
"A gente não fala sobre isso": pesquisa revela tabu da morte nas escolas gaúchas e aponta caminhos para romper o silêncio
Por Lucas George Wendt
|Postado em: 22/12/2025, 05:00:00
Em uma sociedade que naturaliza a morte nas telas de cinema e nas páginas dos jornais, mas a evita nas conversas do dia a dia, as escolas tornam-se espelhos desse paradoxo. Embora crianças e adolescentes inevitavelmente se deparem com situações de perda – de um animal de estimação, de um familiar, de um colega –, a temática da morte e do luto permanece praticamente ausente das salas de aula brasileiras. É o que revela a pesquisa "Educação sobre a morte e o luto nas escolas: percepções de educadoras de Educação Infantil e Anos Iniciais", desenvolvida por Suellen Schott como Trabalho de Conclusão de Curso em Psicologia na Universidade do Vale do Taquari - Univates.
O estudo, orientado pela professora Dra. Suzana Feldens Schwertner e aprovado por uma banca composta também pela Ma. Elisângela Mara Zanelatto e pelo professor Dr. Rogério José Schuck, investigou as percepções e vivências de educadoras da região do Vale do Taquari sobre como trabalhar questões relacionadas à morte e ao luto com estudantes. Os resultados apontam para um cenário marcado por dificuldades, silenciamentos e lacunas na formação docente, mas também revelam possibilidades de abordagem do tema que podem transformar a escola em um espaço de acolhimento e elaboração das perdas.

Um tema urgente, mas silenciado
A motivação para o estudo surgiu de uma experiência pessoal dolorosa da pesquisadora: a morte repentina do pai de seu filho. "A perda do mundo presumido de meu filho, motivada pela morte repentina de seu pai, despertou a busca de maior compreensão acerca da temática do luto", relata Suellen no texto da pesquisa. O impacto dessa vivência levou-a a questionar como as instituições escolares lidam com situações semelhantes e como os educadores manejam o tema quando ele se impõe na realidade dos estudantes.
A relevância do estudo ganhou contornos ainda mais intensos com a pandemia de COVID-19, que, segundo dados do Ministério da Saúde citados na pesquisa, vitimou mais de 702 mil pessoas no Brasil até maio de 2023. "Atrás de cada vida perdida existe um número muito maior de sujeitos de todas as idades, enlutados por terem perdido familiares, amigos ou colegas", destaca a pesquisadora, reforçando a urgência de olhar para essa temática no contexto escolar.
Apesar da onipresença da morte em produções culturais – de filmes como "Amour" e animações como "O Rei Leão" e "Soul" a séries como "After Life" –, o tema permanece sendo um tabu quando se trata de discuti-lo de forma mais próxima e pessoal, especialmente com crianças. "Embora o luto seja uma vivência a qual todos nós iremos experimentar (ou já experimentamos) em algum momento de nossa existência, ele segue sendo uma temática pouco discutida", observa Suellen.
Metodologia: ouvindo quem está na sala de aula
Para compreender como educadoras percebem e vivenciam a educação sobre a morte e o luto no ambiente escolar, a pesquisa adotou uma abordagem qualitativa e descritiva. A captação de participantes foi realizada através de folder divulgado em redes sociais (Instagram, Facebook e WhatsApp) e também presencialmente, com a distribuição de cartazes em escolas do município de Lajeado.
O estudo foi realizado com três educadoras, duas professoras de Anos Iniciais e uma psicopedagoga com idades entre 36 e 48 anos, todas atuantes no interior do Rio Grande do Sul. Foi realizado um grupo de discussão. As três educadoras, identificadas como P1, P2 e P3 para preservar suas identidades, participaram de três encontros presenciais na Brinquedoteca da Univates, realizados às terças-feiras entre 4 e 18 de abril de 2023. P1 atua há 17 anos na área da Educação em uma escola particular; P2 há 20 anos como docente na rede pública; e P3 possui 22 anos de docência e atualmente trabalha como psicopedagoga em três escolas públicas, atendendo estudantes da Educação Infantil ao Ensino Médio.
Cada encontro teve duração aproximada de 45 minutos e foi gravado em meio digital, com posterior transcrição integral. Os encontros foram estruturados com a leitura inicial de um livro de literatura infantil sobre o tema da morte, como forma de sensibilização e apresentação de um recurso pedagógico, seguida por perguntas disparadoras que geraram as discussões. Os dados foram analisados através da Análise Textual Discursiva (ATD), metodologia que permite compreender o objeto pesquisado a partir das perspectivas dos sujeitos investigados.
“Nossa cultura não é de falar da morte"
A primeira categoria de análise emergida dos encontros foi denominada "A morte (não) entra na sala de aula" e revelou a dificuldade generalizada em abordar o tema no contexto escolar. As educadoras foram unânimes em reconhecer que existe uma forte tendência cultural de evitar o assunto, uma tentativa de mitigar o luto através do silenciamento.
