sujeitos que ajam de forma protagonista no meio em que vivem, contribuindo assim, para o desenvolvimento econômico e social local. Nessa perspectiva, ao longo do estudo, busquei apresentar boas práticas desenvolvidas por uma professora do 1º Ano do Ensino Fundamental. Acredito que essas práticas devam ser estudadas e compartilhadas, a fim de estimular outros docentes a desenvolvê-las, pois Alfabetização Científica está fundamentada em um princípio ético de respeito aos saberes proveniente do educando e tem como objetivo permitir que esse educando seja empoderado para agir de modo crítico e transformador sobre o mundo. No decorrer da análise do corpus de pesquisa, tornou-se evidente que a professora favorece o desenvolvimento da Alfabetização Científica por meio de 48 estratégias variadas, entre as quais destaco: o emprego de temas geradores como método de organização do planejamento - o que permite a problematização, releitura e ação sobre a realidade; a realização de projetos de investigação, o que oportuniza aos estudantes a compreensão da epistemologia do conhecimento científico; o uso de diferente espaços com finalidades pedagógicas; e a concepção do trabalho como princípio educativo. As estratégias citadas anteriormente, bem como aquelas apresentadas ao longo do estudo partem do pressuposto que os estudantes possuem uma determinada leitura d