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De ‘rapaz latino-americano’ a gaúcho de coração

Postado as 12/07/2019 13:44:48

Por Liniker Duarte / Cultura e Eventos

Antônio Carlos Gomes Belchior, ou simplesmente Belchior, estaria completando 73 anos de idade e mais de 40 anos de carreira musical em 2019. Durante suas vindas ao Sul fez shows e muitos amigos aqui no estado, deixou um legado aos amantes da MPB e boas lembranças aos fãs gaúchos. No dia 14 de julho ele será lembrado e homenageado em show tributo que ocorre no Teatro Univates, a partir das 20h.

 

Natural da cidade de Sobral, no interior do Ceará, e nascido em 26 de outubro de 1946, Belchior tentou a faculdade de Medicina em Fortaleza, mas logo abandonou o curso e decidiu que seria artista. Tornou-se reconhecido nacionalmente quando venceu o IV Festival Universitário da MPB, com a canção “Na hora do almoço”. Na letra Belchior já deixava claro que não estava nada satisfeito com as mazelas e condições vividas pela população, causadas pela ditadura militar na época. Nas primeiras frases cantava: “No centro da sala, diante da mesa/ No fundo do prato, comida e tristeza/ A gente se olha/ Se toca e se cala...”.

 

Em parceria com Fagner, “Mucuripe” foi o primeiro sucesso. Belchior foi responsável por compor canções cheias de críticas sociais e poesia que são lembradas por gerações até hoje. Cantores e compositores da MPB, como Fagner, Elis Regina e Roberto Carlos, interpretaram suas canções fazendo fortes críticas à ditadura militar. Com o lançamento do álbum “Alucinação” (1976), considerado por muitos críticos musicais como o “mais revolucionário da história da MPB” e “um dos mais importantes para a música brasileira”, ele se consagrou. Em sua vasta discografia soma dezoito títulos lançados, sendo 12 LPs e seis CDs. Algumas canções que marcaram a sua carreira foram “Apenas um rapaz latino-americano”, “A palo seco”, “Como nossos pais” e “Velha roupa colorida”.

Longe dos holofotes

Divulgação

 

Em 2009 o cantor cearense decidiu se afastar da vida pública, da aglomeração e dos shows e passou a viver de maneira reclusa. Faleceu no interior do Rio Grande do Sul, em Santa Cruz do Sul, em 2017, onde pouquíssimos habitantes sabiam da permanência do artista. Um dos guardiões desse pequeno segredo é o amigo e fã Dogival Duarte (foto ao lado), 56, escritor, radialista e jornalista, que levou Belchior para morar em sua residência. Dogival concedeu entrevista à Univates e explica um pouco da sua relação de amizade com o cantor, das lembranças e da paixão de Belchior pelos livros e pelo Sul do Brasil.

Univates - Para você, quem foi Belchior? 

Duarte - Belchior foi um apaixonado pela cultura popular desde jovem, vivendo rodeado de artistas populares e amadores, em uma região que sempre foi um celeiro de artes variadas (música, literatura, cordel etc.) e no seminário (por onde esteve por três anos) teve boa, ampla e estruturada visão da cultura mundial. Depois foi para a universidade, onde estudou Medicina e permaneceu convivendo com ares de cultura e da música. Ou seja, o Belchior se tornou um dos grandes poetas a partir de sua dedicação ao mundo das artes. Ele tinha também uma veia humorística e posteriormente ampliou o lado artístico com o desenho e a pintura, a exemplo de alguns ídolos seus, como François Villon, poeta e desenhista francês. Belchior também navegou na arte em geral quando em sua obra cita vários escritores, poetas, pintores renomados e, de modo particular, mergulhou fundo na poesia nacional e internacional, na qual constantemente se inspirava e abria alas para sua arte. Foi o maior intérprete da vasta literatura de qualidade ou até mesmo de escritores desconhecidos e esquecidos de nosso tempo, como o poeta inglês John Donne, sem esquecer, é claro, o português Fernando Pessoa e uma variedade de poetas brasileiros, como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Cruz e Sousa, Castro Alves e Gonçalves Dias. Todos esses foram citados em sua obra, mas os que ele lia é uma multidão. Inclusive a gente falava muito dos poetas gaúchos, como Mário Quintana e o poeta-soldado Alceu Wamosy. Sem esquecer a “eterna” intertextualidade e constante diálogo do Belchior com a “Divina Comédia” do poeta italiano Dante Alighieri. São várias as passagens do Dante dentro da obra de Belchior e algumas até nos passam despercebidas, mas aqui cito duas mais famosas: “A morte fez metade do caminho”, primeiro verso de Dante, e “Amor que move o sol e outras estrelas”, último verso da Divina Comédia.

