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Veredas da Linguagem, um projeto que alimenta sonhos

Postado as 30/11/2018 09:58:45

Por Nicole Morás

“Quando eu sair daqui, vou fazer faculdade”. Nessa frase, a palavra “daqui” poderia referir-se a uma escola e certamente representaria uma realização importante para quem busca novas oportunidades com o ingresso no ensino superior. Imagine, então, se essa frase fosse dita dentro de uma penitenciária no Brasil, onde 75% da população prisional do país não chegou ao ensino médio e menos de 1% dos presos possui graduação, conforme dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.

Pois foi exatamente nesse contexto que uma jovem expressou seu desejo de seguir os estudos e reescrever sua própria história. Parte desse sonho se deve às atividades realizadas semanalmente no Presídio Feminino de Lajeado pelas voluntárias do eixo Linguagem e Corporeidade do projeto de extensão Veredas da Linguagem da Univates. Ao todo, são seis eixos temáticos que integram o projeto e oportunizam a acadêmicos e diplomados a formação teórico-prática sobre a linguagem e suas múltiplas interfaces – ensino, arte, literatura, tecnologia, corporeidade, ludicidade e cognição – a fim de contemplar demandas da comunidade.

Nesse sentido, muito mais do que trabalhar a consciência corporal, o projeto tem possibilitado às cerca de 20 mulheres que cumprem pena na casa prisional a oportunidade de repensarem suas vidas, suas certezas e suas perspectivas.

Nicole Morás

Por meio de atividades de integração e expressão, as ações do projeto estimulam as apenadas a melhorarem a convivência. Durante a visita que a Revista Univates acompanhou, no início de julho, não fosse pela falta de janelas ou pelas grades da porta, nem se poderia dizer que o local da reportagem era dentro de um presídio, porque o forró, as chiquitas e o balde de pipoca deram o tom das atividades.

Reunidas no refeitório com cerca de 30 m2 por causa do dia chuvoso, cerca de 15 mulheres e mais seis voluntárias do projeto de extensão se revezavam entre brincadeiras e passos de dança em uma festa de São João improvisada.

De acordo com a coordenadora do eixo Linguagem e Corporeidade, professora Silvane Fensterseifer Isse, as atividades realizadas com o grupo permitem a ampliação das experiências de movimento, a potencialização das atividades corporais, a contribuição para o empoderamento feminino, a ocupação do tempo e a ampliação das relações intra e interpessoais.

 

Quando iniciamos as ações do projeto, um dos nossos principais objetivos era a humanização da permanência das mulheres no presídio. Hoje, entendemos que conviver com as mulheres apenadas, conhecer suas histórias, dançar, cantar, jogar ou dialogar com elas vai muito além disso. Cada sorriso, gesto, aceno, abraço e experiência compartilhada é uma expressão de vínculo, confiança e crença na potência das relações humanas
Silvane Fensterseifer Isse

Para E., que cumpre pena há cerca de 10 meses, as atividades do projeto ajudam as participantes a trocarem ideias, respeitarem mais umas às outras e o espaço de cada uma, além de as fazerem refletir. “Conversando  a gente percebe que existem outras oportunidades e que podemos fazer diferente para não cometer os mesmos erros. Passamos a dar valor para coisas que antes não dávamos e conseguimos enxergar coisas que antes não percebíamos. É como ter uma segunda chance em uma sociedade que geralmente nos discrimina e acredita que nós não temos mais jeito, que não somos capazes”, desabafa.

Nicole Morás

Quem também percebe os resultados das atividades do projeto na melhoria da qualidade das relações entre as apenadas é a psicóloga Etiane Moreira, que realiza atendimentos no local. “É possível perceber que elas têm se relacionado melhor e não é raro vê-las se alongando ou dançando. As sextas-feiras são muito felizes por aqui e vejo que elas são muito receptivas a quem entra no meio onde elas estão, pois é um sinal de confiança. Com certeza, esse movimento de adentrar o espaço do presídio diminui o receio que elas têm de saírem e serem estigmatizadas”, reflete a psicóloga.

Etiane acresceta que o Presídio Feminino de Lajeado mantém algumas particularidades que não são vistas em todas as casas prisionais e, por isso, algumas ações diferenciadas são possíveis. As mulheres chegam aqui e se veem obrigadas a conviverem umas com as outras, o que causa estranhamento. Assim, as atividades grupais, como as do projeto da Univates, contribuem para melhorar as relações do grupo”, analisa.

Tricotando esperança

 

Uma das ações realizadas pelas apenadas é a confecção de roupas e acessórios de tricô e crochê para serem doados a crianças de escolas de educação infantil de bairros carentes. Liberadas mediante um pedido especial da direção da casa prisional, as agulhas de alumínio encontram linhas doadas e transformam-se em cachecóis, meias e vestidos pelas mãos habilidosas de quem encontra distração nas atividades manuais. Conforme E., a confecção das peças é voluntária. “Nem todas sabem como fazer, mas uma vai ensinando a outra e trocamos ideias.

