CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DE CIÊNCIAS EXATAS JOGO INTERATIVO: ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO E DO CONVÍVIO COM O OUTRO Taiana Vanessa Rossi Lajeado, outubro de 2012 Taiana Vanessa Rossi JOGO INTERATIVO: ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO E DO CONVÍVIO COM O OUTRO Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Ensino de Ciências Exatas, do Centro Universitário Univates, como parte da exigência para obtenção do grau de Mestre em Ensino de Ciências Exatas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marlise Heemann Grassi Lajeado, outubro de 2012 FOLHA DE APROVAÇÃO JOGO INTERATIVO: ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO E DO CONVÍVIO COM O OUTRO A Banca examinadora abaixo aprova a Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação strictu sensu em Ensino de Ciências Exatas, do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para obtenção do grau de Mestre em Ensino de Ciências Exatas. Prof.ª Drª Marlise Heemann Grassi - Orientadora Centro Universitário UNIVATES Prof.ª Drª Eniz Conceição Oliveira Centro Universitário UNIVATES Prof. Dr. Valdir José Morigi Centro Universitário UNIVATES e UFRGS Prof. Dr. Juan José Mouriño Mosquera Pontifícia Universidade Católica - PUC “Educar é exercitar a esperança”. Taiana Vanessa Rossi “Trabalhar aqui é um desafio todos os dias. Tem que ter muita paciência e sempre pensar na parte social dos alunos. Pensar que as atitudes deles aqui são reflexo do que acontece com eles lá fora. É muito difícil. Cansei de dar caderno pra aluno, e no outro dia voltar só a capa, pois o pai usou as folhas pra enrolar baseado. O que se faz numa situação dessas?” E. F., professora. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho primeiramente à Deus, que me permite acordar com renovada fé na vida a cada amanhecer e que possibilitou que eu encontrasse forças e fosse perseverante o bastante para que este trabalho tomasse forma. Dedico-o também em especial à minha mãe, Clevis Corso Rossi, que jamais deixou de acreditar no meu sonho, fazendo dele o seu sonho também e entendendo todas as vezes que não pude estar com ela por estar em aula ou dedicada aos estudos. Por fim, dedico este trabalho aos meus colegas de profissão, professores também, que trabalham nestes contextos de atendimento a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, e conseguem enxergar cada um destes alunos com um olhar de amorosidade e de respeito. A estes guerreiros, que ainda acreditam na educação e na escola como uma segunda chance na vida destes alunos, meu carinho e reconhecimento. AGRADECIMENTOS Escrever os agradecimentos ao final da elaboração deste trabalho dissertativo é reconhecer que não caminhei sozinha pela estrada da busca do conhecimento. Muito foram os que contribuíram, de uma forma ou de outra, para que este trabalho pudesse ser concluído. Primeiramente, minha eterna gratidão à minha orientadora, Doutora Marlise Heemann Grassi, cujo acolhimento, desde o primeiro encontro, permitiu que eu decidisse por cursar o mestrado e acreditasse em meu potencial como mestranda e pesquisadora. A cada encontro de orientação, um novo aprendizado era construído e consolidado, novos horizontes se abriam e o trabalho tomava forma. Sua exigência, experiência, sabedoria e ponderação não superam o afeto e o carinho com que se dirigia a mim, a cada obstáculo pessoal que enfrentava – e foram muitos - durante o tempo em que cursei o mestrado, me dando forças para continuar. Tive o privilégio de ter não apenas uma orientadora, mas um exemplo de profissional e de ser humano, destes que fazem diferença na trajetória de qualquer aluno. Agradeço também à professora Doutora Ieda Maria Giongo, pelas palavras de incentivo e especialmente pelo tempo dedicado ao meu trabalho, opinando, apontando caminhos e propondo escolhas teóricas. Estendo o agradecimento à Doutora Maria Cecília Togni, pelas indicações de literatura bastante oportunas. Aos professores, que em cada aula possibilitavam que o conhecimento me transformasse em uma profissional melhor, mais crítica e com uma prática mais coerente: Odorico Konrad, Ieda Maria Giongo, Maria Madalena Dullius, Silvana Neumann Martins, Marlise Heemann Grassi, Claus Haetinger, Andréia Aparecida Guimarães Strohschoen, Eniz Conceição Oliveira, Maria Alvina Pereria Mariante e Rogério José Schuck. Aos funcionários do Centro Universitário Univates, especialmente à secretária Aline Diesel, sempre disposta a auxiliar, atendendo com enorme cordialidade e simpatia. Meu reconhecimento e agradecimento à psicóloga e amiga Maria Carolina Nogueira Cobra Vitali, que mesmo estando no estado de São Paulo, distante geograficamente, empenhou-se em conversas e debates sobre a importância deste trabalho para a formação de seres humanos mais conscientes de seu papel social, trazendo muitas vezes a visão da psicologia para minhas ideias de educação. Gratidão especial aos diretores, professores, funcionários, pais e alunos da ABEN, que abriram as portas da instituição para que esta pesquisa pudesse ser realizada, acolhendo com carinho a proposta desde o primeiro momento. Aos gestores da Secretaria Municipal de Educação e Cultura e da Escola Municipal Guerino Somavilla, bem como aos meus colegas de trabalho, que buscaram sempre a melhor forma de conduzir as aulas durante minhas ausências na escola, necessárias para que eu cursasse o mestrado. Aos meus estimados tios, Alberto Rossi e Tatiana Pereira, pelas incontáveis caronas, hospedagens, jantares e principalmente, pelas palavras de apoio, pela preocupação com minha formação e com meu bem estar. Por fim, gratidão pela compreensão e carinho da minha amiga Andréia Minozzo, sempre me apoiando e mostrando que era preciso manter o foco nos meus propósitos acadêmicos, mesmo quando todo o resto estava difícil. Também agradeço ao Sérgio Soares Junkes, por motivar-me no início e manter o apoio ao final. RESUMO As realidades de crianças em situação de vulnerabilidade social exigem do professor pesquisador uma postura de intervenção pedagógica intencional pautada em um objetivo de transformação. Nesse sentido, este estudo pretendeu investigar como as crianças em situação de vulnerabilidade social constroem relações entre o ensino de matemática e a aquisição de habilidades sociais exigidas pelo exercício pleno da cidadania. A pesquisa adotou a metodologia qualitativa com aproximações ao estudo de caso e desenvolveu-se através de uma proposta de intervenção pedagógica, que consistiu na realização de oficinas de jogos matemáticos, com um grupo de 9 alunos, com idades entre 8 e 11 anos, todos frequentadores da Associação Beneficente e Educacional Nova Prata, localizada no bairro periférico São João Bosco, município de Nova Prata, Rio Grande do Sul. A coleta de dados se deu através do registro sistemático das observações, das falas e das reações dos alunos, e esse material foi analisado com embasamento teórico na teoria sociocultural ou sócio-histórica de Lev S. Vygotsky, que lança luzes para a compreensão das linguagens e das marcas culturais que (des)constituem os sujeitos. A metodologia de análise seguiu as orientações da análise textual discursiva e considerou os enunciados explicitados e implícitos no discurso dos participantes. Os resultados apontaram que as diferenças culturais podem ser superadas por uma prática pedagógica apoiada em princípios de respeito ao outro, de convívio com diferenças e escolhas de estratégias de ensino pautadas na ludicidade, em regras decididas coletivamente, assim como conteúdos que o jogo interativo torna significativos são caminhos para o ensino de Ciências Exatas, especialmente de matemática. Palavras-chave: Ensino de Matemática. Construção conceitual. Inserção. ABSTRACT The realities of children in situations of social vulnerability require the teacher researcher stance of intentional pedagogical intervention guided by a goal of transformation. In this sense, this study sought to investigate how children in vulnerable situations build social relationships between mathematics education and the acquisition of social skills required for the full exercise of citizenship. The research adopted a qualitative methodology with approaches to case study and developed through a proposal of pedagogical intervention, which consisted of workshops mathematical games with a group of 9 students, aged between 8 and 11 years, all goers ( ABEN ) Educational and Charitable Association Ashland, located in the suburb St. John Bosco, Nova Prata, Rio Grande do Sul data collection took place through the systematic recording of observations, the speech and the reactions of the students, and this material was analyzed with theoretical theory sociocultural or sociohistorical of Lev S. Vygotsky, that sheds light on our understanding of languages and cultural markers that (dis) constitute individuals. The analysis methodology followed the guidelines of the discursive and textual analysis considered the statements explicit and implicit in the discourse of the participants. The results indicated that cultural differences can be overcome by a pedagogical practice underpinned by principles of respect for others, of living with differences and choices of teaching strategies guided by the playfulness in rules decided collectively, as well as interactive content that makes the game meaningful are paths to the teaching of Exact Sciences, especially math. Keywords: Teaching of Mathematics. Conceptual construction. Insertion social. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................... 12 1.1 Memórias de infância sobre o saber........................................................... 12 1.2 Trajetória da educadora................................................................................ 19 2 REFERENCIAL TEÓRICO: APROFUNDANDO AS LEITURAS 2.1 O ensino da matemática e o desenvolvimento da identidade sócio cultural.............................................................................................. 26 2.2 A relação entre o ensino da matemática e o compromisso sócio político cultural............................................................................ 36 2.3 Utilização de jogos como estratégia de ensino........................ 41 2.4 Papel do professor e do aluno no trabalho com jogos............................. 46 2.5 Utilização de jogos como espaço de convivência e construção de cidadania......................................................................... 48 2.6 Um olhar construtivista sobre o jogar........................................ 53 2.7 As perspectivas socioculturais da aprendizagem..................................... 54 3 CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO..................................................................... 61 4 METODOLOGIA................................................................................................ 65 5 DESCRIÇÃO DA PRÁTICA INVESTIGATIVA................................................... 67 5.1 Coleta de autorizações................................................................................. 68 5.2 Intervenção pedagógica intencional.......................................................... 72 5.3 Descrição da primeira intervenção pedagógica intencional.................... 73 5.4 Descrição da segunda intervenção pedagógica intencional................... 81 5.4.1 Grupo focal................................................................................................. 81 5.4.2 Jogo de boliche.......................................................................................... 82 5.5 Descrição da terceira intervenção pedagógica intencional.................... 88 5.6 Descrição da quarta intervenção pedagógica intencional..................... 97 5.7 Descrição da quinta intervenção pedagógica intencional...................... 105 5.8 Descrição da sexta intervenção pedagógica intencional........................ 