Um mergulho de 10 mil anos na história da região, contado em linguagem acessível e ancorado em sólida pesquisa científica. Assim pode ser descrito o website http://www.ahistoriadovaledotaquari.com.br, lançado pelo Laboratório de Arqueologia do Museu de Ciências da Universidade do Vale do Taquari - Univates como principal produto do projeto “Vale do Taquari: uma história de longa duração”. A iniciativa reúne e divulga, em formato digital, resultados de décadas de estudos e descobertas arqueológicas e históricas, articulando-os a pesquisas desenvolvidas em outras instituições do Brasil, do Rio Grande do Sul e até de países vizinhos.
O site, pensado para ser uma ferramenta acessível tanto para estudantes e professores como para o público em geral, tem a missão de aproximar a comunidade da própria história. Entre os temas abordados estão a história indígena, a colonização européia, história negra e o patrimônio arqueológico e histórico regional.
“Trata-se de um projeto que busca democratizar o conhecimento científico, mas sem abrir mão do rigor acadêmico”, destacam os pesquisadores Marcos Kreutz e Fernanda Schneider, que atuaram na coordenação da proposta. “O objetivo é dar visibilidade a processos históricos de longa duração, muitos deles pouco conhecidos ou esquecidos pela população atual do Vale do Taquari.”
A equipe responsável é integrada por Neli Teresinha Galarce Machado, Fernanda Schneider, Marcos Rogério Kreutz, Patrícia Schneider, Andréa Zysko e Ândrea Pozzebon Silva.
Um dos materiais apresentados, pontas de projétil associadas aos caçadores e coletores do Sul do Brasil.
Uma história de longa duração
A proposta do site parte de um conceito central: pensar a história do Vale do Taquari em larga escala temporal, desde a chegada dos primeiros humanos às Américas até acontecimentos recentes, como as enchentes históricas de 2023 e 2024, que também impactaram sítios arqueológicos da região.
“Não se trata apenas de contar uma sucessão de datas e eventos. O que buscamos é mostrar como diferentes povos e processos se entrelaçam, formando a identidade regional”, explica Fernanda Schneider.
O conteúdo foi construído principalmente a partir das pesquisas realizadas ao longo das últimas duas décadas pelo Laboratório de Arqueologia da Univates (LABARQ). Fundado nos anos 2000, o LABARQ consolidou-se como um dos principais centros de estudo do patrimônio arqueológico do RS realizando escavações, análises e trabalhos de preservação. Mas o site também dialoga com investigações conduzidas em outras universidades, museus e centros de pesquisa, ampliando o escopo de informações.
Segundo Marcos Kreutz, “a ideia é que o projeto sirva como uma porta de entrada para a história do Vale, mas também como referência para quem deseja aprofundar-se. Por isso, cada conteúdo é amparado em fontes científicas e em documentos históricos, permitindo que professores, estudantes e a comunidade em geral tenham acesso a informações seguras”.
Linha do tempo interativa
Um dos destaques do website é a linha do tempo interativa, que organiza de forma didática os principais marcos históricos relacionados ao Vale do Taquari, mas sempre em diálogo com a história mais ampla do Rio Grande do Sul, do Brasil e das Américas.
Essa linha do tempo inicia há cerca de 40 mil anos, com a chegada dos primeiros humanos ao continente americano, e segue até os dias atuais. Os marcos são apresentados com breves explicações e links para aprofundamento, permitindo que o visitante navegue entre diferentes períodos.
Entre os pontos abordados estão:
40.000 anos atrás – Primeiros habitantes chegam na América.
20.000 anos atrás – Primeiros habitantes chegam ao Brasil
12.000 anos atrás – Povoamento do Rio Grande do Sul por caçadores e coletores
10.000 anos atrás – Caçadores e coletores circulam pelo Vale do Taquari
4.000 anos atrás – Construção dos primeiros sambaquis no Rio Grande do Sul
2.200 anos atrás – Formação dos primeiros cerritos no Rio Grande do Sul.
1.800 anos atrás – Chegada dos povos Jê no Sul no Rio Grande do Sul.
1.100 anos atrás – Chegada dos povos Jê do Sul no Vale do Taquari.
700 a 600 anos atrás - Primeiros registros de sítios Guarani no Vale do Taquari.
700 a 600 anos atrás – Últimos registros de ocupação dos Jê do Sul na região e auge da presença Guarani.
1492 – Desembarque de Cristóvão Colombo nas Bahamas, marco da expansão europeia no continente.
