CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE DIREITO O USO DE ALGEMAS NA ATUAÇÃO POLICIAL DIANTE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Jair José Schneider Lajeado, junho de 2009 CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE DIREITO O USO DE ALGEMAS NA ATUAÇÃO POLICIAL DIANTE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Jair José Schneider Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Curso II – Monografia, do Curso de Direito, como exigência parcial para a obtenção de título de Bacharel em Direito Orientadora: Profª. Ms. Flávia Colossi Frey Lajeado, junho de 2009 Agradeço à Professora Flávia Colossi Frey pela ajuda quanto da organização dos temas, pelas idéias sugeridas, pelas críticas necessárias ao desenvolvimento dos tópicos e, especialmente por sua confiança e disponibilidade ao longo desses meses de estudo. Minha especial gratidão, muito mais que posso expressar com palavras, a minha querida esposa Patrícia Paula, pelo estimula e paciência e compreensão dos dias e noites que ficou privado da minha companhia. Estendo, por fim, um especial agradecimento a todos os colegas, de faculdade e de trabalho, que de alguma forma tenham contribuído para realização desta monografia, reservando-me o direito de não citar qualquer nome, para não correr risco de esquecer alguém. “Se parar pra pensar, devia estar com ódio pelo que me fizeram, mas é difícil ter raiva havendo tanta beleza no mundo. E o meu coração incha como um balão prestes a estourar. Até que resolvo relaxar e parar de tentar agarrá-la. Aí ela passa através de mim como chuva e não consigo sentir senão gratidão por cada um dos momentos da minha estúpida vidinha. É claro que não fazem idéia do que estou a falar. Mas não se preocupem. Um dia, saberão.” (Sam Mendes) RESUMO A presente monografia visa analisar a controvérsia que se instaurou em torno do emprego das algemas pelos órgãos policiais, mormente com as crescentes operações da Polícia Federal em resposta ao aumento da criminalidade em todos os setores da sociedade. A questão central é investigar se o uso do apetrecho afronta os direitos e princípios constitucionais fundamentais do preso. O texto inicia enumerando e descrevendo os direitos e princípios constitucionais fundamentais envolvidos na questão e invocados por aqueles que criticam o uso das algemas de forma indiscriminada. Na sequência, apresenta-se um histórico sobre o surgimento e a evolução do apetrecho em si, e a legislação existente que trata do assunto. Estuda-se também, o fenômeno de repentina preocupação do poder legislativo nacional, cujos congressistas apresentaram grande número de projetos de lei com intuito de disciplinar o tema, da mesma forma que o Supremo Tribunal Federal também adentrou na celeuma, editando uma súmula vinculante. Após, se verifica a função estatal de prover a ordem social por meio do poder de polícia, o uso da força na atividade policial e a preocupação em preservar a vida e a segurança dos envolvidos na ação. O uso de algemas pode macular os direitos e princípios constitucionais fundamentais quando são usadas com intuito de humilhar o preso submetendo-o ao achincalhamento público em exibições na mídia. Por outro lado, entende-se necessário a análise e reflexão sobre o tema, considerando todos os aspectos envolvidos, sobretudo de ordem prática, admitindo a relativização dos direitos individuais quando estes se opõem aos interesses coletivos. PALAVRAS-CHAVE: Algemas. Princípios Constitucionais. Dignidade da Pessoa Humana. Segurança Pública. Polícia. Força. LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS ADPF Associação dos Delegados da Polícia Federal Art. Artigo ANP Academia Nacional de Políca CF Constituição Federal CF/88 Constituição Federal de 1988 CP Código Penal CPP Código de Processo Penal CPPM Código de Processo Penal Militar DF Distrito Federal DOU Diário Oficial da União EC Emenda Constitucional Ed. Editora FENAPEF Federação Nacional do Policiais Federais HC Habes Corpus LEP Lei de Execuções Penais Min. Ministro NI Norma Interna AOB Ordem dos Advogados do Brasil ONU Organização das Nações Unidas 6 PF Polícia Federal PL Projeto de lei (Câmara dos Deputados) PLS Projeto de Lei do Senado RS Rio Grande do Sul RJ Rio de Janeiro SENASP Secretaria Nacional de Segurança Pública SP São Paulo STF Supremo Tribunal Federal TV Televisão SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 9 2 PRINCÍPIOS E DIREITOS CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS...................... 13 2.1 Consideração preliminares............................................................................... 13 2.2 Princípios Constitucionais ............................................................................... 15 2.2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ................................................ 18 2.2.2 Princípio da Presunção da Inocência .......................................................... 21 2.2.3 Princípio do Devido Processo Legal ........................................................... 24 2.2.3.1 Ampla Defesa .............................................................................................. 27 2.2.3.2 Contraditório ............................................................................................... 29 2.3 Princípio da Proporcionalidade........................................................................ 31 2.4 Direito à Imagem ............................................................................................... 32 2.5 Tortura e o Direito à Integridade Física........................................................... 34 2.5 Direito à egurança pública.............................................................................. 37 3 INSTRUMENTOS UTILIZADOS PELA POLÍCIA E LEGISLAÇÃO ACERCA DO TEMA ................................................................................................................... 42 3.1 Histórico e Evolução das Algemas ................................................................ 43 3.2 Previsão Legal do emprego de algemas e a falta de uma regra específica. 46 3.2.1 Código de Processo Penal............................................................................. 47 3.2.2 Código de Processo Penal Militar ................................................................ 48 3.2.3 Lei de Execução Penal................................................................................... 51 3.2.4 Legislações Estaduais e outras leis aplicáveis ao tema............................ 52 8 3.3 Projetos de leis .................................................................................................. 55 3.4 Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal................................ 58 4 O INTERESSE PÚBLICO DA ORDEM SOCIAL EM CONTRASTE COM OS DIREITOS INDIVIDUAIS NA QUESTÃO DAS ALGEMAS.............................. .... 62 4.1 Poder de Polícia................................................................................................. 63 4.2 Uso da força na manutenção da ordem pública............................................. 65 4.3 Algemas como instrumento não letal ............................................................. 69 4.4 Preservação da integridade física do policial, de terceiro e do preso.......... 73 4.5 Abuso de Autoridade e do Constrangimento Ilegal ....................................... 75 4.6 Uso de algemas e os Princípios Constitucionais ........................................... 77 4.7 O Princípio da Proporcionalidade no impasse entre os direitos individuais e o interesse público de repressão ao crime com uso de algemas............... 81 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 85 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 89 ANEXOS................................................................................................................... 97 INTRODUÇÃO O Brasil enfrenta ondas de violência, aumento de assaltos, furtos, seqüestros e assassinatos. O tema é debatido quase que diariamente pela mídia. Mas, um fenômeno atualíssimo que se assiste diz respeito ao significativo aumento de verdadeiros escândalos que envolvem grandes empresários, figuras graduadas, entre elas políticos, advogados e magistrados. Trata-se de criminosos que nem sempre são vistos como os tradicionais vilões, os ladrões de galinha, violentos e armados, devido às suas formas sofisticadas e ardilosas de agir. Não obstante, o fato destes criminosos geralmente cometerem crimes conhecidos como de colarinho branco, sem emprego da tradicional violência sangrenta, seus crimes são tão cruéis e bárbaros, como de um latrocínio cometido pelo bandido ordinário. Isso se deve em razão da amplitude das consequências de seus atos, geralmente envolvendo grandes somas de dinheiro, que são desviados lesando inúmeras pessoas e impossibilitando a sua utilização em saúde, educação e segurança pública. Entretanto, a polícia vem respondendo incisivamente, implementando ações necessárias ao enfrentamento da crescente criminalidade, agindo na repressão de todos os tipos de crimes e agora, mais do que nunca, atingindo pessoas poderosas dos altos escalões da sociedade. Ressalta-se que estes criminosos tem redes de contato e influências, ou fazem parte dos poderes públicos de várias esferas, como se tem visto nos noticiários. 