CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE DIREITO AS MEDIAÇÕES JUDICIAIS FAMILIAIS NA COMARCA DE LAJEADO/RS Laura Marder Lajeado, junho de 2016 Laura Marder AS MEDIAÇÕES JUDICIAIS FAMILIAIS NA COMARCA DE LAJEADO/RS Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Curso II - Monografia, do Curso de Direito do Centro Universitário UNIVATES, como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharela em Direito. Orientadora: Prof. Ma. Bianca Corbellini Bertani Lajeado, junho de 2016 AGRADECIMENTO Primeiramente, agradeço aos meus pais, Carlos Henrique e Carma, por todo ensinamento, educação e principalmente pelo afeto que percebo deles diariamente, desde o dia em que eu nasci. Obrigada pai e mãe, vocês são tudo. Por conseguinte, agradeço meu namorado Ricardo, pelos momentos de paciência e incentivo a não desistir dos meus objetivos, tu és essencial na minha vida. Para completar as saudações familiares, não poderia deixar de mencionar meus fiéis companheiros, Bier e Reib, que passaram horas acordados comigo, dando apoio moral em relação à construção desta monografia. Família, amo muito vocês. Agradeço aos meus amigos, bem assim meus colegas de trabalho do Gabinete do Pretor Cível da Comarca de Lajeado, em especial, ao Dr. Joao Gilberto Vitola, pela oportunidade de estagiar junto a toda equipe maravilhosa. Muito do que aprendi devo a vocês, obrigada. Finalmente, não poderia deixar de agradecer minha querida orientadora, Bianca Corbellini Bertani, obrigada pela orientação dada e pelos ensinamentos durante toda a minha graduação. RESUMO A presente monografia tem por intuito desenvolver o conteúdo que envolve a área de solução de conflitos, especialmente a mediação no direito de família, haja vista que o modelo familial se transformou ao longo dos tempos, passando por diversas intervenções, calcadas nos modelos sociais, morais e religiosos de cada época. O objetivo geral do trabalho é, portanto, analisar a mediação judicial familial na Comarca de Lajeado, pelo seguinte questionamento: onde reside o entrave para o sucesso da mediação familial? Como hipótese, tem-se que a mediação é ainda incipiente e o desconhecimento da comunidade, dos envolvidos e dos profissionais atuantes nos casos dificulta o sucesso da mediação, na prática. Dessa forma, o estudo desenvolve, em seu primeiro capítulo, a evolução do direito familial, notadamente no seu aspecto constitucional. No capítulo seguinte, o estudo refere-se à sociedade contemporânea e os meios de transformação de conflitos, uma vez que as discórdias estão fazem parte da vida do indivíduo, desde uma discussão com um colega de trabalho, no trânsito ou até mesmo no meio familial. Como nem todas as controvérsias conseguem ser solucionadas consensualmente pelos envolvidos, vem a necessidade do auxílio de uma terceira pessoa neutra e imparcial que, no caso da mediação, é chamado de mediador. Dessa maneira, a fim de que seja compreendido o mecanismo da mediação, o terceiro e último capítulo abordará a Lei da Mediação, o Novo Código de Processo Civil e de que forma a mediação está sendo trabalhada na Comarca de Lajeado/RS, através do CEJUSC. Trata-se de pesquisa qualitativa, realizada pelo método dedutivo, com a utilização de instrumentos bibliográfico e documental. Palavras-chave: Família. Conflitos. Mediação Familial. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CEJUSC Centro Judiciária de Soluções de Conflitos e Cidadania CF Constituição Federal CNJ Conselho Nacional de Justiça FONAMEC Fórum Nacional de Mediação e Conciliação IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística LINDB Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro NCPC Novo Código de Processo Civil PNAD Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8 2 A FAMÍLIA ATUAL ................................................................................................ 11 2.1 Transformação do modelo familial .................................................................. 11 2.2 Perfil da família moderna .................................................................................. 17 2.3 Evolução histórica da família frente a Constituição Federal ......................... 19 2.3.1 O Estado democrático de direito .................................................................. 23 2.4 Princípios constitucionais do direito de família ............................................. 24 2.4.1 Princípio do respeito à dignidade da pessoa humana ................................ 25 2.4.2 Princípio da solidariedade familiar ............................................................... 26 2.4.3 Princípio da igualdade ................................................................................... 27 2.4.4 Princípio da liberdade às relações familiares .............................................. 29 2.4.5 Princípio da afetividade ................................................................................. 30 2.4.6 Princípio da convivência familiar .................................................................. 31 2.4.7 Princípio do melhor interesse para criança, adolescente e idoso ............. 32 3 A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E OS MEIOS DE TRANFORMAÇÃO DE CONFLITOS ........................................................................................................ 34 3.1 Conceito de conflito .......................................................................................... 34 3.2 Acesso à justiça ................................................................................................ 37 3.3 A Negociação ..................................................................................................... 40 3.4 A Arbitragem ...................................................................................................... 41 3.5 A Conciliação ..................................................................................................... 43 3.6 A Mediação ........................................................................................................ 45 4 A MEDIAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ........................... 47 4.1 Breve relato histórico da mediação ................................................................. 50 4.2 Contextualização legislativa da mediação do Brasil ...................................... 51 4.2.1 Resolução 125/10 do Conselho Nacional de Justiça .................................. 51 4.2.2 Lei da Mediação (nº 13.140/15) ...................................................................... 52 4.2.3 A mediação no Novo Código de Processo Civil .......................................... 55 4.2.4 O impasse entre a Lei da Mediação e o Novo Código de Processo Civil ........................................................................................................................... 57 4.3 O CEJUSC na Comarca de Lajeado /RS .......................................................... 58 4.4 A mediação no âmbito familiar ........................................................................ 60 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 64 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 67 8 1 INTRODUÇÃO Desde a década de 1970, através do movimento ao acesso à Justiça, já havia uma preocupação com o sistema formal característico do Direito, visto que estimulava o processo litigioso. A solução para isso seria a utilização de meios compositivos de resolução de conflitos, pois evitaria a realização de muitos atos processuais e contribuiria pela fluidez do sistema judiciário brasileiro. Pensando nisso, passou-se a utilizar os institutos de conciliação, arbitragem e mediação de forma mais sistemática. Esses institutos encontravam respaldo no ordenamento jurídico, mas pouco valorizados em sua prática. Na década seguinte, com o propósito de dar celeridade aos processos, criaram-se os Juizados de Pequenas Causas, antecessores dos atuais Juizados Especiais que, mesmo com suas fragilidades, foram e ainda estão sendo benéficos e facilitadores à população, no que toca ao acesso à Justiça, haja vista que nesses casos é possível a propositura de uma ação sem a necessidade de um advogado. Contudo, o fácil acesso à Justiça contribui negativamente quanto ao número de processos em trâmite no sistema judiciário brasileiro, que atualmente chega a mais de 93 milhões, segundo dados do levantamento anual realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Muitas dessas controvérsias poderiam ser solucionadas por meio da mediação, por exemplo, com o acompanhamento de um terceiro neutro e imparcial, chamado de mediador. Assim, diante do intenso trabalho do Conselho Nacional de Justiça, que desde o ano de 2006 organiza o movimento pela conciliação, foi 9 sancionada, no dia 26 de junho de 2015, a Lei nº 13.140/15, mais conhecida como “Lei da Mediação”, que disciplina a mediação judicial e extrajudicial como forma consensual de solução de conflitos. O instituto de mediação, agora valorizado, vem exposto também no texto do novo Código de Processo Civil aprovado pelo Poder Legislativo e publicado no Diário Oficial da União no dia 17 de março de 2015, que entrou em vigor em março de 2016. Nesse sentido, o presente trabalho intenta, como objetivo geral, analisar a mediação judicial familial na Comarca de Lajeado. A problemática do estudo tem por finalidade resolver o seguinte questionamento: onde reside o entrave para o sucesso da mediação familial? Como hipótese, tem-se que a mediação ainda é incipiente, construindo-se sua práxis diuturnamente. Seu desconhecimento pela comunidade, pelas partes e pelos advogados poderia dificultar o êxito na prática, em que pese o treinamento da equipe e os esforços empreendidos. Quanto à forma de abordagem, realizou-se pesquisa qualitativa, pois objetiva produzir informações de forma global, possibilitando interpretações ao fenômeno estudado, conforme denotam Mazzaroba e Monteiro (2014). Ademais, para obter a finalidade do estudo, o método de pesquisa empregado na realização do presente trabalho acadêmico foi o dedutivo, cuja operacionalização se dará através de procedimentos técnicos baseados em doutrinas e legislação, relacionados, primeiramente, aos princípios constitucionais e processuais, passando para o justo e justiça e finalizando com a forma como está implantado o CEJUSC (Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania), na Comarca de Lajeado/RS. Dessa forma, o primeiro capítulo abordará a família atual, passando pela transformação do modelo familial e o perfil da família moderna, bem como desenvolverá a evolução histórica da família frente à Constituição Federal, conceituando o Estado Democrático de Direito e finalizando com os princípios constitucionais presentes no direito de família. 10 No segundo capítulo será comentado sobre a sociedade contemporânea e os meios de transformação de conflitos. Assim, para compreender melhor as soluções dadas ao conflito, num primeiro momento faz-se necessário conceituar o conflito, para abordar, por conseguinte, o que é justo e justiça e finalizar expondo o mecanismo da negociação, da arbitragem, da conciliação e da mediação. Finalmente, o terceiro e último capítulo tem por viés esclarecer quanto a mediação no ordenamento jurídico brasileiro. Nele far-se-á um breve relato histórico, passando para a contextualização legislativa da mediação do Brasil e dando ênfase na resolução 125/10 do Conselho Nacional de Justiça, a fim de chegar ao enfoque do presente estudo, qual seja: a Lei da Mediação (13.140/15), a mediação no novo Código de Processo Civil e o CEJUSC na Comarca de Lajeado/RS. 11 2 A FAMÍLIA ATUAL Com o advento do Estado social, ao longo do século XX, a denominação familial se transformou, uma vez que o ente estatal, antes ausente, passou a se manifestar socialmente, ampliando os interesses protegidos e definindo novos modelos da estrutura familiar. Assim, o presente capítulo objetiva descrever a transformação familial, elencando sua função na modernidade, com o paradigma do Estado democrático frente a Constituição Federal. 