Por que tantas empresas familiares falham ao “passar o bastão” para a nova geração?
Apesar de representarem mais de 90% das organizações no Brasil, segundo dados do IBGE, muitas empresas enfrentam dificuldades estruturais quando os vínculos afetivos se sobrepõem à lógica da gestão profissional. Entre os desafios mais recorrentes está a substituição de critérios técnicos por decisões orientadas por laços pessoais - uma prática que compromete seriamente a legitimidade da liderança e enfraquece a cultura organizacional.
A autoridade, para ser reconhecida e respeitada, deve estar associada à competência, ao exemplo e à confiança. Quando prevalece uma lógica de favorecimento, muitas vezes resultante de relações familiares ou acordos informais, perde-se a capacidade de inspirar, coordenar e exigir resultados. A condução baseada exclusivamente em afinidades, em vez de mérito, gera ambientes de trabalho marcados por desconfiança, desmotivação e conflitos silenciosos.
De acordo com Mendes (2016)¹, um dos maiores riscos enfrentados pelas empresas familiares está na confusão entre os papéis de herdeiro e sucessor. O simples fato de um membro da família estar na linha de sucessão não o torna automaticamente apto a liderar a organização. Para que a liderança seja legítima, o perfil do sucessor deve ser avaliado com base em critérios objetivos, que envolvam competências técnicas, habilidades de gestão, capacidade de tomada de decisão e visão estratégica.
Assim, o desenvolvimento de lideranças, mesmo no âmbito familiar, deve ser conduzido de forma sistematizada. O sucessor precisa ser preparado não apenas para preservar o legado, mas também para propor melhorias e adaptar a gestão às exigências contemporâneas. Quando esse processo é negligenciado e a sucessão ocorre apenas com base na convivência com o fundador, sem planejamento estruturado, o risco de rupturas internas se intensifica.
A ausência de critérios claros para ocupação de cargos de liderança também compromete a legitimidade da gestão. Quando os colaboradores percebem que promoções e decisões são tomadas com base em afinidades pessoais ou compromissos informais, em vez de desempenho e competências, a liderança perde sua força moral. Como consequência, instalam-se disputas internas, ressentimentos e um enfraquecimento do respeito às hierarquias.
Uma cultura organizacional forte, que reconhece o mérito e o desenvolvimento de cada pessoa, é essencial para restaurar essa legitimidade. Tal cultura se mede menos por discursos vazios e mais pelas trajetórias que é capaz de acolher, promover e valorizar, garantindo que o verdadeiro motor do crescimento seja a competência e o esforço individual, não as relações pessoais.
Essa fragilidade se acentua ainda mais quando não há um plano sucessório estruturado. O perfil do futuro líder deve ser definido com antecedência, com base em requisitos profissionais, como conhecimento do negócio, habilidades de comunicação, espírito empreendedor e compromisso com a continuidade do empreendimento. Um sucessor preparado e reconhecido pela equipe como alguém competente, e não apenas como “o filho do dono”, tende a exercer uma liderança mais legítima e eficaz.
Mas isso também não significa aumentar de forma desproporcional e injustificada o rigor com os familiares. Como na maioria das coisas da vida, quando você faz o básico bem feito, já está à frente da maioria. O óbvio não é trivial.
Nesse sentido, a profissionalização da gestão e o fortalecimento de mecanismos formais de governança são fundamentais para preservar a autoridade nas empresas familiares. É preciso romper com a lógica dos arranjos informais, do favorecimento e das decisões de bastidor. Em seu lugar, deve-se instituir uma cultura organizacional orientada por mérito, planejamento estratégico e compromisso com a sustentabilidade do negócio.
Somente assim será possível transformar o capital simbólico da família, como a confiança e o envolvimento, em um verdadeiro diferencial competitivo. Empresas que confundem laços de sangue com aptidão de comando, cedo ou tarde, colhem os frutos da autoridade comprometida e da liderança desacreditada.
Muitas vezes, também é hora de tirar o véu da ilusão e da projeção do sucessor perfeito que foi sonhado, misturado à utopia do filho ou da filha que você gostaria de ter tido e criado. Você fez o que pôde, e seus sucessores são o que conseguem ser. Todos podemos nos desenvolver, mas forçar a barra não vai acelerar os processos que devem ser vividos até que pais e filhos encontrem o equilíbrio e a maturidade em seus papéis.
¹ MENDES, Luís A. Lobão. Coleção Família e Negócio: Volume 1 - Os desafios da empresa familiar - Belo Horizonte, 2016.