
O sapinho que desafia o Antropoceno: movimento gaúcho quer reconhecer espécie como patrimônio genético do RS
Por Lucas George Wendt
|Postado em: 10/12/2025, 00:00:00
|Atualizado em: 11/12/2025, 08:29:03
No coração da Serra e dos Vales gaúchos, entre paredões de basalto, mata ciliar e rochas polidas pelo tempo, vive um animal que, mesmo com apenas quatro centímetros, vem se tornando protagonista de um movimento social, científico e político inédito no Rio Grande do Sul.
O sapinho-admirável-de-barriga-vermelha (Melanophryniscus admirabilis), espécie microscópica em distribuição, está no centro de uma mobilização que busca seu reconhecimento oficial como patrimônio genético do Estado, abrindo uma discussão que ultrapassa a Herpetologia e chega ao cerne do que significa viver no Antropoceno, a era geológica marcada pelo impacto humano sobre o planeta.
A crise global dos anfíbios é um dos marcadores mais claros do Antropoceno. Cerca de 40% dessas espécies estão ameaçadas de extinção. A perda de habitats, a poluição da água, o fungo quitrídeo e o aquecimento global criaram um cenário em que a taxa de desaparecimento de anfíbios é dezenas de vezes superior ao esperado em condições naturais.
Microendêmico de um trecho de apenas 700 metros do rio Forqueta, em Arvorezinha (RS), o sapinho pertence a uma linhagem que há milhões de anos se ajustou a ritmos precisos de chuva, temperatura e disponibilidade de micro-hábitats. É uma espécie explosiva na reprodução: emerge das fendas rochosas logo após chuvas intensas, quando pequenas poças temporárias se formam no lajedo, e ali deposita seus ovos em sincronia coletiva.
O comportamento, por si só interessante, coloca o sapinho entre as espécies mais frágeis frente ao colapso climático, às mudanças no regime hidrológico e à pressão por uso da terra, justamente as marcas mais contundentes do Antropoceno. A espécie evoluiu para sobreviver em uma condição altamente particular, e essa especificidade, que antes garantia proteção evolutiva, hoje se torna um risco existencial.
É nesse contexto que o movimento de pesquisadores, moradores, ONGs e instituições culturais e científicas ganha força para defender uma espécie que, em condições naturais, jamais precisaria de intervenção humana para existir. Mas no século XXI, até mesmo os mais resilientes entre os anfíbios enfrentam uma crise global de extinção. E o sapinho-admirável, descoberto apenas em 2006, é hoje símbolo dessa encruzilhada na história da relação humana com o seu entorno.

Envolvimento com a espécie
O biólogo Mathias Hofstätter, mestrando na Universidade do Vale do Taquari - Univates, está pesquisando o gênero Melanophryniscus. Ele relata como o sapinho se tornou seu objeto de estudo. “Recentemente, foi defendida uma tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp por Mariana Pontes, na qual a pesquisadora estudou e avaliou a presença e a ausência de Batrachochytrium dendrobatidis (BD) em espécies do gênero Melanophryniscus no Brasil, incluindo aquelas ocorrentes no Rio Grande do Sul”.
Atualmente, os anfíbios enfrentam um cenário crítico de declínio global, impulsionado tanto pelas mudanças climáticas quanto pelo impacto severo de uma doença infecciosa conhecida como quitridiomicose. A enfermidade é causada pelo fungo referido como BD, responsável por provocar desequilíbrios fisiológicos graves nos animais afetados. Hofstätter relata que o impacto do fungo é expressivo em escala mundial. Até o momento, estima-se que cerca de 90 espécies de anfíbios tenham sido levadas à extinção e que mais de 500 apresentem declínios populacionais importantes. Diante desse quadro, o estudo da quitridiomicose tornou-se um tema de interesse na herpetologia contemporânea.
“Na pesquisa desenvolvida por Mariana Pontes, foi observado que algumas espécies apresentavam cargas fúngicas mais elevadas, enquanto outras registravam níveis menores. Ainda assim, a grande maioria, senão a totalidade, apresentava alguma quantidade de BD no corpo, indicando a presença do quitrídio. Em geral, porém, essas cargas eram baixas, com uma pequena porcentagem da população demonstrando infecção e com pouca manifestação clínica da quitridiomicose. Espécies do gênero Melanophryniscus, por exemplo, não sofrem com a doença e não apresentam sintomas aparentes”, informa o mestrando.