2.1 Transformação do modelo familial A espécie humana, conforme Dias (2009), não é a única a ser privilegiada com o acasalamento, uma vez que os seres vivos também adotam a prerrogativa do vínculo afetivo. A existência de pares pode ser vista como um fato natural, pois os indivíduos se unem diante da química biológica existente entre eles, muitas vezes pela aversão de se sentirem solitários. Aduz, ainda, que a família, informalmente, se transforma em grupos, sendo estruturada através do direito, onde a lei proporciona o congelamento da sua realidade. Por outro lado, Almeida (2012) acredita que a família é o alicerce fundamental da sociedade e, mesmo existindo há séculos, ela ainda pode ser considerada atual, uma vez que vem se desenvolvendo socialmente e se adequando conforme suas novas necessidades, seus novos interesses, tudo de acordo com o momento histórico que está sendo vivenciado. 12 Ao longo da evolução histórica, o direito familial brasileiro passou por diversas intervenções, principalmente referentes aos modelos sociais, morais e religiosos, conforme verifica-se a seguir: I- do direito de família religioso, ou do direito canônico, que perdurou por quase quatrocentos anos, que abrange a Colônia e o Império (1500-1889), de predomínio do modelo patriarcal; II- do direito de família laico, instituído com o advento da República (1889) e perdurou até a Constituição de 1988, de redução progressiva do modelo patriarcal. III- do direito de família igualitário e solidário, instituído pela Constituição de 1988 (LÔBO, 2010, p. 36-37). No período que abrange a Colônia e o Império (1500-1889), a Igreja Católica era quem comandava o direito de família, sendo assim, o Estado abria mão de interferir na vida privada dos cidadãos, modelo esse que não se alterou com a proclamação da Independência. Dessa feita, o controle do direito de família ficou consolidado entre o Império Português e a Igreja Católica, sendo que nessa época havia o predomínio do modelo patriarcal 1 . Somente com a proclamação da República, em 1889, freou-se o direito canônico sobre as relações familiares, principalmente quanto ao casamento religioso, uma vez que ficou afastado de qualquer efeito civil (LÔBO, 2010). Junto com a evolução histórica nasce o Código Civil de 1916, o qual abrangia a família do século passado como aquela que era formada exclusivamente através do casamento, uma vez que o matrimônio foi o meio encontrado para estabelecer os vínculos interpessoais, sendo visto como uma regra de conduta, principalmente aos homens, com o intuito de tentar barrar a ideia de usar o outro como objeto, consoante disciplina o doutrinador Dias (2009). Não obstante, embora não perdendo o perfil hierárquico e patriarcal, o surgimento de uma família, digo (pai, mãe e filhos), possibilitava melhores condições de vida aos seus membros, uma vez que a prole teria o condão de ajudar seus pais na medida que iria amadurecendo. Não diferente disso, Almeida (2012) aduz que a reprodução era o objetivo fundamental da família, uma vez que os indivíduos se casavam com intuito de obter 1 Modelo patriarcal é aquele em que o pai é o chefe de família. 13 filhos, para que os mesmos ajudassem no trabalho pesado, a fim de trazer parte do sustendo à família. Assim, ainda na visão do supracitado autor: Isso significava dizer que, de um lado, a figura feminina permanecia resumida à função reprodutiva, de outro, os filhos tinham valor por representarem a mão de obra. Em paralelo, portanto, o homem, enquanto efetivo sujeito propiciador da aquisição patrimonial, mantinha-se com a autoridade familiar, subjugando os demais. A família era, assim, caracteristicamente hierarquizada, patriarcal (ALMEIDA, 2012, p. 7). De outra banda, o referido Código impedia a dissolução do matrimônio e trazia discriminação aqueles que eram unidos fora do modelo imposto, bem assim para os que possuíam filhos, frutos dessa relação “ilícita”. Como medida punitiva para quem desrespeitasse essas regras, haveria a exclusão de qualquer direito que o indivíduo poderia vir a possuir (Dias, 2009). De outro modo, Almeida (2012) clarifica que o casamento, de regra, não poderia ser dissolvido, tendo em vista que “representaria ofensa ao dogma religioso, consubstanciado no brocardo o que Deus uniu o homem não separa. De outro lado, porque significaria comprometimento ao escopo familiar” (Almeida, 2012, p. 9/10). Assim, verifica-se que, embora a proclamação da República tenha freado o direito canônico, a religião continuou influenciando na vida conjugal dos casais. Por outro lado, cabe referir que: a evolução pela qual passou a família acabou forçando sucessivas alterações legislativas. A mais expressiva foi o Estatuto da Mulher Casada2, que devolveu a plena capacidade à mulher casada e deferiu-lhe bens reservados que asseguravam a ela a propriedade exclusiva [...] (DIAS, 2009, p. 30). Embora que a referida lei dispusesse que o marido era o chefe da sociedade conjugal, ela foi um marco à classe feminista, uma vez que a mulher poderia trabalhar e possuir sua própria renda sem tê-la que dividir com o seu cônjuge. Já com o advento da Constituição Federal de 1988, o direito de família passou a ser igualitário e solidário e, conforme aduz o doutrinador Veloso (apud DIAS, 2009, p. 31). 2 O Estatuto da Mulher Casada refere-se a Lei 4.121/1962. 14 A Constituição Federal de 1988, num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito. Instaurou a igualdade entre homem e mulher e esgarçou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros. Entendeu igual proteção à família constituída pelo casamento, bem como a união estável entre homem e mulher e à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, que recebe o nome de família monoparental. Consagrou a igualdade dos filhos, havido ou não no casamento, ou por doação, garantindo-lhes os mesmos direitos e qualificações. Assim, percebe-se que durante o século XX, até a Constituição de 1988, o modelo de família patriarcal foi perdendo sua consistência na medida em que o saber, o pátrio poder, a desigualdade entre os filhos e a exclusividade do casamento, abortavam sua relevância (LÔBO, 2010). No mesmo viés, o autor refere que a desigualdade jurídica existente no direito de família somente teve fim com a entrada em vigor da Carta Magna, momento em que foi proclamado o término da distinção existente entre as famílias não matrimonializadas, passando todas possuírem os mesmos direitos e deveres. Ainda, referente ao modelo patriarcal, Dias (2009) afirma que o mesmo começou a ser modificado a partir do momento em que a mulher passou a fazer parte do mercado de trabalho, mais precisamente na Revolução Industrial, uma vez que se elevou drasticamente a procura por mão de obra. Porém, nesse momento histórico, o vínculo afetivo passou a ser mais forte, nascendo uma nova concepção de família, a qual se forma através de laços afetivos de carinho e amor. Assim, “cessado o afeto, está ruída a base de sustentação da família, e a dissolução do vínculo é o único modo de garantir a dignidade da pessoa” (DIAS, 2009, p. 28). Diferentemente do até aqui explanado, para o doutrinador Lôbo (2010), as funções atribuídas às famílias ocorrem de acordo com a evolução, tanto religiosa, como política, econômica e procracional. Revela que as funções religiosas, assim como as políticas, não deixaram raízes na família atual, uma vez que o modelo hierárquico foi modificado. Já a função procracional, que era fortemente defendida pela igreja, passou a perder o seu valor, devido ao baixo número de casais com filhos, resultando também na perda da função econômica familiar, uma vez que antes era necessário o maior número de membros para contribuir economicamente com o sustento da família e também para garantir a velhice do patriarcal, porém tal atribuição foi encaminhada para a previdência social. O direito que está vigorando nos dias de hoje atenta que a procriação não é mais algo necessário, uma vez que o 15 auxílio constitucional, referente à adoção, vem direcionando uma natureza socioafetiva a fim de formar uma família3. Ao mencionar o atual Código Civil, 2002, verifica-se que o mesmo procurou atualizar as visões tidas quanto ao Direito de Família, porém Dias (2009) afirma que a referida Lei: Incorporou as mudanças legislativas que haviam ocorrido por meio de legislação esparsa, apesar de ter preservado a estrutura do Código anterior. Mas não deu o passo mais ousado, nem mesmo em direção aos temas constitucionalmente consagrados, ou seja, operar a subsunção, à moldura da norma civil, de construções familiares existentes desde sempre, embora completamente ignoradas pelo legislador infraconstitucional. Por esse motivo, é alvo de variadas interpretações, diversa gama de considerações, comentários, sugestões e emendas. E nem poderia ser diferente. Apesar das relações conjugais tenderem cada vez mais a repudiar a interferência em sua espera de privacidade, é exaustiva a regulamentação do casamento. Mas não disciplina o Código Civil só os vínculos afetivos que buscam o respaldo legal para se constituírem. O dirigismo estatal também se impôs na união estável, ainda que seja relacionamento que se constitui sem a interferência estatal (DIAS, 2009, p. 31). Ainda para o referido doutrinador, o Código Civil de 2002 não pode ser chamado de novo, uma vez que é um código antigo com um novo texto. Acredita que a grande diferença foi a exclusão de expressões e conceitos que não eram bem vistos. Principalmente ao se falar da desigualdade que havia entre homem e mulher, as adjetivações da filiação e a forma prevista quanto aos regimes de bens. O antigo Código Civil previa que aquele que fosse o responsável pela separação não teria direito aos alimentos, mesmo sendo pessoa hipossuficiente. Já com o advento da nova Lei, ficou legalizado que o cônjuge teria direito aos alimentos, mesmo sendo ele o culpado pelo divórcio. De outra banda, a guarda compartilhada4 não fazia parte dos artigos da referida legislação, sendo somente criada com a Lei 11.698/08. 3 Artigo 227, § 6º, da Constituição Federal dispõe que: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (PLANALTO, 2016, texto digital). 4 Guarda compartilhada: [...] ”a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”. Artigo 1.583, § 1º, da Lei 11.698/2008” (PLANALTO, 2016, texto digital). 