Univates: Como o conheceu e como era a sua relação próxima ao cantor?

 

Duarte - Tomei conhecimento da obra do Belchior nos anos 80 quando uma amiga me trouxe do Rio de Janeiro o disco com a música “Tudo outra vez”. Foi paixão à primeira vista. Daí comecei a ir nos shows dele quando ele estava no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre e depois em várias cidades. Na primeira vez, depois do show, fui ao camarim e entreguei meu livro a ele. Um dia ele me revelou que havia levado meu livro para a biblioteca dos escritores independentes de Nova Iorque. Fiquei feliz, ele tinha um carinho pessoal. Daí em diante, a cada encontro, a gente falava em literatura e projetos e a amizade foi crescendo e se intensificando. Sempre que eu lançava um livro, presenteava ele. Com o tempo passei a fazer entrevistas com ele e assim foram muitos e muitos encontros e conversas. Tudo isso estou narrando com mais amplitude no livro que estou concluindo sobre o Belchior.

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Univates - Podemos dizer que Belchior foi o responsável por levar canções cheias de críticas sociais e estava atento ao que acontecia ao seu redor?

Duarte - Belchior estava sempre atento à realidade e misturava isso com a literatura em geral. Por exemplo, um dia saiu uma reportagem no jornal Zero Hora sobre meninos de rua que estavam morando num esgoto. Não deu outra, no próximo trabalho, o Belchior veio com a música “Se você tivesse aparecido”, na qual ele se manifesta de forma contundente: “Garotos no esgoto, são ratos?, são homens? Suave é a noite?”. Em uma tacada só ele mistura a realidade dos meninos, cita os escritores John Steinbeck e Dyonélio Machado que escreveram livros sobre o tema e indaga se isso é ser um homem do futuro, morando no esgoto, e arremata perguntando se a noite continua suave, de Scott Fitzgerald. Depois indaga: “Seremos vencidos” por tudo isso? Nessa música ele também cita poetas como William Blake, Lord Byron , o livro “A Leste do Éden” e “Vinhas da Ira”, de John Steinbeck. Então, num pequeno poema ele abrange uma vasta realidade social nacional e internacional e a funde com  literatura, citando e invocando gênios de nossa caminhada como humanidade.

Univates - Para você quais músicas do artista mais marcaram o Brasil e possuem um grande significado para a época e também para os dias atuais?

Duarte - Em geral é a música “Medo de avião”, pois traz uma conjuntura que atinge muita gente. Depois “Rapaz latino-americano”, que é um grito de libertação do oprimido e retrata a vida abaixo da linha do equador. “Tudo outra vez” é um hino também, além de “Velha roupa colorida”. Tem “Mucuripe”, que Fagner e Roberto Carlos gravaram e se tornaram hinos também. “Velha roupa colorida” e “Como nossos pais”, que a Elis Regina gravou, e foram um sucesso imediato. Além de  “Paralelas”, que foi gravada em italiano. Mas tem músicas desconhecidas do grande público que são magistrais. Trata-se de uma obra monumental.

Univates - Em 2009 ele decidiu viver recluso e longe da vida pública. Por que ele escolheu Santa Cruz do Sul para ser sua última morada? 