111 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 119 REFERÊNCIAS..................................................................................................... 127 APÊNDICES......................................................................................................... 132 APÊNDICE A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para pais ou responsáveis....................................................................................................... 132 APÊNDICE B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para entrevistas com docentes e direção................................................................. 135 APÊNDICE C - Questionário professores da ABEN e escola regular............. 137 APÊNDICE D - Questionário diretoria da ABEN............................................... 138 APÊNDICE E - Transcrição da entrevista com professora da ABEN............. 138 APÊNDICE F - Transcrição entrevista com Diretora da ABEN........................ 141 APÊNDICE G - Transcrição da entrevista com professora da escola regular.................................................................................................................. 145 12 1 INTRODUÇÃO Ao iniciar a escrita deste trabalho, fazem-se necessários alguns esclarecimentos a respeito do modo como se dará a construção deste texto de introdução. Primeiramente, saliento que as informações e relatos aqui expressos são frutos de opiniões, reflexões, descrições e análises de experiências de cunho pessoal e que não estão necessariamente embasados em um referencial teórico, mas que estão aqui postos para que o leitor possa tomar conhecimento da trajetória pessoal e das inquietações humanas e profissionais que culminaram com a escolha do presente tema para ser o foco desta pesquisa. Dito isto, também creio ser de extrema importância ressaltar que esta parte da dissertação será escrita na primeira pessoa e por tratar-se de um relato pessoal, decidi por colocar-me inteiramente no texto. 1.1 Memórias de infância sobre o saber Ao iniciar a reflexão necessária para a construção deste memorial, percebi que foram inúmeros os discursos que me subjetivaram e que ajudaram a construir a pessoa e a educadora que sou hoje. Definir em palavras quais as práticas discursivas que me constituíram não é tarefa simples. Precisei de tempo para que este texto tomasse forma dentro de mim, para que a reflexão encontrasse a calmaria das boas lembranças analisadas sob a 13 luz do conhecimento que agora tenho. Outras vezes, o encontro foi com o agito de memórias nem tão positivas. Transmutação. Evolução. Transcendência. São essas as palavras que me definem, tanto pessoal quanto profissionalmente. Não quero ser estática, rígida, acabada. Estou sempre em processo de evolução, aberta a novas aprendizagens, com plena consciência da importância desse processo de permanente construção. Acredito que esta postura impulsiona para a melhoria, e para a desacomodação e para aceitação de novos desafios. Há em mim uma inquietude curiosa pelo conhecimento, uma indignação permanente com a injustiça e uma responsabilidade social que me pesa sobre os ombros toda vez que me assumo como educadora – e devo dizer que isso acontece a cada amanhecer, pois não estou professora, como condição transitória por força das circunstâncias, mas o sou, como algo dentre as demais facetas que me constituem como ser social e que me definem. Isso posto, volto-me ao arquivo mais particular que tenho para encontrar quais foram os fatores que contribuíram para que me tornasse a pessoa que hoje sou e que escreve suas memórias. Talvez consiga um resultado mais profícuo “pensando com os dedos” (uma definição minha do ato de escrever como catarse mental). Abri a cortina para deixar que o sol ajudasse a “clarear” meu pensamento e coloquei uma música italiana para tocar, na esperança de que isso ajudasse a aguçar os sentidos e produzir este texto. Logo, a música me reporta às minhas origens de descendentes de imigrantes italianos na serra gaúcha. Percebo que as minhas mais remotas lembranças são ligadas aos livros. Eu morava em uma pequena cidade do interior, que na época só contava com uma livraria: a do meu avô. Era um estreito e comprido corredor em um prédio antigo no centro da cidade. Lembro do cheiro dos livros. Do colorido dos papéis. Da maravilha que era riscar com todas aquelas canetas. Vejo-me tropeçando nos livros quando chegavam e eram colocados no chão antes de ir para a prateleira alta. Sinto a alegria do meu coração em sentar com um sorvete na pilha de jornais que ficava na porta e ver as crianças que iam para escola ali perto. Eu também queria ir, mas era muito pequena. Aquelas crianças maiores iam para escola felizes, e algumas delas (as mais ricas) passavam na livraria para comprar figurinhas e gibis. Eu via a cara de felicidade delas quando pegavam os pacotinhos de figurinhas com 14 um desenho e alguma coisa riscada. Descobri depois que aquilo era escrita, e que as crianças grandes olhavam aquilo e significava alguma coisa muito boa para elas. Comecei a ficar curiosa sobre aquilo tudo e decidi que eu também ia aprender a traçar e usar aqueles riscos. Eu queria, de alguma forma, ter aquele poder de olhar a figurinha e sentir como que quem tivesse produzido aquilo estivesse me contando um segredo. Vi que saber podia me deixar feliz. Mais do que isso, aquelas crianças maiores sabiam quanto dinheiro dar para pagar as figurinhas. E meu avô devolvia moedas ou balas quando elas usavam uma nota maior para pagar a conta. Na verdade, descobri apenas mais tarde que as notas variavam de valor, até então acreditava que a cor das notas era o que valia, e misteriosamente, quando pagavam as figurinhas com notas de uma cor específica, recebiam mais moedas de volta. Eu gostava de moedas, mas descobri que elas não compravam muita coisa quando ia até o mercadinho da esquina tentar comprar todas as guloseimas imagináveis. Eu queria muito poder entender como funcionava aquele maravilhoso mundo de moedas e notas que compravam figurinhas. Queria entender qual nota valia quanto e o que eram aqueles riscos que chamavam de preço na frente dos pacotes e nas capas dos álbuns usados para colar as figurinhas. Saber aquilo me tornaria uma “criança grande”. Talvez esse seja um dos discursos que mais se tornaram latentes no meu inconsciente. O discurso implícito no que não é dito, mas que de acordo com Foucault tem a mesma força, ou talvez mais, do que aquele que é proferido. Passei a amar o colorido dos gibis e dos pacotes das figurinhas, mas minha imaginação voava mesmo era tentando decifrar o que estava escrito. Ao mesmo tempo, descobri que números serviam para muita coisa (especialmente para saber qual a nota devia ser dada para comprar figurinhas). Minha mãe então, muito perspicaz, talvez tenha percebido minha inquietação e mais que uma vez sentou ao meu lado para me ajudar a decifrar o que ela me explicou tratar-se de letras e números. Um novo mundo de possibilidades se abriu naquele dia. Meu avô, um leitor voraz, juntou-se à nora (minha mãe) na tarefa de ensinar-me. Quantas vezes atormentei os dois... quantas vezes me senti injustiçada por não aprender tudo de uma vez. Parecia-me que as crianças que eram mais ricas e maiores – aquelas que passavam diariamente para comprar na livraria – já haviam 15 nascido sabendo. Eu também queria que tudo acontecesse em um passe de mágica. Não queria mais nem dormir para aprender logo. Parecia-me que todos sabiam de algo que só eu não sabia. Queria o poder de decifrar aquela infinidade de letras para olhar de um jeito cúmplice para as outras crianças, também sabendo o “segredo” que os livros continham. Imaginava que existia um mundo maravilhoso, mágico, naquelas páginas. Mas para poder me apropriar dessa magia eu precisava me esforçar muito, prestar atenção, lembrar de letras, de sons, juntar tudo, formar palavras, decifrar frases. Estava disposta a passar as tardes com meu avô na livraria. Nada me tiraria de lá até eu saber ler e também entender o que era o “preço” das coisas. O esforço e o empenho tornaram-se prazer. Talvez aí esteja uma das raízes de hoje eu ter sede de saber. E foi assim, sentada em um pilha de jornais com um gibi na mão que aos quatro anos recém completos, aprendi a ler. Lembro desse dia como um dos mais felizes da minha vida. Eu, miúda, magrela e pequena para minha idade, me senti agigantada com um gibi da Mônica1 nas mãos. Finalmente não era menor que aquelas crianças mais velhas. Na minha cabeça, estávamos em pé de igualdade. Com o que eu havia aprendido, parecia-me que eu já não era mais pobre, nem mais nova, nem mais ignorante que elas. Eu era igual. Percebi aí que o acesso ao conhecimento é uma das formas de se promover a igualdade entre os homens. Jamais estudei na escola particular do centro da cidade para onde aquelas crianças iam. Jamais tive dinheiro para comprar figurinhas todos os dias. Caso a livraria não fosse do meu avô, jamais teria lido todos os livros que li, nem teria todo material necessário para frenquentar a escola pública do bairro onde morávamos. Mas nada disso importava. Eu possuía o mesmo poder de desvendar os livros que aquelas crianças. Mais tarde, comecei a perceber que não possuía a mesma quantidade de dinheiro que aquelas crianças, mas passei a conhecer as notas e moedas e a saber 1 Mônica é uma personagem fictícia de gibi infantil criada por Maurício de Souza em 1963. 16 ler preços de pacotes de figurinhas, muitas vezes melhor que elas. E mais uma vez tive a impressão de que o conhecimento trazia a igualdade. Minha curiosidade de criança hiperativa que nasceu em uma época em que hiperatividade era tratada com chineladas e não com medicação logo me levou a perceber que havia muita coisa para ser lida. Descobri as revistas, os jornais, os livros imensos. Lembro o dia em que eu estava com um exemplar de O Cortiço2 nas mãos na sala de casa. Meu pai enfureceu-se, brigou com minha mãe e xingou o meu avô por ter me ensinado demais e arrancou o livro das minhas mãos. Minha mãe, pacientemente, explicou-me que aquilo não era pra minha idade, que eu tinha que ler gibis, pois aí eu entenderia o que estava escrito e que quando eu tivesse idade, ela mesma me daria o livro para ler. Mais uma vez, me senti injustiçada. Eu pensava: como assim? Agora que eu sei ler tem coisas que eu não posso ler? Não me conformava com aquela situação. Tanto que procurei o livro e comecei a ler escondido. É óbvio que não entendi nada, abandonei a leitura depois da primeira página, mas continuava indignada com a proibição. Quando completei cinco anos, finalmente fui para escola. Fiz um teste de aptidão que comprovou que eu tinha condições cognitivas – apesar de não ter idade – para frequentar as aulas. Achava que a escola era uma espécie de “templo do saber” e que tudo ao que eu não tivera acesso até então, passaria a ter com o ingresso ao sistema formal de ensino. Foi aí uma das minhas maiores frustrações. Eu havia sonhado muito com o dia em que finalmente ira para escola. Como eu era muito levada, os conselhos que ouvia diziam sempre que eu tinha que obedecer, não “aprontar”, pois na escola eu aprenderia muita coisa. Essas palavras, vindas das mais diferentes pessoas, junto com a alegria com que as crianças se dirigiam a escola, me fizeram imaginar que eu estaria dando mais um passo rumo ao conhecimento que eu tanto queria. 