16 Por outro lado, Almeida (2012) expõe as inovações implementadas no Código Civil de 2002, as quais tornaram sem efeito a postura antiquada que o Código Civil de 1916 exercia: Em desarranjo à estrutura patriarcal da família, o art. 1.565 é expressivo ao enunciar que o marido e a mulher assumem, mutuamente, a qualidade de responsáveis pelos encargos familiares. No mesmo sentido, o art. 1.631 reitera que o poder familiar compete aos pais, em conjunto (ALMEIDA, 2012, p. 22). Assim, percebe-se que a ideia de o marido ser o chefe da sociedade conjugal tornou-se nula a partir do momento que o atual Código Civil impôs que a mulher, assim como o homem, tem responsabilidade sobre os encargos familiares. De outra banda, levando pelo lado constitucional, Dias (2009) acredita que o legislador cometeu inconstitucionalidades ao redigir o Código Civil de 2002, uma vez que: A perquirição da culpa na separação é um dos grandes exemplos de falta de sensibilidade para com o clamor da doutrina. O mundo de hoje não mais comporta uma visão idealizada da família. Seu conceito mudou. A sociedade concede a todos o direito de buscar a felicidade, independentemente dos vínculos afetivos que estabeleçam. É ilusória a ideia de eternidade do casamento. A separação, apesar de ser um trauma familiar doloroso, é um remédio útil e até necessário, representando, muitas vezes, a única chance para ser feliz. Impor a um dos cônjuges que desnude a intimidade fere o direito à privacidade, além de afrontar a dignidade de par do qual quer se desvencilhar (DIAS, 2009, p. 32-33). Cabe mencionar que hoje em dia a dissolução conjugal tornou-se algo comum, haja vista que os casais se separam quando não estão mais se sentindo completos com a companhia do parceiro, ou quando não sentem mais amor pelo outro, diferentemente do passado, em que a relação perdurava mesmo sem sentimento, pois a ideia de separação era vista como uma afronta aos princípios, tanto sociais/religiosos, quanto os doutrinários. Dessa feita, observa-se que inicialmente o direito de família era privativo da igreja católica, bem como que a sociedade só aceitava que houvesse a constituição de uma família quando a mesma era fruto do casamento. Mas com evolução histórica e cultural, a sociedade passou a ver o conceito de família de forma esparsa, não atribuindo mais a necessidade de pai, mãe e irmãos. Embora as uniões homoafetivas não tenham espaço no Código Civil, as jurisprudências já estão frente a essa realidade. Por todo exposto, verifica-se que o vínculo afetivo está presente 17 em todos os tipos de entidades familiares, bem assim que o Brasil está caminhando em busca de famílias constituídas pelo amor e não mais pela visão católica ou jurídica. 2.2 Perfil da família moderna Os censos demográficos do IBGE demonstram que a família brasileira teve considerável transformação no final do século XX, uma vez que a população urbana cresceu em torno de 80%, diferentemente da população rural que foi o modelo de família utilizado no Código Civil de 1916, Lôbo (2010). Quanto a proporção da desigualdade, a mesma não foi alterada, uma vez que os 10 % mais ricos da população possuíam um rendimento médio de dezenove vezes maior que os 40 % mais pobres. Ainda, conforme apontamento do censo demográfico dos anos 2000, com a comparação dos anos 1980, verifica-se que: a) a média de membros por família caiu de 4,7 para 3,4; b) o padrão de casal com filhos (família nuclear), com os pais casados ou convivendo em união estável caiu de 60% para 55%; c) em contrapartida, o percentual de entidade monoparentais compostas por mulheres e seus filhos ampliou de 22 % para 26% ( em 2008 já tinha avançado para 34,9% mais de um terço das famílias); d) os solitários (solteiros ou remanescentes de entidades familiares) subiram de 7,3% para 8,6%; e) o decréscimo da taxa de natalidade por mãe é notável, passando de 2,7 filhos para 2,3 filhos; enquanto na década de 1960 era de 6,3 filhos em média, em 2008 a média já tinha sido reduzida para 1,89 nascimentos/mulher, inferior ao nível de reposição da população; f) os mais velhos estão vivendo mais, demandando atenção das famílias, com as mulheres chegando a viver em média 72,3 anos e os homens 64,6 anos; g) a população é mais feminina, havendo 96,6 homens para cada grupo de 100 mulheres(LÔBO, 2010, p. 26/27). Assim, percebe-se que o modelo familiar vem sendo modificado a cada ano, uma vez que as pessoas estão simpatizando com outros tipos de entidades familiares, não sendo mais padrão o modelo de família nuclear, ainda mais que, conforme Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), realizada todos 18 os anos pelo IBGE, a taxa de matrimônios constituídos praticamente ampara-se com a taxa de divórcios, fato que no passado era incompreensível. Na mesma linha de pensamento escreve o doutrinador Dias (2009) aduzindo que é difícil encontrar um conceito para as famílias modernas, uma vez que seria mais evidente conceituar a família com a noção do matrimônio, ou ainda elencando a família patriarcal, modelo em que o pai é considerado o indivíduo central, vindo acompanhado pela esposa, filhos, genros, netos. O autor acredita que com a emancipação feminina e a entrada da mulher no mercado de trabalho, o pai/homem passou a realizar mais atividades domésticas e não exclusivamente ser o chefe de família. Não obstante a isso, Venosa (2015) expõe que os educandários, assim como as escolinhas de esportes preenchem as atividades das crianças, fato que antes era de plena responsabilidade dos pais. Isso ocorre porque a família moderna não é mais aquela em que a mulher é apenas do lar e sim aquela que a mulher também faz parte do mercado de trabalho. A concepção de família não ficou inerte, uma vez que “com o perpassar de tantos fatos sociais, a família parece ter sido despida do invólucro que a tornava uma entidade autônoma e que impedia que recebessem atenção os que a compunham” (ALMEIDA, 2012, p. 8). Assim, as pessoas que antes eram inferiorizadas, como por exemplo a classe feminina, tornam-se destaque, chamando para o seu lado a proteção jurídica. Para Dias (2009, p. 41) “a família é um grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas”. A partir disso, o autor garante que a lei não se preocupou em definir o que é uma família, limitando-se a diferenciá-la através do casamento, dando margem para a Justiça condenar à invisibilidade e negar direitos para aqueles que viviam em forma de pares, mas sem a chancela do Estado. Nas palavras do supracitado autor: “o novo modelo de família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família” (DIAS, 2009, p. 43). 19 Dessa feita, a questão é tratada no indivíduo e não mais nos objetos que guarnecem a relação familiar. Para melhor compreender tudo explanado, a seguir apresenta-se o paradigma da família atual: Aquele que aparece ser o pai é o padrasto, ou simplesmente é o “novo” amigo da mãe; a moça com uma criança no colo não é a mãe, mas uma meia-irmã mais velha, fruto de um casamento anterior do pai ou de sua mãe; os três jovens que dividem o mesmo teto são um casal e uma amiga, ou os filhos de casais distintos – ou irmãos unilaterais que agora vivem com um dos pais; e aquela que parecia ser a mãe pode ser na verdade a namorada dela, e como na Argentina, pode até ser sua cônjuge, da mesma sorte os dois homens sorrindo na foto, podem ser apenas um casal de homoafetivos, ao invés do tio e o pai, ou como usualmente falávamos “o tio e o sobrinho, jargão tantas vezes usados pelo casal de homossexuais para explicar sua convivência (CÉSAR, texto digital). Assim, é possível perceber que os indivíduos estão mais felizes com o modelo familiar atual, pois as relações não se limitam apenas ao casamento, os pares estão se formando independentemente do sexo e o afeto existe em todos os tipos e meios de relação. As famílias atuais se modernizaram. Hoje em dia o sexo é assunto mais frequente e até mesmo discutido em sala de aula. A gravidez fora do casamento, bem como a homossexualidade estão cada vez mais fora do alvo de represálias e preconceito. 2.3 Evolução histórica da família frente a Constituição Federal Felizmente, assim como o Brasil, a Constituição Federal também sofreu alterações, as quais foram introduzidas ao longo da evolução histórica. As principais modificações se deram frente as entidades familiares e, para melhor compreender a referida trajetória do direito familiar frente a constituição, será abordado, em linha contínua, a ideia do doutrinador Maluf (2010). A primeira Carta Magna foi elaborada dois anos após a proclamação da independência do Brasil, sendo vista como a Constituição Imperial de 1824, ela era guiada pelos princípios fundamentais da ideologia liberal, porém não tinha 20 referências ao direito familial, apenas havia o casamento religioso como origem da família, uma vez que a Igreja e o Estado não tinham um vínculo cordial. Após, de cunho liberal, nasceu a Constituição brasileira de 1891, a qual foi criada nos moldes americanos, bem assim influenciada pelo ideário republicano. Tinha como intuito afastar o Estado da sociedade. Além disso, proclamou o casamento civil de forma gratuita e ainda separou o matrimônio da religião, tendo em vista que o ente estatal se desvinculou da Igreja. Consoante disciplina o referido autor, no século seguinte, a Constituição de 1934 indagou ao Estado a intervir na ordem econômica e social, assim como deu ao ente a responsabilidade de proteger as famílias, permanecendo a apoiar o casamento civil e gratuito. Quanto ao matrimônio religioso passou a aceitar os seus efeitos, porém aconselhava a realização de exames de doença física e mental para os nubentes. Na referida Constituição, o legislador deixou um lugar reservado para a denominação da família, a fim de estabelecer uma democracia social. Já a Carta Magna de 1937, reservou os mesmos princípios e garantias previstos na constituição anterior. No entanto, incluiu em seu diploma, especificamente nos artigos 124 a 127 5 , a igualdade entre os filhos naturais e legítimos, além de zelar pela infância e a juventude em parceria com o auxílio do Estado. Por outro lado, não consagrou os efeitos civis ao casamento religioso, bem como não se pronunciou quanto a definição afetiva da família. Por outro panorama, com o a criação do Estado novo, após a ditadura, originou-se a Constituição de 1946, a qual foi: 5 “Art. 124. A famı́lia, constituı́da pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famı́lias numerosas serão atribuı́das compensações na proporção dos seus encargos. Art. 125. A educação da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever. Art. 126. Aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurará igualdade com os legı́timos. Art. 127. A infância e a juventude devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições fı́sicas e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento de suas faculdades” (MALUF, 2010, p. 33). 21 Surgida justamente quando mais se acentuaram, com o findar da Segunda Grande Guerra, as ideias e princípios de natureza econômica-social que vinham modificando a estrutura jurídico-político do mundo ante o surto de reformas e progressos que assinalaram a idade contemporânea de direito, configurou uma evolução jurídica que já iniciara seu traçado básico nas constituições de 1934 e 1937, renovou tais direitos concedidos à família, adicionando a estes a vocação hereditária de brasileiros, em relação a bens deixados por estrangeiros no país (MALUF, 2010, p. 33). A referida Carta Magna, em seus artigos 163 a 165, indagava que a família era fruto do matrimônio válido e indissolúvel com proteção do Estado. Ainda, dizia que o casamento civil seria gratuito, se equivalendo ao religioso. Afirmava que a família que continha número elevado de membros teria a proteção do ente estatal, assim como teria tal proteção a maternidade e a infância e juventude. De acordo com o referido doutrinador, um pouco mais de duas décadas, nasceu a Constituição de 1967, a qual manteve a proteção da família, não alterando praticamente em nada, uma vez que manteve o zelo estatal às famílias que fossem constituídas pelo casamento válido e de caráter indissolúvel. Em suma, quanto a evolução legislativa, o doutrinador Dias abordou em seu diploma a instituição do divórcio (Lei 6.525/1977), a qual veio para acabar com a indissolubilidade dos casamentos, conforme era legislado pelas constituições anteriores, abolindo, assim, com a ideia do matrimônio sacralizado. Ainda, “o surgimento de novos paradigmas – quer pela emancipação da mulher, quer pela descoberta dos métodos contraceptivos e pela evolução da engenharia genética – dissociaram os conceitos de casamento, sexo e reprodução” (DIAS, 2009, p.30). Dessa feita, o modelo de família começa a introduzir em seu meio o lado afetivo, que antes era deixado de lado. E finalmente, em 1988, nasce a atual Constituição Federal, a qual é responsável pela relevante transformação ocorrida na instituição familiar “passando a família a ser concebida de forma mais ampla, em decorrência de sua origem no direito natural, com reflexos nos âmbitos civil e penal” (Maluf, 2010, p.34). O artigo 226 traz consigo a família como base da sociedade, bem assim tendo especial proteção do Estado. Consoante § 3º do referido artigo, o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher passou a ser visto como entidade familiar, a qual pode ser vista como uma comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, conforme revela o § 4º do artigo 226 (PLANALTO, 2016, texto digital). 