Hoje, essa atividade só é realizada graças a doações de linhas”, explica. O objetivo agora é destinar uma quantia mensal do orçamento do presídio para a viabilização do projeto de tricô e crochê. “Nossa ideia é produzir as peças durante o ano inteiro para que haja um volume maior de doações no próximo inverno”, explica E. Em apoio à iniciativa, o Veredas da Linguagem recolhe doações de linhas nas caixas coletoras disponíveis nos Prédios 9, 12 e 16 da Univates. As apenadas também podem produzir peças com a lã levada por parentes e, assim, conseguem presentear filhos e netos ou contribuir para a renda da  família.

Voluntariado

Uma das voluntárias que atua no Presídio Feminino de Lajeado é a diplomada em Educação Física Bibiana Scheer, que começou a participar do projeto no início deste ano. “Desde a graduação, sempre gostei das intenções do Veredas da Linguagem como um todo, porém minha carga horária não me permitia participar. Quando me graduei, apareceu um espaço na agenda e de imediato me voluntariei”, explica. Para Bibiana, que é professora de dança e em sua proposta de trabalho está o empoderamento feminino, as atividades que realiza com suas alunas provocam, de dentro para fora, um movimento de reflexão e autocrítica, que com o passar do tempo vai se exteriorizando para a postura, o comportamento, os movimentos, a fala.

Nicole Morás

“Dentro do Presídio, as mesmas experiências são absurdamente mais potentes e fortes, provocam efeitos surpreendentes e positivos que já no decorrer da atividade são notórios. A cada semana é proposta uma atividade diferente, que reforça a intenção de fazer com que a convivência seja tolerável, as relações sejam brandas, estimule as mulheres a fazer uma atividade física, e que haja o processo de humanização e de empoderamento feminino. Esta é, sem dúvida, a experiência mais surpreendente que já tive. O espaço me instiga, as apenadas me instigam. Com toda certeza, esta experiência me faz perceber o mundo por uma perspectiva mais humana. Amo ser/fazer parte desse projeto”, afirma.

 

Outras ações do projeto de extensão Veredas da Linguagem

Além das ações no Presídio Feminino de Lajeado, os eixos do projeto de extensão realizam atividades em parceria com a Fundação para Reabilitação das Deformidades Craniofaciais (Fundef), a Escola Estadual de Ensino Fundamental Otília Correa de Lima e o grupo de imigrantes do município de Lajeado. A coordenadora do Veredas da Linguagem, professora Grasiela Bublitz, resume que o projeto de extensão poderia também ser denominado “projeto de transformação”, pois é o que acontece com quem participa dessas ações tão significativas. “Ou seja, há realmente uma mudança no modo de enxergar o mundo. Todos ganham nesse processo de transformação, tanto acadêmicos quanto Universidade e comunidade. Nos momentos de planejamento e avaliação das ações, a prática é repensada e replanejada de acordo com aquilo que se observa na comunidade, num constante movimento de retroalimentação, o que certamente complementa a formação do acadêmico e humaniza o seu olhar cidadão. É gratificante perceber que estamos semeando sonhos não só nas comunidades em que atuamos, mas também nos profissionais que estamos formando”, analisa.

Conheça mais ações que estimulam o sonho de diversas pessoas da comunidade.

Ana Amélia Ritt

 

Eixo Artístico-Literário e Fundef: em parceria com o curso de Design, o projeto buscou incentivar a leitura e tornar esse momento ainda mais prazeroso entre os pacientes que frequentam a Casa de Acolhida da Fundação. Em 2017, com o desafio de criar mobiliários com o tema leitura, 24 estudantes da disciplina de Design Mobiliário, orientados pelos professores Raquel Barcelos Souza e Bruno Teixeira, planejaram e produziram móveis que foram doados à Casa de Acolhida da Fundef. Também foram realizadas campanha de arrecadação de livros para serem doados à instituição, contação de histórias, exibições cinematográficas, oficinas artísticas e de escrita criativa, entre outras atividades direcionadas aos pacientes e familiares.

Ana Amélia Ritt

Trabalho com imigrantes: as aulas de português como língua adicional  oferecidas aos imigrantes que chegam a Lajeado iniciaram timidamente em 2014, em uma sala da Indústria Minuano de Alimentos, onde trabalhava a grande maioria dos alunos na época. Hoje, essas aulas fazem parte do projeto de extensão e ocorrem em uma sala de aula cedida pelo Colégio Estadual Presidente Castelo Branco, parceiro nessa ação. As atividades são planejadas em conjunto, buscando ensinar a língua para que os imigrantes possam agir na comunidade, enfrentando as diferentes situações comunicativas do dia a dia, numa constante troca de saberes e culturas que enriquece a formação de quem está ministrando as aulas. “Temos a certeza de que fomentamos os sonhos dos que aqui chegam, a começar pelo acolhimento necessário para sua integração na comunidade lajeadense”, finaliza Grasiela.

Essa matéria faz parte da Revista Univates, nº 8. A versão digital pode ser conferida aqui.