"O que eu vejo muito nas nossas escolas [...] a nossa cultura não é de falar da morte e desse tipo de coisa, sabe? 'Ah, não! Não vamos falar disso! Ah! Isso não', sabe? Cada vez acredito mais e penso mais que a gente precisa, sim, falar disso, porque isso é uma coisa certa na vida da gente", declarou P3 durante o primeiro encontro.
A pesquisa identificou que aspectos culturais regionais podem intensificar essa dificuldade. Além da questão cultural, as educadoras expressaram insegurança quanto à própria capacidade de lidar com o tema e preocupação com a reação das famílias. "É bem complicado, assim, é muito complicado! Porque o adulto não sabe lidar, também. Pensa na barra que uma mãe tem que segurar, dar conta?! Às vezes a gente não sabe realmente como chegar", disse P1. Outra participante acrescentou: "Eu não me sinto preparada para falar disso [...]. E outra questão: a gente precisa tomar sempre muito cuidado por causa das famílias também. Porque às vezes, dependendo do que tu traz, o que tu coloca, alguns não gostam".
A pesquisa contextualiza essas dificuldades citando o historiador Philippe Ariès, que documentou como a morte passou de um tema presente nas famílias e na sociedade para um assunto interdito.

Quando a morte entra pela porta: animais de estimação e rituais infantis
Embora a morte de pessoas seja evitada nas conversas escolares, a segunda categoria de análise, intitulada "Outros modos de abordar a morte e o luto nas escolas", revelou que o tema se manifesta naturalmente através de outras perdas vivenciadas pelas crianças, especialmente a morte de animais de estimação.
"Quando se trata da morte de um animal de estimação eles contam, mas quando se trata da perda de uma pessoa quem traz mais é a família", observou P1. P3 complementou: "Do bichinho de estimação, volta e meia vem um e conta: 'meu gatinho morreu, nós fizemos um velório' ou então: 'meu cachorro morreu', eles ficam muito sentidos". Outra educadora notou: "É interessante que eles trazem assim: 'Ah! Profe meu cachorrinho está lá' [referindo-se ao céu]".
Um relato particularmente revelador veio de P2, que descreveu como seus alunos realizavam espontaneamente rituais de despedida para pequenos animais e insetos encontrados mortos na escola: "A minha turma do ano passado, uma delas, quando eles encontravam um bichinho morto faziam uma caixinha bem bonitinha com papel dobrado. Perguntava o que estavam fazendo, respondiam que era 'o caixão da formiguinha'. No final da aula ou no recreio, eles iam correndo para um matinho fazer o enterro". A educadora prosseguiu: "Era quase que semanalmente, eles enterravam um bichinho. Teve até um passarinho que caiu e morreu. Eles também fizeram o enterro".
Esses comportamentos infantis, segundo a análise da pesquisa, não são mera brincadeira, mas formas importantes de elaboração e internalização dos rituais culturais relacionados à morte. A pesquisadora cita estudos que defendem que os rituais são essenciais, pois "dão contornos reais e ajudam a organizar a nova realidade imposta" pela perda.
O estudo aponta que essas situações poderiam ser aproveitadas pedagogicamente como oportunidades para abordar o tema de forma mais natural. "Não é necessário esperar que ocorra a perda concreta de um ente querido para abordar o tema com crianças", destaca a pesquisa, citando autores que sugerem que o assunto pode ser discutido a partir de situações vistas no cotidiano, como a perda de animais de estimação ou notícias sobre a morte de personalidades famosas.
"A gente estuda tanta coisa, mas nunca é algo referente a este tema"
A terceira categoria de análise, cujo título foi extraído da fala de uma das participantes, abordou as possibilidades e limitações para trabalhar a morte nas escolas. Um dos achados mais destacados foi a constatação de que existe uma lacuna na formação dos educadores sobre o tema.
"E esse suporte a gente tem que aprender nos cursos de Pedagogia, deveria ser uma das disciplinas, porque a gente realmente não tem essa, o como trabalhar com o luto", declarou P1. Outra educadora foi enfática: "Eu sinto falta do preparo em si. A gente estuda tanta coisa, busca, compra tantos livros, mas nunca é algo referente a esse tema". P3 acrescentou: "É pouco trabalhado o assunto, [...], a gente precisa trabalhar e falar disso, sim".
Apesar dessa lacuna na formação, a pesquisa revelou que as educadoras desenvolvem seus próprios recursos para lidar com situações de luto quando elas se apresentam. Questionadas sobre seu papel frente a um estudante enlutado, todas foram unânimes em destacar o acolhimento como principal estratégia.
