Um bolo enriquecido com farinha de casca de uva tem potencialidade para integrar o cardápio das escolas municipais de Dois Lajeados, Rio Grande do Sul. A conclusão é de um estudo realizado por uma acadêmica do curso de Nutrição da Universidade do Vale do Taquari – Univates, que avaliou a aceitação sensorial de diferentes formulações do alimento entre crianças do 1° ao 5° ano do ensino fundamental de uma escola do município.
Dentre as três formulações propostas, a pesquisa apontou que a Formulação 1 (F1), com 25% de substituição da farinha de trigo por farinha de casca de uva da variedade Concord, foi a preparação melhor aceita, ou seja, a única a atingir o Índice de Aceitabilidade (IA%) mínimo exigido de 85% para ser incorporada à alimentação escolar, conforme os critérios do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Provavelmente, por apresentar maior proximidade com os hábitos alimentares infantis, devido ao seu menor percentual de farinha de uva em relação às outras duas formulações.
O trabalho, intitulado “Farinha de casca de uva: elaboração e aceitabilidade em bolo”, foi desenvolvido como Artigo de Conclusão de Curso II (TCC II) da estudante Helen Cristina Girardi Consoli, sob orientação da professora Patrícia Fassina Cé, com participação das docentes Simara Rufatto Conde e Juliana Paula Bruch Bertani na banca avaliadora.
Embora apenas a F1 tenha alcançado o índice estabelecido, todas as três formulações obtiveram notas médias superiores a 4,0 (em uma escala de 1 a 5), o que indica boa aceitação geral no teste sensorial aplicado do tipo afetivo, composto por uma escala hedônica facial proposta pelo PNAE, que considera cinco expressões faciais (carinha) equivalentes a uma escala de cinco pontos, que variou de 1 “detestei” a 5 “adorei” para o atributo aceitação global. Para as pesquisadoras, os resultados demonstram que a incorporação de subprodutos agroindustriais em preparações alimentares infantis pode ser uma estratégia promissora para agregar maior valor nutricional ao alimento, além de aliar sustentabilidade, educação alimentar e saúde às crianças.
Valorização de resíduos e alimentação saudável
O estudo parte de um problema ambiental e nutricional contemporâneo: o descarte inadequado dos resíduos da produção vitivinícola. Na fabricação de sucos e vinhos, o bagaço de uva, composto por cascas, sementes e parte da polpa, representa cerca de 25% do peso total das uvas processadas. Quando não é aproveitado, esse material pode se tornar um agente poluidor, contribuindo para a contaminação do solo e da água.
Ao mesmo tempo, a casca da uva é rica em compostos bioativos de alto valor funcional, como polifenóis, antocianinas, resveratrol, flavonóis, catequinas e proantocianidinas, substâncias conhecidas por suas propriedades antioxidantes, anti-inflamatórias, antimicrobianas e antitumorais. A pesquisa da Univates buscou, portanto, reintegrar esse resíduo à cadeia alimentar por meio da produção de farinha, oferecendo uma alternativa que combina nutrição e sustentabilidade.
Segundo Helen Consoli aponta no trabalho, o estudo surgiu da preocupação em reduzir o desperdício e propor soluções viáveis para a alimentação escolar, promovendo hábitos alimentares mais conscientes.
Como a farinha foi produzida
A matéria-prima utilizada na pesquisa, o bagaço da uva da variedade Concord, foi coletada em uma indústria de sucos e vinhos do município de Dois Lajeados (RS), onde o resíduo seria descartado. O processo de transformação em farinha foi simples, artesanal e de baixo custo, mostrando-se acessível para futuras reproduções em pequena escala.
O procedimento envolveu: separação das cascas do restante do bagaço, com remoção das sementes; moagem inicial das cascas em multiprocessador; secagem em forno elétrico a 180°C por aproximadamente 50 minutos; moagem final em liquidificador até a obtenção do pó fino.
A farinha resultante apresentou coloração arroxeada intensa e aroma característico de uva, atributos que conferiram atratividade visual e sensorial às formulações dos bolos.
Três formulações, um objetivo
Com a farinha de casca de uva devidamente preparada, a equipe desenvolveu três versões de bolo, utilizando como ponto de partida uma receita-base de bolo branco simples. As formulações variaram conforme a proporção de substituição da farinha de trigo pela farinha de casca de uva, resultando em três combinações distintas:
Formulação 1 (F1): substituição de 25% da farinha de trigo por farinha de casca de uva, utilizando 120 g de farinha de casca de uva e 360 g de farinha de trigo;
Formulação 2 (F2): substituição de 50%, com 240 g de farinha de casca de uva e 240 g de farinha de trigo;
Formulação 3 (F3): substituição de 75%, composta por 360 g de farinha de casca de uva e 120 g de farinha de trigo.
O preparo seguiu etapas tradicionais: mistura de ovos e açúcar, adição de manteiga e leite, e incorporação gradual das farinhas até formar uma massa homogênea. Os bolos foram assados em forno pré-aquecido a 180°C por cerca de 45 minutos.
O resultado visual das formulações variou conforme a concentração de farinha de casca de uva, quanto maior a proporção, mais escura a coloração e mais intensa a presença de sabor residual da uva. Essas diferenças influenciaram diretamente a aceitabilidade sensorial entre os participantes do estudo.