Duarte - De fato, lá pelas tantas, em 2009 ele desapareceu dos palcos. Primeiramente foi para o Uruguai, onde viveu na cidade de San Gregorio de Polanco, e após esteve em várias cidades gaúchas até chegar a Porto Alegre. Nesse meio tempo eu andava atrás dele, queria saber e sentir como ele estava e como poderíamos ajudá-lo. Até que um dia, meio que por acaso ou conexão, ele caiu em minha casa. Aqui fizemos de tudo por ele e para a sua companheira. Ele queria discrição, fizemos. Ele queria ler, desenhar, conversar, tomar vinho, conviver discretamente, fizemos. Nesses anos ele aproveitou para continuar revisando sua obra, lendo muito e desenhando constantemente, como personagens da Divina Comédia, escritores e poetas que admirava. Belchior ilustrou várias capas de seus discos com autor retratos e vasos de flores. À noite a gente conversava, com algumas taças de vinho, sobre literatura, cinema, política, realidade e coisas triviais, além de ele recordar histórias e contar causos. Além da minha casa, Belchior também morou na casa de alguns outros amigos até que decidimos alugar uma casa para ele, e foi onde faleceu.

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Muitos perguntam se o Belchior estava louco, pirado. Não, absolutamente não. Belchior estava sempre lúcido, falante, ouvinte (ele ouvia muito a gente), estava bem de saúde (pelo que se via), mas nunca aceitou ir ao médico nem ao oculista, como ofereci. O Belchior estava maravilhoso, só não aprofundava os assuntos pessoais tipo os motivos de seu sumiço dos palcos. Nesses casos ele saía pela tangente: “Estou lendo, compondo, desenhando, traduzindo minha obra para o espanhol”. E depois já emendava um assunto alegre ou jocoso. Era um artista 24 horas por dia. Quando eu pedia pra ele cantar, ele respondia: “Pois não, pode botar o CD aí que canto pra você”. E disparava uma risada que era impossível ficar petrificado perante ele.

Univates - Belchior falava em projetos futuros? Quais?

Duarte - Sim, quando a gente falava sobre isso, ele dizia: “Vamos preparar um momento grandioso, vamos preparar”. E o tempo ia passando, ou seja, ele não queria, mas não dizia que não. E já engatava um outro assunto ou, se alguém falasse algo, ele já dava uma enorme atenção e assim desviava o foco.

Univates - Para finalizar, qual a lembrança ou mensagem mais bonita que lhe vem em mente sobre o Belchior?

 

Duarte - Um poeta maduro, falante e muito ouvinte, que gostava de ensinar coisas simples e, ao mesmo tempo, complicadas, quando encontrava uma brecha. Por exemplo, quando esteve conosco, eu estava escrevendo meu primeiro romance. Ele citava histórias e casos de romancistas. Também foi uma época em que eu estava lendo o livro “Vida”, do Paulo Leminski, contendo quatro biografias, inclusive a do pai do haicai, Matsuo Bashô, e revelei para ele que não gostava de haicais. Pra já e com toda calma do mundo, ele começou a me falar sobre a história do haicai e citar importantes mestres. Acabei me apaixonando pelo haicai e hoje em dia me tornei um escritor do gênero também. A convivência diária com ele foi uma lição de vida a cada instante. Quando a gente tinha problemas, ele aconselhava. Lembro que uma noite fomos a um casamento, eu e minha esposa, e na saída ele disse: “O senhor está muito chique, sabe”. Rimos muito. Na hora de se despedir, falei: “Bel, fique em paz e, se achar um bom preço, pode vender a casa”. Ele riu e disse: “Pois o senhor não me provoque, sabe. Sou capaz de vender mesmo” (risos). Pois no outro dia, conversando, ele disse: “Aquele assunto de vender a casa, você lembra, não encontrei preço condizente” (risos). Ele lembrava de tudo e tudo ele levava na alegoria geral. Outra coisa maravilhosa era quando a gente chegava em casa do trabalho: eu, a minha esposa Bruna e meu filho Dionel. Se ele estivesse por perto, ia à porta interna da garagem e nos recebia com um largo e vasto sorriso e perguntava como estava o trabalho. Era a oitava maravilha do mundo.

O Show tributo

O show ocorre neste domingo, dia 14, no Teatro Univates, às 20h. Os ingressos variam de R$ 60 a R$ 120 e podem ser adquiridos na bilheteria do Teatro Univates ou on-line no site da Blueticket. Em caso de dúvidas contate o Teatro Univates pelo telefone (51) 3714-7000, ramal 5949, ou pelo e-mail bilheteria@univates.br.