10 Justamente devido a essa nova “clientela” das ações policiais é que as discussões em torno do tema do uso de algemas têm sido fervorosas, invocando-se que estão sendo maculados os princípios constitucionais norteadores do Estado Democrático de Direito. A polícia, como um órgão do Estado, é competente para a preservação da ordem social e o faz por meio dos recursos disponíveis. Nesse contexto, a utilização de algemas faz parte dos meios de contenção empregados pelos órgãos de segurança. O uso dessa ferramenta é abordado nos estudos teóricos sobre técnicas de imobilização e nas aulas práticas, lições que fazem parte das grades curriculares de todas as academias de polícia, pois é procedimento largamente aplicado nas operações policiais de qualquer instituição envolvida em segurança pública, no Brasil e no mundo. No entanto, o que torna a discussão mais acirrada é a não existência de uma legislação definitiva que guie a questão. O uso de algemas no país teria que ser regulado, conforme a Lei nº 7.210, Lei de Execuções Penais – LEP, que prevê no art. 199 que o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal, mas como já foi dito, até o momento isso não foi feito. Neste cenário, o presente trabalho se propõe a investigar a problemática em torno do emprego das algemas, já que o tema tem alcançado repercussão ultimamente, sobretudo por se apresentarem escancaradas na imprensa televisiva prisões envolvendo os criminosos da alta sociedade. O método empregado no presente trabalho monográfico será o dedutivo, partindo de argumentos gerais para argumentos particulares. Onde se tentará apresentar na conclusão respostas ao problema, levando em conta os dados existentes que serão analisados. Iniciando pelo estudo das argumentos utilizados pelos críticos ao emprego das algemas, bem como os princípios invocados, se passará a confrontar com a prática no dia-a-dia da polícia. A pesquisa será eminentemente teórica, fundada em revisão bibliográfica que envolve doutrina de estudiosos das áreas envolvidas no tema, sobretudo as 11 áreas do direito constitucional, direito penal e segurança pública. Portanto, se fará um estudo minucioso em livros de doutrina, artigos de revistas e sites especializados, legislação e em jurisprudências de nossos Tribunais. Neste ponto, cabe ressaltar que, por se tratar de um assunto emergente no cenário nacional, depara-se com a escassez de opiniões doutrinárias sobre o emprego de algemas, sobretudo entre aqueles estudiosos consagrados nos meios acadêmicos, que são os verdadeiros moldadores do direito nos mais variados ramos em que cada um atua. Diante desse fato, por ora, restou buscar amparo em artigos publicados por operadores do direito tais como promotores, advogados criminalistas, delegados e policiais. Essas opiniões foram propagadas em pequenos fragmentos doutrinários garimpados na rede mundial de computadores, a internet, em sites elitizados de assuntos jurídicos. A conclusão a que se pretende chegar, através da investigação bibliográfica, é se o uso das algemas macula os direitos individuais do preso, se estes devem prevalecer sobre uma técnica de imobilização largamente utilizada por todas as polícias onde estão em jogo outros valores igualmente relevantes: a segurança pública e a incolumidade dos envolvidos na ação. Portanto, será abordado, em um primeiro momento, um rol específico de princípios e direitos constitucionais fundamentais. Isto porque os princípios e direitos constitucionais fundamentais, além de constituírem arcabouço de proteção aos direitos individuais e coletivos, determinam quais os objetivos que devem pautar a conduta do Estado Brasileiro, principalmente os que orbitam mais próximos do princípio da dignidade humana. Para isso serão demonstradas as concepções de grandes autores brasileiros. Na sequência se abordará um histórico sobre o apetrecho de contenção, objeto central do presente trabalho, além da legislação atualmente existente sobre o assunto, mas que, em absoluto, significa um regramento geral e definitivo sobre o uso das algemas. 12 No mesmo capitulo se tratará da recente Súmula Vinculante, de número 11, editada pelo Supremo Tribunal Federal, realizando uma abordagem crítica sobre sua aprovação dentro da conjuntura política e social vivenciada no panorama demonstrado no início. Ainda, nesta parte serão apresentados e discutidos os Projetos de Lei - PL, e Projetos de Lei do Senado – PLS, que tramitam no congresso. Neste ponto, há se perceber outro sinal da inquietude que tomou conta dos políticos congressistas, tal como do poder judiciário. No último capítulo se apresentará os mais diversos aspectos que precisam ser levados em conta quando se pretende discutir a questão das algemas, desde a função do Estado de manter a ordem pública através dos meios disponíveis, iniciando pela força que o Estado tem sobre seus cidadãos, com fins de manter a ordem social, e assim, a criminalidade. Poder, este, que os próprios cidadãos lhe concederam quando do surgimento do Estado, com o objetivo maior justamente de promover as condições da convivência coletiva e pacífica. Estudar-se-á a que medida os princípios e direitos constitucionais fundamentais interferem, ou devem interferir ou se sobrepor nas ações do Estado e de seus agentes na constante busca/manutenção da ordem social. Portanto, sem ter a pretensão de esgotar o assunto, entende-se necessário a análise e reflexão sobre o emprego das algemas, buscando instrumentalizar, a partir das concepções antagônicas e diversas de autores e juristas que até agora corajosamente se atreveram a abordar este tema novo no universo jurídico que já nasceu polêmico. 2 PRINCÍPIOS E DIREITOS CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS Antes de adentrar no assunto específico concernente ao emprego das algemas na atividade policial, mostra-se imperioso um estudo acerca dos princípios e direitos constitucionais fundamentais. Entretanto, em que pese exista uma grande gama desses princípios e direitos, e que haja uma integração entre eles, o estudo se concentrará naqueles que são, de uma maneira geral, apontados como os mais contrariados pelo uso de algemas. Os princípios constitucionais afrontados com o uso de algemas foram citados nos debates da vigésima sessão ordinária do plenário do STF realizada em 13 de agosto de 2008, a qual versou sobre a edição da Súmula Vinculante nº 11. (ANEXO A) 2.1 Considerações preliminares Inicialmente faz-se necessário abordar os direitos e princípios fundamentais registrando breve distinção dos conceitos de direitos humanos e direitos fundamentais, já que em diversos momentos esses conceitos se entremeiam. Na doutrina, há vários grupos de pensadores, onde alguns entendem que se trata da mesma coisa, outros fazem uma clara e precisa distinção, enquanto que 14 um último grupo lança mão de diferentes terminologias sem, no entanto, atender-se ao problema semântico (Frey, 2005). O que se observa, entretanto, é que a maioria dos doutrinadores entende que não há como confundir direitos humanos com direitos fundamentais, visto que estes fazem parte daqueles, porém positivados no ordenamento jurídico. Ou seja, se por um lado os direitos humanos possuem sua concepção na “filosofia” e até na “religião” (Porto, 2006, p 50), os direitos fundamentais, que no texto constitucional convergem essencialmente na dignidade da pessoa humana, são as garantias jurídicas palpáveis que se aproximam do cidadão e podem ser pleiteadas a qualquer tempo. Neste sentido, Guerra Filho (1997) afirma que é imprescindível distinguir direitos fundamentas e direitos humanos. Do ponto de vista histórico, os direitos fundamentais são originalmente direitos humanos. Numa concepção epistemológica, deve-se distinguir os direitos fundamentais, pois referem-se às manifestações positivas do direito, com capacidade para produzir efeitos no plano jurídico dos direitos humanos. Conforme Bonavides (2006), por ocasião da Revolução Francesa e mais ainda com a edição da Declaração dos Direitos do Homem, em 1789, surgem Constituições com acentuada desconfiança contra o poder, contra a valorização da sociedade burguesa e individualista, e uma verdadeira reação ao poder absoluto do Estado. Instaura-se uma era de direitos fundamentais que evidenciam o respeito aos direitos da pessoa humana. Esses direitos, para Sarlet englobam: [...] ‘direitos humanos’ se revelou conceito de contornos mais amplos e imprecisos que a noção de direitos fundamentais, de tal sorte que estes possuem sentido mais preciso e restrito, na medida em que constituem os conjuntos de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu caráter básico e fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito (Sarlet, 2001, p. 34). 15 O que se verifica, por fim, é que na atualidade usa-se, preferencialmente, o termo “direitos fundamentais”, quando se refere aos direitos positivados na Constituição, e a expressão “direitos humanos” é usada com sentido mais abrangente e universal e em documentos internacionais. Desta sorte, estes direitos, garantias e princípios fundamentais encontram-se positivados em diversos artigos da Constituição Federal de 1988. Todavia, tendo em vista que o presente estudo, como já referido anteriormente, tem por objetivo específico uma investigação acerca das implicações do emprego de algemas na prática da atividade policial, dar-se-á especial atenção, nas seções seguintes, aos princípios e direitos constitucionais fundamentais que possuem íntima relação com o tema, sobretudo o com Direito Penal e com Processual Penal. 2.2 Princípios Constitucionais O princípio constitucional precisa, em primeiro lugar, ter seu conceito correlacionado com a noção de princípio dentro do Direito, já que o princípio constitucional, além de princípio jurídico, é um princípio que exprime sua força teórica e normativa do Direito enquanto ciência e ordem jurídica. Para entender satisfatoriamente o conceito de princípio no Direito, essencial que sejam analisadas, inicialmente, o significado de princípio externamente ao mundo jurídico para depois aprofundar nesta área. Segundo dicionário Michaellis (2007, texto digital), princípio é “sm (lat principiu) ato de principiar; momento em que uma coisa tem origem; começo ou início. Ponto de partida.” O dicionário Aurélio define princípio através de várias acepções: Princípio: 1. Momento ou local ou trecho em que algo tem origem [...] 2. Causa primária. 3. Elemento predominante na Constituição de um corpo orgânico. 4. Preceito, regra, lei. 5. P. ext. Base; germe [...]. 6. Filos. Fonte ou causa de uma ação. 7. Filos. Origem de algo, de uma ação ou de um conhecimento., 8. Lóg. Na dedução, a proposição que lhe serve de base, 16 ainda que de modo provisório, e cuja verdade não é questionada. São princípios os axiomas, os postulados, os teoremas etc. (Ferreira, 1999, texto digital). No princípio assenta-se a essência de uma ordem, seus parâmetros fundamentais e direcionadores de um sistema. Independente de qual for o campo do saber que se conceba, a idéia de um princípio ou sua conceituação assinala a estruturação de um sistema de idéias, normas e pensamentos por uma idéia fundamental, um pensamento chave, que se apresenta como um alicerce sobre o qual todas as demais idéias, pensamento e normas são construídos em uma estrutura condizente e se subordinam. É neste sentido que se vê a definição de Silva: Princípios, no plural, significam as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa [...] revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie e ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica [...] exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica [...] mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em perfeitos axiomas [...] significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito (Silva, 2000, p. 639). Em se tratando propriamente dos princípios do Direito, estes constituem um conjunto de preposições lógicas e que denotam o embasamento de todo o sistema jurídico. Bonavides nos apresenta claramente este conceito ao se referir a “normatividade dos princípios” que, segundo o autor, tal tendência implementa uma qualidade quanto à eficácia do princípio dentro do sistema jurídico: A proclamação da normatividade dos princípios em novas formulações conceituais e os arestos das Cortes Supremas no constitucionalismo contemporâneo