Teste com estudantes de Dois Lajeados
A etapa de avaliação sensorial envolveu 145 crianças matriculadas do 1º ao 5º ano do ensino fundamental de escolas do município de Dois Lajeados/RS. O objetivo foi mensurar a aceitação global das três formulações utilizando o método afetivo com escala hedônica facial do PNAE, que vai de 1 (“detestei”) a 5 (“adorei”).
As crianças provaram amostras de cerca de 40 gramas de cada bolo, apresentadas de forma padronizada e codificada. A segunda série foi a mais representativa na amostra (22,8%), enquanto a quinta série teve o menor número de participantes (16,6%).
De acordo com os critérios do PNAE, o Índice de Aceitabilidade (IA%) deve ser igual ou superior a 85% nas notas 4 (“gostei”) e 5 (“adorei”) para que o alimento possa ser incorporado ao cardápio escolar.
Resultados: sabor aprovado pelas crianças
Os resultados indicaram boa aceitação geral de todas as formulações. As médias das notas ficaram acima de 4,0 em todos os casos:
F1: 4,4 (Desvio Padrão 0,9)
F2: 4,2 (Desvio Padrão 1,0)
F3: 4,3 (Desvio Padrão 1,2)
A análise estatística, com os testes de Friedman e Kruskal-Wallis, não revelou diferenças significativas (p>0,05) entre as formulações, nem entre as séries escolares. Isso indica que todas as crianças demonstraram níveis semelhantes de aprovação, independentemente da idade.
Contudo, ao aplicar o critério de aceitabilidade do PNAE, observou-se que apenas a Formulação 1 (F1) atingiu o índice mínimo de 85% em diversas turmas (1ª, 4ª e 5ª séries), sendo portanto a única apta a ser incorporada ao cardápio escolar.
A F3 apresentou desempenho intermediário, aceita por estudantes da 1ª e 3ª série, enquanto a F2 teve a menor aprovação, atingindo o IA% apenas na 5ª série.
Para os pesquisadores, a maior aceitação da F1 está relacionada às características sensoriais preferidas pelo público infantil, como sabor doce, textura macia e aparência familiar.
“As crianças estão habituadas ao sabor e à textura do bolo tradicional. Quando a concentração de farinha de casca de uva é muito alta, o sabor e a cor se tornam mais intensos, o que pode causar estranhamento”, explica a professora Patrícia Fassina Cé, orientadora do trabalho.
Ela ressalta, contudo, que mesmo as formulações com maior teor de farinha de uva apresentaram aceitação acima da média esperada, o que reforça o potencial da farinha como ingrediente funcional na alimentação infantil.
Sustentabilidade e potencial educativo
Além do valor nutricional, a utilização da farinha de casca de uva carrega um importante valor pedagógico e ambiental. A pesquisadora destaca que o projeto ajuda a aproximar os estudantes de temas como aproveitamento integral dos alimentos, sustentabilidade e consumo consciente. A proposta vai ao encontro dos princípios do Programa Nacional de Alimentação Escolar, que incentiva a oferta de alimentos regionais, sustentáveis e saudáveis, priorizando o desenvolvimento local e o combate ao desperdício.
“Trabalhar com resíduos agroindustriais significa dar uma nova vida a um material que seria descartado. É um processo de economia circular que transforma um problema ambiental em uma solução alimentar”, comenta Helen Consoli. A pesquisadora acrescenta que o estudo também demonstra a viabilidade econômica e técnica da produção de farinhas a partir de subprodutos agrícolas, com baixo custo e fácil implementação.
Limitações e próximos passos
O estudo reconhece algumas limitações que podem ser consideradas em futuras pesquisas. A avaliação sensorial foi realizada em ambiente escolar, o que pode ter gerado distrações e influenciado as respostas. Além disso, as amostras foram oferecidas em um único momento, sem acompanhamento do consumo repetido ao longo do tempo.
Outro ponto importante é que não foi realizada a análise físico-química das formulações, o que impossibilita uma discussão mais detalhada sobre o valor nutricional obtido com a incorporação da farinha.
Como etapa seguinte, os autores sugerem a realização de um novo teste de aceitabilidade, incluindo a análise do resto-ingesta, ou seja, o que sobra no prato, metodologia recomendada pelo PNAE para avaliar o consumo efetivo dos alimentos no ambiente escolar.
Alimento sustentável com sabor de futuro
Os resultados do trabalho indicam que a Formulação 1, com 25% de farinha de casca de uva, é segura, bem aceita e sustentável, representando uma alternativa real para enriquecer o cardápio escolar e promover a educação alimentar de crianças.
O projeto simboliza um modelo de inovação social, ao unir ciência, educação e responsabilidade ambiental. A transformação de um resíduo agrícola em um alimento saudável e saboroso ilustra o potencial da pesquisa universitária para gerar impactos positivos na comunidade.
A orientadora Patrícia Fassina Cé reforça a importância da continuidade de estudos nessa linha: “Projetos como esse mostram que é possível produzir conhecimento científico com aplicabilidade direta no cotidiano das pessoas. A pesquisa contribui para a saúde das crianças, para o meio ambiente e para o fortalecimento das práticas sustentáveis nas escolas.”
