Esta matéria faz parte da nova edição da Revista Univates, publicada em agosto de 2019.
Se olharmos a questão dos negros sob o ponto de vista econômico, o cenário mostra uma desigualdade muito grande. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) de 2017 mostram que a média salarial de brancos no país era de R$ 2.814,00. Entre pardos, a média caia para R$ 1.606,00 e a entre negros, para R$ 1.570,00. Ou seja, a população negra ganha pouco mais da metade do salário da população branca.
Para Ana Paula, o negro deveria ter mais representatividade para poder se reconhecer e se orgulhar. “Temos que conhecer a verdadeira história brasileira, o protagonismo do negro na construção do nosso país. Não podemos mais aceitar o papel de oprimidos. Na escola, os livros de história retratam os negros trazidos como animais em navios negreiros, acorrentados em condições desumanas, e assim permaneciam escravizados. Na verdade, esses negros e negras escravizados eram pessoas livres, com sua organização social. Não eram pessoas marginalizadas, não eram pobres ou destituídos de cultura”, sinaliza a professora.
Segundo ela, o combate ao racismo passa pela escola, pela universidade, por todos os espaços democráticos. “Precisamos conhecer a história, debater, dar lugar de fala ao negro. Precisamos de políticas públicas. A escravidão acabou há 130 anos, mas como esse negro se emancipou? Foi alforriado sem formação, sem acesso à educação, sem propriedade privada”, argumenta. “O protagonista da luta contra o preconceito somos nós, negros, que vivemos e sentimos tudo isso na pele, porém a luta é de todos”, pondera.
Acesso a direitos e invisibilidade social
Para o Chef Leonardo Alcântara, o negro vive muitos desafios e um deles é o estereótipo racial. “Uma coisa que me incomoda muito, por exemplo, é essa ambiguação de moreno ao invés de negro. Quando você denomina alguém como moreno, você está fazendo um processo de embranquecimento. Você está dizendo: ‘Você não é negro propriamente dito’. Então, eu renego totalmente esse rótulo. Ninguém vai chamar ninguém pela raça que for, mas se forem me chamar, me chamem pela raça correta, no mínimo. Eu faço questão de ser negro. Não aceito uma qualificação que visa a esbranquiçar a minha negritude”, afirma Alcântara.
Conforme o Chef, o racismo no Brasil é bem estruturado, quase que institucional. “Apesar de já haver leis, um estado democrático de Direito, sabemos que a população negra não tem acesso a esses direitos, não são iguais para todos. A gente tem diariamente o genocídio da população negra. Negros que morrem assassinados, sofrem repressão da polícia, do tráfico, são vítimas de um país de três séculos de escravidão”, analisa.
O enfrentamento do racismo, para Alcântara, parte da consciência de que você é negro. “O racismo gera ranhuras, feridas muito grandes, isso mexe muito com a nossa personalidade. É um processo de você se assumir. Nós, os negros, enfrentamos um processo de autoafirmação que é muito dolorido. Mas há de se enfrentar, precisamos dizer um para o outro: ‘Não tem nada de errado com seu cabelo. Não tem nada de errado com a sua cor. Você pode ter seu espaço de fala, sua posição. Você é lindo’. O racismo nos dá um complexo de inferioridade muito grande pois ele é uma imposição muito forte. Você vai no mercado e vê que o segurança está olhando pra ti. A solidão da mulher negra, por exemplo, são muitas as questões que envolvem a condição da cor da pele. Nós somos um país mestiço, mas onde está o negro? A gente sempre defende que o Brasil vive uma democracia racial, mas você vai nos espaços e o negro não está presente”, questiona.
Alcântara acredita na construção de uma democracia racial “A partir do momento em que a gente consiga entender que existe um processo violento que começa desde a escravidão contra o povo negro, desde a diáspora africana até os dias de hoje, entender que nós precisamos criar meios, políticas e debates para que essas ranhuras e feridas diminuam e que a gente saiba o sentido realmente de igualdade, de democracia racial”.
O Rio Grande do Sul não é branco
Conforme a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD) da Univates Karen Pires, entre 1502 e 1860 mais de 9,5 milhões de africanos foram sequestrados para as Américas, e o Brasil se destacava como o maior importador de homens pretos. “A história da abolição no Brasil se diferenciou do restante do mundo em função do tempo de duração”, analisa Karen.
Karen trabalha no Laboratório de Arqueologia da Univates e está se debruçando na investigação da história do negro do Vale do Taquari. Pesquisas estão sendo desenvolvidas no Laboratório, vinculadas ao projeto “Arqueologia, História Ambiental e Etno-História do Rio Grande do Sul”. “Aos poucos, está sendo descortinada outra história da atual região do Vale do Taquari, para além da história da imigração europeia”, analisa a historiadora.
Uma cultura brasileira repleta de diversidade
Na Unidos de Lajeado, o grupo executa diferentes ritos religiosos, respeitando a tradição de cada família, fazem danças voltadas aos Orixás, cantam, dançam capoeira. Além disso, a associação recebe visitas de escolas e grupos e falam sobre a história e a cultura da comunidade. A história da cultura dessas comunidades está registrada na memória e é passada de geração em geração pela oralidade. “Estamos em contato com pesquisadores para analisarem nossa sede, onde já foram encontrados diversos utensílios e objetos que contam um pouco da nossa história”, comenta Oliveira. O agendamento de visitas deve ser feito pelo e-mail unidos.de.lajeado@gmail.com.
Olavo José da Silva, mais conhecido como “Tio Olavo”, tem 71 anos e faz parte da comunidade. Para ele, não existe separação pela etnia. “Existem pessoas boas em tudo que é raça, pessoas ruins em tudo que é raça. Pessoas honestas, caloteiras. Não é a raça que determina o ser humano”. Para ele, a palavra-chave para um país melhor é o respeito. “A gente precisa se importar com o outro, respeitar o outro. É preciso ter mais amor ao próximo”, defende.
Um assunto que não deve ficar fora de pauta
“De novo esse assunto? Sim, de novo porque ele aparece quase sempre com máscaras. Uma delas é dizer que aqui não existe racismo, pois somos um país mestiço. Sem dúvida, muitos de nós carregam a mistura racial e isso, obviamente, não é um problema ou vergonha. No entanto, na minha opinião, esse discurso é letal para a luta étnico-racial, pois geralmente arremata qualquer discussão sobre racismo”. A afirmação é da professora doutora Rosane Cardoso, do Centro de Ciências Humanas e Sociais.