2 O Cortiço é um romance de autoria do escritor brasileiro Aluísio Azevedo publicado em 1890. Os personagens principais são os moradores de um cortiço no Rio de Janeiro, precursor das favelas, onde moram os excluídos, os humildes, todos aqueles que não se misturavam com a burguesia, e todos eles possuindo os seus problemas e vícios, decorrentes do meio em que vivem. http://pt.wikipedia.org/wiki/Romance http://pt.wikipedia.org/wiki/Escritor http://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil http://pt.wikipedia.org/wiki/Aluísio_Azevedo http://pt.wikipedia.org/wiki/1890 http://pt.wikipedia.org/wiki/Cortiço http://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_de_Janeiro http://pt.wikipedia.org/wiki/Favela http://pt.wikipedia.org/wiki/Burguesia 17 Não foi exatamente isso que aconteceu. Cheguei à sala de aula disposta a aprender tudo o que ainda não tinha aprendido com a minha mãe e meu avô. Os dias foram passando e a professora mal havia iniciado a ensinar o traçado da letra A. minha frustração foi crescendo dia após dia. Comecei a me negar a ir para escola, dava tudo para ir para a livraria. Queria qualquer coisa, menos ficar trancafiada naquela sala, proibida de fazer qualquer coisa. Via que tinha colegas que não conseguiam aprender, mas a aula seguia sempre no mesmo ritmo. Eu, que já estava alfabetizada, e dois ou três outros alunos que tinham dificuldades, ficávamos no fundo da sala, sem nada para fazer, enquanto a aula acontecia com aqueles que andavam exatamente no ritmo determinado pela professora. Nem mais, nem menos. Percebo agora que a minha preocupação com a inclusão, com os portadores de necessidades educativas especiais – dentre estas necessidades que merecem atenção, altas habilidades – talvez tenha raízes aí. Uma cena que ainda é muito viva na minha memória foi o dia em que meus sentidos se aguçaram ao ouvir a professora dizer: “vamos ler”. Fiquei em estado de alerta, na expectativa de poder fazer a leitura em voz alta. Ela perguntou: “quem lê a palavra no quadro?” Eu levantei a mão e gritei: “Eu!” Finalmente eu teria algo para fazer. Mas a resposta da minha professora impediu que a minha alegria perdurasse: “Tu não, sua metida. Tu já sabe ler, deixa a oportunidade para quem ainda não aprendeu.” Daquele dia em diante, minha passagem por essa série foi deletada da minha mente. Tanto que não lembro mais nem do rosto nem do nome da professora, por mais que tente fazer um esforço. Decidi, do alto dos meus cinco anos, que se um dia estivesse no lugar daquela professora, faria diferente. A oportunidade surgiu quando assumi minha turminha de alfabetização com uma menina que já sabia ler e escrever. Minha primeira providência foi tentar fazer com que ela fosse promovida, mas os pais não aceitaram, por ela ser muito nova. Comecei então a me ver naquela menina. Minha primeira atitude foi nomeá-la, oficial e solenemente, minha ajudante. Passei-lhe a tarefa de me auxiliar no monitoramento do trabalho dos demais alunos. Cada atividade que eu propunha, mesmo que se tratasse de um desenho, fazia por escrito um enunciado que a menina lia em voz alta para turma. Ela me auxiliava em todas as tarefas, e demonstrou-se encantada 18 com as novas possibilidades que a escola oferecia. De alguma forma, fiz um carinho na menina que fui um dia através da minha aluna. Transcendi, evoluí, transformei... Percebo que quanto mais eu sigo o fio condutor das minhas reminiscências, mais encontro respostas sobre as práticas discursivas que me constituíram, como ser humano e como profissional. Sei que há ainda muito a ser desvendado, e que a alma humana é de uma complexidade ímpar e que talvez jamais consigamos entender todos os fatores que nos subjetivaram, nos constituíram. Mas permito-me mais um relato de uma lembrança ainda ligada a escola, que permanece vívida em minha memória e que hoje eu sei ser a causa da minha crença de que devemos ter o máximo de cuidado com o que dizemos às crianças e a forma como dizemos isso, pois elas podem vir a ser marcas indeléveis na constituição que a criança faz da visão que ela tem sobre ela mesma. Em uma outra série, eu tinha uma professora que estava às vésperas de se aposentar. Estávamos todos empenhados em uma produção artística, quando uma colega, com duas longas tranças, pulou sobre as classes pela enésima vez para tirar um lápis da mão de outro colega. A menina já vinha tumultuando a aula há tempo, e aquilo foi a gota d’água para a professora perder a razão, agarrá-la pelas tranças, sacudi-la com toda força e obrigá-la a sentar-se de volta do meu lado. Eu estava estarrecida com os acontecimentos, e permaneci imóvel. A colega agredida saiu da sala aos gritos e foi direto para casa, chorando. A professora então, talvez dando-se conta do desatino que cometera, foi até a janela e percebi seu pesar quando lágrimas caíram silenciosamente de seus olhos. Cheguei perto dela, e com minha voz infantil, perguntei alguma coisa sobre o trabalho, na esperança de distraí-la daquela tristeza. Ela não me deu resposta, então perguntei se ela queria alguma coisa. Ela olhou bem nos meus olhos e disse, enfurecida: “quero sim, que tu suma da minha frente, não quero mais te ver! Some, sua chata!” E foi o que eu fiz. Peguei meu material e fui para casa, que era pertinho da escola. Quando eu cheguei em casa, minha mãe estranhou o horário e perguntou o que tinha acontecido. Eu respondi: “a professora me mandou para casa.” Como estava muito magoada, não quis contar para minha mãe o acontecimento, de medo dela descobrir que eu era chata e me mandar embora também. No dia seguinte, na hora de ir para escola, eu fiquei olhando a rua e vendo as crianças indo em direção a 19 escola, com a certeza de que eu nunca mais poderia entrar lá. Minha mãe tentou em vão fazer com que eu fosse para aula. Tive que contar, com o coração apertado, que eu não podia mais ir para escola, pois a professora não me queria lá. Foi preciso que minha mãe fosse até a escola para saber o que havia acontecido e depois levasse um longo tempo me convencendo de que eu podia sim e também devia voltar para aula. Seu último “argumento” foi o que realmente me levou de volta à escola: um chinelo Havaiana preto. Mesmo assim, demorei muito tempo para retornar à sala de aula, e mais tempo ainda para dirigir-me solicitamente à outro adulto, com medo que me tachassem de chata novamente. Hoje, entendo a que descontrole o desgaste emocional pode levar uma professora às voltas com turmas cada vez mais numerosas e indisciplinadas. Mas minha experiência me mostrou que por maior que seja esse desgaste emocional, há que se ter muito cuidado com o que é dito para uma criança pequena. E é esse cuidado que busco a cada dia, quando converso com meus pequenos. E foi esta consciência que fez com que eu me preocupasse com as repercussões que as atitudes dos professores têm sobre seus educandos, e qual o real papel do professor. 1.2 Trajetória da educadora Minha fome de saber foi crescendo à medida que eu ia avançando pelo Ensino Fundamental. Fui tomando conhecimento da desigualdade social e percebendo que todas as crianças não tinham as mesmas oportunidades, nem a mesma estrutura familiar e que não aprendiam da mesma forma. Então, quando concluí o Ensino Fundamental - aos 13 anos - iniciei o curso do Magistério. Novamente as questões ligadas à realidade das crianças em condições de vulnerabilidade social chamaram minha atenção no estágio e decidi por cursar a graduação em Serviço Social, pois percebia a importância do contexto sociocultural na formação das crianças e acreditava que como assistente social poderia atuar positivamente nestes contextos. Durante o curso, estagiei em uma comunidade terapêutica para tratamento de dependência de álcool e drogas, na cidade de Caxias do Sul, na qual passei a atuar 20 como voluntária durante muitos anos e que permaneço vinculada até hoje, sendo que trabalho esporadicamente também com os menores internos no Centro Terapêutico Araçoiaba, na cidade de Araçoiaba da Serra, estado de São Paulo. Ao deparar-me com esta realidade de dependência química entre adolescentes e até mesmo crianças, ouvi inúmeros relatos de adolescentes apontando que o início de seu envolvimento com entorpecentes havia acontecido muito cedo, entre os oito e dez anos, e que na grande maioria destes casos, a escola teve papel fundamental para observar estes alunos e alertar as famílias sobre a dependência dos educandos, e em alguns casos inclusive fazendo encaminhamento para atendimento profissional. Estes adolescentes relataram também que um dos principais fatores que contribuíram para o uso foi o grupo de colegas da escola que eram usuários e a omissão de famílias desestruturadas, incapazes de estabelecer regras de conduta ou valores e que impelia as crianças para a rua. Estes internos pareciam ter um histórico comum de reprovações sucessivas na escola, indisciplina, evasão escolar, dificuldade de relacionamento com colegas e professores, agressividade, baixa estima e intolerância a regras. Estas informações fizeram com que eu passasse a acreditar que a escola tinha ainda outra relevância social: a de ser um espaço de prevenção e melhoria de qualidade de vida. Continuava cursando Serviço Social, porém, com o passar do tempo, à medida que ia ampliando e aprofundando meus estudos, passei a acreditar que a escola pode ser um diferencial significativo nos rumos de vida de crianças e de adolescentes. Em função disto, minha crença pessoal na importância do papel do professor no desenvolvimento bio-psico- emocional dos alunos e da escola como uma espécie de “segunda chance” para um grupo desassistido pelas demais estruturas foi consolidada e decidi por trancar a matrícula no curso de Serviço Social e cursar uma licenciatura com habilitação para as quatro primeiras séries do Ensino Fundamental. Intrigada com a questão do papel do professor, iniciei a pesquisa do meu Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado “O Papel do Professor”, tendo como foco esta relação entre educadores e educandos e a importância do papel do professor no desenvolvimento dos alunos. Enquanto o trabalho tomava forma, lecionava em duas escolas de realidades bastante distintas: uma situada em uma comunidade rural no interior do município, e outra em um bairro de periferia, 21 bastante carente e conhecido por problemas sociais graves, como pontos de tráfico de drogas, prostituição e desestrutura familiar. Tanto a elaboração do trabalho acadêmico quanto as observações que fazia neste segundo contexto, mostraram que o professor, e toda estrutura e forma de funcionamento da escola, exercem uma função primordial para o desenvolvimento de valores humanos, de preservação da vida, de cidadania e de estabelecimento de regras sociais, especialmente nos locais em que a característica de alunos atendidos pelos estabelecimentos de ensino pode ser considerada situação de vulnerabilidade social. Concluída a graduação na área educacional, busquei especialização em Educação Inclusiva, ainda preocupada com as relações que a escola estabelece com as minorias, já histórica e socialmente marginalizadas, ou secundarizadas pelo sistema social excludente. Nesta especialização, pude perceber a importância da interação social no processo de ensino e de aprendizagem. Busquei na teoria sociocultural de Lev S. Vygotsky (1979, 1984, 1998, 2001, 2007) a fundamentação que necessitava para compreender melhor essa relação entre o contexto social e o processo de ensino. Os aspectos que mais chamavam a atenção na observação e no estudo diziam respeito ao modo como se processa, não apenas a aprendizagem de conteúdos em si, mas principalmente ao modo como a escola, através das relações sociais que propicia, é capaz de ir além no seu papel de transmissora de conhecimentos, ao auxiliar no desenvolvimento bio-psico-social dos educandos e promover a transformação social e a melhoria da qualidade de vida dos sujeitos através da influência do meio. Observações mostram de modo mais que convincente que não só as últimas linhas do desenho geral da nossa personalidade, mas até os contornos mais básicos que determinam sua feição não se desenvolvem de outro modo senão sob a influência imperiosa do meio (VYGOSKY, 2001, p.420). Logo após concluir esta especialização, iniciei outra, desta vez em Psicomotricidade, ainda com o mesmo enfoque de que a escola é espaço privilegiado para construir interações positivas com o meio e através delas gerar 22 conhecimento e promover mudanças atitudinais, coerentes com o exercício da cidadania. Nesta época, além de trabalhar com uma turma de inclusão no sistema regular, também iniciei o trabalho em um Centro Ocupacional, que funcionava juntamente