corroboram essa tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como normas-chaves de todo o sistema jurídico [...] (Bonavides, 2006, p. 286). Nas constituições que se manifesta mais fortemente essa transcendência dos princípios para o mundo jurídico e deste para o mundo dos fatos, em um estágio em que já se reconhece sua efetividade e onipresença, primeiramente nos Códigos, e atualmente, muito mais contundentes, nas constituições: 17 O ponto central da grande transformação por que passam os princípios reside, em rigor, no caráter e no lugar de sua normatividade, depois que esta inconcussamente proclamada e reconhecida pela doutrina mais moderna, salta dos códigos, onde os princípios eram fontes de mero teor supletório, para as constituições, onde em nossos dias se convertem em fundamento de toda a ordem jurídica, na qualidade de princípios constitucionais (Bonavides, 2006, p. 289). O mesmo autor, mais adiante, completa: Os princípios baixaram primeiro das alturas montanhosas e metafísicas de suas primeiras formulações filosóficas para a planície normativa do Direito Civil. Transitando daí para as Constituições, noutro passo largo, subiram ao degrau mais alto da hierarquia normativa (Bonavides, 2006, p. 293). Nos princípios constitucionais, agregam-se bens e valores considerados alicerces de validade de todo o sistema jurídico, são o ápice do sistema jurídico, pois tudo que lhes segue tem que estar perfeitamente harmonizado com seus preceitos. E assim, servirão de espinha dorsal para as futuras normas, tendo sua efetivação concretizada à medida que forem sendo editadas normas em torno se sua estrutura base. Neste sentido destacam-se os ensinamentos de Barroso: [...] os princípios constitucionais são, precisamente, a síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica. A Constituição [...] não é um simples agrupamento de regras que se justapõem ou que se superpõem. A idéia de sistema funda-se na de harmonia, de partes que convivem sem atritos. Em toda ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamentais que ‘costuram’ suas diferentes partes. Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos. (Barroso, 2004, p. 153). Outra importante função dos princípios constitucionais é, segundo Bastos (2001b, p. 161), “[...] servir como critério de interpretação das normas constitucionais, seja ao legislador ordinário, no momento da criação das normas infraconstitucionais, seja aos juízes no momento da aplicação dos direitos [...]”. Nunes (2002, p. 39), indo mais longe, afirma que os princípios funcionam como verdadeiras “supranormas, isto é, [...] agem como regras hierarquicamente superiores às próprias normas positivadas no conjunto das proposições escritas ou mesmo às normas costumeiras”. 18 Enfim, pode-se ver que os princípios constitucionais são valores agregados à Constituição Federal de um país, com a finalidade de sistematização da carta constitucional, ou como expressa Bastos (2001b, p. 161) “[...] de servir como critério de interpretação e finalmente, o que é mais importante, espraiar os seus valores, pulverizá-los sobre todo o mundo jurídico”. São vários princípios constitucionais consagrados e que se encontram positivados em diversos artigos da Constituição Federal de 1988, sendo que, perante o seu grande número, poderia ser objeto de todo um trabalho de conclusão de curso. Entretanto, no presente estudo, haverá um relevo especial àqueles que frequentemente tem relação com a atividade policial, especialmente no que se refere ao emprego das algemas, bem como às próprias garantias e direitos dos cidadãos tuteladas pelo Estado Democrático de Direito. Sendo assim, tratar-se-á dos princípios iniciando por aquele que constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, e que, por isso, permeia todos os demais princípios constitucionais e infraconstitucionais e, acima de tudo, deve nortear a totalidade das ações adotadas pelo Estado Brasileiro, não apenas no que se refere aos direitos individuais, mas também concernente à manutenção e harmonização da convivência coletiva, qual seja: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2.2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Segundo Nunes (2002, p. 46) “dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica”. 19 A dignidade da pessoa humana1 é o principal direito fundamental garantido na nossa Constituição Federal eis que: [...] é ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais. É a dignidade que dá direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete, (Nunes, 2002, p. 45). Ainda para Nunes (2002, p. 55) “o mais importante princípio constitucional é a dignidade da pessoa humana, é ela que dá diretriz para a harmonização dos princípios [...]”. A dignidade da pessoa humana garante a igualdade sem discriminação de qualquer espécie, uma vez que: O ser humano, o homem, seja qual origem for, sem discriminação de raça sexo, religião, convicção política ou filosófica, tem direito a ser tratado pelos semelhantes como “pessoa humana”, fundando-se, o atual Estado de direito, em vários atributos, entre os quais se inclui a “dignidade” do homem, repelido, assim, como aviltante e merecedor de combate qualquer tipo de comportamento que atente contra apanágio do homem (Cretella Junior, 1997, p. 139). A dignidade da pessoa humana funciona como mecanismo unificador dos direitos fundamentais e inerentes à espécie humana, eis que visa garantir o bem estar do cidadão protegendo-os dos sofrimentos evitáveis na esfera social (Chimenti; Capez; Elias Rosa; Santos, 2005). Também é a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos mais importantes dentro do Estado Democrático de Direito, porque garante moralmente os direitos fundamentais elencados na Constituição Federal, visto que: Concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos 1 Art. 1º “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamento”: I – a soberania. II – a cidadania III – a dignidade da pessoa humana“. 20 fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (Moraes, 2005, p.16). Ainda sobre o referido princípio, Silva (2006, p. 105) diz que a “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”. Pela lição de Nunes (2002, p. 49) “então, a dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência”. A dignidade que nasce com o indivíduo, vai se estruturando e se modificando ao longo de sua vida, pois: [...] acontece que nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. E aí, nesse contexto, sua dignidade humana ganha – ou, como veremos, tem o direito de ganhar – um acréscimo de dignidade. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto é, sua liberdade – sua imagem, sua intimidade, sua consciência – religiosa, científica, espiritual – etc., tudo compõe sua dignidade, (Nunes, 2002, p. 49). A dignidade2 da pessoa humana é elemento matriz dentro do Estado Democrático de Direito, como expressa Silva (2003, p. 71), “Sem esta é impossível a crença íntima na cidadania, que conduz à soberania popular e, esta à concretização da democracia através da aplicação procedimental do princípio democrático contido no texto constitucional”. Segundo Chaim Perelman todo ser humano tem dignidade só pelo fato já de ser pessoa, uma vez que: Com efeito, se é respeito pela dignidade humana a condição para uma concepção jurídica dos direitos humanos, se se(sic) trata de garantir esse respeito de modo que se ultrapasse o campo do que é efetivamente protegido, cumpre admitir, como corolário, a existência de um sistema de direito com um poder de coação. Nesse sistema o respeito pelos direitos humanos imporá, a um só tempo, a cada ser humano – tanto no que concerne a si próprio quanto no que concerne aos outros homens – e ao poder incumbido de proteger tais direitos a obrigação de respeitar a dignidade da pessoa (apud, Nunes, 2002, p. 53). O legislador brasileiro, ao colocar a dignidade da pessoa humana como fundamento da Constituição Federal, se preocupou em condenar práticas como da 2 A Constituição Federal da Alemanha Ocidental do pós-guerra traz, também, estampada no seu artigo de abertura que “A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder público”. 21 tortura, sob todas as suas modalidades, do racismo e outras humilhações. Assim o constituinte colocou a pessoa humana não como simples meio para alcançar certos objetivos, como, por exemplo, o econômico, mas sim um conteúdo de ordem moral e material (Bastos, 2001b). Assim, vê-se que o princípio da dignidade da pessoa humana caracteriza uma garantia fundamental, pois para que a pessoa possa usufruir seus outros direitos é necessário que esta tenha uma vida digna. No caso específico em estudo, que é o emprego de algemas, alguns autores, como se verá mais adiante, afirmam que a simples colocação de algemas configura por si só uma violação ao princípio da dignidade humana. 2.2.2 Princípio da Presunção da Inocência Sobre o princípio da presunção de inocência3, entende-se que é um princípio constitucional muito importante, porque garante ao cidadão a inocência até que o Estado apresente a robusta prova de sua culpabilidade, podendo-se assim, a partir desse momento, ser considerado culpado. Desta forma, o cidadão fica livre do simples arbitramento do Estado, assim, pode defender-se lançando mão todos os meios de prova cabíveis para provar sua inocência. Sobre esses argumentos, o princípio da presunção de inocência é caracterizado como uma garantia processual constitucional. O princípio da presunção de inocência atua como regulador da atividade punitiva do Estado, onde se procura dar um equilíbrio entre a pretensão punitiva e a liberdade dos cidadãos, ou seja, o Estado não poderá agir senão dentro dos limites fixados pelas normas jurídicas. 3 A Declaração dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, consagrou em seu art. 11: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa". 22 Este princípio se consolidou no Brasil com a CF de 1988 e, por fim, o Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo n.º 27, de 26 de maio de 1992, aprovou o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Assim, o governo brasileiro, em 25 de setembro de 1992, depositou a Carta de Adesão a esta Convenção, determinando-se seu integral cumprimento pelo Decreto n.