A concepção do meu projeto no qual Hofstätter trabalha surgiu a partir de uma hipótese amplamente discutida na literatura científica, segundo a qual algumas espécies de anfíbios produzem compostos bioativos em suas secreções cutâneas, popularmente chamadas de toxinas, capazes de inibir o crescimento do fungo Batrachochytrium dendrobatidis, responsável pela quitridiomicose.
“O objetivo do projeto é avaliar a presença e a ausência do BD, bem como analisar a sazonalidade da carga fúngica e da manifestação da doença em uma população de Melanophryniscus macrogranulosus. Além disso, serão realizados testes in vitro com secreções cutâneas de diferentes espécies do gênero Melanophryniscus, como M. cambarensis, M. macrogranulosus, M. dorsalis, M. simplex e M. admirabilis, a fim de verificar se essas secreções apresentam efeito inibitório sobre o fungo.
O projeto está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia (PPG-Biotec) e é desenvolvido sob orientação da professora Liana Johann, com coorientação da professora Daiane Heidrich, e de Patrick Colombo, do Departamento de Anfíbios do Museu de Ciências Naturais do Rio Grande do Sul (antiga Fundação Zoobotânica).
A espécie foi descrita em 2006 em um estudo que contou com a participação do então professor da Univates Hamilton Grillo.
Uma mobilização inédita para proteger uma espécie que só existe no RS
O Projeto de Lei nº 119/2024, proposto pelo deputado Matheus Gomes, propõe oficialmente reconhecer o Melanophryniscus admirabilis como patrimônio genético do Rio Grande do Sul. A iniciativa é sobretudo simbólica, buscando elevar o sapinho à categoria de emblema de uma biodiversidade ameaçada, além de alinhar o Estado ao compromisso previsto na Lei Federal nº 13.123/2015, que trata do patrimônio genético brasileiro. O PL altera a Lei nº 15.363, de 5 de novembro de 2019, e dá efetividade para a legislação relativa à proteção dos animais no Estado do Rio Grande do Sul.
O Movimento Pró-Matas Ciliares do Vale do Taquari enviou à Assembleia Legislativa uma carta solicitando a votação imediata do projeto. Segundo Hofstätter, o gesto é importante pois “a maioria das pessoas sequer sabe que essa espécie existe. Reconhecê-la como patrimônio genético não muda só a legislação, muda o imaginário”, explica. No Vale do Taquari, uma região marcada por enchentes recentes, secas extremas e transformações rápidas do uso da terra, a defesa do sapinho também é uma forma de defesa dos lajedos, das matas ciliares e da própria cultura local.
A história do sapinho-admirável já é, por si só, interessante na história da conservação brasileira. Em 2010, em razão de um outro movimento de pesquisadores e ONGs, o Ministério Público interveio e levou o governo estadual a cancelar as licenças de uma obra que mudaria o curso do rio Forqueta e poderia exterminar a espécie em um único impacto. Foi a primeira vez no Brasil, e uma das poucas no mundo, em que um anfíbio motivou uma situação dessa ordem.
O sapinho-admirável como espelho do Antropoceno
O termo Antropoceno tem sido utilizado por cientistas para descrever a era em que o impacto humano altera processos geológicos, hidrológicos e biológicos em escala global. Embora não haja consenso formal sobre sua institucionalização como época geológica, o conceito se tornou amplamente aceito como ferramenta analítica. E poucas espécies representam tão claramente as tensões desse período quanto o Melanophryniscus admirabilis.
Na prática, o sapinho é um organismo cuja vida depende de relações finas entre clima, água e vegetação. Suas condições de sobrevivência são tão restritas que, qualquer alteração ambiental, uma semana a mais de seca, uma chuva fora do padrão, um aporte de agrotóxico trazido pelo vento, pode desequilibrar seu ciclo reprodutivo. O animal existe num espaço-tempo marcado pela delicadeza, constituído por pequenas poças efêmeras são seu berçário, a mata ciliar é seu abrigo, e o ritmo pré-industrial do rio Forqueta é, de certa forma, seu compasso evolutivo.