com a Associação Beneficente e Educacional Nova Prata (ABEN), situado em um bairro periférico. Meu trabalho consistia em ministrar oficinas de linguagem e matemática para crianças em situação de vulnerabilidade social, sempre no turno inverso ao das aulas que eles frequentavam a escola regular. A grande maioria destes alunos apresentava dificuldades de aprendizagem e problemas de conduta e indisciplina, aspecto que fez com que o trabalho se apresentasse como um desafio profissional. Nas oficinas de matemática, decidi propor aos alunos a construção e utilização de jogos, visando aliar o aspecto lúdico inerente aos jogos aos conteúdos de matemática e também a possibilitar o exercício da sociabilidade nas relações entre os alunos, por meio do estabelecimento das regras dos jogos matemáticos. Além disso, precisava descobrir um meio para que os alunos gostassem de freqüentar as oficinas - que não eram obrigatórias - para evitar que eles sucumbissem aos perigos da rua, tão conhecidos por mim através do trabalho de voluntária na recuperação de dependentes e pelos cursos de capacitação em Prevenção de Uso de Drogas para Educadores. Utilizei-me dos conteúdos de matemática para este fim, não apenas por esta ser a disciplina que mais apresentava índices de notas abaixo da média, mas por entender que a disciplina também assumiria uma conotação política e social. Era preciso, de alguma forma, quebrar as barreiras que se impunham entre os alunos e o saber da matemática formal, a matemática dita “da escola”. Estas barreiras se faziam perceptíveis a cada vez que um aluno se opunha a entrar em uma oficina com conteúdos matemáticos alegando que “eu nunca vou aprender essas contas aí” ou “minha mãe que diz: vai aprender número alto pra quê? A gente ganha contado o salário...” Essas falas, permeadas de um contexto cultural tão peculiar, marcado pela exclusão, me fizeram perceber que eles também pareciam permanecer à margem do ensino formal, e que não viam sentido na matemática 23 como era ensinada na escola, onde as contas propostas eram desvinculadas da realidade. Meus alunos não aprendiam os conteúdos da escola. Isso era um fato. Suas notas comprovavam isso. Mas meus alunos sabiam as “contas da rua” e isso também ficava evidente quando os surpreendia em seus “negócios”. Sabiam o valor do dinheiro, conseguiam fazer cálculos mentais e resolver problemas e utilizavam as quatro operações fundamentais em jogos e brincadeiras, desde que os números não atingissem a casa da dezena e que não fosse necessário registrar (formalizar) a sentença matemática. Porém, negavam-se a aprender a matemática formal. Aliás, negavam-se a aprender ou mesmo a participar em qualquer que fosse a proposta de ensino ou o conteúdo proposto, demonstrando total aversão a regras. Esta postura trazia-me uma preocupação crescente, pois os impedia de ter um relacionamento social saudável, e especialmente, os impossibilitava de construir conhecimentos formais, que de certa forma os levaria um passo à frente no caminho inverso à exclusão social. Não se trata, de forma alguma, em estipular que a matemática formal - ou seja, a que é ensinada nos bancos escolares - tenha maior ou menor importância que a matemática construída no contexto social dos alunos, a “das ruas”. Queria apenas que meus alunos pudessem dispor das duas formas de saber, para poder ter mais instrumentos que permitissem que eles ingressassem em outros contextos, inclusive nos contextos acadêmicos. Estava claro o que e pretendia, mas para que isso se tornasse um fato, precisava primeiramente que os educandos tivessem uma mudança atitudinal, que se dispusessem a melhorar seus comportamentos e seu relacionamento consigo mesmos e com o outro, ao mesmo tempo em que melhorariam sua relação com o saber, ou seja, que se disporiam a construir o conhecimento e apropriar-se também do saber escolar e que escolhessem estar dentro da instituição ao invés de estarem pelas ruas. Neste contexto, propus as oficinas, com jogos que permitissem a expressão da sua forma de calcular e resolver problemas e que ao mesmo tempo exigiam que os próprios alunos estipulassem as regras e zelassem pelo seu cumprimento para que o jogo funcionasse, esperando que isto os motivassem a frequentar as oficinas. 24 Esta abordagem acerca da importância da perspectiva social do indivíduo, preponderantemente Vygotskyana, fazendo um inusitado entrelaçamento empírico com o ensino de matemática, acabou por gerar frutos, dos quais eu sequer supunha, quando lancei – confesso que um tanto às cegas – as sementes de meu trabalho. Com o passar do tempo, percebi que a utilização dos jogos matemáticos – os quais exigiam o estabelecimento e cumprimento de regras – passou a ser um aliado para amenizar os problemas frequentes e graves de disciplina e também de relacionamento que existiam entre os alunos. Minhas percepções fora confirmadas, quando, em reunião com a coordenação e professores do projeto, os mesmos relataram perceber que os alunos que frequentavam as oficinas de jogos haviam apresentado uma melhora na sociabilização e estavam mais receptivos para a aprendizagem. A mesma percepção foi confirmada por alguns pais e também pelos professores da escola. Todos estes dados, observados unicamente pela minha experiência docente, sem qualquer metodologia científica, aguçaram minha curiosidade para que este projeto tomasse forma e que esta pesquisa fosse o foco da minha formação no Mestrado Profissional em Ensino de Ciências Exatas, pois acredito que o conhecimento não pode ser um fim em si mesmo, mas ele pode – e deve – estar a serviço da melhoria da qualidade de vida do indivíduo e também possibilitar que o aluno, enquanto sujeito do processo de ensino, possa ser capaz de construir relações, de transformar o meio em que vive, de melhorar-se como ser humano e de utilizar-se do conhecimento para intervir de forma positiva na sociedade em que vive. E isto só será possível com alunos capazes de serem sujeitos da própria história, com valores éticos e de cidadania permeando suas atitudes. Buscar uma fundamentação teórica sólida e desenvolver uma metodologia adequada que me permitisse obter subsídios suficientes para debruçar-me com propriedade sobre esta questão tão peculiar e intrigante de meu trabalho docente parece-me o caminho, não apenas para complementar minha formação e aprimorar- me profissionalmente, mas também investigar com metodologia e rigorosidade científica, os fatos que podem vir a contribuir para a melhoria da educação e quiçá fomentar outros estudos que tenham cunho social e educacional sobre como crianças oriundas de classes sociais menos favorecidas constroem relações entre competências matemáticas e habilidades sociais. 25 Além disso, esse estudo se propõe a investigar linguagens e marcas culturais presentes em crianças que vivem em condições sociais desfavoráveis; desenvolver situações de ensino que tenham o jogo como instrumento pedagógico capaz de proporcionar a construção de conceitos matemáticos; organizar tempos e espaços de (re)construção identitária e apropriação de sistemas simbólicos utilizados na sociedade e mediar ações, reações e situações desafiadoras que possibilitem o desenvolvimento do raciocínio lógico e do relacionamento interpessoal. Essas questões foram a mola propulsora da minha prática pedagógica investigativa, a ser descrita neste documento, que, além da presente introdução, apresentará no capítulo dois uma busca por enunciados teóricos que permitiram entender as relações entre ensino da matemática, jogos interativos e construção de identidades socioculturais. No capítulo três busco estabelecer a relação entre o ensino da matemática e o compromisso sócio político cultural da escola. O quarto capítulo é destinado ao referencial sobre a utilização dos jogos como estratégia de ensino, enquanto no quinto capítulo o enfoque dado aos jogos refere-se ao seu uso como espaço de convivência e construção da cidadania. Busco um olhar construtivista sobre o jogar no sexto capítulo. O sétimo e o oitavo capítulos são destinados à caracterização do grupo e à metodologia, respectivamente. No capítulo de número nove, descrevo a prática investigativa, com a análise de cada intervenção pedagógica intencional e teço algumas considerações sobre o trabalho no décimo capítulo. A partir de agora, abandono a escrita do texto na primeira pessoa, a qual me permiti para melhor registrar aspectos singulares de minha trajetória, e que justificam a minha escolha pelo tema, para buscar embasamento teórico e metodologia científica e passo a escrever na terceira pessoa. 26 2 REFERENCIAL TEÓRICO: APROFUNDANDO AS LEITURAS 2.1 O ensino da matemática e o desenvolvimento da identidade sócio cultural Ao buscar contribuir com a melhoria das relações e a formação de atitudes cidadãs de crianças em situação de vulnerabilidade social, a proposta de oficinas envolvendo jogos matemáticos revelou ser um recurso com possibilidades de contemplar o objetivo. A perspectiva da Matemática como uma área do conhecimento que favorece o trabalho pedagógico entrelaçado com o cotidiano das realidades e identidades socioculturais, foi fator relevante nesta decisão. Este enfoque, de certa forma inusitada em Ciências Exatas, exigiu pesquisa bibliográfica, tanto em livros quanto em artigos científicos, que, nas primeiras leituras revelaram que o encontro teórico entre as dimensões sociais e a matemática, exigido para a fundamentação do trabalho, deveria ser realizado pela professora pesquisadora. A obra intitulada “Na Vida Dez, na Escola Zero”, de Teresinha Carraher, David Carraher e Ana Lúcia Schliemann, trouxe suporte basilar que permitiu o aprofundamento dos estudos e a consolidação da crença de que a educação matemática pode estar a serviço do desenvolvimento social e humano, e não ser um fim em si mesma. Somar, subtrair, multiplicar, dividir. Esses não precisam – e nem 27 devem – ser atos mecânicos, frutos de decoreba pura e simples, descontextualizados da realidade, como se a matemática pouco ou nada tivesse relação com o cotidiano, com os problemas da atualidade ou com a vida dos alunos, que são frutos de uma sociedade com características peculiares do momento histórico que vivemos e também do contexto social e econômico na qual está inserida. A influência das peculiaridades culturais, inerentes a cada grupo social na aprendizagem que acontece em sala de aula também é apontada por Gómez: A aprendizagem em aula não é nunca meramente individual, limitado às relações frente a frente de um professor/a e um aluno/a. É claramente uma aprendizagem dentro de um grupo social com vida própria, com interesses, necessidades e exigências que vão configurando uma cultura peculiar. Ao mesmo tempo, é uma aprendizagem que se produz dentro de uma instituição e limitadas por funções sociais que esta cumpre (GÓMEZ in SACRISTÁN, 1998, p. 64). Essas questões são abordadas sob forma de indagações, e aparecem já no primeiro capítulo da obra “Na Escola Dez, Na Vida Zero”, capítulo este que tem como título “A matemática na vida cotidiana: psicologia, matemática e educação”: Que relação existe entre o desenvolvimento intelectual e o momento histórico em que vive o aluno? E certamente, ao falarmos em momento histórico, não vamos ignorar que o momento não é igual para todos. Que relação existe entre as circunstâncias da vida – sócio-econômicas e culturais – e o desenvolvimento do pensamento? (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p. 19). Propor-se a refletir sobre o contexto social na aprendizagem mostra-se de suma importância quando pretende-se um estudo mais aprofundado acerca da matemática e suas funções e implicações como instrumento de desenvolvimento cognitivo e também de inclusão social. As implicações do meio social na aprendizagem da disciplina são fontes de inúmeras discussões, especialmente entre os docentes, sendo que as opiniões muitas vezes podem ser divergentes, e mesmo assim, parecerem óbvias: Alguns acham que as crianças pobres sabem mais matemática, porque têm a prática, porque lidam com dinheiro, porque dela precisam para sobreviver, enquanto outros acham que a criança pobre sabe menos matemática, porque é desnutrida, porque vem de ambientes culturalmente desfavorecidos, porque apenas aprende na prática a lidar com o concreto e matemática envolve abstrações (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p. 19-20). 