22 Os artigos 227 a 230 da Constituição Federal, assim como o referido artigo 226, também fazem parte do Capítulo VII, que diz respeito: (a Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso). Dessa feita, verifica-se que “o modelo igualitário da família constitucionalizada se contrapõe ao modelo autoritário do Código Civil anterior” (LÔBO, 2010, p. 21), uma vez que o consenso, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas são princípios que integram e inspiram o marco regulatório dos referidos artigos. Assim, nas palavras do doutrinador Giorgis (apud MALUF, 2010, p. 36): A Constituição efetivou um rendimento e valoração do núcleo familiar, tratando igualmente pais e filhos, cônjuges e parceiros, protegendo-se outras modalidades de composição familiar, ampliando-se o conceito de família, que merece a proteção do Estado, para além da família formada pelo casamento. No mesmo contexto Lôbo (2010, p. 22) aduz que: A Constituição de 1988 expande a proteção do Estado à família, promovendo a mais profunda transformação de que se tem notícia, entre as constituições mais recentes de outros países. Alguns aspectos merecem ser salientados: a) a proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições; b) a família, entendida como entidade, assume claramente a posição de sujeito de direitos e obrigações; c) os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, recebem primazia sobre os interesses patrimonializantes; d) a natureza socioafetiva da filiação torna-se gênero, abrangente das espécies biológicas e não biológicas; e) consuma-se a igualdade entre os gêneros e os filhos; f) reafirma-se a liberdade de constituir, manter e extinguir entidade familiar e a liberdade de planejamento familiar, sem imposição estatal; g) a família configura-se no espaço de realização pessoal e da dignidade humana e de seus membros. Do exposto, interpreta-se que a Constituição Federal de 1988 trouxe novas modalidades de família, assim como nasceu junto a ela o Estado Democrático de Direito, explanado na sequência. 23 2.3.1 O Estado democrático de direito A partir do momento que um Estado passa a garantir o respeito das liberdades civis, ou melhor dizendo, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, agregado ao apoio de uma proteção jurídica e, ainda, com as autoridades políticas se sujeitando as regras de direito, passamos a ter definido um Estado Democrático de Direito (DOS SANTOS, 2016, texto digital). Dessa feita, cabe mencionar que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, conforme prevê a Constituição Federal de 1988, uma vez que o art. 1º diz: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II- a cidadania; III- a dignidade da pessoa humana; IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V- o pluralismo político. Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Então, conforme acima exposto, o adjetivo “democrático” foi implementado ao Estado de Direito quando do surgimento da Carta Magna de 1988, uma vez que: Pela leitura dos Anais da Constituinte infere-se que não foi julgado bastante dizer-se que somente é legıt́imo o Estado constituı́do de conformidade com o Direito e atuante na forma do Direito, porquanto se quis deixar bem claro que o Estado deve ter origem e finalidade de acordo com o Direito manifestado livre e originariamente pelo próprio povo, excluı́da, por exemplo, a hipótese de adesão a uma Constituição outorgada por uma autoridade qualquer, civil ou militar, por mais que ela consagre os princı́pios democráticos (REALE, 2005, p. 2). Diante disso, observa-se que a opinião e o desejo do povo passam a ser fortemente acatados diante do surgimento de uma democracia. Os princípios que regem a Constituição passam a ser respeitados, dando aos cidadãos todo o poder de voto. Na mesma linha, Mayer (2014) afirma que para que haja democracia, deve existir a participação política do povo, bem como uma cidadania ativa, uma vez que 24 somente uma democracia indireta, através de votos, pode debilitar o Estado Democrático de direito e a Constituição Federal. De outra banda, Ranieri conceitua o Estado de Direito em sentido amplo, como “um tipo de Estado que adota uma forma de organização estatal, de natureza política e jurídica, na qual o poder do Estado se encontra limitado pelo direito, com a finalidade de garantir os direitos fundamentais” (RANIERI, 2013, p.196). Então, a partir disso, verifica-se que o Estado de Direito tem por significado, originariamente, a legitimidade do poder do Estado, o qual vincula-se ao direito, protegendo as garantias e os princípios fundamentais da Constituição frente a população. Por outro lado, conforme Mayer (2014), o Estado de Direito pode ser entendido como um Estado de Justiça, motivado pelo respeito à lei constitucional, bem assim sua legalidade. Este modelo surgiu com intuito de proporcionar maior segurança, na medida em que o Estado passou a ser limitado pela lei, uma vez que ela tem característica de impessoalidade e obriga a todos. Diante do explanado, conclui-se, então, que o Estado de Democrático de Direito nasceu no Brasil acompanhado da Constituição Federal de 1988 e tem por objetivo respeitar a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais e o pluralismo político. Ademais, ele pode ser visto como um Estado Social, porém em fase de crescimento. 2.4 Princípios constitucionais do direito de família As inovações percebidas ao Direito de Família, à luz dos princípios e normas constitucionais, visam, de acordo com Gonçalves (2015), garantir a coesão familiar e os valores culturais, dando à família atual uma condizente realidade social, atendendo as necessidades dos filhos e dando ênfase à vida conjugal. Quanto aos princípios constitucionais, Dias aponta que são considerados leis das leis, uma vez que “deixaram de servir apenas de orientação ao sistema jurídico infraconstitucional, desprovidos de força normativa” (DIAS, 2009, p. 56). Eles são de extrema importância para a aproximação do ideal de justiça. 25 De outro lado, em consequência das modificações enfrentadas no direito de família, Lôbo (2010) afirma que alguns princípios procedem do sistema jurídico brasileiro, entre eles podemos elencar os princípios fundamentais, que se subdividem em princípio da dignidade humana e princípio da solidariedade. Já os gerais são agrupados em princípio da igualdade, liberdade, afetividade, convivência familiar e por fim o princípio do melhor interesse da criança, os quais passam a ser expostos nos subitens a seguir. 2.4.1 Princípio do respeito à dignidade da pessoa humana A dignidade é o princípio que possui a maior interpretação, quando se refere aos direitos e as garantias previstas à população, frente à constituição. Tem por finalidade estimular o desenvolvimento social e inibir as ações que geram discórdia entre a humanidade (NUNES, 2010). Nas palavras de Gonçalves (2015), é de ressaltar que o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana faz parte da base da comunidade familiar, garantindo, além do desenvolvimento, a realização de toda a prole, principalmente da criança e do adolescente, consoante artigo 227, da Constituição Federal6. Já para Dias (2009), tal princípio é o fundante do Estado Democrático de Direito. Aduz que a dignidade da pessoa humana foi imposta na Carta Magna como sendo o valor nuclear da ordem constitucional. Ainda, segundo o autor, “o princípio da dignidade humana é o mais universal de todos os princípios. É um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma coleção de princípios éticos” (DIAS, 2009, p. 61-62). Não obstante a isso, Dias afirma que o supracitado princípio: 6 Art. 227, da CF/1988: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (PLANALTO, 2016, texto digital). 26 Não representa apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte para a sua ação positiva. O Estado não tem apenas o dever de abster-se de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, mas também deve promover essa dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território (DIAS, 2009, p. 62). Diante dessa análise, cabe referir que o princípio da dignidade humana tem por finalidade dar dignidade a todas as entidades familiares, sendo errado dar tratamento de forma diferenciada aos filhos ou classe familiar. Para Lôbo (2010), tal princípio refere-se ao núcleo existencial, cujo qual é essencial a todas as pessoas humanas. O autor afirma que: No capítulo destinado à família, o principio fundamenta as normas que cristalizaram a emancipação de seus membros, ficando explicitados em algumas (art. 226, § 7; 227, caput e 230). A família, tutelada pela Constituição, está funcionalizada ao desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que a integram. A entidade familiar não é tutelada para si, senão como instrumento de realização existencial de seus membros. Pelo exposto, e de acordo com Lôbo (2010), pode ser afirmado que o princípio da dignidade da pessoa humana está ligado ao princípio da solidariedade, o qual será referido a seguir. 2.4.2 Princípio da solidariedade familiar Tem por base afirmar que a expressão solidariedade é aquilo que cada pessoa deve a outra (DIAS, 2009). Não obstante, o autor afirma que “esse princípio que tem origem nos vínculos afetivos, dispõe de conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da expressão solidariedade, que compreende a fraternidade e a reciprocidade” (DIAS, 2009, p. 66). Então, finalizando a referida ideia, uma pessoa só existe enquanto a outro coexistir. Na mesma leva que o referido autor, Lôbo (2010, p. 56) aduz que “para o desenvolvimento da personalidade individual é imprescindível o adimplemento dos deveres inderrogáveis de solidariedade, que implicam condicionamentos e comportamentos interindividuais realizados em um contexto social”. Também acredita que o princípio jurídico da solidariedade é resultante da superação do individualismo jurídico. 27 Não obstante a isso, Lôbo afirma que: A regra matriz do princípio da solidariedade é o inciso I do art. 3, da Constituição. No capítulo destinado à família, o princípio é relevado incisivamente no dever imposto à sociedade, ao Estado e à família (como entidade e na pessoa de cada membro) de proteção ao grupo familiar (art. 226), à criança e ao adolescente (art.227) e às pessoas idosas (art.230). A solidariedade, no direito brasileiro, apenas após a Constituição de 1988 inscreveu-se como princípio jurídico; antes, era concebida como dever moral, ou expressão de piedade, ou virtude ético-teologal (LÔBO, 2010, p. 56). Dias (2009) afirma que a família é um dos meios utilizados como proteção social, uma vez que: Aproveita-se a lei da solidariedade no âmbito das relações familiares. Ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-se o Estado do encargo de prover toda a gama de direitos que são assegurados constitucionalmente ao cidadão (DIAS, 2009, p. 66). Por fim, Dias (2009) descreve um caso como exemplo, que revela bem a ideia do princípio da solidariedade familiar: Os integrantes da família são, em regra, reciprocamente credores e devedores de alimentos. A imposição de obrigação alimentar entre parentes representa a concretização do princípio da solidariedade familiar. Assim, deixando um dos parentes de atender com a obrigação parental, não poderá exigi-la daquele a quem se negou a prestar auxílio. Vem a calhar o exemplo do pai que deixa de cumprir com os deveres inerentes ao poder familiar, não provendo a subsistência dos filhos. Tal postura subtrai a possibilidade de ele posteriormente buscar alimentos frente aos filhos, uma vez que desatendeu ao princípio da solidariedade familiar (DIAS, 2009, p. 66). Observa-se, então, que o princípio da solidariedade tem por viés garantir a ajuda do próximo nos momentos difíceis, principalmente entre o meio familiar. A solidariedade prestada pelo pai ao filho será a mesma exigida do filho ao pai. Ser solidário, além de ser um gesto singelo, deve ser uma ação feita independentemente da recompensa, assim, será dado um passo para um mundo melhor. 2.4.3 Princípio da igualdade A igualdade está prevista entre os direitos e garantias fundamentais que a Constituição Federal assegura, precisamente em seu artigo 5, inciso I, que diz: 28 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição (PLANALTO, 2016, grifo nosso). Assim, percebe-se que a Lei deve ser aplicada a todos, indiferentemente de cor, raça e gênero. A igualdade entre os homens e as mulheres é o que chama atenção, uma vez que antes da atual constituição, a mulher ainda era submissa as vontades dos homens e não tinha a igualdade perante a legislação, muito menos pelo mundo afora, em questão de emprego, ou em questão de opinião e vontades. No mesmo sentido, Lôbo (2010), aduz que o princípio da igualdade ocasionou uma transformação no direito de família, quando falamos da igualdade entre gêneros (homem e mulher), bem assim filhos e entidades familiares. Tal princípio dirige-se ao legislador: Vedando-lhe que edite normas que o contrariem, à administração pública, para que implemente políticas públicas para superação das desigualdades reais existentes entre os gêneros, à administração da justiça para o impedimento das desigualdades, cujos conflitos provocaram sua intervenção, e, enfim, às pessoas para que o observem em seu cotidiano (LÔBO, 2010, p. 59). O referido princípio não tem aplicabilidade absoluta, aceitando limitações que não desfigurem o seu núcleo essencial, assim, por exemplo “o filho havido por adoção é titular dos mesmos direitos dos filhos havidos da relação de casamento, mas está, ao contrário dos demais, impedido de casar-se com os parentes consanguíneos de cuja família foi oriundo” (LÔBO, 2010, p. 59-60). Por final, o autor refere que: A igualdade e seus consectários não podem apagar ou desconsiderar as diferenças naturais e culturais que há entre as pessoas e entidades. Homem e mulher são diferentes; pais e filhos são diferentes; criança e adulto ou idoso são diferentes; a família matrimonial, a união estável, a família monoparental e as demais entidades familiares são diferentes. Todavia, as diferenças não podem legitimar tratamento jurídico assimétrico ou desigual, no que concernir com base comum dos direitos e deveres, ou como núcleo intangível da dignidade de cada membro da família (LÔBO, 2010 p. 60). Conclui-se que, embora a igualdade esteja elencada na Constituição, cabe ao intérprete e ao legislador aplicá-la em conformidade com a justiça igualitária, uma 29 vez que uma criança, bem como uma pessoa de idade, necessita de privilégios e preferências, assim como uma mulher, que por natureza, é mais frágil que o homem. 2.4.4 Princípio da liberdade às relações familiares Consoante pesquisa junto ao Aurélio, encontra-se a definição de liberdade como um “direito de proceder conforme nos pareça, contando que esse direito não vá contra o direito de outrem” (DICIONÁRIO AURÉLIO, 2016, texto digital). No que tange as relações familiares, a liberdade tem por paradigma dar as pessoas a oportunidade de escolha, tanto de seu par como da maneira que queiram construir uma entidade familiar (DIAS, 2009). Na mesma ideia, Lôbo (2010) refere que o princípio da liberdade oportuniza à pessoa o livre arbítrio ou autonomia de constituição, realização e extinção da entidade familiar, sem interferência dos membros da família, da sociedade ou até mesmo do legislador. Ainda, para ele o princípio da liberdade diz respeito: À livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas a dignidades como pessoas humanas; liberdade de agir, assentada no respeito à integralidade física, mental e moral (LÔBO, 2010, p. 62). Antes da entrada em vigor da atual Constituição, o direito de família era considerado rígido e estático, não oportunizando às pessoas a própria liberdade de escolha, a fim de não contrariar o modelo matrimonial e patriarcal. De acordo com o último modelo, a mulher, assim como os filhos, estava à mercê do poder do pai. Assim como não havia a liberdade de se criar uma família fora do casamento, bem com dissolver tal união o supracitado autor acredita que “as transformações desse paradigma familiar ampliaram radicalmente o exercício da liberdade para todos os atores, substituindo o autoritarismo da família tradicional por um modelo que realiza com mais intensidade a democracia da mulher” (LÔBO, 2010, p. 62). Ainda, na vertente do referido doutrinador: 30 Na constituição brasileira e nas leis atuais o princípio da liberdade na família apresenta duas vertentes essenciais: liberdade da entidade, diante do Estado e da sociedade, e liberdade de cada membro diante dos outros membros e da própria entidade familiar. A liberdade se realiza na constituição, manutenção e extinção de entidade familiar; no planejamento familiar, que “é livre decisão do casal”, sem interferências públicas ou privadas; na garantia contra a violência, exploração e opressão no seio familiar; na organização familiar mais democrática, participativa e solidária (LÔBO, 2010, p. 63). Por fim, cabe referir que tal princípio não envolve apenas à criação, manutenção ou extinção da entidade familiar, mas também permite sua constituição e reinvenção. “Tendo a família se desligado de suas funções tradicionais, não faz sentido que ao Estado interesse regular deveres que restringem profundamente a liberdade, a intimidade e a vida privada das pessoas, quando não repercutem no interesse geral” (LÔBO, 2010, p. 63). 2.4.5 Princípio da afetividade A afetividade, consoante disciplina Almeida (2012, p. 41), trata-se de um sentimento que concorre para a realização da pessoa e sua constante formação, mas que só passou a ser objeto de atenção jurídica quando a família legítima – sediada no casamento- demonstrou a fragilidade dos seus contornos formais. Para Dias (2009, p. 70): O afeto não é um fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família. Igualmente tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade em cada família. Na mesma ideia, Almeida (2012, p.41-42) refere que “paralelamente aos elos oriundos do negócio jurídico matrimonial que o afeto emergiu como aspecto capaz de fundamentar as relações familiares, na medida em que condiciona os comportamentos pessoais dos envolvidos”. Então, a afetividade pode ser vista como um dever jurídico dos pais com os filhos (filhos com os pais) e aos parentes entre si, até o momento que um dos sujeitos venha a falecer. Por outro lado, quanto a afetividade relacionada à vida conjugal, a mesma deve perdurar até o findo da união do casal, conforme dispõe 31 Lôbo (2010, p.64) “a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. Tal princípio, apenas deixa de incidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver perda do poder familiar”. Ao falar do princípio da afetividade para com os cônjuges, o autor é bem claro ao dizer que “na relação entre cônjuges e entre companheiros o princípio da afetividade incide enquanto houver afetividade real, pois esta é pressuposto da convivência” (LÔBO, 2010, p. 64). A doutrina brasileira tem adotado o princípio da afetividade em diversas ocorrências do direito de família, como por exemplo: a. da solidariedade e da compreensão; b. da concepção eudemonista; c. da funcionalização da família para o desenvolvimento da personalidade de seus membros; d. do redirecionamento dos papéis masculino e feminino e da relação entre legalidade e subjetividade; e. dos efeitos jurídicos da reprodução humana medicamente assistida; f. da colisão de direitos fundamentais; g. da primazia do estado de filiação, independentemente da origem biológica e não biológica (LÔBO, 2010, p. 68). Dessa feita, pode-se dizer que o valor do afeto foi atribuído ao direito de família conforme se foi evoluindo, uma vez que todas as entidades familiares procuram de alguma maneira nutrir a paciência, a solidariedade, o perdão e principalmente o afeto, para viver cordialmente uma vida em comum. Assim, percebe-se que o princípio da afetividade é o norteador do direito de família, uma vez que, havendo afeto entre os membros do meio familiar, já é meio caminho andado para coibir os conflitos. 2.4.6 Princípio da convivência familiar O princípio da convivência familiar diz respeito a relação afetiva que as pessoas que pertencem à mesma família possuem. Conforme Lôbo (2010, p. 68) “supõe o espaço físico, a casa, o lar, a moradia, mas não necessariamente, pois as 32 atuais condições de vida e o mundo do trabalho provocam separações dos membros da família no espaço físico, mas sem perda de referências ao ambiente comum”. Ainda, de acordo com o supracitado doutrinador: O direito à convivência familiar, tutelado pelo princípio e por regras jurídicas especificas, particularmente no que respeita à criança e ao adolescente, é dirigido à família e a cada membro dela, além de ao Estado e à sociedade como um todo. Por outro lado, a convivência familiar é substrato da verdade real da família socioafetiva, como fato social facilmente aferível por vários meios de prova. A posse do estado de filiação, por exemplo, nela se consolida. Portanto, há direito à convivência familiar e direito que dela resulta (LÔBO, 2010, p. 69). A convivência familiar não se limita quando os pais estão separados, uma vez que o filho tem direito de permanecer convivendo com ambos genitores. Por esse motivo que o autor acima refere que é inconstitucional uma decisão judicial que impõe limitações sem grandes razões ao direito de visita, haja vista que é direito igual aos pais a relação de convivência com o filho. Ainda, é de grande importância ressaltar que a convivência familiar não se delimita aos pais para com os filhos, uma vez que na maioria das comunidades brasileiras a convivência do indivíduo com os avós, tios e demais parentes é visto como algo natural. 2.4.7 Princípio do melhor interesse para criança, adolescente e idoso Os direitos das crianças e adolescentes são fundamentais, perante a Constituição Federal, precisamente em seu artigo 2277, passando, assim, ter os interesses discutidos com prioridade pelo órgão estatal, pela sociedade, bem assim pela família. Tanto para a elaboração quanto para a aplicação do direito (LÔBO, 2010). Ainda, o referido doutrinador aduz que: 7 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (PLANALTO, 2016, texto digital). 