1500 – Chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil.
1626 – Fundação da primeira redução jesuítica no Rio Grande do Sul.
1635 – As aldeias Guarani no Vale do Taquari recebem visita dos Jesuítas.
1636 – Incursões de bandeirantes paulistas na região.
1750 – Início da colonização europeia no Vale.
1753 – Deflagração da Guerra Guaranítica, envolvendo indígenas contra tropas luso-espanholas.
1766 – Primeiros registros de pessoas negras escravizadas no Vale do Taquari.
1809 – Criação dos primeiros municípios do Rio Grande do Sul.
1824 – Chegada dos primeiros imigrantes germânicos.
1835 – Revolução Farroupilha.
1849 – Os Kaingang no RS convivem com Pierre Mabilde
1856 – Conflito entre Kaingang e imigrantes alemães em São Vendelino.
1867 – Colonização italiana no norte do Vale do Taquari.
1888 – Abolição da escravidão.
1895 – Primeiros registros de pesquisas arqueológicas profissionais no Brasil.
1960-1980 – Registro e catalogação de sítios arqueológicos no Vale; criação do LABARQ.
2000 – Reconhecimento da Comunidade São Roque como remanescente quilombola.
2005 e 2010 – Grandes enchentes na bacia do Taquari-Antas.
2023-2024 – Pesquisas em sítios arqueológicos impactados pelas enchentes mais recentes.
Prospecção arqueológica em paisagem ocupada por povos caçadores e coletores no Vale do Taquari. Município de Sério/RS.
Entre indígenas, colonizadores e arqueólogos
A narrativa construída pelo projeto dá visibilidade especial à história indígena, frequentemente negada e invisibilizada nos manuais tradicionais. Povos caçadores-coletores, Guarani e Kaingang tiveram presença fundamental na conformação do território. O site mostra como suas práticas, deslocamentos e conflitos moldaram a ocupação do espaço antes mesmo da chegada dos colonizadores.
A linha do tempo também evidencia os impactos da colonização europeia, iniciada no século XVIII com a doação de sesmarias e o estabelecimento de fazendas, seguida pela imigração germânica e italiana. Essa colonização foi marcada por conflitos com populações indígenas, exploração do trabalho escravizado e transformações profundas na paisagem regional.
Outro eixo importante é a valorização do patrimônio arqueológico, com destaque para os sítios identificados no Vale desde os anos 1960 e para os trabalhos do LABARQ a partir dos anos 2000. Esses registros permitem compreender, por exemplo, os modos de vida dos primeiros habitantes da região, os contatos culturais entre diferentes povos e a transformação do território ao longo do tempo.
Da pesquisa ao ensino e à comunidade
Além de divulgar resultados científicos, o site busca cumprir uma função educativa. Professores podem utilizar os materiais em sala de aula, enriquecendo o ensino de história, arqueologia e patrimônio cultural com conteúdos regionalizados.
“Queremos que a comunidade se reconheça nessa história. Muitas vezes, os estudantes aprendem sobre os egípcios, gregos ou romanos, mas não têm acesso à história dos povos que viveram aqui, onde moram. Esse projeto ajuda a preencher essa lacuna”, ressaltam os pesquisadores.
O caráter didático também se manifesta na linguagem acessível e na organização dos conteúdos. Ao navegar pelo site, o visitante encontra textos curtos, imagens, mapas e a linha do tempo interativa, que permitem uma compreensão rápida, mas também oferecem links para aprofundamentos.
O papel da Lei Paulo Gustavo
A iniciativa foi concretizada com o apoio da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022), a partir da aprovação no Edital SEDAC/LPG nº 11/2023 – Pesquisa, Registro e Memória, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul. O projeto só foi possível graças ao financiamento obtido por meio da Lei Paulo Gustavo, que destinou recursos federais para a recuperação do setor cultural após os impactos da pandemia. No Rio Grande do Sul, a proposta foi aprovada no Edital SEDAC/LPG nº 11/2023 – Pesquisa, Registro e Memória, voltado especificamente a iniciativas que promovem a preservação e difusão da memória cultural.
A importância de olhar para trás
No projeto, as enchentes de 2023 e 2024 são apresentadas como eventos recentes, ao mesmo tempo que como marcos de um processo histórico mais amplo de interação entre comunidades humanas e o meio ambiente. O impacto desses eventos sobre sítios arqueológicos da região, dessa forma, é um lembrete de que a preservação do patrimônio cultural também está ligada à resiliência ambiental e social.