28 Isto posto, pode-se perceber que o contexto social tem uma inegável influência sobre o aprendizado. Também parece haver a existência de duas “matemáticas” distintas: a matemática das ruas e a matemática da escola, como se a primeira delas estivesse ligada ao concreto, à realidade, ao cotidiano e a outra fosse fruto de abstração, formalização e regras, é inegável que: “A matemática não é apenas uma ciência: é também uma forma de atividade humana” (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p. 12). Imerso em contextos socioculturais diferenciados, o ensino da matemática oferecido em escolas deve considerar no seu planejamento a dimensão cognitiva e humana e as possibilidades de entrelaçamento e interdependência. Essa dimensão é apontada por Duarte (2001) ao afirmar que “O objetivo aí é o de que a matemática não seja vista separada dos problemas sociais.” A este respeito, Bail afirma: A matemática na vida das pessoas, não deve ser somente para saber calcular, para verificar qual é o algoritmo correto que se deve aplicar para resolver determinada situação problema ou exercícios mecânicos; mas, principalmente, para construir estruturas lógicas que contribuam à construção do pensamento crítico, para que as pessoas possam analisar as situações com mais propriedade, construir e eleger etapas e se sintam capazes de planejar a intervenção em busca de seus direitos (BAIL, 2002, p.83). São inúmeros os estudos sobre a relação entre o fracasso escolar – especialmente o provocado pela não aquisição dos conhecimentos da matemática formal - e o contexto social na qual os alunos estão inseridos. A este respeito, os autores afirmam: Os estudiosos da chamada “privação cultural” ou dos “indivíduos marginalizados” apontam a existência das mais variadas deficiências entre crianças de ambientes desfavorecidos, deficiências estas que são tanto de natureza cognitiva como de ordem afetiva e social. A criança-produto da privação cultural demonstra deficiências nas funções psiconeurológicas, bases para a leitura matemática, conceitos básicos, operações cognitivas e linguagem (Poppovic, Esposito & Campos, 1975), um autoconceito pobre, sentimentos de culpa e vergonha, problemas familiares, desconhecimento de sua própria cultura (Brooks, 1966) etc. – para mencionar apenas algumas das deficiências encontradas (IDEM, p. 23). No entanto, há ainda vários outros aspectos que precisam ser observados ao abordar-se a relação entre o fracasso escolar e o contexto social dos alunos. Um dos aspectos de suma importância é a valorização da matemática enquanto ciência, 29 ou seja, da abstração e da formalização, em detrimento da sua utilização prática, cotidiana e concreta. Essa postura é responsável por criar o falso conceito de que há uma forma “correta”, enquanto a outra é “errada”. Quem domina a forma “correta” é automaticamente caracterizado como capaz ou dotado de inteligência, ao passo que os demais possuem avaliações negativas a respeito de sua capacidade de cognição. “Há uma certa crença entre alunos e professores, que aprender matemática é privilégio de alguns, aqueles que têm facilidade com os números, com as deduções lógicas” (STAREPRAVO, 2009, p. 12). A passagem de correto para superior é um passo muito pequeno e que acontece com muito pouco esforço: frequentemente agimos como se nossas formas de adaptação cultural fossem superiores a outras. Quando a escola transmite maneiras particulares de falar, calcular, categorizar – e, especialmente, quando a escola adota a nossa maneira – ficamos ainda mais convictos da perfeição de nossos instrumentos culturais e da inferioridade de outros modos de adaptação às tarefas de representação, comunicação e raciocínio. Os universais dessas funções são obscurecidos pelas diferenças. Frequentemente terminamos por chegar à infeliz conclusão de que as pessoas que usam os recursos intelectuais privilegiados pela escola são, elas próprias, privilegiadas intelectualmente; os outros são, por extensão do mesmo raciocínio, inferiores (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p. 143-144). Estes falsos conceitos de superioridade e inferioridade transpõem os muros escolares e chegam até a sociedade, onde são reforçados por outros pré- julgamentos a respeito das populações marginalizadas socialmente, mantendo o processo de exclusão gerado pelo equívoco existente entre o saber e a formalização deste saber. Os autores propõem um comparativo de dois grupos de alunos pertencentes a classes ou núcleos sociais distintos e que em função da cultura abordam os problemas de matemática de formas diversas: Discutimos neste trabalho os universais e as peculiaridades na adaptação à mesma cultura de pessoas engajadas em diversas formas de interação numa sociedade complexa, industrializada e repleta de oportunidades para obtenção de experiências com números. Um dos grupos tem pais instruídos e teve o privilégio de viver cercado, na escola e em casa, dos modos escolares de falar e de pensar.são pessoas que aprendem a matemática escolar desde cedo, antes que tenham tido necessariamente que utilizá-la fora da sala de aula. O outro grupo vem de camadas pobres da população, em que o lazer necessário à freqüência da escola não esteve disponível a seus pais nem a eles próprios na infância; um grupo que provavelmente teve que utilizar a matemática na vida antes de tê-la aprendido na sala de aula. Quando as crianças pobres começaram a freqüentar a escola, em geral entre os sete o os nove anos, a qualidade do ensino que lhes é oferecido e as necessidade de suas vidas são tais que elas provavelmente aprendem mais matemática fora que dentro da escola. Esses dois grupos 30 de pessoas, utilizando os mesmos universais da mente humana, parecem abordar os problemas de matemática de formas bastante distintas (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p.144). Além disso, os estudos realizados por este grupo apontam para os diferentes objetivos do uso da matemática em locais diversos, como por exemplo, na sala de aula e na rua. Em cada local, usa-se a matemática com um fim específico. As “contas” podem parecer as mesmas, mas sua utilização, ou seja, o objetivo do aprendizado e da resolução correta das sentenças matemáticas e das resoluções de situações problemas envolvendo cálculos pode ser completamente diferente. “Entender a matemática e a relação que mantém com a organização e as práticas do grupo é o primeiro passo para sair do que pode ser chamado de “subdesenvolvimento matemático” (BELLO, 2002, p. 322). Quanto aos objetivos do uso da matemática, os autores Schliemann, Carraher e Carraher afirmam: Seu objetivo na escola é utilizar uma fórmula ou operação que o professor ensinou; aplicando o procedimento, encontrando o número, o problema está resolvido. Em contraste, os modelos matemáticos da vida diária são instrumentos para encontrar soluções de problemas onde os significados desempenham um papel fundamental. Os resultados não são simplesmente números, são indicações de decisões a serem tomadas – quanto dar de troco, que cumprimento de parede construir, etc. Um resultado errado tem conseqüências, por isso precisamos saber avaliar a solução encontrada. Numa venda, ninguém dará de troco mais dinheiro do que recebeu; numa subtração feita na escola, em contraste, não é incomum encontrar estudantes que admitem como resto um número maior que o minuendo. (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p.146). Portanto, o que se constitui um erro primário em sala de aula (admitir como resto um número maior que o minuendo), pode, na verdade, estar apontando para outra causa: a de que a matemática está descontextualizada, não faz relação alguma com a realidade – ou ao menos os alunos não estão conseguindo fazer esta relação – e assim atribuir significado aos cálculos, facilitando a compreensão dos conceitos. “Ao contrário da aprendizagem escolar, a experiência cotidiana parece enriquecer os números de significado” (IDEM, p. 122). Ainda a este respeito, Knijnik afirma: (...) a centralidade da cultura para a concepção das diferentes matemáticas (incluindo a matemática acadêmica e a escolar) não é mais ignorada. O que é produzido "fora" da academia - os outros modos de as pessoas lidarem matematicamente com o mundo e darem sentido a ele - também passou a ser pensado como possível de ser integrado ao currículo escolar (KNIJNIK, 2004, p. 222). 31 Essa dissociação dos saberes matemáticos pode ser percebida ao analisarmos dados numéricos, como as notas que apontam qual o índice de aproveitamento escolar de uma escola ou determinada turma, pois isto normalmente faz-se sem levar em consideração tais fatores. Credita-se a determinada escola a avaliação de que aqueles alunos são “ruins” ou que a escola tenha um ensino “fraco” sem observar o contexto na qual esta instituição ou turma está inserida. Estes testes, especialmente os que são aplicados em nível nacional em um país de dimensões continentais e inúmeras variantes culturais, como é o caso do Brasil, e “que pressupõe iguais oportunidades de aprendizagem para comparações entre crianças de diversas camadas da população não é apenas imprópria cientificamente; é também um desrespeito às próprias crianças” (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p.170). Quando discutimos anteriormente as diferenças nas situações de aprendizagem de matemática disponíveis a crianças das camadas populares e a crianças das camadas dominantes, vimos que o pressuposto de iguais oportunidades de aprendizagem de habilidades acadêmicas não é, de forma alguma, aceitável. Não apenas as crianças das camadas dominantes vivem em ambientes onde as habilidades acadêmicas são mais valorizadas e estão mais disponíveis, como também as escolas que freqüentam, a duração de seus turnos, os recursos materiais de natureza acadêmica, as exigências de pais e diretores quanto ao que lhes é ensinado e muitas outras coisas variam (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p.169-170). Outra abordagem a respeito do fracasso escolar resultante da não apropriação do conhecimento matemático formal ainda faz referência ao contexto cultural e econômico dos alunos oriundos de classes menos favorecidas e apontam para a pouca valorização da educação formal por parte das famílias destes alunos. Essa desvalorização ocorre tanto pela distância existente entre o currículo escolar a necessidade imediata de aplicação prática dos conhecimentos matemáticos, quanto por fatores de ordem econômica. Ainda que nesta abordagem as deficiências apontadas anteriormente como determinantes da disparidade existente entre o aproveitamento escolar de alunos das classes sociais menos favorecidas em comparação ao desempenho de alunos de classes mais abastadas, sejam relegadas a um segundo plano, o que persiste como fator determinante - em qualquer das abordagens - é a importância dos aspectos sociais em relação à forma como se dá a aprendizagem de conteúdos matemáticos nas diferentes camadas sociais. Assim sendo, a utilização, a valorização e o modo como os alunos aprendem matemática está estritamente relacionada com o meio social e com as identidades culturais dos 32 alunos e de suas famílias. Esta desvalorização da educação formal faz-se presente na imensa maioria das famílias de baixa renda e reflete diretamente no modo como os alunos também passam a encarar o ambiente de aprendizagem e os esforços dos professores e profissionais de educação que os acompanham na trajetória escolar. Os autores de “Na Vida Dez, Na Escola Zero”, atentam ainda para o fato de que esta diferenciação na valorização do ensino formal acaba por fazer com que os alunos das classes