º 678, de 06 de novembro de 1992, publicado no DOU de 09.11.92, pág. 15.562 e ss4. Portanto, o princípio da presunção de inocência passou a ser assegurado no ordenamento jurídico brasileiro, por duas normas: o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" e o art. 8º, I, do Pacto de São José da Costa Rica, que tem valor de preceito constitucional. Deste modo as duas redações se completam atuando como garantia fundamental. A presunção de inocência é caracterizada como um dos princípios basilares do Estado de Direito, atuando como uma garantia processual penal visando assim a tutela da liberdade pessoal (Moraes, 2007). Conseqüentemente, afirma Moraes (2007, p. 112), “[...] há a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal”. A decisão condenatória, dada pelo judiciário, é requisito básico para que uma pessoa possa ser considerada culpada, portanto pode-se ver na transcrição seguinte, que esta decisão condenatória é fundamental: Somente a sentença penal condenatória, ou seja, a decisão que não cabe mais recurso, é razão jurídica suficiente para que alguém seja considerado culpado. A sentença penal, como a civil, não tem em vista a afirmação da verdade do fato, pois este continua a ser o que era, nem o ordenamento jurídico pretende que seja tido como verdadeiro o fato que o juiz aponta como fundamento da decisão final. [...] Em dado momento do processo penal, em qualquer grau, quando o Estado declara, em definitivo, que o 4 Com efeito, o Pacto de São José da Costa Rica, em seu art. 8º, I, estabelece o princípio da presunção de inocência ou do estado de inocência, em sua dimensão real, ao asseverar que: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa". 23 acusado é culpado, ocorre à preclusão dos procedimentos recursais para a nova decisão, tendo-se, assim, a coisa julgada penal formal, que outorga à sentença o atributo de imutabilidade, dando-se assim, o arremate ao direito de nova decisão de mérito sobre o objeto em que incidiu a sentença. No instante preciso em que à sentença penal condenatória transitou em julgado, o acusado, até então, presumido inocente, passa ao estatus de culpado, por que a sentença penal de mérito, tornada irrecorrível, assinala que o limite ou barreira em que o Estado seu poder-dever de acusar, ficando, desse momento em diante, liberto da obrigação jurisdicional penal. Só, neste instante, é que se pode dizer: “A é culpado”, “é criminoso” e, como tal, pode ser objeto de identificação criminal (Cretella Junior, 1997, p. 537-538). O referido princípio não estabelece que todos são inocentes, mas sim que ninguém será considerado culpado até a sentença penal condenatória e que somente com esta transitada em julgado é que a pessoa passará a ser considerada culpada, conforme entendimento do autor na transcrição a seguir: O principio da presunção de inocência consubstancia-se, portanto, no direito de não ser declarado culpado senão mediante sentença judicial com trânsito em julgado, ao término do devido processo legal (due process of law), em que o acusado pôde utilizar-se de todos os meios de prova pertinentes para a sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas pela acusação (contraditório) (Moraes, 2002, p. 268). Ainda, segundo Moraes (2002, p. 268), “o direito de ser presumido inocente, consagrado constitucionalmente pelo art. 5°, LVII, possui quatro básicas funções”. Essas funções são as seguintes: • Limitação à atividade legislativa; • Critério condicionador das interpretações das normas vigentes; • Critério de tratamento extra-processual em todos os seus aspectos (inocente); • Obrigatoriedade de ônus da prova5 da prática de um fato delituoso ser sempre do acusador. 5 O ônus da prova dos fatos constitutivos da pretensão penal pertence com exclusividade à acusação, sem que se possa exigir a produção por parte da defesa de provas referentes a fatos negativos (provas diabólicas). Necessidade de colheita de provas ou de repetição de provas já obtidas perante o órgão judicial competente, mediante o devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Absoluta independência funcional do magistrado na valoração livre das provas, (Moraes, 2002, p. 269). 24 Deste modo pode-se observar que cabe ao Estado o ônus de provar a culpabilidade do agente, e não o agente provar a sua inocência. Diante disso, de modo algum o acusado poderá sofrer qualquer sanção ou castigo, antes de receber a sentença judicial derradeira quanto a sua culpabilidade. No que se refere às algemas, estas não podem ser utilizadas quando houver a intenção de submeter o acusado a qualquer constrangimento relativo ao mérito da acusação. Pode-se admitir seu emprego unicamente se necessário aos procedimentos policiais de contenção temporária, ou de translado até ou entre estabelecimentos prisionais. 2.2.3 Princípio do Devido Processo Legal A contenda em torno do uso das algemas encontra também militantes que consideram seu emprego em desconformidade com o princípio constitucional do devido processo legal (art. 5º inciso LIV, LV CF/88)6, onde toda e qualquer pessoa só pode ser punida, após a análise pelo juiz competente de acordo com a organização judiciária vigente, posto que é assegurado ao acusado, durante toda a instrução processual, o contraditório e a ampla defesa. Segundo Moraes (2007, p. 99), “a constituição federal de 1988 incorporou o princípio do devido processo legal, que remonta à Magna Charta Libertatum de 1215, de vital importância no direito anglo-saxão”. O artigo XI, nº 1°, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, garante que: Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamentos público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa (Declaração, 1948, texto digital). 6 Constituição Federal de 1988, artigo 5º, LIV, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”; LV, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 25 O devido processo legal vem da expressão inglesa “dues process of law”, onde Due quer dizer “devido”, “próprio”, “adequado”, assim pode-se definir a partir dessa expressão inglesa como sendo o processo adequado ou processo próprio (Cretella Júnior, 1997). Este princípio constitucional garante ao acusado o direito de se defender, e de ser processado por autoridade competente, eis que: [...] é aquele em que todas as formalidades são observadas, em que a autoridade competente ouve o réu e lhe permite a ampla defesa, incluindo- se o contraditório e a produção de todo tipo de prova – desde que obtida por meio lícito – prova que entenda seu advogado dever produzir, em juízo. Sem processo e sem sentença, ou prolatada esta por autoridade incompetente, ninguém será privado de liberdade ou de seus bens, (Cretella Junior, 1997, p. 530). Garantindo o processo adequado aos litigantes, o Estado está ao mesmo tempo dando ao cidadão o que é seu de direito segundo a norma jurídica, de modo que os atos processuais não podem fugir da constitucionalidade do princípio do devido processo legal, sob pena de estes atos serem considerados meras arbitrariedades do Estado (Silva, 2006). O princípio do devido processo legal é mais uma garantia do que propriamente um direito, uma vez que ele visa a proteger o cidadão de decisões arbitrárias do Estado. Não pode haver confusão entre garantia e direito, eis que manifestamente trata-se de virtudes diversas: A garantia – meio de defesa – se coloca então diante do direito, mas com este não se deve confundir. Ora, esse erro de confundir direitos e garantias, de fazer um sinônimo da outra, tem sido reprovado pela boa doutrina, que separa com nitidez os dois institutos, não incluindo em lapsos dessa ordem, tão freqüentes entre alguns dicionaristas célebres. É o que acontece com o Dicionário da Real Academia Espanhola ao definir as garantias constitucionais como os direitos que a Constituição de um Estado reconhece a todos os cidadãos. Em idêntica falta incide também, cerca de 40 anos depois, o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o léxico de mais fama e autoridade no Brasil, que assim define a garantia constitucional: direitos e privilégios dos cidadãos conferidos pela Constituição dum país, (Bonavides, 2006, p. 526). Tão importante é o devido processo legal, como princípio constitucional, que ele representa a base legal para a aplicação de todos os demais princípios, 26 qualquer que seja o ramo do direito processual. Percebe-se que o devido processo legal é dupla proteção ao indivíduo, eis que: [...] atuando no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à publicidade, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal) (Moraes, 2007, p. 100). Assim, o devido processo legal é uma garantia sublime da justiça, pois conforme o que expressa Bastos (2001b, p. 234) “o direito ao devido processo legal é mais uma garantia do que propriamente um direito. Por ele visa-se proteger a pessoa contra a ação arbitrária do Estado. Colima-se, portanto, a aplicação da lei”. O devido processo legal pressupõe: Elaboração regular e correta da lei, bem como sua razoabilidade, senso de justiça e enquadramento nas preceituações constitucionais (é o chamado devido processo legal em sentido material). Aplicação judicial da lei, por meio de instrumento hábil à sua realização e aplicação (é o chamado devido processo legal processual). Bastaria tal princípio para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantiam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. Esse princípio é, portanto, o gênero do qual os demais princípios constitucionais do processo são espécies: o princípio da publicidade, da motivação, do juiz natural, do contraditório, da ampla defesa, da impossibilidade de utilização em juízo de prova obtida por meio ilícito etc. Nelson Nery Junior afirma que bastaria a Constituição Federal ter enunciado o princípio do devido processo legal que tornaria desnecessária a enumeração dos princípios do juiz natural, da publicidade, da ampla defesa, do contraditório, entre outros (Chimenti; Capez; Elias Rosa; Santos, 2005, p. 64). Conforme jurisprudência do STF transcrita a seguir, o devido processo legal coloca o Estado no seu devido papel de atividade punitiva, mas, estabelecendo métodos a serem seguidos para não serem considerados como ato de arbítrio contra o cidadão. Pelas decisões do Supremo, o Estado é quem deve produzir integralmente a prova da culpabilidade do agente infrator e, faculta o acusado a necessidade de este demonstrar sua inocência e os demais direitos para se defender: Devido processo legal e tutela de jurisdição: STF - A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em evidência a relação de polaridade conflitante que estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público e o Resguardo a intangibilidade do jus libertatis titularizado pelo réu. A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e 27 pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal condenatório não é um arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um circulo de proteção em torno da pessoa do réu – que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença que, condicionado pro parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado que jamais necessita demonstrar sua inocência, o direito de defender-se e que questionar, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo MP. A própria exigência de processo judicial representa poderoso fator de inibição do arbítrio e de restrição ao poder de coersão do Estado. A cláusula nulla poena sine judicio exprime, no plano do processo penal condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual (1° T – HC n° 73.338/RJ – rel. Min. Celso de Mello – RTJ 161/264) (apud, Moraes, 2002, p. 257-258). Destaque-se que o princípio atua como regulador do equilíbrio entre as partes num processo judicial penal onde em um dos pólos está o Estado com sua pretensão punitiva e, no outro lado, está o cidadão que cometeu a infração. O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral conforme o artigo 5º, LV da Constituição Federal de 1988. 