"Acolher, acolher os sentimentos, acolher o que a família traz. Eu acho que o momento do luto, ele é tão difícil! Então tu acolher aquele sentimento do jeito que ele vier, com tristeza, com medo, com dúvidas. Eu acho que é pra acolher tudo o que está vindo com aquela criança", disse P1. P3 acrescentou uma observação importante: "O acolhimento é muito importante, mas também respeitar o silêncio, o silêncio fala também. A gente, como professor, como mediador, às vezes não tem o que dizer, o que fazer! Se a criança quer te trazer uma coisa, ela traz!". P2 resumiu: "O acolhimento, não vejo outra forma! Dar um colinho de vez em quando, um abraço. Não tem outra coisa que está em tuas mãos que tu possa fazer".
Quanto às possibilidades curriculares de abordar o tema, as educadoras demonstraram compreensão de que as habilidades previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Infantil e Anos Iniciais, como respeitar e expressar emoções, desenvolver empatia e respeitar diferentes modos de pensar, já oferecem abertura para trabalhar questões relacionadas à morte e ao luto. Elas entendem que a questão está mais na interpretação e na disposição das escolas e professores para abordar temas sensíveis do que nas diretrizes curriculares em si.
As participantes sugeriram que o tema poderia ser trabalhado em diferentes disciplinas, adaptado ao nível dos estudantes. Uma proposta interessante veio de P1: "Até dentro das Ciências da Natureza, quando se fazem experiências, quando se fala sobre bichinhos, animaizinhos, a gente pode ir trabalhando isso dentro do conteúdo: 'Ah! Como funciona, como é o ciclo da vida?' [...] a gente faz com as crianças, de botar a sementinha lá no algodãozinho na terra e ela germina, mas a gente não fala depois que ela morre. O girassol, ele floresce e ninguém fala o que acontece depois".
O medo da reação das famílias
Um obstáculo recorrente nas falas das educadoras foi o receio da reação negativa das famílias caso o tema da morte seja abordado em sala de aula. As participantes compararam a dificuldade de tratar sobre morte com a de abordar sexualidade e até mesmo o Natal, devido às diferentes crenças e valores das famílias.
"Como seria para as famílias se a gente trabalhasse isso? Por que quando a gente trabalha a sexualidade dentro da escola… Gente [incomodada]! É um problema! Todos os anos alguma família complica com isso", desabafou P1. P3 acrescentou um exemplo concreto: "O próprio Natal tem que cuidar! [...] aconteceu em um final de ano: [...] Houve um debate, envolvendo prefeitura, envolvendo a Secretaria de Educação".
A questão religiosa aparece como especialmente delicada. "Complicado também por que cada um tem sua religião, a sua crença [...] uns acreditam em vida após a morte. Outros não. Em reencarnação… Então, são 'N' discussões, né?! E é preciso muito cuidado ao trabalhar com isso dentro de uma escola", ponderou P1.
As educadoras reconheceram que sempre haverá temas que gerarão desconforto em algumas famílias, mas que isso não deveria impedir que assuntos importantes sejam abordados.

Crianças e luto: capacidade de compreensão
Um ponto importante destacado pela pesquisa é que estudos científicos demonstram que crianças de todas as idades conseguem compreender a experiência de perda e separação e passar pelo processo de luto. A literatura acadêmica citada no trabalho indica que a escola pode funcionar como uma base segura para crianças enlutadas, oferecendo continência e suporte em um momento de desorganização.
A pesquisadora cita estudos que apontam que "a morte de um genitor é uma das experiências mais impactantes que a criança pode vivenciar", reforçando a necessidade de que educadores e instituições estejam preparados para acolher estudantes nessas situações. A exclusão das crianças de rituais de despedida, prática comum em nossa cultura, acaba privando-as de oportunidades importantes de elaboração.
Implicações e perspectivas
As conclusões do estudo apontam para a necessidade de ampliar o olhar para a temática da morte e do luto nas escolas. A pesquisa constatou que o tema não costuma ser abordado em sala de aula, circulando apenas quando uma situação de perda se impõe na vida de algum estudante. Fatores culturais regionais, a falta de formação específica dos educadores e o receio da reação das famílias foram identificados como principais obstáculos.
Por outro lado, o estudo revelou que as crianças demonstram estar mais abertas e preparadas para abordar essas questões do que os adultos supõem, manifestando isso espontaneamente através de relatos sobre seus animais de estimação e até mesmo em suas brincadeiras. Além disso, embora não se sintam preparadas, as educadoras demonstram sensibilidade e desenvolvem estratégias de acolhimento quando confrontadas com situações de luto de seus estudantes.
Entre as contribuições práticas da pesquisa, foram elaborados e disponibilizados para as participantes materiais com indicações de livros e filmes como recursos pedagógicos para abordar o tema. A literatura infantil e infanto-juvenil, assim como recursos cinematográficos, foram apontados como dispositivos possíveis para trabalhar a temática em sala de aula de forma adequada à faixa etária.
"Espero que de alguma forma com essa pesquisa eu possa fomentar sobre este tema, contribuindo, ainda que de forma singela, na quebra de tabus e silenciamentos acerca da morte e do luto no ambiente escolar", conclui Suellen Schott em sua reflexão final.