menos abastadas financeiramente e suas famílias encarem de outra forma o que para os membros dos meios acadêmicos e das classes mais abastadas o que é o fracasso escolar. Para esta camada populacional, via de regra, fracassar na escola não tem o mesmo significado que tem para os que valorizam a educação formal. O problema é colocado de forma um pouco diferente por aqueles que atribuem o fracasso escolar à classe social. A atribuição de deficiências das mais diversas naturezas aos membros da classe baixa não é uma questão de importância dentro deste ponto de vista. No entanto, os proponentes desta análise acreditam que a situação social e econômica das classes baixas é tal que os membros dessas classes não valorizam a educação, pois não lhe atribuem valor prático (Hoggart, 1957) e não podem permitir a seus filhos o “luxo” de uma educação prolongada diante de sua necessidade de empregá-los precocemente para contribuir para o sustento da casa. O fracasso escolar não seria, pois, um fracasso real, uma vez que só quem almeja determinado objetivo pode fracassar em alcançá-lo (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p. 24-25). A reflexão sobre todos estes aspectos que compõe as identidades culturais e sua relação direta com o ensino de matemática permite uma visão geral de alguns dos fatores que contribuem para que alunos provenientes de famílias de baixa renda, especialmente os que encontram-se em situação de vulnerabilidade social – como é o caso dos sujeitos desta pesquisa – engrossem as estatísticas de reprovação, evasão e fracasso escolar. No entanto, apesar de parecer claro que normalmente há o domínio dos conteúdos matemáticos enquanto atividade humana, ou seja, da matemática dita das ruas e que este uso dos conhecimentos não seja inferior ao que se faz em sala de aula, com a formalização de sentenças matemáticas, os autores esclarecem que não se pode negligenciar o ensino de matemática formal sob a alegação de que os alunos aprendem cotidianamente, fora da sala de aula. A educação formal tem sua função que deve ser preservada: 33 Desejamos salientar, no entanto, que essa análise não implica em abolir o ensino das operações aritméticas na escola sob alegação de que as crianças já sabem. Os algoritmos escolares têm algumas características que os tornam amplificadores culturais da capacidade já existente (para uma descrição desse conceito, ver Bruner, 1966, e Cole & Griffin, 1980) (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p.155). Deste modo, propõe-se que as aulas de matemática sejam um espaço de construção de conhecimentos, vinculados à realidade e capazes de promover transformações sociais. Para tanto, é necessário que o ensino seja focado na atribuição de significados, na relação com a realidade, no desafio, no prazer de aprender e especialmente na relação como os pares e com o mundo que o cerca. “Aprender é algo complexo que não pode ser medido por quantidade de resposta corretas. É tarefa que ninguém pode realizar pelo outro, pois é estritamente pessoal, mas que ocorre especialmente mediante a troca com o outro” (STAREPRAVO, 2009). Quando ocorre esse processo, dizemos que estamos aprendendo significativamente, construindo um significado próprio e pessoal para um objeto de conhecimento que existe objetivamente. De acordo com o que descrevemos, fica claro que não é um processo que conduz à acumulação de novos conhecimentos, mas a integração, modificação, estabelecimento de relações e coordenação entre esquemas de conhecimento que já possuíamos, dotados de uma certa estrutura que varia, em vínculos e relações a cada aprendizagem que realizamos (COLL e SOLÉ, Apud STAREPRAVO, 2009, p. 15). Propiciar um “encontro” com uma ou outra dimensão da matemática não é buscar estabelecer a relevância ou o grau de importância de uma ou de outra forma de saber, menosprezando o saber de um meio social marginalizado – no caso, o saber das ruas, das crianças que vendem balas nas esquinas ou que contam centavos para comprar um brinquedo. Possibilitar este encontro, é acima de tudo, permitir que se descortine novas formas de construção de conhecimento, que se vislumbre novas possibilidades e que, de posse desses conhecimentos, os alunos possam ter ferramentas para transitar com segurança na esfera do saber, tanto do formal, quanto do adquirido através da sua cultura. “A aprendizagem de matemática na sala de aula é um momento de interação entre a matemática organizada pela comunidade científica, ou seja, a matemática formal, e a matemática como atividade humana” (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p. 12). É neste ponto que o domínio da matemática formal, - cuja deficiência de aprendizagem é responsável por um grande número de reprovações nas escolas 34 brasileiras, especialmente nas camadas menos favorecidas econômica e socialmente da população - apresenta-se como um fator de inclusão. Duarte (2001) demonstra preocupação com a privação das camadas populares de um conhecimento importante no contexto social, ao afirmar que: “Assim, as camadas populares continuam sem o domínio dessa ferramenta cultural.” Esta ferramenta cultural – a matemática - permite que os indivíduos possam ampliar seus conhecimentos, pois os alunos que não possuem o domínio da matemática escolar formal acabam por reprovar sucessivamente, isto quando não abandonam a escola precocemente, tornando-se adultos de baixa escolaridade, incapazes de candidatar-se aos melhores empregos, perpetuando desta forma o círculo vicioso da exclusão. Esses estudos mostram também que não se pode pressupor uma superioridade do conhecimento desenvolvido na escola sobre aquele desenvolvido fora dela: os mesmos invariantes lógico-matemáticos estão subjacentes à atividade matemática dentro e fora da escola. No entanto, como a escola se ocupa da transmissão de amplificadores culturais da aprendizagem – sistemas de representação, fórmulas, utilização de calculadoras e computadores etc. - os indivíduos escolarizados passam a ter certas vantagens sobre os não escolarizados (SCHLIEMANN, CARRAHER e CARRAHER, 2001, p.173). As vantagens referidas pelos autores para os indivíduos escolarizados incluem o respeito da sociedade para com os que possuem maior escolarização, possibilidade de acesso a outros níveis acadêmicos e consequentemente ao conhecimento social e culturalmente construído, e empregos que exijam o domínio de conhecimentos formais ou escolaridade mínima. Deste modo, será apresentado a seguir as possibilidades de trabalho com jogos matemáticos em toda sua potencialidade, a fim de aproximar o conhecimento formal dos alunos em situação de vulnerabilidade social. 35 36 2.2 A relação entre o ensino da matemática e o compromisso sócio político cultural Tendo por base os estudos preliminares que me propiciaram a iniciação desta revisão teórica, deparo-me com questões que são inerentes à natureza do trabalho ao qual me proponho. Como colocar o ensino da matemática a favor da dimensão atitudinal? Como tornar isso um trabalho de cunho científico? No meu entender, encontro em Paulo Freire um suporte basilar que me permite seguir com meu estudo, e no pensamento contemporâneo uma orientação para atuar de forma que este trabalho constitua uma contribuição social de fato, ainda que sem a pretensão de ser um guia para outros educadores ou de constituir verdade, mas de fomentar e subsidiar novas pesquisas na área. Uma das obras de Paulo Freire que melhor demonstra que o fazer pedagógico, antes de mais nada, deve estar a serviço de um bem maior - o de promover a capacidade dos educandos de tornar-se cidadãos plenos – é o livro intitulado “Pedagogia da Autonomia”. Freire aponta que o processo educativo deve ir além da construção de conhecimentos cognitivos, deve propor a conscientização dos alunos acerca do contexto sócio político cultural e, acima de tudo, deve ser transformador, visando sempre a autonomia do sujeito. Neste contexto, a educação é, por pressuposto, uma ação de cunho político e social. A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente de seu inacabamento, histórico, necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de opção, de decisão. Um ser ligado a interesses em relação aos quais tanto 37 pode-se manter-se fiel à eticidade quanto pode transgredi-la (FREIRE, 2004. p 110). O autor também atenta para que o processo educativo se dá pelo fato do ser humano possuir uma natureza inacabada. Esse “inacabamento humano” é o que propicia a condição de transformação e de melhoramento dos seres, não apenas na sua condição humana, visando atos que transformem positivamente sua vida de forma individual, mas também que possa haver uma mudança mais profunda, que agregue o coletivo. Essa mudança mais profunda abrange o campo da ética, por ser ela a norteadora das relações com o outro e abrigar valores de respeito a si mesmo, aos meus pares e ao universo. Ao buscarmos a autonomia dos educandos, o que realmente esperamos é que eles tenham condições de optar por atitudes éticas, permeadas por valores inerentes a uma postura crítica de cidadania. Esses argumentos reforçam a ideia de que a educação não pode se furtar de seu compromisso sócio político e cultural. Ela precisa ir além dos bancos escolares, da decoreba, da resolução de contas mecanicamente. Precisa assumir seu caráter político e sua função social na transformação da realidade. E para que isso seja realizado a contento, há que se levar em conta, qual o contexto em que aquela escola está inserida, fazendo um movimento em direção aos alunos, percebendo os aspectos que norteiam os seus comportamentos, qual a realidade social e cultural que está implícita em seus discursos que nos parecem indisciplinados à primeira vista e que muitas vezes assumem um caráter agressivo contra qualquer forma de autoridade. É neste contexto que não somente a escola, mas especialmente a figura do professor, assume um papel de mediador de crises e divergências comuns na convivência entre os pares, visando através disso propiciar situações que visem a aprendizagem de referenciais para a associação de valores éticos e morais da sociedade a qual pertence. Sobre isso, Rossi (2005) escreve em monografia intitulada “O Papel do Professor”: A escola constitui, por excelência, um espaço de socialização, porque propicia o contato e o confronto com adultos e crianças de várias origens socioculturais, de diferentes religiões, etnias, costumes, hábitos e valores, fazendo dessa diversidade um campo privilegiado da experiência educativa. Isso oportuniza o conhecimento, a descoberta, e a ressignificação de novos sentimentos, valores, ideias, costumes e papéis sociais, além de ser um espaço de inserção das crianças e adolescentes nas relações éticas e morais que permeiam a sociedade na qual estão inseridos. Para haver o desenvolvimento da identidade e conquista da autonomia pela criança, faz- se necessário conhecer suas características, potencialidades e reconhecer 38 seus limites, compreendendo-a em sua complexidade, em seu contexto (ROSSI, 2005. p 25). Trabalhar com alunos de diferentes realidades é estar aberto à diversidade, ao que muitas vezes é contrário a tudo que tenho enquanto crença pessoal. É estar atento ao contexto no qual estes alunos estão inseridos, para poder respeitar seu modo de ser e de agir, sua cultura, buscar entender seus valores para só então poder buscar formas de propiciar novas vivências, novas experiências e mostrar a possibilidade de transformação, de melhoria. Essa forma de agir docente vem ao encontro do que Freire afirma ser uma visão da educação como um processo emancipatório. Entende-se que essa emancipação ocorre no momento em que o sujeito, fruto daquele contexto social, percebe que pode agir de outra forma, mesmo que a cultura local seja a de violência, rebeldia ou agressividade. Esta cultura aparece como forma de reação à realidade que os exclui, econômica e socialmente. A verdadeira emancipação ocorre quando, através do conhecimento, do desenvolvimento da capacidade de pensar e de