2.2.3.1 Ampla Defesa Por ampla defesa7 entende-se o direito da parte poder utilizar todos os meios de provas possíveis, para convencer o juiz sobre sua inocência. Conforme Chimenti, Cape, Elias Rosa e Santos (2005, p. 65), “[...] significa que as partes terão o direito de pleitear a produção de provas, de participar dos atos probatórios e de pronunciar-se sobre o resultado”. Conforme Bastos (2001b, p. 234), “por ampla defesa deve-se entender o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o 7 Artigo 5°, LV da CF/88: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 28 processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade”. Assim, a ampla defesa garante a igualdade entre as partes visto que: [...] só estará plenamente assegurada quando uma verdade tiver iguais possibilidades de convencimento do magistrado, quer seja ela alegada pelo autor, quer pelo réu. Às alegações, argumentos e provas trazidos pelo autor são necessários que corresponda igual possibilidade de geração de tais elementos por parte do réu, (Bastos, 2001b, p. 235). Existem diversos modos para caracterizar a ampla defesa, podendo ela assumir várias direções, segundo Bastos (2001b, p. 234) “[...] ela assume múltiplas direções ora se traduzindo na inquirição de testemunhas, ora na designação de um defensor dativo, não importando, assim, as diversas modalidades, em um primeiro momento”. Portanto, uma das previsões que estão elencadas na ampla defesa, assegura o direito de ser informado de que se está sendo acusado em um processo judicial e, que deverá ser informado sobre todos os atos que ocorreram no processo até o momento de sua citação (Moraes, 2002). Examine-se acórdão do STJ: Devido processo legal, ampla defesa, contraditório e citação: STJ – “Consoante a melhor doutrina a citação é ato fundamental do processo, por que de outro modo não se configuraria este como actum trium personarum, desapareceriam o contraditório e o direito de defesa, e inexistiria o devido processo legal” (3ª T. – Resp n° 14.201-0/CE – rel. Min. Waldemar Zveiter – Ementário STJ, 06/383) (apud, Moraes, 2002, p. 258). Logo, a ampla defesa existe para conferir ao acusado o direito a sua liberdade integral, frente à prepotência do Estado, onde de um lado está o direito da parte de se defender, e do outro o direito do Estado em acusar usando provas concretas (Cretella Junior, 1997). A ampla defesa é caracterizada como uma garantia constitucional inerente a todos os cidadãos que vivem no Estado Democrático de Direito, essa democracia está relativamente ligada ao direito de se defender, de contestar a prova que foi produzida contra a sua pessoa. 29 2.2.3.2 O contraditório O contraditório8 é caracterizado pela informação e o direito de contradizer qualquer prova ou ato processual, bem como, usar da ampla defesa, contrariando tal prova. Assim, o contraditório implica no direito que tem as partes de serem ouvidas nos autos. Segundo Chimenti, Capez, Elias Rosa e Santos (2005, p. 65) “[...] o conceito de contraditório formulado por Joaquim Mendes de Almeida: ciência bilateral dos atos e termos do processo, aliada à possibilidade de contrariá-los”. Conforme jurisprudência do STJ, o contraditório atua em consonância com o princípio da igualdade: Contraditório e princípio da igualdade processual: STJ – “O princípio do contraditório, com assento constitucional, vincula-se diretamente ao princípio da igualdade substancial, sendo certo que essa igualdade, tão essencial ao processo dialético, não ocorre quando uma das partes se vê cercada em seu direito de produzir prova ou debater a que se produziu” (4ª T. Resp nº 998/PA – rel. Min. Sálvio de Figueiredo – Ementário STJ, 01/378) (apud, Moraes, 2002, p. 258). O contraditório, nada mais é do que a exteriorização da ampla defesa, pois a todo ato produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de opor-se, isto, conforme Nelson Nery Jr. para quem: O princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação, quanto o direito de defesa são manifestação do princípio do contraditório (apud, Moraes, 2007, p. 100-101). Assim como o autor mencionado acima, outros como Bastos também referem que o contraditório está inserido dentro da ampla defesa como se pode ver a seguir: O contraditório, por sua vez, se insere dentro da ampla defesa. Quase que com ela de confunde integralmente na medida em que um defesa hoje em dia não pode ser senão contraditória. O contraditório é pois a exteriorização da própria defesa. A todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou ainda de fornecer 8 Artigo 5° LV da Constituição Federal “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 30 uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor (Bastos, 2001b, p. 235). Observe-se, todavia, que pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, somente estão sujeitos ao contraditório os atos produzidos no processo judicial, isto é, atos como o inquérito policial, civil e interrogatório judicial, não ficam sujeitos ao contraditório, como salienta o acórdão seguinte: Interrogatório judicial e contraditório: STF – “O interrogatório judicial não está sujeito ao princípio do contraditório. Subsiste, em conseqüência, a vedação legal – igualmente extensível ao órgão da acusação -, que impede o defensor do acusado de intervir ou de influir na formulação das perguntas e na enunciação das respostas. A norma inscrita no art. 187 do Código de Processo Penal foi integralmente recebida pela nova ordem constitucional” (1ª T. – HC nº 68.929-9/SP – rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 28 ago. 1992, p. 13.453) (apud, Moraes, 2002, p. 258). Assim, conforme Cretella Junior (1997, p. 533), “o contraditório é típico dos processos em que a relação processual é “biface”; de um lado, o Estado, acusando; de outro lado, o particular sofrendo o impacto da acusação e defendendo-se”. Neste raciocínio, o princípio do contraditório pode ser concretizado de maneira bem prática e simples nas palavras de Greco Filho: O contraditório se efetiva assegurando-se os seguintes elementos: a) o conhecimento da demanda por meio de ato formal de citação; b) a oportunidade, em prazo razoável, de se contrariar o pedido inicial; c) a oportunidade de produzir prova e se manifestar sobre a prova produzida pelo adversário; d) a oportunidade de estar presente a todos os atos processuais orais, fazendo consignar as observações que desejar, e) a oportunidade de recorrer da decisão desfavorável (Greco Filho, 2007, p. 90) Ora, não havendo o processo judicial conseqüentemente não haverá o devido processo legal, muito menos a ampla defesa e o contraditório. Pois é pelo suposto afrontamento desses institutos, que os críticos ao emprego de algemas embasam seus argumentos, afirmando que a aplicação abusiva do apetrecho submete o preso a uma pena adicional, sem sequer ter sido julgado, ferindo, portanto o princípio do devido processo legal, sobretudo quando há exibição pública dos algemados, afetando assim também o seu direito à imagem que será visto mais adiante. 31 2.3 Princípio da Proporcionalidade Diante da vasta gama de direitos e princípios constitucionais ocorre com frequência uma colisão entre dois ou mais princípios em determinada situação fática. Surgem situações nas quais tais princípios se apresentam em oposição, fazendo-se necessário a compatibilização entre os mesmos por intermédio do princípio da proporcionalidade, “o qual permitirá, por meio de juízos comparativos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto, harmonizá-los, através da redução proporcional do âmbito de aplicação de ambos (colisão com redução bilateral) ou de um deles apenas (colisão com redução unilateral)” (Frey, 2005, p. 65). O princípio da proporcionalidade tem sua origem na Alemanha, onde é chamado de Verhältnismässingkeigkeitsprinzip, e busca humanizar as relações jurídicas, aparecendo mais tarde nos Estados Unidos da América como Reasonnableness (Razoabilidade), em que procura amenizar a aplicação da legislação em casos concretos. Embora haja pequenas diferenças entre Verhältnismässigkeit e a Reasonnableness, ambas correntes possuem objetivos equivalentes que são a consideração por todos os direitos e princípios envolvidos relativizando sua aplicabilidade considerando as peculiaridades de cada situação no caso concreto, e não levando em conta apenas a abstração e a frieza da lei. Barroso (2004, p. 224), entende que ambas correntes, e por consequência as nomenclaturas, podem ser empregadas indistintamente, em razão da fungibilidade existente entre elas. Ainda, segundo o referido autor, a doutrina e a jurisprudência, assim na Europa continental como no Brasil, preferem fazer referência ao princípio da proporcionalidade, enquanto que nos Estados Unidos emprega-se mais o termo razoabilidade, que, segundo o mesmo autor “é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todos ordenamento jurídico: a justiça.” No Brasil, já está claramente pacificada na jurisprudência a utilização do princípio da proporcionalidade/razoabilidade nas situações em que exista uma prova ilícita, desde que venha a beneficiar o réu, conforme se vislumbra nos ensinamentos de Moraes: 32 [...] a doutrina constitucional passou a atenuar a vedação das provas ilícitas, visando corrigir distorções a que a rigidez da exclusão poderia levar em caso de excepcional gravidade. Essa atenuação prevê, com base no Princípio da Proporcionalidade, hipóteses em que as provas ilícitas, em caráter excepcional e em casos extremamente graves, poderão ser utilizadas, pois nenhuma liberdade pública é absoluta, havendo possibilidade, em casos delicados, em que se percebe que o direito tutelado é mais importante que o direito à intimidade, segredo, liberdade de comunicação, por exemplo, de permitir-se sua utilização (Moraes, 2007, p. 105). Sendo assim, esta doutrina de origem estrangeira vem ganhando espaço no cenário jurídico nacional, já que é forçoso que se resolva a colisão dos princípios porque a possibilidade de ocorrerem divergências entre eles são inúmeros. Neste sentido a autora apresenta os seguintes exemplos: Pode-se dizer que ocorre a colisão de direitos fundamentais quando, no caso concreto, o exercício de um direito fundamental por um titular obstaculaliza, afeta ou restringe o de outro titular de um direito também fundamental. Exemplos de tal colisão podem ser encontrados na liberdade artística, intelectual, científica ou de comunicação (art. 5º, inciso XV da CF) que podem entrar em rota de colisão com a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem das pessoas (art. 5º, inciso X da CF) (Frey, 2005, p. 62). A mesma dissensão acontece no tema objeto de presente trabalho, onde, se por um lado há que se garantir a dignidade, a intimidade, a integridade física, a presunção de inocência da pessoa que é detida, por outro, é essencial que se garanta a operacionalidade das ações de segurança pública, a liberdade de imprensa, a integridade física de terceiros e a vida dos policiais. 