33 O princípio parte da concepção de ser a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, e não como mero objeto de intervenção jurídica e social quando em situação irregular, como ocorria na legislação anterior sobre “os menores”. Nele se reconhece o valor intrínseco e prospectivo das futuras gerações, como exigência ética de realização de vida digna para todos (LÔBO, 2010, p. 70). Do exposto, cumpre referir que tal princípio não diz respeito a uma recomendação ética, mas determina as relações da criança e do adolescente com a família, a sociedade e o Estado. De acordo com Dias (2009), o leque de garantias e direitos, que devem ser preservados pela sociedade, família e Estado, está no Estatuto da Criança e do Adolescente8 “microssistema que traz normas de conteúdo material e processual, de natureza civil e penal, e abriga toda a legislação que reconhece os menores como sujeitos de direito” (DIAS, 2009, p. 67). De outra banda, a constituição também veda a discriminação em razão da idade, “atribuiu à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar a sua participação na comunidade, defendendo a sua dignidade e bem-estar, bem como garantindo-lhe o direito à vida”9 (DIAS, 2009, p. 68). Calha lembrar que o indivíduo se torna pessoa idosa a partir dos 60 anos de idade, momento em que passa preferência em filas, garantias de políticas de amparo aos idosos, etc. Porém, aqueles com idade igual ou superior a 65 anos, são consagrados como merecedores de cuidados mais significativos, como, por exemplo, transporte público gratuito. 8 Lei (8.069/1990). 9 Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida (PLANALTO, 2015, texto digital). 34 3 A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E OS MEIOS DE TRANFORMAÇÃO DE CONFLITOS É notório que as sociedades contemporâneas encaram um aumento nos conflitos sociais, devido à complexidade das relações, insuficiência dos recursos disponíveis (educacionais, ambientais e econômicos, por exemplo), assim como a individualidade exacerbada, característica do tempo atual. Em decorrência disso, o Poder Judiciário enfrenta o dilema do significativo número de demandas judiciais, uma vez que as partes a ele confiam a solução de todas as lides. Ocorre que o número de processos prejudica o andamento da máquina judiciária, já que, na atualidade, vivencia-se a cultura litigante ao invés da colaborativa. Com intuito de melhorar o andamento processual e desenvolver a cultura da paz, ganham espaço os métodos de resolução de conflitos, entre eles: arbitragem, conciliação, mediação e negociação. O segundo capítulo parte do objetivo de caracterizar a sociedade contemporânea e conceituar o conflito, apresentando os meios de transformações existentes, os quais visam diminuir o número de demandas existentes, trazendo mais eficiência, celeridade e menos onerosidade ao Poder Judiciário. 3.1 Conceito de conflito O conflito ocorre quando duas ou mais pessoas divergem de opiniões e interesses. Ele pode ser visto como um acontecimento negativo na relação social de 35 um grupo ou de duas pessoas, proporcionando, assim, perda do objetivo final de uma das partes, consoante disciplina Azevedo (2013). Conforme Spengler (2012, p. 64): Muito antes do surgimento do Estado, os conflitos interpessoais eram resolvidos por intermédio da autotutela, em que vigia o aforismo da “lei do mais forte”. Com o advento da organização social corporificada no Estado, passou-se da justiça privada para a justiça pública: o Estado, já suficientemente fortalecido, impõe-se sobre os particulares, dando a sua solução para os conflitos. Dessa forma, por intermédio do Estado e a fim de entender a relação existente entre o conflito e a sociedade, a Escola Nacional de Mediação e Conciliação (ENAM), periodicamente, proporciona treinamentos de técnicas e habilidades de mediação. Em uma das experiências, os participantes foram instigados a mencionar qual seria a primeira ideia que lhes vêm à cabeça quando ouvem a palavra conflito. Algumas das palavras citadas foram: guerra, briga, disputa, agressão, tristeza, violência, raiva, perda e processo. No entanto, na mesma dinâmica foi perguntado a eles o que poderia surgir de mudanças e resultados positivos em razão de um conflito, e as respostas foram: paz, entendimento, solução, compreensão, felicidade, afeto, crescimento, ganho e aproximação (AZEVEDO, 2013). Assim, uma das formas de verificar o conflito de maneira positiva é através da chamada moderna teoria do conflito, uma vez que “a partir do momento em que se percebe o conflito como um fenômeno natural na relação de quaisquer seres vivos é possível se perceber o conflito de forma positiva” (AZEVEDO, 2013, p. 41). Sabe-se que o estado emocional daqueles que fazem parte do conflito tende a estimular as polaridades, dificultando então a percepção do interesse comum. E é devido a isso que Vasconcelos (2014) sustenta ser um conflito dissenso, o qual surge de expectativas, valores e interesses contrariados, tratando-se a outra parte na sequência como adversária, inimiga ou infiel. Cada parte procura subsídios que tendem a enfraquecer ou até mesmo destruir as premissas da outra. Porém, ainda nas palavras do referido autor, o conflito não pode ser visto apenas de maneira negativa, pois é impossível uma relação interpessoal totalmente consensual, haja 36 vista cada pessoa ter sua própria originalidade e, por mais afinidade que as partes possuem entre elas, poderá estar presente o conflito. Ademais, “a consciência do conflito como fenômeno inerente à condição humana é muito importante. Sem essa consciência tendemos a demonizá-lo ou fazer de conta que não existe” (VASCONCELOS, 2014, texto digital). Salienta que quando se compreende que é inevitável a existência do conflito, se é capaz de inventar soluções autocompositivas; porém, quando se encara o conflito de maneira negativa, a tendência é que ele seja convertido em confronto e violência. Os conflitos são encontrados em todos os meios, como, por exemplo, no âmbito familiar, na relação de emprego, na vida social, até mesmo nos momentos de lazer. Ocorre que ao longo da vida, principalmente na fase adulta, os conflitos se intensificam tornando-se mais abrangentes, conforme esclarece Fiorelli (2008). Para o doutrinador, seria mais atrativo utilizar a expressão gestão de conflitos, em vez de solução de conflitos, uma vez que aquela tem por objetivo identificar, compreender, interpretar e utilizar o conflito para benefício dos indivíduos. Fiorelli (2008, p. 6) afirma que a mudança é a causa-raiz de todo conflito: A mudança afeta o relacionamento entre pessoas e conduz ao conflito. Uma fusão de empresas, a troca de chefias, o casamento de um filho ou filha, o falecimento de um ente querido, um divórcio, uma nova etapa da vida são exemplos de transformações reais, indutoras de conflitos entre os envolvidos. A transformação pode ser percebida apenas por um dos envolvidos, ainda que sem evidência de que ela, de fato, acontece ou possa ocorrer. Assim, por exemplo, o empregado percebe que o chefe passou a ignorá-lo; a esposa percebe o marido menos carinhoso; o aluno sente que o professor o persegue com perguntas mais difı́ceis; tais percepções podem não corresponder à realidade, porém, produzem conflitos porque, para alguns dos envolvidos, elas são reais; constituem o que se denomina “realidade psı́quica”. Com ideias semelhantes ao estudioso acima referido, Tartuce (2015) afirma que é valioso saber a causa de um conflito, sendo que, para ele, muitos fatores podem originá-lo, como por exemplo, quando os recursos materiais se tornam ínfimos, ou diante das mudanças do meio e a resistência de aceitar a opinião do próximo. Ainda, ele acredita que o “conflito é sinônimo de embate, oposição, pendência, pleito; no vocabulário jurídico, prevalece o sentido de entrechoque de ideias ou de interesses em razão do qual se instala uma divergência entre fatos, coisas ou pessoas”. 37 Neste ponto, cabe salientar que para Dinamarco (apud Tartuce, 2015, texto digital): O conflito pode ser entendido como “a situação existente entre duas ou mais pessoas ou grupos, caracterizado pela pretensão a um bem ou situação da vida e impossibilidade de obtê-lo; todavia, transcendendo a noção de lide, o conflito pode ser considerado de forma mais ampla. As relações interpessoais são marcadas por insatisfações (“estados psíquicos decorrentes da carência de um bem desejado”); o conflito seria a “situação objetiva caracterizada por uma aspiração e seu estado de não satisfação, independentemente de haver ou não interesses contrapostos. Aponta-se que o início do conflito depende dos indivíduos que se reportam a ele, bem assim de outros inúmeros fatores, tais como: “bens, compreendendo patrimônio, direitos, haveres pessoais etc; princı́pios, valores e crenças de qualquer natureza, inclusive polıt́icas, religiosas, cientıf́icas etc.; poder, em suas diferentes acepções; relacionamentos interpessoais” (FIORELLI, 2008, p. 7). Dessa feita, conclui-se que é muito difícil evitar os conflitos durante a convivência das pessoas em grupos, ou até mesmo somente entre duas pessoas, haja vista a diversidade de pensamentos e escolhas que cada um faz, como na vivência política, religiosa, profissional, orientação sexual etc. Muitos dos conflitos acabam por contribuir para o cenário caótico do sistema judiciário brasileiro. Como o conflito nem sempre é negativo, como já visto, é possível apropriar-se da diversidade de ideias, por exemplo, e enxergar os erros com a consequente renovação dos pensamentos, tornando-se então algo produtivo e positivo. Ademais, tendo a ajuda de um terceiro neutro e imparcial, os conflitos tornam-se muito mais simples e solucionáveis, sendo importante elucidar, em se tratando de conflitos, o que se entende por justo e justiça. 3.2 Acesso à justiça Antes de adentrar no tema “acesso à justiça”, importante se torna diferenciar o justo da justiça. Justo é um adjetivo utilizado para lembrar o que está de acordo com a justiça, sendo ele equânime, equitativo, imparcial ou razoável10. Então, ainda que 10 http://conceito.de/justo (2016, acesso digital). 38 um caso seja decidido com justiça, ele só será considerado justo se todos os indivíduos envolvidos forem ouvidos. O conceito de justiça é objeto de discussão dos filósofos, teólogos, políticos e juristas. Para Tartuce (2015, texto virtual), “a noção da justiça, ao longo do tempo, incorporou e continua incorporando diversos sentidos, constituindo, a um só tempo, um conceito plurívoco e altamente mutável”, ou seja, possui vários sentidos e muda frequentemente. São os percalços do dia a dia que afloram nos indivíduos o sentimento de (in)justiça, como a corrupção, a violência atual, as mortes no trânsito, as brigas entre vizinhos e afins. Por tais situações, assim como outras semelhantes, a Constituição Federal de 1988 garantiu o princípio do acesso à justiça, que está enquadrado em seu artigo 5º, inciso XXXV11. Ainda, na visão de Tartuce (2015, texto virtual), “o cerne do acesso à justiça não é possibilitar que todos possam ir à corte, mas sim que a justiça possa ser realizada no contexto em que se inserem as partes, com a salvaguarda da imparcialidade da decisão e da igualdade efetiva das partes”. Assim, ele chama a atenção para a operação da autotutela, meio em que se soluciona o litígio pela autocomposição. Na mesma ideia, Vasconcelos (2014) explica três iniciativas vistas como básicas, a fim de dar como efetivo o acesso à justiça: a primeira refere-se ao obstáculo econômico na fruição dos direitos humanos12, ou seja, o benefício da assistência judiciária gratuita para as pessoas hipossuficientes. A segunda refere-se às ações populares ou coletivas13, que têm por finalidade combater o obstáculo organizacional, possibilitando a defesa de interesses de um determinado grupo. Já a terceira onda tem por finalidade combater o impeditivo processual de acesso à 11 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; 12 Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição (NAÇÕES UNIDAS, 2016, acesso digital). 