refletir sobre a realidade, o aluno pode optar conscientemente por um comportamento diferente daquele do grupo social no qual está inserido. Essa opção consciente o emancipa enquanto sujeito, pois ele deixa de ser um mero repetidor de padrões vigentes. Com isso, quebra-se o ciclo deflagrado pela exclusão social, que é gerador de comportamentos agressivos e incompatíveis com atos de cidadania e que acabam por fomentar os preconceitos contra essas camadas marginalizadas, criando mais situações de exclusão. A educação como um processo emancipatório é apontar outros caminhos possíveis, outras formas de lutas sociais, de transformação da realidade e dar ao sujeito do processo educativo a visão de que ele pode tornar-se também sujeito de sua história. Este fazer pedagógico, crítico e voltado à cidadania, certamente está alicerçado na construção de conhecimentos científicos e contextualizado no tempo e no espaço. A respeito da relação entre os conteúdos ensinados e o compromisso sócio político e cultural da educação, Freire é enfático ao afirmar, em sua obra Pedagogia da Esperança: Não há, nunca houve nem pode haver educação sem conteúdo, a não ser que os seres humanos se transformem de tal modo que os processos que hoje conhecemos como processos de conhecer e de formar percam seu sentido atual. O ato de ensinar e aprender, dimensões do processo maior – 39 o de conhecer – fazem parte da natureza da prática educativa. Não há educação sem ensino, sistemático ou não, de certo conteúdo (FREIRE, 1992. p 110). Portanto, percebe-se que a educação para a autonomia, que assume seu compromisso sócio político e cultural, não é, de forma alguma, desprovida de preocupação com o ensino de conteúdos importantes e pertinentes. Ela é um ato político, mas ao mesmo tempo não deixa em segundo plano seu caráter pedagógico, de construção e aquisição de conhecimentos históricos e socialmente instituídos e que servirão para instrumentalizar o aluno para uma vivência digna. Também não é correto afirmar que essa forma de educar não requeira rigorosidade metódica, ou conhecimento profundo do professor sobre o que está sendo ensinado, ou ainda que caia na armadilha de constituir uma crítica constante e infecunda, em que os conteúdos são meros panos de fundo para que o debate social seja uma constante, deixando de lado o aprofundamento cognitivo. Freire aponta para esta importância ao dedicar, logo no primeiro capítulo de seu livro Pedagogia da Autonomia, o subtítulo “Ensinar exige rigorosidade metódica”. O educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão. Uma das tarefas primordiais é trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos objetos cognicíveis. E esta rigorosidade metódica não tem nada a ver com o discurso “bancário” meramente transferidor do perfil do objeto ou do conteúdo. É exatamente nesse sentido que ensinar não esgota no “tratamento” do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível (FREIRE, 2004. p 26). As novas propostas educativas, que fizeram com que o papel do professor fosse ressignificado, acabaram por propiciar uma confusão entre o que é a autoridade legítima, exercida pelo profissional da educação no exercício de sua função de educador e o que é autoritarismo. De acordo com Freire, essa confusão é tão presente que muitas vezes permitimos que tudo seja aceito em nome de uma liberdade licenciosa, que não preza a liberdade alheia e confundimos os dois conceitos: “descobrimos autoritarismo onde só houve o exercício legítimo da autoridade”. Ele também afirma a importância da questão dos limites “sem os quais a liberdade se perverte em licença e a autoridade em autoritarismo”. Recentemente, jovem professor universitário, de opção democrática, comentava comigo o que lhe parecia ter sido um desvio do seu no uso de sua autoridade. Disse, constrangido, ter se oposto a que um aluno de outra classe continuasse na porta entreaberta de sua sala, a manter uma 40 conversa gesticulada com uma das alunas. Ele tivera inclusive que parar sua fala em face ao descompasso que a situação provocava. Para ele, sua decisão, com que devolvera ao espaço pedagógico o necessário clima pra continuar sua atividade específica e com a qual restaurara o direito dos estudantes e o seu de prosseguir a prática docente, fora autoritária. Na verdade, não. Licencioso teria sido se tivesse permitido que a indisciplina de uma liberdade mal centrada desequilibrasse o contexto pedagógico, prejudicando assim seu funcionamento (FREIRE, 2004. p 104-105). Ainda em conformidade com o pensamento de Freire, “a liberdade amadurece no confronto com outras liberdades (...)”. Esse confronto só é possível nas relações sociais, na troca entre as pessoas e na construção de valores que permitam habilidades sociais, tais qual a capacidade de convivência e respeito mútuo. Neste aspecto, nem a proposta pedagógica, nem o professor pode manter-se neutro. Ele deve entender-se como parte importante do processo, e como tal, lutar para que todas as suas relações sejam permeadas pelo respeito e pela eticidade. Sobre isso, Freire aponta: O que devo pretender não é a neutralidade da educação mas o respeito, a toda prova, aos educandos, aos educadores e às educadoras. O respeito aos educadores e educadoras por parte da administração pública ou privada das escolas, o respeito aos educandos assumido e praticado pelos educadores não importa de que escola, particular ou pública. É por isso que devo lutar sem cansaço. Lutar pelo direito que tenho de ser respeitado e pelo dever que tenho de reagir a que me destratem. Lutar pelo direito que você, que me lê, professora ou aluna, tem de ser você mesma e nunca, jamais, lutar por uma coisa impossível, acinzentada e insossa que é a neutralidade (FREIRE, 2004, p 111- 12). Tendo em vista que a educação não pode apresentar-se como um exercício de neutralidade, e sim de exercício constante de cidadania, uma vez que ela – a educação - tem um papel preponderante para a transformação do sujeito e a transformação social através do conhecimento, ao utilizar-se de conteúdos pertinentes a uma aprendizagem realmente significativa e emancipatória, há que se assumir também seu caráter sócio político cultural. 41 2.3 Utilização de jogos como estratégia de ensino São inúmeros os desafios que se apresentam no ensino da matemática, pois esta disciplina é tida com uma ciência exata e portanto, rigorosa, abstrata e cercada por sequências de formalidades e procedimentos necessários ao sucesso do cálculo. Esta visão da disciplina acaba por cunhar um ensino que distancia o uso da matemática - tal como ela é aprendida na escola – da realidade. A metodologia de ensino aplicada tradicionalmente pelos professores da área, e mesmo pelos professores dos primeiros anos do Ensino Fundamental quando trabalham os conteúdos de matemática, é baseada na exemplificação, na repetição e na resolução de cálculos, que são repetidos inúmeras vezes para que o processo, ou seja, as etapas a serem seguidas para que o cálculo tenha um resultado considerado correto, sejam memorizadas e mecanizadas. Sobre isso, Bail afirma: Esse modo de ensinar Matemática, transmitindo conhecimentos, que o aluno copia do quadro para o caderno ou apostila e em seguida procura fazer uma série de exercícios parecidos, aplicando uma fórmula ou técnica, continua a ser feito até hoje (BAIL, 2002, p. 48). Esta metodologia de ensino reforça a ideia de que uma boa aprendizagem da matemática é privilégio dos alunos que “gostam de números” de uma forma nata, dos que possuem a inteligência lógico-matemática mais aguçada, trazendo desconforto aos demais, que apresentam dificuldades de aprendizagem. Por isso, este modelo de ensino vem sendo questionado, uma vez que a mera repetição de procedimentos não garantem a compreensão do conteúdo nem a construção do conhecimento. 42 Os Parâmetros Curriculares Nacionais trazem uma crítica a estes aspectos do ensino, que visa o acúmulo de informações e domínio dos procedimentos que devem ser reproduzidos a partir de um exemplo. [...] tem-se buscado, sem sucesso, uma aprendizagem em Matemática pelo caminho da reprodução de procedimentos e da acumulação de informações; nem mesmo a exploração de materiais didáticos tem contribuído para uma aprendizagem mais eficaz, por ser realizada em contextos pouco significativos e de forma muitas vezes artificial (PCNs. 1998, p. 38). Ainda de acordo com os PCNs, as dificuldades encontradas pelos alunos, oriundas deste modelo de ensino pouco eficaz e do distanciamento que há entre a matemática formal, tal qual ela é ensinada na escola, e o uso cotidiano dos conhecimentos matemáticos, exigem uma mudança no modelo de ensino, priorizando atividades que despertem o interesse dos alunos pelo conteúdo, ao mesmo tempo em que os aproxima da realidade e permita uma aproximação entre o aluno e o saber matemático, permitindo a significação dos conteúdos ensinados, especialmente se isto for feito de uma forma lúdica. Esta estratégia de ensino tem sido alvo de inúmeros estudos e já mostra-se um componente importante no planejamento de alguns professores. Segundo Starepravo (2009): O uso de jogos e brincadeiras como estratégia de ensino na escola é uma ideia bastante difundida. Já no século XIX, Fröebel defendia a importância dos jogos e brincadeiras na educação infantil, salientando seu papel na exteriorização do pensamento e na construção de conhecimento. Na chamada Escola Ativa, os jogos e brincadeiras eram tidos como instrumentos essenciais de aprendizagem, recebendo papel de destaque na organização do trabalho escolar (STAREPRAVO, 2009, p. 19). Contudo, apesar de Fröebel fazer referência à importância da utilização dos jogos e brincadeiras para a aprendizagem ainda no século XIX, o uso dos mesmos ainda é restrito a aulas ministradas para crianças das primeiras séries do Ensino Fundamental, salvo algumas iniciativas de professores das séries finais ou mesmo do Ensino Médio; e todas as possibilidades de construção de conhecimentos, tanto atitudinais quanto conceituais propiciadas pela intervenção pedagógica intencional durante o jogo acaba por não serem exploradas em sua totalidade, por restringirem- se apenas à fixação de conteúdos. 43 Deste modo, faz-se necessário que haja uma mudança na concepção do uso de jogos em sala de aula para que a atividade possa ter todo seu potencial pedagógico explorado e possa tornar-se um recurso eficaz no desenvolvimento do raciocínio e especialmente da autonomia dos alunos. Starepravo aponta para esta necessidade, ao afirmar que: [...] para que os jogos possam ser recursos importantes em nossas aulas, para que possam ajudar nossos alunos a desenvolver o raciocínio e a autonomia, caso estes sejam objetivos da educação que desejamos promover, precisamos antes de tudo, mudar nossa concepção em relação ao uso de jogos na escola (STAREPRAVO, 2009, p. 20). Ainda de acordo com Starepravo, a incorporação da utilização de jogos matemáticos em sala de aula como estratégia de ensino e não apenas para a fixação dos conteúdos constitui-se em um desafio constante para os alunos, sendo que os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) recomendam a incorporação dos jogos à cultura escolar. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática apontam como aspecto mais relevante no trabalho com jogos o fato de que provocam desafios genuínos nos alunos, gerando interesse e prazer e, por isso mesmo, recomendam que eles façam parte da cultura escolar. Assim, os jogos não devem ser atividades “extras”, usados apenas depois que o professor já “venceu o conteúdo proposto (STAREPRAVO, 2009, p. 20). A utilização de jogos para o ensino da matemática cumpre tanto o papel de ser um facilitador na construção de conceitos matemáticos, quanto o de ser elemento motivador para que o aluno desperte o interesse pela disciplina, de uma forma lúdica, descontraída e prazerosa, que alia o conteúdo ao desafio pessoal inerente ao ato de jogar. Grando (2000, p 32) faz referência às possibilidades de superação de limites propiciadas pelos jogos matemáticos: “[...] a inserção do jogo no contexto de Matemática representa uma atividade lúdica, que envolve o desejo e o interesse do jogador a conhecer seus limites e suas possibilidades de superação de tais limites...” Ao jogar, o aluno constrói estratégias, busca soluções, troca informações com os colegas e relaciona seus conhecimentos anteriores aos que são necessários para que a melhor jogada seja efetuada, num processo constante de interação, tanto com o conhecimento quanto com seus pares, permitindo a construção de conceitos, o avanço cognitivo e a construção do conhecimento. Ainda de acordo com Starepravo: 44 Os jogos exercem um papel importante na construção de conceitos matemáticos por se constituírem em desafios aos alunos. Por colocar as crianças constantemente diante de soluções-problema, os jogos favorecem as (re)elaborações pessoais a partir de seus conhecimentos prévios. Na solução dos problemas apresentados pelos jogos, os alunos levantam hipóteses, testam sua validade, modificam seus esquemas de conhecimento e avançam cognitivamente (STAREPRAVO, 2009, p. 19). Deste modo, percebe-se a importância da utilização dos jogos para o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem. Estes fatores são frutos de uma intervenção pedagógica, na qual o professor é mediador do conhecimento e, durante as situações de jogo, instiga as elaborações mentais e a formalização das mesmas através de registros escritos. De acordo com Grando, esta função docente é a de “[...] resgatar mediante questionamentos e situações-problema com registros, os processos desencadeados e as estratégias de resolução utilizadas.” (GRANDO, 2004, p. 58). O trabalho com jogos, ao contrário do que o senso comum erroneamente preconiza exige planejamento e uma intervenção pedagógica direta, ou seja, a presença e a intervenção constante do professor, que assume o papel de dirigente do processo de ensino e aprendizagem. O que percebe-se, em inúmeras salas de aula, é a crença, por parte dos docentes, de que os jogos têm apenas um papel de recreação e fixação de conteúdos, e que por isso, não exigem a participação ou intervenção direta dos professores. Malba Tahan, um dos precursores do uso de histórias e jogos no desenvolvimento dos conteúdos matemáticos, refere a importância da condução dos trabalhos - mesmo dos que tenham características lúdicas - por parte dos professores para os objetivos sejam plenamente alcançados em sua obra intitulada “O Homem que calculava” (1968) ao afirmar que: ''para que os jogos produzam os efeitos desejados é preciso que sejam, de certa forma, dirigidos pelos educadores.'' De acordo com Libâneo (1992), a utilização dos jogos como estratégia de ensino pressupõe uma conexão dinâmica do professor com seus alunos, sendo que este primeiro deverá dirigir o processo de modo que os objetivos pedagógicos elencados na escolha do conteúdo possam ser atingidos e que todas as situações possam ser conduzidas de modo a resultarem na produção de conhecimento, explorando ao máximo a potencialidade da situação de ensino e aprendizagem oportunizada durante o ato de jogar. 45 O método dialético baseia-se no estabelecimento de relações, exigindo conexão dinâmica do professor como dirigente do processo educativo e de seus alunos. Assim o conteúdo, principalmente da área de matemática deve ser utilizado de diferentes maneiras, possibilitando a aprendizagem crítica dos conteúdos. Procura-se assim, a superação do senso comum para a formação da consciência cultural (LIBÂNEO, 1992, p.34). Do mesmo modo, o espaço de aprendizagem oportunizado durante o jogo - especialmente quando há uma intervenção pedagógica docente instigativa e questionadora – propiciam uma série de situações que desencadeiam conflitos cognitivos e desafios de raciocínio, impulsionando o aluno para a pesquisa, o levantamento de hipóteses, a testagem e a validação ou não das mesmas e a construção dos conceitos matemáticos, além de constituírem-se em desafios genuínos ao aluno. Portanto, os jogos matemáticos apresentam-se como um espaço privilegiado para o desenvolvimento de conteúdos e conceitos matemáticos e também para que o pensar matemático. Starepravo cita Vergnaud (1991) para enfatizar seus apontamentos a respeito dos jogos matemáticos: Conforme apontado por Vergnaud (1991), o saber se forma a partir de problemas a resolver, isto é, de situações a dominar, sendo que as concepções dos alunos são moldadas pelas situações que encontraram. Assim, vemos no trabalho com jogos situações –problemas que poderão provocar conflitos cognitivos importantes para a construção de noções relativas aos números e operações aritméticas, além de propiciar o desenvolvimento de atitudes como a pesquisa, uso da argumentação, o julgamento da validade de resultados obtidos, etc. Neste sentido, atribuímos um papel muito importante aos jogos no desenvolvimento do pensar matemático (STAREPRAVO, 2009, p. 30). Assim, os jogos matemáticos assumem um papel de extrema importância para a aprendizagem quando utilizados como estratégia de ensino e não apenas como meio de fixação de conteúdos ou como forma de recreação. Para que este processo ocorra de forma satisfatória, é necessário que haja uma mudança na postura dos professores e dos alunos em sala de aula ao trabalhar com jogos. Essas mudanças serão abordadas a seguir. 46 2.4 Papel do professor e do aluno no trabalho com jogos A utilização de jogos matemáticos em sala de aula exige uma mudança de postura dos docentes, que passam de transmissores de conhecimento para mediadores, com o papel de auxiliar na construção do conhecimento, proporcionando atividades que favoreçam a elaboração mental de conceitos através de intervenções que instiguem os alunos e os desafiem a encontrar soluções para a situação-problema diante da qual ele é colocado pelo jogo. Segundo Padovan e Guerra, (2008) o papel do professor vai além de proporcionar um espaço para a atividade lúdica e oferecer materiais para manipulação. Este professor que se dispõe a trabalhar com jogos deve assumir diferentes funções: Organizador da aprendizagem: escolhe o jogo; decide questões relacionadas ao espaço, tempo e material utilizado; apresenta o jogo e suas regras. Consultor: fornece informações necessárias ao desenvolvimento do jogo; retifica regras e confere resultados. Mediador: promove o confronto de estratégias usadas pelos alunos e debates sobre os conteúdos abordados no jogo. Avaliador: analisa o desenvolvimento da atividade, a atuação dos alunos e o envolvimento da classe. Elaborador: propõe novas atividades, após o jogo ou antes dele, e as insere em sequências didáticas planejadas (PADOVAN e GUERRA, 2008, p.14) . Percebe-se, portanto, que o trabalho com jogos não é possível sem a presença e a mediação do professor, que necessita desenvolver suas funções no sentido de tornar o jogo uma atividade prazerosa ao mesmo tempo em que se constitui em um espaço privilegiado de construção de conhecimento. O professor precisa de uma mudança ainda mais profunda na sua postura de comunicador. Precisa falar menos e ouvir mais, pois somente através da escuta dos seus alunos é que será possível identificar o raciocínio que os educandos estão fazendo para decidir suas jogadas e poder intervir no momento adequado. Starepravo vai além, ao registrar que: “(...) somente quando passei a ouvir mais os meus alunos é que realmente comecei a compreender o significado das teorias sobre as quais tanto havia lido” (STAREPRAVO, 2009, p. 21). 47 Além das mudanças exigidas aos professores, também há uma mudança nas funções dos alunos durante o processo de aprendizagem que se dá durante as situações que se desenrolam no decorrer do jogo, durante a inteiração com seus pares e no confronto de ideias. Os alunos também precisam compreender que o jogo é um espaço lúdico, mas principalmente que ele é uma oportunidade de aprendizagem. As funções dos alunos também são explicitadas por Padovan e Guerra, que ressaltam a necessidade de colaboração para que o jogo tenha sucesso: Ouvir atentamente as regras e levantar dúvidas. Discutir as diferentes situações, preocupando-se em colaborar para resolvê- las e chegar a um consenso. Ouvir colegas e professor, percebendo-os como fonte de informação. Solicitar as informações de que necessita. Levantar e discutir as dúvidas antes (na explicação) e durante o jogo. Ouvir as soluções dadas pelos colegas, analisando-as, questionando-as e incorporando-as quando pertinentes. Construir e argumentar suas próprias estratégias com os colegas. Saber lidar com as situações de derrota e de vitória. Auto-avaliar-se quanto a sua postura e aprendizagem no jogo; entre outros (PADOVAN e GUERRA, 2008, p. 14). Estas funções, tanto docentes quanto discentes, quando bem executadas, garantem que o trabalho com jogos atinja o objetivo de ser um espaço de construção conjunta de conhecimento. Além deste objetivo, há outros aspectos que podem ser desenvolvidos com a utilização de jogos, e os mesmos serão apresentados a seguir. 48 2.5 Utilização de jogos como espaço de convivência e construção de cidadania Um dos maiores problemas referidos pelos alunos do Ensino Fundamental quando a disciplina em questão é a Matemática, diz respeito a uma espécie de bloqueio que alguns apresentam por acharem-se incapazes de lidar com números e cálculos. O modo como a matemática vem sendo ensinada tradicionalmente, na maioria das escolas, reforça este bloqueio e afasta os alunos ainda mais da possibilidade de construção do conhecimento na área. A matéria é vista como uma sucessão de cálculos, ou de “continhas soltas” que não fazem sentido para a criança e que devem ser resolvidas com o aluno isolado dos demais, pois a solução das mesmas depende de silêncio e concentração. Este fato, em uma fase da vida na qual a criança necessita de interação constante com o outro, acaba por dificultar ainda mais o mergulho na abstração numérica que os professores tanto priorizam ao trabalhar com cálculos. Borin (1996), aponta a utilização de jogos como uma solução possível para a diminuição destes bloqueios, ao mesmo tempo em que os alunos jogam e são impelidos pelo grupo a terem uma participação ativa. Outro motivo para a introdução de jogos nas aulas de matemática é a possibilidade de diminuir bloqueios apresentados por muitos de nossos alunos que temem a Matemática e sentem-se incapacitados para aprendê- la. Dentro da situação de jogo, onde é impossível uma atitude passiva e a motivação é grande, notamos que, ao mesmo tempo em que estes alunos falam Matemática, apresentam também um melhor desempenho e atitudes mais positivas frente a seus processos de aprendizagem (BORIN, 1996, p. 9). A ludicidade inerente ao jogo é um trunfo que o professor pode utilizar a seu favor para que os educandos sejam motivados a aprender, diminua o número de 49 faltas na escola e passe ser receptivo ao trabalho com matemática, podendo competir com inúmeras outras atividades lúdicas as quais os alunos dedicam-se fora do âmbito escolar. O fato do educando não estar mais isolado, repetindo mecanicamente o processo para que os cálculos apresentem um resultado considerado correto, permite uma descontração e inteiração com seus pares e com seu professor e através da fala e da escuta dos diferentes modos de pensar, das diferentes formas de solucionar os problemas que se apresentam pela situação do jogo - e que mudam a cada nova rodada – o aluno possa estabelecer relações e criar sua forma de jogar, assim como sua forma de elaborar uma estratégia que lhe permita participar e manter-se na competição. Neste contexto, Silva (2005) corrabora com Borin ao afirmar que: Ensinar por meio de jogos é um caminho para o educador desenvolver aulas mais interessantes, descontraídas e dinâmicas, podendo competir em igualdade de condições com os inúmeros recursos a que o aluno tem acesso fora da escola, despertando ou estimulando sua vontade de frequentar com assiduidade a sala de aula e incentivando seu envolvimento nas atividades, sendo agente no pro