2.4 Direito à Imagem A imagem é um dos direitos inerentes a própria personalidade do homem, que, por sua vez é normalmente definido como direito irrenunciável e intransmissível, de que todo indivíduo dispõem desde sua concepção até mesmo após sua morte e constitui aspectos de sua identidade. Segundo D’Azevedo: Os direitos da personalidade são direitos subjetivos inerentes à pessoa humana e fora da órbita patrimonial, portanto são absolutos, indisponíveis, 33 inalienáveis, intransmissíveis, imprescritíveis, irrenunciáveis e impenhoráveis. (D’Azevedo, 2001, texto digital) No que se refere à imagem, esta constitui a exteriorização da personalidade do indivíduo na sociedade. Segundo Hermano Durval, apud D’Azevedo (2001, texto digital) “direito à imagem é a projeção da personalidade física (traços fisionômicos, corpo, atitudes, gestos, sorrisos, indumentárias, etc.) ou moral (aura, fama, reputação, etc.) do indivíduo (homens, mulheres, crianças ou bebê) no mundo exterior". As pessoas estão expostas cada vez mais aos meios tecnológicos de captação e transmissão de imagens, seja por sistemas de vigilância, a portabilidade dos equipamentos hoje largamente disponíveis a qualquer pessoa, ou pela onipresença de equipes jornalísticas sedentas por novidades. É neste ambiente que hoje: O direito à imagem assumiu uma posição de destaque no contexto dos direitos da personalidade, devido ao extraordinário progresso tecnológico dos meios de comunicação, tanto no desenvolvimento da facilidade de captação da imagem, quanto a de sua reprodução. Hoje, é possível a captação mais fácil à distância e a reprodução para todo o mundo em segundos, o que têm alterado a preocupação na proteção ao direito à imagem, já que esta se torna mais árdua de se realizar (D’Azevedo, 2001, texto digital). A imagem é a representação visível da pessoa humana capaz de identificá-la, de transmitir uma postura em um contexto social e de revelar aspectos da sua intimidade. E na intimidade que a pessoa é por vezes mais severamente violentada, pois é onde guarda valores que dizem respeito apenas a si, que estão no seu interior, e que quando atingidos provocam sofrimentos, como lembra Frey: A intimidade, mesmo em suas mais variadas e múltiplas formas, sempre trata de proteger algo estimado pelos seres humanos como um bem que lhes pertence e que é motivo de sofrimento quando lhes é arrebatado contra a vontade. Porém, não se pode esquecer que o grau de ofensa vai depender da sensibilidade e do valor que cada pessoa outorga a esses bens, até mesmo porque são bens muito próximos da dignidade do ser humano (Frey, 2005, p. 127). Entretanto, não obstante uma das características essencial do direito da personalidade, a indisponibilidade, a imagem é o único direito dessa espécie que tem caráter disponível, uma vez que pode inclusive ser comercializada. Ou seja, o 34 direito a própria imagem não pode ser dissociado do titular, mas pode o titular autorizar sua utilização para diversos fins, explorando assim, a sua própria imagem (D’Azevedo, 2001). E por tratar-se justamente de um direito de suma importância e estar diuturnamente exposta à violação, sua proteção foi prevista na própria Constituição de 1988 conforme lembra Moraes: A presente proteção prevista pela Constituição de 1988 veio reforçar a titularidade dos direitos do autor, de maneira a garantir-lhe propriedade também em relação à exploração de sua própria imagem e voz, fato muito importante em face da proliferação dos meios de comunicação de massa (rádio, televisão, outdoor, por exemplo) (Moraes, 2002, p.184). Assim, devido à importância que a imagem tem para a personalidade projetada do individuo é que o uso de algemas combinado com a ampla divulgação da cena, denotando um estado degradante do preso, acaba por direcionar a crítica ao próprio ato de algemar. 2.5 Tortura e o Direito à Integridade Física A integridade física é garantida a toda e qualquer pessoa, já que a promoção de qualquer lesão corporal é tipificada como delito. O Artigo 129 do Código Penal é que tipifica a lesão corporal como crime sujeito a pena de detenção de três meses a um ano na forma dolosa, se não constituir crime mais grave, tal como a tortura. Ao preso, a Constituição garante a integridade física no artigo 5ª, in verbis: “[...] XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.” O direito à integridade física é um desdobramento do direito à vida, assegurado no caput do art. 5ª da CF, pois é garantido aos “[...] brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, [...]”. Toda ameaça à integridade física é uma ameaça à própria vida. 35 A CF proclama, portanto, o direito a vida, sendo esta uma incumbência do Estado, e por consequência o direito a integridade já, que segundo Moraes (2007, p. 31) o direito a vida tem “[...] dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência.” Ainda na Constituição Federal, mais adiante, verifica-se a preocupação com a necessidade de coibir no Brasil a tortura: “Art. 5º, [...]III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Para a Assembléia Geral das Nações Unidas, na Resolução 39/46 Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, o termo tortura significa: Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram (Convenção, 1984, texto digital). A preocupação com a prática de tortura é de nível mundial, sendo que o Brasil é signatário do tratado internacional da ONU de 1984 desde 1985, mas ratificou-o apenas por meio do Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Ainda assim, não se dispunha de nenhuma legislação que tratasse da tortura definindo as respectivas sanções para tal violação, até 1997 com a edição da Lei º 9.455. Portanto, atualmente no Brasil, é a Lei nº 9.455 de 7 de abril de 1997 que definiu os crimes de tortura, em seu Art. 1º, in verbis: Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou 36 mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. O artigo estabelece pena de reclusão de dois a oito anos determinando, ainda, no inciso I do § 4º o aumento da pena de um sexto até um terço se o crime é cometido por agente público. Herbella (2008) analisa que não é apenas pela criminalização da tortura, mas devido a todo processo de democratização do país, que a tortura está diminuindo. Há uma nova mentalidade, especialmente das polícias, que contam hoje com matéria obrigatória de direitos humanos em sua grade curricular nos cursos de formação, e por isso a tortura tende a diminuir cada vez mais. Diante disso, a autora afirma ainda que: Atualmente, em sua grande maioria, as algemas são utilizadas pelos policiais tão-somente como objetivo de resguardo à integridade física do preso e também do policial condutor e não para infringir castigo ou tratamento degradante ou cruel (Herbella, 2008, p 112). No entanto, a mesma autora adverte que as algemas devem ser usadas somente quando necessário, se o preso se encontra fora do cárcere ou sendo transportado, pois fora desses casos, quanto tenham o condão de humilhar, ou castigar, se estará diante de um dos casos típicos de tortura definidos em lei (Herbella, 2008). As algemas modernas, conforme veremos na seção 3.1, dispõe de um dispositivo capaz de travá-las em uma determinada circunferência suficiente para conter as mãos do detido, não podendo ser mais apertadas de modo a provocar constrição dos pulsos. 37 2.6 Direito a Segurança Pública A violência e a criminalidade atualmente preocupam a sociedade e vem demonstrando a necessidade de um Estado de Direito que garanta a ordem e a paz pública. A fim de compreender a extensão da importância do tema, analisa-se a opinião de Carnelutti ao cotejar a ordem com a desordem, nos trazendo um exemplo didático: A idéia de ordem se resolve na idéia de estabilidade. O caos é essencialmente instável. Entre a sociedade em desordem e a sociedade ordenada há a mesma diferença que entre um monte de materiais e um edifício. Um edifício tem o caráter da estabilidade. Estável é algo que está. Por isso a sociedade juridicamente ordenada se chama Estado. (Carnelutti, 2002, p. 53) Como se pode ver, a manutenção da ordem social é a justificativa para existência do próprio Estado, não restando dúvidas de que é uma de suas incumbências. Esta garantia é fundamental para as relações cotidianas e depende de ações estatais positivas, por meio das políticas de segurança pública. As políticas de segurança pública são projetos estatais que visam manter a ordem social, a fim de controlar o que é considerado "crime" pelas sociedades, utilizando-se para isso de meios organizacionais, recursos humanos e instrumentos de poder. Parte-se do pressuposto de que as concepções de políticas públicas de segurança são resultado de um processo histórico, construído pelos grupos sociais, a partir de suas experiências e ideologias a respeito de qual seria o papel do Estado em relação à segurança urbana. A relação entre o Estado e a administração da violência vem sendo abordada de formas diversas por filósofos e cientistas sociais. Entende Soares (1996. p. 20) que no pensamento social clássico ocorre algo semelhante ao que se verifica com as opiniões correntes da população: "nem todos estamos falando da mesma coisa quando nos referimos à violência". Ainda, segundo o autor citado, a problemática, envolvendo a relação entre violência e Estado, foi introduzida no pensamento social moderno por Thomas Hobbes e Nicolau Maquiavel. 