13 Lei de Ação Civil Pública nº 7.347/85. 39 justiça, através da expansão e o reconhecimento dos direitos humanos, por todos os meios que reduzam o acúmulo processual dos sistemas judiciários internos da maioria dos Estados. Ainda, o autor afirma que desde as últimas décadas do século passado, o movimento universal pela efetividade do acesso à justiça vem englobando as seguintes matérias: a) A instrumentalização de uma Defensoria Pública habilitada a atender, gratuita e amplamente; b) O desenvolvimento das ações populares e civis públicas, para defesa sistematizada dos direitos coletivos, com o apoio de um Ministério Público independente; c) A simplificação do serviço judiciário, pela adoção de processos cooperativos e menos sofisticados, de súmulas vinculantes ou sistemas assemelhados; d) A adoção da mediação judicial, ampliação das oportunidades da conciliação e estímulo à opção pela arbitragem no curso dos processos judiciais, inclusive alternativas reparadoras no campo penal, com fundamento nos conceitos da justiça restaurativa; e) A difusão da mediação, da arbitragem e de outras abordagens extrajudiciais, como procedimentos da sociedade civil enquanto protagonista da solução de controvérsias, inclusive por intermédio de núcleos comunitários e/ou instituições administradoras de mediação e arbitragem (VASCONCELOS, 2014, p. 44, grifo nosso). Dessa feita, observa-se que a solução amigável é o aspecto referente ao acesso à justiça que melhor demonstra o desenvolvimento de uma consciência de cidadania ativa no movimento democrático, conflituoso e pluralista. Tal fenômeno não vai contra as premissas do ordenamento jurídico estatal, e sim revela uma complementação necessária, como expressão do pluralismo da esfera pública fundante da própria ordem constitucional do Estado (VASCONCELOS, 2014). O acesso à justiça não pode ser confundido com o acesso ao Judiciário, uma vez que além de levar as demandas dos necessitados àquele Poder, também inclui os jurisdicionados que estão à margem do sistema e, sob o enfoque da autocomposição, estimula, difunde e educa o cidadão, com o intuito de resolver conflitos por intermédio de ações comunicativas (AZEVEDO, 2013). Conforme o autor, o usuário do Poder Judiciário não é somente um dos polos de uma relação jurídica processual, mas sim é qualquer ser que possa aprender a melhor resolver seus conflitos, por meio de recursos eficientes, inclusive com o auxílio de terceiros, como nos casos da mediação ou, também, como nos casos da conciliação ou arbitragem. 40 Enfim, no entendimento de Vasconcelos (2014), a administração do conflito deve ser nuclear, mesmo estando em um ambiente judicial, onde o juiz contribui para que as partes e os advogados dialoguem, contando com o apoio de mediadores, para, sempre que possível, construírem sua solução ou sua história. Assim, com o intuito de expandir os meios de acesso à justiça, a seguir serão explorados os meios de transformações dos conflitos, tais como: negociação, arbitragem, conciliação e mediação. 3.3 A Negociação A negociação, assim como os demais meios de solução de conflitos, tem por escopo chegar a um acordo, pondo fim ao objeto em discussão. Ocorre que sem um diálogo, sem a comunicação entre os indivíduos envolvidos não se tem um resultado promissor, uma vez que quem não conversa não abre a possibilidade de ouvir o outro, de ouvir as ideias e os interesses alheios. O que dá início ao conflito e base à negociação são os interesses comuns e diversos que as pessoas têm uma perante a outra. Conforme Matos (2014, p. 5): A negociação implica a aceitação dos valores que embasam uma administração participativa, os ideais de direitos humanos e justiça social, os pressupostos de corresponsabilização por resultados. Todos querem ganhar, todos devem ganhar, todos são, portanto, corresponsáveis pelos ganhos. Como técnica, ela implica a observância dos princı́pios e das práticas do trabalho em equipe, a institucionalização de processos de conversação no trabalho e o exercı́cio regular dos instrumentos gerenciais participativos, como a reunião e a delegação de autoridade. Ele aduz que para uma negociação tornar-se eficaz, se faz necessário ter uma cultura e um clima organizacional, assim como um sistema gerencial integrado. Assim, acredita que “essas três dimensões promovem a conversação como hábito, como fruto de bom relacionamento interpessoal da organização”. Informa ainda que a negociação é fruto da democracia. De outra banda, Salles (2013) acredita que existem diversas maneiras de negociar, sendo uma atividade exercida continuamente por todos. Indica a 41 negociação como meio de resolução de controvérsias. Salienta que a negociação realizada a fim de criar novos negócios visa um futuro de oportunidades, sendo essa positiva, uma vez que possibilita ganhos mútuos no futuro. Ainda, nesse enfoque relata que: A existência de uma disputa e as alternativas à negociação disponı́veis às partes criam oportunidades de geração de valor. A possibilidade de um longo e desgastante processo ou de uma custosa arbitragem, bem como a incerteza de resultados destes, podem fazer com que as partes vislumbrem um interesse comum em não deixar que a controvérsia seja resolvida por terceiros. Além disso, nada impede que, na negociação da resolução da disputa, sejam buscadas oportunidades de ganho conjunto. Vendo a questão a partir deste ponto de vista, percebemos que as oportunidades presentes na criação de novos negócios podem também ser aplicadas na negociação para resolução de disputas (SALLES; LORENCINI; SILVA, 2013, p. 88). Então, muitas vezes a negociação é a melhor maneira de garantir um resultado em que ambas as partes saiam satisfeitas. Ao invés de enfrentarem um vagaroso e custoso processo, elas preferem negociar. Por fim, nota-se que se encontra a negociação nas vivências diárias, pois o simples fato de chegar em uma loja e pedir desconto e o vendedor apresentar uma contraproposta e o cliente aceitar, torna-se uma maneira de concluir o negócio, acabando com a discórdia do preço. 3.4 A Arbitragem A arbitragem é utilizada como meio de solucionar conflitos desde o tempo do Império Babilônico, da Grécia Antiga e do Império Romano. Passou a ser amplamente utilizada para resolver os impasses internacionais, sendo que, atualmente, a maioria dos países aceita a arbitragem como o modelo utilizado para resolver as controvérsias existentes. No Brasil, ela foi implementada com a Constituição Imperial de 1824, período em que era possível as partes nomear juízes árbitros nas causas cíveis, tanto quanto penais e, se às partes concordassem, haveria sentença sem a interposição de recurso (BACELLAR, 2012). 42 Em 1850, o Código Comercial instituiu a arbitragem como meio obrigatório para solucionar determinadas causas. Já o Regulamento nº 737/1850 facultou tal possibilidade às partes, exceto a arbitragem comercial, que era obrigatória. Com o advento da Constituição Republicana, a arbitragem deixou de existir em sede constitucional, ficando apenas presente na legislação ordinária, conforme aduz o supracitado autor. A atual Carta Magna acolheu a arbitragem ao estabelecer, em seu artigo 114, § 1º e 2º, ao tratar da Justiça do Trabalho, que: § 1º Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros; § 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. Após alguns anos, a arbitragem passou a ter lei própria (Lei nº 9.307/1996, conhecida como Lei Marco Maciel). Ocorre que no ano que passou, precisamente no dia 26 de maio de 2015, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 13.129, que veio por alterar a lei antes referida. As principais modificações da Lei dispuseram sobre a utilização da arbitragem nos contratos com a administração pública; a alteração da Lei das Sociedades Anônimas; a lista de árbitros; a interrupção da prescrição; as sentenças arbitrais parciais e complementares; as tutelas de urgência e a carta arbitral. Quanto ao seu conceito, tem-se que a arbitragem é o “meio alternativo de solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nela, sem intervenção estatal” (CARMONA, 2009, p. 31). Tal decisão tem por sentido promover a mesma eficácia que uma sentença judicial. Para Salles, Lorencini e Silva (2013, p. 207), “a arbitragem e o Judiciário, juridicamente, não estão colocados em relação de oposição, contradição ou concorrência. Ao contrário, devem ser entendidos como meios de solução de controvérsia concebidos em relação de complementaridade”. Afirma que as partes 43 podem escolher o meio em que solucionarão a controvérsia existente, desde que sejam disputas reais e potenciais. No entendimento de Zapparolli (apud SALLES; LORENCINI; SILVA, 2013, p. 37): A lógica da jurisdição, quanto à formalidade, pressupostos processuais e condições da ação, vem de modo geral reproduzida no processo arbitral, porque a arbitragem assemelha-se em muito ao processo jurisdicional, embora este seja privativo do Estado e aquela seja de ordem privada. Assim, o autor acredita que a relação existente entre a arbitragem e as partes não pode ser vista de forma distinta em relação à jurisdição, haja que vista que as partes são todos os envolvidos na disputa arbitrada e os julgadores são chamados de árbitros. O árbitro participa da triangulação: polo ativo, polo passivo e árbitro. Eles podem ser mais de um, sendo eleitos em comum acordo pelas partes. A diferença para a jurisdição é que o magistrado não pode ser escolhido pelas partes, pois ele já está lotado em sua respectiva vara judicial. Assim, pode ser dito que a arbitragem se direciona às partes capazes que optam livremente em solucionar o conflito por esse meio, bem como para aqueles que atuam e tornam possível a realização da sessão de arbitragem, como por exemplo, o árbitro, os advogados, enfim, todos que estão vinculados a solucionar o impasse. 3.5 A Conciliação A conciliação, outro método de solucionar conflitos, tem por finalidade proporcionar um acordo entre as partes. Vasconcelos (2008) aduz que tal mecanismo é ideal para resolver questões relacionadas ao consumo, bem como quando um casal deseja dar fim ao relacionamento e utiliza-se da técnica por interesse de equacionar os bens materiais. Refere, ainda, que a conciliação é mais rápida que a mediação, porém não se destaca tanto na eficácia. 44 Na mesma linha, Sales (2003) afirma que ela tem por objetivo formalizar um acordo entre as partes, devendo o conciliador interferir e aconselhar, a fim de evitar a propositura de um processo judicial. No entanto, conforme aduz a autora, na conciliação não cabe ao conciliador apreciar profundamente o conflito, apenas intervir em forçar um acordo. O Conselho Nacional de Justiça descreve a conciliação como “um método utilizado em conflitos mais simples, ou restritos, no qual o terceiro facilitador pode adotar uma posição mais ativa, porém neutra com relação ao conflito e imparcial” (CNJ, 2010, texto digital)14. Informa ser um processo breve, que tem por finalidade encontrar a paz social, solucionando os conflitos das partes. A conciliação, na ideia de Wald (2014, texto digital): É importante técnica voltada à solução de conflitos para a pacificação social. Auxiliados na tomada de decisão pelo conciliador, mediante concessões mútuas, os interessados estabelecem entre si a solução que melhor atenda suas necessidades e interesses, sem que haja total renúncia ou submissão de uma parte à outra. Na compreensão de Morais (apud SALES, 2003, p. 38), a conciliação se apresenta como uma tentativa de se chegar voluntariamente a um acordo neutro, na qual pode atuar um terceiro que intervém entre as partes de forma oficiosa e desestruturada, para dirigir a discussão sem ter um papel ativo. Assim, entendem os autores que a conciliação é um método de solução de conflitos em que as partes envolvidas numa disputa são incentivadas pelo conciliador a entrarem em um entendimento. Cabe mencionar que o conciliador não é necessariamente um Juiz, mas pode ser uma pessoa habilitada para aplicar as técnicas de conciliação, impostas pela Resolução 125/10 do CNJ. Por fim, importante trazer o alerta de Warat (apud SALES, 2003, p. 39), no sentido de que “a conciliação não trabalha o conflito, ignora-o e, portanto, não o transforma. O conciliador exerce a função de negociador do litígio, reduzindo a relação conflituosa a uma mercadoria”. 