O Antropoceno, no entanto, é um tempo de perturbações contínuas. Secas prolongadas, chuvas concentradas e enchentes destrutivas tornam imprevisíveis os ambientes antes estáveis. A conversão de paisagens naturais em monoculturas intensivas fragmenta ecossistemas e elimina micro-hábitats que sustentavam espécies endêmicas. Em Arvorezinha e Soledade, municípios que abrigam o sapinho, o avanço da soja e do fumo transformou 17% das áreas de vegetação nativa em lavouras entre 1985 e 2021. A contaminação por agrotóxicos no solo e na água tornou-se uma ameaça direta aos girinos, especialmente vulneráveis a qualquer alteração fisiológica.

Um patrimônio que nasce da vulnerabilidade
Propor que uma espécie seja reconhecida como patrimônio genético significa colocá-la no centro de uma narrativa coletiva. Diferentemente de animais amplamente distribuídos, carismáticos ou explorados economicamente, o sapinho-admirável não faz parte do imaginário popular gaúcho. Não aparece em bandeiras, não vira mascote escolar, não está em esculturas de praças. É um animal tímido, discreto, difícil de ver na natureza e praticamente impossível de observar sem conhecimentos técnicos. Mas é exatamente essa invisibilidade que o movimento quer reverter.
A ideia de patrimônio, expandida para incluir espécies e ecossistemas, dialoga com uma visão contemporânea de conservação, que vê a biodiversidade como parte da cultura, da memória e da identidade dos povos. A defesa do sapinho-admirável, portanto, não é apenas biológica, é também política e emocional e revela o desejo de que o Rio Grande do Sul reconheça seu papel como guardião de um patrimônio vivo que corre risco de desaparecer.
A defesa se tornou ainda mais forte após as enchentes de 2023 e 2024, que devastaram o Vale do Taquari e deixaram marcas profundas na paisagem e na identidade regional. Para muitos ativistas, reconhecer o sapinho como patrimônio genético é um ato de esperança em meio à devastação. É uma forma de dizer que, mesmo diante da destruição climática, ainda há espaço para reconstruir relações sustentáveis com a natureza.
O sapinho-admirável tem uma particularidade científica que o torna ainda mais importante: cada indivíduo pode ser identificado por suas pintas no ventre, como se fossem impressões digitais. A coloração vibrante, verde no dorso, manchas amarelas, extremidades vermelhas, serve como aviso aos predadores de que é tóxico e Ele exibe esse alerta por meio de um comportamento reflexo chamado unken, arqueando o corpo para revelar a barriga vermelha.
A pele do sapinho contém alcalóides que, embora perigosos para predadores, são fonte de interesse para pesquisas biológicas e farmacológicas. Mas o conhecimento sobre a espécie ainda é limitado, justamente pela dificuldade de estudá-la sem interferir em seu habitat.
A Coleção de Zoologia do Museu de Ciências da Univates mantém esforços de documentação e educação ambiental sobre o sapinho.
As ameaças seguem crescendo
Entre 2019 e 2022, cerca de 70 hectares foram desmatados na área de ocorrência da espécie, segundo alertas monitorados pelo Instituto Curicaca. A expansão da agricultura convencional, especialmente soja, aumenta o risco de deriva aérea de agrotóxicos e de contaminação das águas do Forqueta. Além disso, há relatos de pessoas que coletam sapinhos para criar em cativeiro, sem compreender que a retirada de poucos indivíduos pode comprometer toda a dinâmica de reprodução de uma espécie tão pequena em número.
A crise climática adiciona um componente ainda mais imprevisível. Temperaturas mais altas reduzem a permanência de água nas poças de reprodução. Chuvas intensas demais podem destruir ninhos. E períodos de seca podem impedir a reprodução durante temporadas inteiras. No Antropoceno, a sobrevivência de um animal como o Melanophryniscus admirabilis depende menos de sua capacidade evolutiva e mais das escolhas humanas que interferem em um todo.