38 Nicolau Maquiavel tratou o tema da violência, desnudando as Hipocrisias vigentes e trazendo à luz o fato de que a força é o recurso elementar e inevitável do poder, no qual a violência ocupa função destacada nas disputas e estratégias para comover o povo e produzir reações de acordo com as conveniências políticas. Em sua obra, O príncipe, Maquiavel (1996) explicou a necessidade de o príncipe praticar o "mal", como forma de manter o domínio do poder e do controle do Estado. A violência seria uma forma de manutenção das ideologias de poder, nas palavras do filósofo italiano: [...] todos os profetas armados vencem, enquanto os desarmados se arruínam, porque, além do que já foi dito, a natureza dos povos é variável; e, se é fácil persuadi-los de uma coisa, é difícil firmá-los naquela convicção. Por isso, convém estar organizado de modo que, quando não acreditarem mais, seja possível fazê-los crer à força (Maquiavel, 1996. p. 25-26). Hobbes (1979) não foi menos cético que Maquiavel no reconhecimento de que dadas as disposições do ser humano e as características dos cenários em que os indivíduos se encontram para o ensaio da vida coletiva, não há como esperar paz ou qualquer modalidade minimamente equilibrada de vida comum. Isto é, não haverá um mínimo de estabilidade e segurança sem um poder constituído de violência para preservar a ordem, manter a liberdade dos cidadãos e fornecer uma segurança coletiva. A tese Hobbesiana com revisões e mudanças, atravessou séculos do pensamento social, baseando-se na idéia-chave de que a concentração despótica da violência representa condição indispensável para a domesticação da violência selvagem e ilimitada, concebida como ameaça, por excelência, à ordem social (Soares. 1996). A violência por parte do Estado não é subsidiária à ordem social estabelecida entre os indivíduos, e, sim os indivíduos necessitam ser controlados de forma ostensiva para viverem em sociedade de forma harmônica, pois: Os pactos, sem a força, não passam de palavras sem substância para dar qualquer segurança a ninguém. Apesar das leis naturais (que cada um respeita quando tem vontade de respeitar e fazer isso com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria 39 força e capacidade, como proteção contra todos os outros (Hobbes. 1979, p. 103). Ainda, para Hobbes (1979), o meio encontrado para concentrar esse poder central foi o estabelecimento do Estado político, propôs, então, a necessidade de criação do Leviatã, monstro que morreria se não realizasse a sua missão: proporcionar a segurança dos súditos. É considerado um ser artificial, de categoria divina e não age de acordo com sua vontade porque sua autoridade foi consentida pelos membros de seu governo. Portanto, todos os seus atos constituem, necessariamente, os desejos da coletividade e, com conseqüência, quem o contestasse estaria se opondo a si mesmo. Dessa forma, as atribuições dos Estados foram se consolidando, de modo que, tal como na sua origem, atualmente é competência do Estado garantir a segurança pública aos cidadãos, e isso está firmado na constituição. Fica clara a preocupação e a importância despendida ao assunto, que a segurança aparece desde o preâmbulo9, sua previsão dentre as garantias e direitos individuais no caput do artigo 5º10, ainda, entre os direitos sociais previstos no artigo 6º11, e finalmente no artigo 144 em capítulo próprio, que contempla exclusivamente a segurança pública: Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos (Brasil, 1988, texto digital). Paralelo às demais garantias que competem ao Estado o conceito de segurança pública é amplo e não se limita em combater a criminalidade, tampouco restringem-se a atividade da polícia (Santos, 2008). 9 Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.(Brasil, 1988, texto digital) 10 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (Idem) 11 Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.(Ibidem) 40 Sendo a segurança pública uma atividade inerente ao Estado, este é: [...] responsável por empreender ações de repressão e oferecer estímulos ativos para que os cidadãos possam conviver, trabalhar,produzir e se divertir, protegendo-os dos riscos a que estão expostos. As instituições responsáveis por essa atividade atuam no sentido de inibir, neutralizar ou reprimir a prática de atos socialmente reprováveis, assegurando a proteção coletiva e, por extensão, dos bens e serviços. (Santos, 2008, texto digital) Miranda (2004, p. 9) reforça a afirmação de que não se pode falar em direito quando o que orienta nossas ações no dia-a-dia são sentimentos como o medo, ódio, falta de respeito e a prática da tortura. E deixa claro ainda que “A segurança é um direito básico de todo ser humano, direito este que se garantido, cria condições para realização dos demais”. E a complementa mais adiante: A aceitação de uma sociedade que assume como regra o não exercício da justiça produz, a cada momento, um número maior de discriminados, em caráter diverso, vivendo à margem das garantias, entregues ao descaso, constituindo terreno fértil para proliferação da criminalidade, fornecendo a estas justificativas para sua existência, mão de obra e vítimas a serem lesadas (Miranda, 2004, p.10). A segurança é um direito de todo cidadão que dá sustentação ao ordenamento jurídico e ao indivíduo em sua atuação na sociedade (Dalvi, 2008). O autor classifica ainda a segurança em: a) Direito a segurança propriamente dito - Consiste na proteção concedida pelo Estado para proteção do patrimônio, das instituições, do indivíduo e da ordem pública. Sua descrição legal se encontra no art. 144 da CF. b) Direito a segurança nas relações jurídicas - Consiste na garantia que o indivíduo tem de que uma relação jurídica por ele consolidada não fique a mercê do temperamento do legislador, mas que se mantenha a situação, mesmo após entrar nova lei em vigor alterando a situação já estabilizada. Visa impedir que ao inovar o mundo jurídico, o legislador atinja direito já incorporado, consolidada ou já tenha sido decidido por sentença transitada em julgado (Dalvi, 2008, p. 107). Para o presente trabalho, o que interessa é a primeira classe de segurança, a que trata da proteção especialmente da integridade física e do patrimônio das pessoas, portanto, não será aprofundada a segunda classe, da segurança jurídica. 41 Sendo assim, o autor a seguir, ao referir-se à segurança como um direito do cidadão e uma obrigação do Estado, salienta o lugar de destaque do direito ora estudado, afirmando que: Não existe uma efetividade no direito à liberdade sem que se garanta a segurança, pois aquela é corolário lógico desta. A segurança é um instrumento realizador-permissivo dos outros direitos, pois de nada adianta garantir a liberdade profissional se não assegurar que o estabelecimento comercial terá uma proteção efetiva. (Dalvi, 2008, p.107). Para efetivar os direitos ao cidadão, o Estado precisa se valer de seus órgãos, nesse caso específico, os órgãos policiais. É por meio da polícia que o Estado alcança o braço da lei, lançando mão da força, para coagir, se necessário, os cidadãos ao cumprimento das regras sociais estabelecidas. Por sua vez, a polícia utiliza a lei para orientar suas ações, bem como outros instrumentos, tais como as algemas, visto que sua atuação não é meramente burocrática, mas sim, de enfrentamento, por vezes, corpo a corpo, diante de problemas sociais, eminentemente relacionados com comportamentos criminosos. É desse instrumento, dos dispositivos legais, ou da ausência destes, que tratará o próximo capítulo. 3 INSTRUMENTOS UTILIZADOS PELA POLÍCIA E LEGISLAÇÃO ACERCA DO TEMA No capítulo anterior se estudou os direitos e princípios constitucionais, relacionados ao tema do trabalho, desenvolvendo uma análise daqueles que garantem, de uma forma geral, os direitos individuais, até se chegar ao direito à segurança pública, que possui em sua abrangência, um foco maior no interesse coletivo da sociedade, o interesse público. Como visto, o direito à segurança pública é a razão do próprio Estado, pois havendo ordem social fica garantido que os cidadãos possam usufruir dos direitos individuais. Nessa missão de manutenir a ordem social, a polícia lança mão de diversas ferramentas no desempenho do seu trabalho. Dentre estas, pode-se citar algumas: cassetetes ou bastões, que servem para defesa ou intimidamento; viaturas policiais, para deslocamentos e patrulhas; o simples uniforme padronizado para reprimir pela presença ostensiva; coletes balísticos para proteção; arma de fogo para defesa; técnicas de abordagem, negociação e persuasão; técnicas de defesa pessoal, de contenção e imobilização, e, por fim, as algemas para imobilização, nas quais se deterá o presente estudo, visto ser objeto do mesmo. No que se refere à legislação, mister salientar que os órgãos policiais e, por conseguinte seus agentes, por serem uma entidade estatal, pautam suas ações 43 ancorados nos princípios do direito administrativo, sobretudo da legalidade12. Por isso, ao contrário do que ocorre ao particular, que lhe é permitido tudo que não está defeso em lei, ao agente público, no desempenho de suas funções, ao contrário, só lhe é permitido agir nos limites da lei (Meirelles, 2006). 3.1 Histórico e Evolução das Algemas Para uma correta compreensão do tema faz-se necessário entender a origem etimológica da palavra “algema”, do artefato em si e da evolução histórica de sua utilização ao longo dos anos. Antes de se falar da utilização histórica das algemas, deve-se conhecer primeiro a etimologia da palavra e a definição conceitual. Segundo Pitombo (1984), a origem da palavra é a expressão árabe al jamaad, que significa pulseira. A sua utilização, no sentido de aprisionar, surge apenas no século XVI. Observa-se outro conceito no dicionário jurídico de Maria Helena Diniz, qual seja: “Argolas de ferro dotadas de fechadura que são utilizadas para prender, pelos pulsos, as mãos de prisioneiros cuja fuga se receia” (Diniz, 1998, p. 162). Já para os dicionários de uso geral, o conceito de algemas não tem variação, mantendo-se o mesmo entendimento. Para o dicionário Houaiss (2001), algema significa “1.Instrumento de ferro constituído basicamente por duas argolas interligadas, para prender alguém pelos pulsos ou pelos tornozelos. 2. p. ext. grilheta, grilhão. 3. fig. Obstáculo ou prisão 12 Na CF de 1988, o princípio da legalidade surge em dois momentos: No primeiro quanto se reporta aos particulares no art. 5º, e posteriormente, no art. 37, ao se referir aos agentes públicos: “Art. 5º [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; [...] Art. 37 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]” 44 oral; coerção, opressão. 4. P. cr. Pulseira; bracelete,[...]” Mantendo esse entendimento, o dicionário Aurélio, assim o diz, “1. Instrumento de ferro com que se prendem os braços pelos pulsos. 2. Cadeia, grilheta. 