14 http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-mediacao (2016, acesso digital). 45 3.6 A Mediação A medição, outro meio de solucionar (ou transformar) conflitos, “procede do latim mediare, que significa mediar, dividir ao meio ou intervir. Estes termos expressam o entendimento do vocábulo mediação, que se revela um procedimento pacífico de solução de conflitos” (SALES, 2003, p. 23). É um método utilizado que, com o auxílio de um mediador, ou seja, uma terceira pessoa neutra e imparcial, tem por objetivo mediar o conflito existente entre as partes, sendo elas responsáveis pela decisão que colocará fim ao conflito. Nas palavras do autor acima referido, “a mediação, quando oferece liberdade às partes de solucionar seus conflitos, agindo como meio facilitador para tal, passa não somente a ajudar na solução de conflitos, mas também preveni-los”. Por outro lado, nas palavras de Loureiro (apud WALD, 2014, p. 54), a mediação pode ser vista como um fenômeno plural, uma vez que não há uma mediação, mas várias mediações, as quais são aplicadas em todo ordenamento jurídico, desde o campo do direito de família, do direito administrativo ao direito penal. Ainda na ideia do referido autor, quanto ao domínio: A mediação pode ser aplicada tanto em conflitos envolvendo o direito público quanto em casos relativos ao direito privado. Experiências estão em curso em vários países para a aplicação da mediação em casos de crimes de pequeno potencial ofensivo, embora ainda de forma tímida. Já no domínio das relações de trabalho, o recurso à mediação em países como a França e os Estados Unidos é bem mais comum, seja por iniciativa das partes, seja por iniciativa do juiz ou da autoridade administrativa. Na França, por exemplo, a mediação é largamente utilizada para a resolução de conflitos relativos à remuneração e outros direitos trabalhistas. Neste país, o mediador desempenha também um importante papel em questões de direito de família, como a guarda, direito de visitas e pensão alimentícia. É usual ainda o recurso à mediação nos litígios relativos ao direito do consumidor, em matéria de locações e em direito administrativo, onde a lei prevê a figura do Mediador da República. Nos ensinamentos de Neto (apud SALES, 2003, p. 24): A mediação é uma técnica não-adversarial de resolução de conflitos, por intermédio da qual duas ou mais pessoas recorrem a um especialista neutro, capacitado, que realiza reuniões conjuntas e/ou separadas, com o intuito de estimulá-las a obter uma solução consensual e satisfatória, salvaguardando o bom relacionamento entre elas. 46 Observa-se então que a mediação é definida como autocomposição, uma vez que são as próprias partes que discutem e compõem as controvérsias existentes, somado ao auxílio do mediador. No entanto, há princípios da mediação que devem estar sempre presentes, como: liberdade das partes, a não competividade, o poder de decisão das próprias partes, o auxílio de um terceiro imparcial, a competência do mediador, informalidade do processo (SALES, 2003). Por fim, cumpre informar que a mediação está sendo um recurso cada vez mais utilizado no meio das soluções de controvérsias, pois “enquanto o processo tradicional se inscreve em uma lógica de relação de forças, onde uma parte “ganha” e outra "perde", na mediação, os interesses contraditórios são conciliados, as posições antagônicas são fundidas e a solução é alcançada em conjunto” Loureiro (apud WALD, 2014). Enfim, a comunicação entre as partes é restabelecida. 47 4 A MEDIAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Através da mídia, tornou-se de conhecimento público que o mundo jurídico enfrenta exacerbado número de demandas processuais. A partir disso, as doutrinas nacionais, tanto quanto as estrangeiras, vêm abordando a necessidade de encontrar meios alternativos de resolução de conflitos que não envolvam a participação direta do Poder Judiciário. Ocorre que desde 2003, o Poder Executivo busca meios para resolver conflitos sem o envolvimento do ente estatal, porém a dificuldade enfrentada pela Justiça é de encontrar procedimentos que sanem os problemas existentes e que sejam considerados justos aos usuários (AZEVEDO, 2013). A esta situação, acrescenta-se a já tão conhecida crise do Estado, assim explicada por Spengler e Copelli (texto digital, 2014): Tal condição – que demonstra com propriedade, sobretudo, uma crise de jurisdição, mas também de forma indelével uma crise do Estado – pode ser verificada dia a dia nas mais variadas plataformas de informação existentes. Do impresso ao televisivo, passando pelo rádio e pelos sítios eletrônicos voltados à notícia, sempre se está diante de fatos que, como que através dos para-raios da imprensa, nos lembram da lacuna – aqui denominada de crise – existente entre a realidade viva das ruas e os centros do poder do Estado, tão legítimos quanto ineficientes. No encalço dos motivos para a crise, porém, é possível, na lição de Bauman (2001), encontrar nas relações sociais contemporâneas as mudanças que colocam em risco as próprias instituições estatais. Afinal, a crise pode ser enxergada como o reflexo das mudanças pelas quais a sociedade moderna atravessa desde o individualismo até as relações de trabalho, família e comunidade, onde o tempo e o espaço deixam de ser concretos e absolutos para serem líquidos e relativos. Nesse sentido, a crise do Estado – incluindo aí a crise de seu braço especializado na tarefa de findar conflitos, o Judiciário – deixa de ser mera crise para ser, também, mutação. Assim, nesse contexto líquido, o desempenho do Estado, enquanto Leviatã disposto a retirar o homem de 48 seu estado natural, falha – na melhor das hipóteses, fragiliza-se – por ser estático e não acompanhar a mutação, líquida, sem forma definida, das relações sociais. Desse modo, prevalece, portanto, a distância entre o direito, que caracteriza o conflito como a oposição de interesses entre as partes, e a realidade, que já não encontra eco satisfatório de suas demandas no Sistema Judiciário, responsável por dizer o direito. Analisando os dados colhidos junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para a elaboração do Manual de Mediação Judicial, expostos no site do Tribunal de Justiça Gaúcho15, todos os anos, a cada dez novas demandas propostas, apenas três ações antigas são solucionadas. Assim, atualmente, encontra-se pendente cerca de 93 milhões de processos. Não obstante a isso, de acordo com o coordenador do CNJ, Emmanoel Campelo Pereira de Souza, ao longo do processo de litígio, as partes, mesmo vencendo as demandas, não saem satisfeitas com o resultado. Assim, ele acredita que há um déficit na máquina estatal (AZEVEDO, 2016), o que ratifica o posicionamento acima. No mesmo foco, Azevedo (2016) afirma que: De fato, partes vencedoras de uma disputa frequentemente se sentem perdedoras em razão do tempo, das custas e, principalmente, da perda de vínculo. Este último item para muitos dos maiores litigantes no nosso país é especialmente precioso, pois a perda de vínculo com um consumidor envolve necessidade de dispêndio com marketing para repor o cliente perdido e o prejuízo decorrente da imagem da marca. Não restam dúvidas de que um litígio gera adversários de grande animosidade e pode destruir as relações entre os envolvidos. O mesmo pode ser afirmado em relação às relações de vizinhança, parcerias 4 comerciais, relações bancárias e tantas outras que regularmente se encontram em armários (e cada vez mais em discos rígidos) do Poder Judiciário (AZEVEDO, 2016, p. 13-14). Complementando a ideia, Spengler e Copelli (texto digital, 2014) mencionam que a mediação se apresenta como, [...] uma possibilidade de tratamento mais adequada à complexidade conflitiva atual, pois propõe uma nova cultura, que vai além da jurisdição tradicional, inovando mediante práticas consensuadas e autônomas, que devolvem ao cidadão [...] a capacidade de lidar com a litigiosidade inerente a sua existência. Assim, ainda na esteira de Spengler, o desafio da mediação não é, na verdade, pôr fim ao conflito, mas apontar os caminhos para que as partes possam "[...] aceitar a diferença e a diversidade, o dissenso e a desordem [líquidos] por eles gerados. Sua principal ambição não se resume a propor novos valores, mas reestabelecer a comunicação [...]" (SPENGLER, 2011, p. 202), organizando as relações sociais e, consequentemente, devolvendo a autonomia perdida com o Estado Hobbesiano. Dessa maneira, ao buscar 15 <http://www.tjrs.jus.br/export/processos/conciliacao/doc/Manual_Mediacao_MJ_5ed_Internet.pdf>. (2016, acesso digital). 49 reestabelecer os canais de comunicação perdidos entre as partes, a mediação atua administrando a discórdia para que, enfim, o dissenso possa produzir os entendimentos - mínimos que sejam, mas positivos - através do próprio diálogo. Aliás, no diálogo, está não apenas a chave para a autonomia, mas, também, à liberdade que a complementa. Dessa feita, observa-se que além do Judiciário estar sobrecarregado, considerando o número de demandas, as partes não estão saindo satisfeitas com o resultado final do processo. Embora o litígio judicial seja sanado, permanece ainda o conflito entre as partes, pois o diálogo ou a comunicação entre os envolvidos não foi retomado. Então, por ideal, faz-se necessário a implementação de política pública16 com enfoque na autocomposição, especialmente através no mecanismo de mediação, de acordo com Spengler (2012, p. 78): Considerando a crise da justiça e a eficiência própria das soluções autocompositivas, é imprescindível que o Estado adote medidas de incentivo à sua realização, promovendo uma política pública de incentivo à utilização em larga escala dos mecanismos para obtenção da autocomposição. Percebe-se um incentivo às políticas públicas de conscientização de que o consenso é a melhor forma de resolução de conflitos, pois é rápido e eficaz, em virtude da participação efetiva das partes envolvidas. Além da implementação da mediação como política pública, os usuários do sistema judiciário devem ter interesse em utilizar tal mecanismo em busca de resolução de disputas, pois é um meio econômico, célere e eficaz. Assim, para melhor compreender o tema atual, o último capítulo aborda de que forma se implementou a política pública da mediação no sistema jurídico brasileiro, mencionando a Resolução 125/10 do CNJ, bem assim contextualizando a Lei da Mediação nº 13.140/15 frente ao Novo Código de Processo Civil. Além disso, trata da maneira que o CEJUSC (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania,) atua na Comarca de Lajeado, finalizando com o tema referente à mediação no âmbito familiar. 16 As Políticas Públicas são um conjunto de decisões, planos, metas e ações governamentais (seja a nível nacional, estadual ou municipal) voltados para a resolução de problemas de interesse público – que podem ser específicos, como a construção de uma ponte ou gerais, como melhores condições na saúde pública. http://www.okconcursos.com.br/apostilas/apostila-gratis/