3. Coação, coerção, opressão” (Ferreira, 1999, texto digital) Em se tratando de conceitos, Frei João de Souza retrata algemas em seu léxico etimológico, propagando o que segue: Diz [...] ser algema instrumento de ferro com que o alcaide ou oficial de justiça prende as mãos do criminoso, ou dedos polegares (“Vestígios da língua arábica em Portugal”, Lisboa. Of. de Acad. Real das Sciências, 1789, p. 36). O ensino de Pereira e Souza é semelhante: “... certo instrumento de ferro com que se prende as mãos ou dedos polegares, aos que são conduzidos pela Justiça às cadeias” (Esboço de hum dicionário jurídico, theorético e prático”, Lisboa, T. Rollandiona, 1825, T I, verbete respectivo) (apud, Pitombo, 1984, texto digital) Para que seja possível entender a evolução histórica da utilização da algema é preciso conhecer a evolução histórica do instrumento, que no passado, era muito utilizado para prender escravos, bem como criminosos. No início eram feitas de ferro, mas hoje, em geral, são de aço. Na história da humanidade sempre houve necessidade de conter prisioneiros ou escravos por meio de algum recurso, tal como cordas ou mesmo cipós ou videiras. O apetrecho de contenção no formato metálico apareceu ao longo da história passando por vários modelos, sendo inicialmente duas grilhetas ligadas por corrente, conforme ANEXO B, ou então a “figura-de-oito”, que pode ser vista no ANEXO C. Esta peça era formada por uma dobradiça de um lado e de outro uma fechadura, parecendo dois algarismos 3 que formavam um algarismo 8 quando fechado (Herbella, 2008, p. 25). Segundo ainda a mesma autora, havia outro modelo chamado de cifrão, ou dólar que “Consistia numa barra de ferro ou aço, levemente curvada, com outra barra, na forma da letra S, presa a um eixo central”. Explica ainda que este modelo era usado colocando-se cada pulso do prisioneiro, um acima e outro abaixo da barra central, fechando-se o S, mas ambos modelos tinham o problema do desconforto (Herbella, 2008, p. 26) (ANEXO D) 45 Havia uma dificuldade no manuseio das antigas algemas metálica, sobretudo na atividade policial, dada a falta de praticidade, já que precisava ser transportada fechada, necessitando do uso de uma chave para abri-las. Isso tornava seu uso difícil e perigoso já que “as fechaduras, em si mesmas, ofereciam pouco segurança, podendo, com facilidade, ser clandestinamente abertas pelos prisioneiros” (Herbella, 2008, p. 26) De um modo geral, não havia forma de ajustar o apetrecho ao tamanho do pulso do preso, havendo necessidade de se ter mais de um tamanho de algema ou mesmo utilizá-las de maneira precária. A falta de praticidade requeria que o preso colaborasse, mantendo as mãos na posição até que estivessem chaveadas, ou então se fazia necessário um contingente capaz de conte-lo com uso de força. (Herbella, 2008) Em todos os casos havia aspectos que precisavam ser resolvidos: o bom ajuste nos pulsos do capturado e a rápida e segura aplicação das algemas, pois já no passado “um dos principais motivos de seu uso era, e é, reduzir a resistências do detido, trazendo mais segurança ao agente de detenção e mesmo ao detido” (Herbella, 2008, p. 28). Conforme nos ensina Herbella (2008), na década de 1880 começaram a surgir algemas ajustáveis nos Estados Unidos, dotados de uma catraca que operava para um lado, e um semi-arco móvel que permitia deter pessoas com quaisquer diâmetros de pulsos. Segundo a mesma autora, apenas por volta de 1920 surgiram algemas do tipo mais moderno, formadas por semi-arco fixo e duplo, construídos de modo a permitir a passagem da parte móvel provida de ranhuras e que esta faça um giro completo e infinito em um sentido, mas travando, ao tentar-se girar no sentido oposto. (ANEXO E) E completa: A grande Vantagem é que tais algemas podem ser transportadas, convenientemente, fechadas, de modo compacto, e rapidamente aplicadas aos pulsos do detido. Para isso, basta encostar a parte móvel ao pulso e empurrá-la. Ela então passará pela catraca, girando em torno da dobradiça oposta ao mecanismo e, automaticamente, entrará novamente na catraca. 46 Basta então, ao policial, manobrá-la para obter o ajuste correto. (Herbella, 2008, p. 29) Atualmente as algemas são dotadas ainda de uma trava que evita que o prisioneiro aperte-a de modo a causar lesões, muitas vezes propositais para depois responsabilizar o agente que o prendeu. Há ainda, algemas recobertas por camadas de polietileno, que evita qualquer lesão na pessoa que está sendo contida, mas que ainda não são fabricadas no Brasil. Ainda existem as algemas de uso emergencial, que são fitas plásticas funcionando como lacres e sem possibilidade de reutilização, pois necessitam de um alicate para serem partidas. (ANEXO F) Dessa forma, verifica-se que o artefato de contenção evoluiu ao longo de sua existência, apesar de ainda existirem vários modelos, mais antigos, convivendo com os mais modernos. Essa evolução caminhou na direção de proporcionar maior simplicidade e praticidade para quem as utiliza como ferramenta de trabalho, ao mesmo tempo em que se tornaram mais confortáveis, portanto menos penosas, para aqueles que precisam ser contidos, resultando em menor possibilidade de ocorrer algum dano físico. 3.2 Previsão Legal do emprego de algemas e a falta de uma regra específica Como se verá adiante, o emprego de algemas está previsto de forma muitas vezes indireta em diversos diplomas legais, sem, no entanto, haver uma regra definitiva sobre o seu uso. A ausência de uma uniformização manifestou nos últimos anos uma crescente (e surpreendente) preocupação da classe política, motivando que fossem propostos vários projetos de leis, na Câmara Federal e no Senado Federal, com intuito de disciplinar o uso do apetrecho. Por fim, ocorreu também uma (igualmente surpreendente) inquietação por 47 parte do Poder Judiciário, onde na mais alta corte brasileira, guardiã da Constituição, foi editada uma Súmula Vinculante13 para regrar utilização das algemas. 3.2.1 Código de Processo Penal O Decreto-Lei 3.689 de 3 de outubro de 1941, que instituiu o Código de Processo Penal, não se preocupou em disciplinar, especificamente, o uso de algemas. Ele tão somente previu a utilização do uso da força, o que tornou implícito a utilização de tal instrumento. O artigo 284 regula: “Não será permitido o emprego de força, salvo o indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga de preso”. E o artigo 292 expressa a possibilidade do emprego de força por terceiros, na ocasião de prisão em flagrante ou se determinada por autoridade, quando em auxilio dos executores, para defender-se ou vencer a resistência. A parte final desse artigo prevê também a necessidade de se lavrar auto subscrito por, no mínimo, duas testemunhas (Brasil, 1941, texto digital) Por óbvio, a força física deverá ser adequada à necessidade de efetivar a prisão, não podendo em hipótese alguma, servir de meio a satisfazer sentimentos de raiva ou de vingança do executor. Nos casos de resistência, quer do próprio indivíduo, quer de terceiros, o emprego da força está autorizado, para anulá-la. A resistência esta tipificada no artigo 329 do Código Penal Brasileiro: “Opôr-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo, ou a quem lhe esteja prestando auxilio”, sendo seu § 1º agravante se o ato não se executa, em razão de resistência, fixando, com clareza: “§ 2º. As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência” (Brasil, 1940, texto digital). 13 CF Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (grifo nosso) 48 Recente alteração deste código introduzida pela Lei 11.689, publicada no Diário Oficial da União em 10 de junho de 2008, determinou a redação dos artigos 474 e 478, que disciplinam o uso de algemas no réu durante as seções do júri, in vebis: Art. 474. A seguir será o acusado interrogado, se estiver presente, na forma estabelecida no Capítulo III do Título VII do Livro I deste Código, com as alterações introduzidas nesta Seção. § 1o O Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor, nessa ordem, poderão formular, diretamente, perguntas ao acusado. . § 2o Os jurados formularão perguntas por intermédio do juiz presidente. § 3o Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes. [...] Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; (Brasil,Lei, 2008, texto digital, grifo nosso) Como se vê, estas renovações, no entanto, possuem aplicação limitada às audiências internas dos fóruns e tribunais, não abrangendo a atividade policial que ocorre nas ruas. Por isso, não provoca nenhuma modificação ao tema estudado neste trabalho, cujo foco principal é, como já foi visto, o uso de algemas pela polícia em cumprimentos de mandados e prisões em flagrante. 3.2.2 Código de Processo Penal Militar Durante a ditadura militar foi instituído no Brasil, em 21 de outubro de 1969 o Código de Processo Penal Militar, Decreto-Lei 1.002, o qual, ao tratar do emprego e do uso de algemas, prescreve o seguinte: Emprego de força Art. 234. O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. 49 Emprego de algemas § 1º O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242. (Brasil, 1969, texto digital) Neste contexto, ao tratar da prisão especial, o art. 242 do CPPM, veda aos militares a utilização de algemas se os presos forem: a) ministros de Estado; b) governadores ou interventores de Estados ou Territórios; prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Policia; c) membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados; d) cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em Lei; e) magistrados; f) oficiais das Forças Armadas, das Polícias e do Corpo de Bombeiros, Militares, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados; g) oficiais da Marinha Mercante Nacional; h) diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional; i) ministros do Tribunal de Contas; j) ministros de confissão religiosa. Com o advento da Constituição Federal de 1988, o artigo 242 do CPPM tornou-se alvo de críticas por ferir um dos preceitos fundamentais de nossa Carta Magna, o princípio da isonomia: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (Brasil, 1988, texto digital). 50 O art. 5º da CF expressa de forma imutável a pretensão do tratamento isonômico de todos os cidadãos brasileiros ou estrangeiros, revogando qualquer previsão contrária da legislação anterior ainda vigente Moraes, aborda o assunto: A Constituição Federal de 1988 adotou o principio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o principio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porem, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal (Moraes, 2007, p. 31). Portanto, embora exista a rigidez conhecida das corporações militares quanto à disciplina, hierarquia e obediência à legislação, o privilégio dispensado aos ocupantes de determinados cargos e funções, não pode ser mais tolerado nos moldes previstos no artigo 234 combinado com artigo 242, nem mesmo exigidos aos integrantes dessas corporações diante dos princípios solidificados pela atual CF. Por outro lado, Herbella (2008, p. 58) afirma que “O Código de Processo Penal Militar só deve ser aplicado para os procedimentos em caso de crimes militares, previstos no Código Penal Militar”, e completa: [...] esse privilégio de não-algemamento para alguns elencados na lei castrense só seria possível quando essas pessoas contempladas cometessem algum crime militar. Tem-se a possibilidade, ainda que pequena, de um civil praticar um crime essencialmente militar que ocorrerá somente contra as Forças Armadas e, neste caso, tratando-se de uma das pessoas elencadas n